EFEITOS DO TRATADO DE LISBOA NA POLÍTICA EXTERNA EUROPEIA

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE DIREITO CURSO DE DIREITO

ANDRÉ FELIPE GONÇALVES PERTUSSATTI

EFEITOS DO TRATADO DE LISBOA NA POLÍTICA EXTERNA EUROPEIA

CURITIBA 2016

ANDRÉ FELIPE GONÇALVES PERTUSSATTI

EFEITOS DO TRATADO DE LISBOA NA POLÍTICA EXTERNA EUROPÉIA

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado ao

Curso de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Augusto do Amaral Dergint

CURITIBA 2016

ANDRÉ FELIPE GONÇALVES PERTUSSATTI

EFEITOS DO TRATADO DE LISBOA NA POLÍTICA EXTERNA EUROPEIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

COMISSÃO EXAMINADORA _________________________________________________ Professor 1 (Prof. Dr. Augusto do Amaral Dergint) Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_________________________________________________ Professor 2 (Prof. Dr. Eduardo Biacchi Gomes) Pontifícia Universidade Católica do Paraná __________________________________________________ Professor 3 (Prof. Dr. Luis Alexandre Carta Winter) Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Curitiba, ____ de ________ de 2016

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo geral analisar as mudanças trazidas pelo Tratado de Lisboa à Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia e o reflexo positivo ou negativo de seus efeitos. A análise se dará tanto de uma perspectiva legal quanto prática, utilizando-se como referência textos, artigos e obras de estudiosos da área. A partir da análise da estrutura institucional e legislativa da política externa europeia, bem como, do estudo comparado da redação dos Tratados fundadores da UE antes e depois do Tratado de Lisboa, denota-se que, apesar de ter sido nomeado como “Tratado da Reforma” em razão de ter proporcionado alterações expressivas em outras áreas, o Tratado de Lisboa foi conservador no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum, preservando seu caráter de intergovernabilidade, além de não ter solucionado completamente os problemas de incoerência que acompanham a Política Externa e de Segurança Comum desde sua criação. Palavras-chave:

Direito

da

União

Europeia.

Direito

Comunitário.

Direito

Internacional. Tratado de Lisboa. Política Externa e de Segurança Comum. União Europeia.

ABSTRACT

This paper main goal is to analyse the amendments brought by the Treaty of Lisbon to the Common Foreign and Security Policy and its positive or negative effects. The analysis will be done in a legal and practical perspective, using texts, articles and essays of specialized scholars as reference. From the analysis of the Common Foreign and Security Policy’s institutional and legislative framework as well as from the compared study of the EU’s founders Treaty texts, before and after Lisbon, It shows that despite It has been named as “Reform Treaty” by reason of providing expressive amendments in other areas, the Lisbon Treaty was conservative in the Common Foreign and Security Policy area, preserving its intergovernmental character, haven’t solved completely the incoherence problems that follows the Common Foreign and Security Policy since your creation. Key Words: European Union Law. Communitarian Law. International Law. Treaty of Lisbon. Common Foreign and Security Policy. European Union.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BCE

Banco Central Europeu

SEBC

Sistema Europeu de Bancos Centrais

CEE

Comunidade Econômica Europeia

CIG

Conferência Intergovernamental

CNE

Conselho dos Negócios Estrangeiros

IAP

Instrumento de Assistência de Pré-Adesão

ONP

Office national des pensions

ONU

Organização das Nações Unidas

OTAN

Organização do Tratado Atlântico-Norte

PCSD

Política Comum de Segurança e Defesa

PESC

Política Externa e de Segurança Comum

PEV

Política Europeia de Vizinhança

SEAE

Serviço Europeu de Ação Externa

TCE

Tratado da Comunidade Europeia

TFUE

Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

TUE

Tratado da União Europeia

UE

União Europeia

UEM

União Econômica e Monetária

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................. .............. 6 2. UNIÃO EUROPEIA E A POLÍTICA EXTERNA: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E COMPETÊNCIAS........................................................... .................................... 7 2.1 DE MAASTRICHT A LISBOA: EVOLUÇÃO INSTITUCIONAL E CONSOLIDAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA...................................................... ... 8 2.2 UNIÃO EUROPEIA COMO AGENTE EXTERNO........................................14 2.2.1 Princípios de ação externa.................................................. ................. 15 2.2.2 Objetivos de ação externa..................................................................... 20 2.3 COMPETÊNCIAS EXTERNAS APÓS O TRATADO DE LISBOA............................................................................................................. 22 3. INSTITUCIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA EUROPEIA............................................................... ........................................ 28 3.1 PERÍODO PRÉ-LISBOA: INCOERÊNCIA E FRAGMENTAÇÃO........................................... ................................................ 28 3.2 A REFORMA DE 2009 E A NOVA DIPLOMACIA EUROPEIA.................................... ................................................................... 30 3.2.1 Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança............. ..................................................................................... 31 3.2.2 Serviço Europeu de Ação Externa: O serviço diplomático da União Europeia....................................... ................................................................... 34 4. REFORMA LEGISLATIVA NA POLÍTICA EXTERNA DA UE..................................................................................................................... 39 4.1 PROCESSOS DE REVISÃO DE TRATADOS............................................................. ......................................... 39 4.1.1 Processo de revisão pré-Lisboa........................................................... 39 4.1.2 Processo de revisão pós-Lisboa: Um “novo” processo............. ....... 42 4.2 ACORDOS INTERNACIONAIS.......................................... ........................ 48 5.TRATADO DE LISBOA E A RELAÇÃO COM PAÍSES VIZINHOS E AMÉRICA LATINA............................... ............................................................................. 55 5.1 IMPLICAÇÕES DE “LISBOA” NA POLÍTICA EUROPEIA DE VIZINHANÇA............................................................................ ........................ 55 5.2 REFLEXOS DO TRATADO DE LISBOA NA RELAÇÃO UE-AMÉRICA LATINA....................................................................... ...................................... 59 6. CONCLUSÃO............................. ................................................................. 63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................65

6

1. INTRODUÇÃO

Após a rejeição do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, a comunidade europeia sentiu que uma reforma era necessária e, alguns anos depois, o Tratado de Lisboa foi assinado e ratificado por todos os Estados-Membros em 2009, trazendo consigo uma proposta de reformulação e solução dos problemas presentes na conjuntura da União Europeia na época. O Tratado de Lisboa teve sua redação baseada no Tratado Constitucional europeu, mas com uma abordagem diversificada, na qual trouxe alterações, com a proposta de realizar uma “grande reforma” na estrutura da UE, inserindo alterações nas mais diversas políticas da UE, sendo a Política Externa e de Segurança Comum uma delas.

O presente trabalho possui o objetivo de analisar os reflexos que resultaram das alterações que o Tratado de Lisboa inseriu no contexto da política externa da União Europeia, chegando-se a uma conclusão acerca dos efeitos positivos ou negativos dessas alterações. A análise se inicia com um estudo introdutório, abordando a evolução da Política Externa e de Segurança Comum no contexto das reformas sofridas pelos Tratados da UE, a fim de possibilitar o entendimento do porque se chegou ao Tratado de Lisboa, além de adentrar ao tema com o estudo acerca das alterações nas competências externas. Em seguida, é feita uma análise da reforma institucional da Política Externa e de Segurança Comum, bem como dos novos postos e instrumentos à disposição da União Europeia para sua ação externa.

Em um momento posterior, será feito um estudo comparado da conjuntura legislativa antes e depois do Tratado de Lisboa, explorando as alterações em dois processos legislativos específicos: o processo de revisão dos Tratados da UE e o processo de celebração e ratificação de acordos internacionais. Por fim, este estudo se encerra com um capítulo acerca de como as alterações do Tratado de Lisboa na Política Externa e de Segurança Comum, analisadas nos capítulos anteriores, refletiram de forma colateral nas relações da União Europeia com países vizinhos e outras regiões do globo, mais especificamente a América Latina.

7

2. UNIÃO EUROPEIA E A POLÍTICA EXTERNA: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E COMPETÊNCIAS O tema das relações exteriores começou a ganhar lugar na pauta de discussões da Comunidade Europeia a partir da assinatura do Tratado de Maastricht em 7 de Fevereiro de 1992. Anteriormente, em especial no período pós-segunda guerra mundial, não havia integração e estrutura suficientes para gerar a ambição dos países europeus de uniformizar sua política externa, pois se buscava apenas pacificação e cooperação política através das Comunidades Europeias, criadas por meio do Tratado de Paris e dos Tratados de Roma, conforme ensina Mark Gilbert (2012, p.9):

A guerra terminou na Europa em Maio de 1945. Ela deixou a infraestrutura do continente em pedaços e as pessoas divididas por conflitos ideológicos e ressentimentos nacionalistas. Ainda, cinco anos depois, seis nações da Europa Ocidental, incluindo França e a recém-fundada República Federal da Alemanha, haviam começado negociações para deixar a produção de suas indústrias de carvão e aço sob o controle de uma “Alta Autoridade” com poderes de tomada de decisão supranacionais. Vários intelectuais e políticos importantes estavam, em Maio de 1950, inclusive advogando pela criação de um “Estados Unidos da Europa” com traços americanos.

1

Com a entrada em vigor do Tratado da União Europeia em novembro de 1993, ocorreu um aumento significativo da integração, que se estendeu por várias áreas, entre elas, a política externa, que foi assegurada como objetivo a ser atingido pela União, conforme artigo B das disposições comuns do Tratado de Maastricht2.

1

Texto original: “The war ended in Europe in May 1945. It left the continent’s infrastructure in pieces and its peoples divided by ideological conflict and nationalists resentments. Yet a mere five years later, six West European nations, including France and the newborn Federal republic of Germany, had begun negotiations to place production of their key coal and steel industries under the control of a “High Authority” with supranational decision-making powers. Many leading intellectuals and politicians were by May 1950 even advocating the creation of a ‘United States of Europe’ along American lines.” 2

ArtigoB - A União atribui-se os seguintes objectivos: A afirmação da sua identidade na cena internacional, nomeadamente através da execução de uma política externa e de segurança comum, que inclua a definição, a prazo, de uma política de defesa comum, que poderá conduzir, no momento próprio, a uma defesa comum;

8

A partir deste ponto da história da União Europeia (UE), estabeleceram-se os princípios que regeriam as ações da UE, seus objetivos para o futuro3, a competência de atuação dos Conselhos (Europeu e da União Europeia) no âmbito da Política Externa e Segurança Comum e a definição de um procedimento de tomada de ação comum4, com o objetivo de uniformizar a atuação da UE e seus países-membros.

2.1.

DE

MAASTRICHT

A

LISBOA:

EVOLUÇÃO

INSTITUCIONAL

E

CONSOLIDAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA

O Tratado de Maastricht trouxe a base para o que o tratado chama de “uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões serão tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos” 5. Esta base foi constituída sobre três áreas: As antigas Comunidades Europeias fundadas pelos Tratados de Paris e Roma, A Política Externa de Segurança Comum e a área de Justiça e dos Assuntos Internos. Esta estrutura ficou conhecida como “A Estrutura dos Três Pilares”. Sobre o assunto, preleciona Berman (2012, p.37): Além das três Comunidades, o TUE (Tratado da União Europeia) criou duas novas áreas de cooperação nas áreas de Política Externa e Segurança Comum e no domínio da Justiça e dos Assuntos Internos, cobrindo os temas relativos ao Direito Civil, Penal e de Imigração. Estas foram mantidas como títulos separados no

TUE,

operando mais em uma base

intergovernamental que supranacional. Uma nova entidade maior, ‘a União Europeia’ foi fundada para cobrir ambas as áreas existentes das 6

Comunidades Europeias e as duas novas áreas intergovernamentais .

3

Artigo B das Disposições Comuns do Tratado da União Europeia Artigo J.3 do Tratado de Maastricht 5 Artigo A do Tratado de Maastricht 6 Texto original: “Alongside the original three Communities, the TEU created two new areas of cooperation in the areas of Common Foreign and Security Policy (CFSP) and Justice and Home Affairs (JHA) covering criminal and civil justice matters and immigration. These were kept distinct, as separate Titles in the TEU itself, operating on an intergovernmental rather than supranational basis.15 A new overarching entity, ‘the European Union’ was established to cover both the existing European Communities and the two new intergovernmental areas”. 4

9

Para que fosse possível a criação de uma entidade como a União Europeia, foi preciso promover reformas no Tratado que constituiu a Comunidade Econômica Europeia, que passou a chamar-se Comunidade Europeia. Dentre as inovações mais relevantes, destacam-se o aumento da relevância institucional e legislativa do Parlamento Europeu com a criação do procedimento de Co-decisão, que concedeu ao Parlamento poder de veto sobre propostas legislativas, evitando que qualquer medida fosse adotada sem a sua aprovação e do Conselho Europeu. Martin Westlake (1994, citado por CRAIG e DE BÚRCA, 2011, p.56), afirma que: “a Comissão Europeia reconheceu a necessidade de aumentar a cooperação interinstitucional e tinha que elaborar as propostas legislativas visando tanto a aprovação do Parlamento Europeu quanto do Conselho”. O Tratado da UE trouxe uma ampliação do campo de competências do Parlamento, investindo-o de poderes como o de requisitar à Comissão Europeia a elaboração de uma proposta legislativa referente a uma determinada matéria, bem como, para exercer o poder de veto sobre as indicações feitas pelos governos dos países-membros para a formação de uma nova Comissão, procedimento que ocorre de cinco em cinco anos. Além da ampliação de poderes legislativos das instituições europeias, foram implementadas outras mudanças relevantes como a positivação do princípio da subsidiariedade7, que delimita a divisão de competências de atuação da Comunidade Europeia e dos Estados-Membros, assegurando que a Comunidade Europeia apenas intervirá nas ações de competência dos Estados-Membros, se estes não conseguirem alcançar os objetivos propostos ou se constatar-se que a atuação em nível comunitário obterá melhores resultados, e a implementação do conceito de cidadania europeia, sendo um grande passo para o que mais tarde virá a tornar-se uma zona comum com livre trânsito de pessoas entre os nacionais dos países-membros da União Europeia. Apesar das grandes reformas institucionais em prol de uma integração política maior, uma das reformas mais importantes trazidas pelo Tratado de Maastricht está nas instituições europeias para a adoção de uma União Econômica e Monetária (UEM), através do estabelecimento de uma ação comum dos países-membros em termos de políticas econômicas. Esta ação comum foi efetivada com a adoção de 7

Artigo 3º- B do Tratado da Comunidade Europeia

10

uma moeda única, colocando um fim na flutuação das taxas de câmbio entre as moedas dos países-membros, além da instituição de um Banco Central Europeu (BCE) e um Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), conforme previsto no Relatório Delors8. Essas medidas culminaram na introdução oficial do euro em 1º de Janeiro de 1999 e o início de sua circulação em 2002. Nos anos seguintes a assinatura do Tratado de Maastricht, a UE desfrutou de um crescimento considerável com a criação do mercado único, estabelecendo as “quatro liberdades”, quais sejam, a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais e a aderência de novos países como a Áustria, a Finlândia e a Suécia.

Com todo esse crescimento em andamento, alguns representantes de

Estados-Membros importantes viam a necessidade de uma revisão e reforma no Tratado da UE de 1993, tendo o assunto sido levado à discussão na Conferência Intergovernamental (CIG) de 1996. Durante a Conferência, as instituições europeias como o Parlamento Europeu (Parlamento), a Comissão Europeia (Comissão) e o Conselho Europeu, afirmaram haver uma falta de eficiência da integração europeia e assim como os representantes dos países-membros, reclamaram por mudanças em alguns temas específicos como no processo legislativo ordinário (ou de co-decisão), defesa, hierarquia de normas, além da revisão dos pilares de Política Externa e Segurança Comum e Justiça e assuntos internos previstos nos Títulos V e VI do Tratado da UE. Todas estas discussões da CIG acerca de melhora de efetividade e reforma institucional para expansão seriam materializados alguns anos depois com a assinatura do Tratado de Amsterdã. O Tratado de Amsterdã foi assinado em 2 de outubro de 1997 e entrou em vigor em 1º de maio de 1999 e trouxe em seu texto algumas mudanças institucionais almejadas desde 1996 , como o aumento da extensão do processo legislativo ordinário, as mudanças nas áreas de Política Externa e Segurança Comum e Justiça

8

O Relatório Delors foi um relatório feito por uma Comissão presidida pelo francês Jacques Delors, e composta pelos governadores dos Bancos Centrais dos Países-Membros da UE, além de três especialistas em assuntos monetários. O relatório foi uma tarefa atribuída à Comissão pelo Conselho Europeu durante o Conselho Europeu de Hannover em 1988. O relatório possuía a finalidade de analisar a viabilidade e meios para se alcançar uma união econômica e monetária na Europa, tendo a Comissão definido que esta união deveria ser alcançada em três estágios. O relatório foi apresentado e adotado durante o Conselho Europeu de Madrid em 1990. Ver em CHALMERS, 2010. p.714

11

e Assuntos Internos, que não tiveram o impacto esperado, tendo sido alvo de muitas críticas e a criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, que segundo Damian Chalmers (2010, p. 28): “ Se os monumentos centrais do Ato Único Europeu e Maastricht foram o mercado interno e a UEM [União Econômica e Monetária], respectivamente, então a Área de Liberdade, de Segurança e de Justiça (ALSJ) ocupou um lugar similar no Tratado de Amsterdã.”9 A criação dessa área se deu através da incorporação do Acordo de Schengen de 198510, que previa uma extinção gradual das fronteiras internas entre os Estados pactuantes, deslocou a competência legislativa para o Conselho Europeu de matérias como livre movimento de pessoas, vistos, asilo e imigração, que antes pertenciam ao pilar de Justiça e Assuntos Internos e incluiu o princípio da transparência ao Tratado da Comunidade Europeia, garantindo o direito de acesso aos documentos da Comunidade Europeia à qualquer cidadão da UE. Nos anos seguintes, a União Europeia recebeu a inclusão de dez novos Estados-Membros, sendo a maioria oriunda do Leste Europeu e da Europa Central, que aceitaram uma política de condicionamento para integrar a zona do Euro. Segundo Heather Grabbe (1999, citado por CRAIG e DE BÚRCA, 2011, p.21), a política de condicionamento significava que foi requerido aos estados candidatos a adaptação de suas leis e instituições de maneira significativa antes de uma data de acessão ser marcada, em uma época em que eles tinham pouca ou nenhuma influência nas políticas e leis europeias. Com um crescimento cada vez maior, e a mudança do cenário mundial, que se tornava cada vez mais globalizado, era preciso uma reforma dos fundamentos institucionais, uma simplificação das ferramentas legais e uma reorganização da divisão de competências entre a União Europeia e seus Estados-Membros, além do aumento do papel dos Parlamentos Nacionais e uma revisão da estrutura dos pilares da União Europeia. Toda esta problemática acerca da necessidade de uma reforma foi discutida no Conselho Europeu de Laeken de 14 e 15 de dezembro de 2001 e constada em uma Declaração, que definiu que para a solução dos problemas da UE, 9

Texto original: “If the central monuments of the SEA and Maastricht were the internal market and EMU, respectively, then the Area of Freedom, Security and Justice (AFSJ) occupied a similar place for the Treaty of Amsterdam.” 10 Protocolo B do Tratado de Amsterdã. Disponível em: . Acesso em 15 Out 2015

12

deveria ser estabelecida uma Convenção para o Futuro da Europa. (BERMAN, 2012, p.41). A Convenção foi estabelecida em 28 de fevereiro de 2002 e era composta de representantes dos governos e parlamentos nacionais dos países-membros, pelo Parlamento Europeu e a Comissão Europeia. A Convenção definiu que os trabalhos seriam feitos em três estágios: um primeiro estágio, onde a Convenção buscou escutar, as ideias acerca das expectativas e necessidades dos cidadãos europeus. Uma segunda fase onde estas ideias foram estudadas e discutidas por grupos de trabalho separadamente e uma terceira fase onde a Convenção discutiu os artigos para o estabelecimento de um Tratado Constitucional para a Europa, tendo submetido o projeto do tratado ao Conselho Europeu em Julho de 200311. O texto do Tratado Constitucional foi analisado e discutido em uma CIG, onde foram feitos alguns aditamentos ao texto proposto. O texto foi aprovado na Reunião do Conselho Europeu em 2004, mas ainda precisava ser ratificado. Quinze EstadosMembros ratificaram o Tratado Constitucional, mas a Holanda e a França tiveram a ratificação negada nos referendos realizados com seus cidadãos. Nas palavras de Vassallo (2008, p.411): “O futuro do Tratado Constitucional da UE é agora claro: A Constituição da UE está morta”12. A rejeição do Tratado Constitucional Europeu levou a União Europeia a um clima de incertezas na Comunidade Europeia, levando o Conselho Europeu a ter um “período de reflexão” de dois anos. Em Junho de 2007, na reunião do Conselho Europeu, foi convencionado que uma nova CIG deveria ser realizada, onde o Conselho indicaria, em termos de conteúdo e estrutura, as mudanças a serem feitas no Tratado Constitucional, de forma que um Tratado revisado pudesse ser feito. Dentre as alterações previstas para o novo Tratado, uma delas era a simplificação da estrutura da UE, renomeando o Tratado que estabelece a Comunidade Europeia para Tratado de Funcionamento da União Europeia e a criação de um Alto Representante dos Negócios Estrangeiros para assuntos relativos à Política Externa13.

11

CRAIG/DE BÚRCA, 2011, p. 22 Texto original: “[T]he future of the EU Constitutional Treaty is now clear: the EU Constitution is dead”. 13 CRAIG/DE BÚRCA, 2011, p. 25 12

13

O Tratado foi aprovado durante a CIG 2007 em Lisboa, mas passou a vigorar apenas em Dezembro de 2009, devido à rejeição em um primeiro referendo na Irlanda e a rejeição pela Corte Constitucional da República Tcheca. O francês JeanClaude Piris14, a partir de uma análise dos dispositivos do Tratado de Lisboa, concluiu com maestria que:

Por um lado, [O Tratado de Lisboa] dá a União uma nova estrutura legal que oferece um melhor potencial de progresso. Na maioria, se não todas, as reformas substanciais imaginadas no Tratado Constitucional foram preservadas. O Tratado trouxe estruturas, procedimentos e mecanismos avançados que irão potencialmente permitir à União desenvolver-se no futuro. [...] Por outro lado, o Tratado de Lisboa é um retrocesso político para os integracionistas. Pela primeira vez, eles têm sido obrigados a recuar e aceitar que esse recuo é visível. Eles têm sido obrigados a aceitar que o desaparecimento de qualquer palavra ou símbolo que indicavam uma preocupação que a União poderia ser comparada a uma entidade, possuindo mais e mais elementos em comum com um Estado. Isso é um evento político importante, e o ideal de uma entidade federal europeia foi seriamente ferido15.

Diante do exposto, é possível perceber que a evolução dos Tratados da UE é marcada por uma série de emendas que, ao longo do tempo adequaram seu ordenamento jurídico, de forma a acompanhar o aumento do número de Estados Membros e a integração no futuro. Todavia, depreende-se também que, a assinatura do Tratado de Lisboa foi alvo de críticas por alguns estudiosos que consideram algumas das inovações trazidas como um retrocesso, pelo fato de enfraquecerem o caráter supranacional da União Europeia, e reforçarem, em termos de política externa, características de um sistema intergovernamental.

14

PIRIS, 2010, p. 48 Texto original: “On the one hand, gives the EU a new legal framework which offers better potencial to progress. Most, If not all, of the substantive reforms envisaged in the Constitutional Treaty have been preserved The Treaty brings forward structures, procedures and mechanisms which will potencially allow th Union to develop further in the future. [...] [O]n the other hand, the Lisbon Treaty is a political backlash for the integrationists. For the first time, they have been obliged to retreat and to accept that their retreat is visible. They have been obliged to accept the disappearance of any word or symbol which aimed at stressing that the Union could be compared to an entity having more and more elements in common with a state. This is an important political event, and the ideal of a federal European entity has been seriously damaged”. 15

14

2.2.

UNIÃO EUROPEIA COMO AGENTE EXTERNO

Para muitos estudiosos do Direito da União Europeia, a personalidade jurídica da União Europeia é indefinida e ainda não se chegou a um consenso. Fraser Cameron (2012, p.5) define a União Europeia como: “um animal estranho, não é um estado, mas com mais poderes que vários estados-nações no sistema internacional”, enquanto Damian Chalmers (2010, p.632) a define como uma organização internacional ao afirmar que: ”A União não é a única organização internacional a desfrutar de uma personalidade jurídica”. A natureza jurídica da personalidade de uma entidade de direito internacional indica o tratamento jurídico a ser dado a ela. Sobre o assunto, ensinam Van Vooren/Wessel (2014, p.60):

É exatamente por isso que é importante classificar a UE dentro do direito internacional. Alguns diriam que a UE é um estado; vários diriam que é uma entidade internacional sui generis. Direito internacional, entretanto, apenas funciona quando é aplicado através da fronteira para certas categorias de agentes internacionais. [...] Os Tratados ainda são omissos neste assunto. O artigo 1 do Tratado da UE apenas se refere ao fato de que ‘as Altas Partes Contratantes

instituem entre si uma União Europeia’ e que essa

União ‘substitui e sucede a Comunidade Europeia’. Isso ainda não dá uma resposta para a questão clássica de se a União é uma organização internacional ou outra coisa. Essa pode ser a razão pela qual os livros estão ainda incertos sobre a natureza jurídica da União e parecem ter a 16

preferência por noções mais políticas .

Apesar de não haver uma unanimidade em sua definição, a União atua de forma constante nos assuntos internacionais devido a seu desenvolvimento interno, que 16

Texto original: “This is exactly why it is important to classify the EU under international law. Few would argue that the EU is a state; many would say that it is an international entity sui generis. International law, however, only works when it is applied across the board for certain categories of international actors.[...] The Treaties are still silent on this issue. Article 1 TEU merely refers to the fact that ‘the High Contracting Parties establish among themselves a European Union’ and that this Union ‘shall replace and succeed the European Community’. Thus, it still does not give an answer to the classic question of whether the EU is an international organization or something else. This may also be the reason that textbooks are still uncertain about the legal nature of the Union and seem to have a preference for more political notions”.

15

proporciona um poderio político-econômico se relacionando constantemente com países terceiros e organizações internacionais como a ONU e a OTAN, por exemplo. Para um melhor entendimento da atuação da UE nas suas relações internacionais, mister se faz compreender os fundamentos das ações da UE e delimitar suas competências de atuação.

2.2.1. Princípios de Ação Externa

A União Europeia (UE), no seu papel de agente externo, atua na relação com países terceiros e organizações internacionais fundada no princípio da coerência. A aplicação deste princípio se dá com dois diferentes desdobramentos: o primeiro desdobramento é a coerência horizontal, que é a coerência que deve ser mantida entre as ações realizadas no âmbito da política externa com as políticas operadas em outras áreas da UE. Para garantia desta coerência, o parágrafo nº 3 do artigo 21º do Tratado da União Europeia17, assegura a cooperação do Conselho e a Comissão Europeia, assistidos pelo Alto Representante dos Negócios Estrangeiros quando necessário, no sentido de manter as ações no âmbito da política externa consonantes com as outras políticas da UE18. Entretanto, a UE nem sempre exerce sua política externa através do ente “União”, dotado de personalidade jurídica, conforme preceitua o artigo 47º do Tratado da UE19. A União Europeia pode operar no âmbito internacional através de seus Estados-Membros, que operam suas políticas externas nacionais de forma coerente às orientações da UE. Esta sincronia existente entre as ações dos Estados-Membros e da UE na política externa decorre do segundo desdobramento do princípio da coerência: a coerência vertical entre a União Europeia e seus Estados-Membros, que cria este “vínculo obrigacional” dos Estados-Membros em

17

A União vela pela coerência entre os diferentes domínios da sua acção externa e entre estes e as suas outras políticas. O Conselho e a Comissão, assistidos pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança asseguram essa coerência e cooperam para o efeito. 18 KOEHLER, 2010, p. 59 19 A União tem personalidade jurídica.

16

alinhar sua política externa com a da UE e encontra previsão expressa nos parágrafos 2 e 3 do artigo 24º do Tratado da União Europeia20. Além do princípio da coerência mencionado acima, as ações externas da UE são norteadas por outros princípios, que na sua maioria encontram-se consagrados no parágrafo 121 e em outros artigos do Tratado da União Europeia como o princípio da atribuição22, da cooperação leal23 e do equilíbrio institucional24. O primeiro princípio possui o caráter de delimitador de competências no âmbito das relações internacionais da União Europeia e dos seus Estados-Membros e será tratado na seção oportuna. No tocante ao princípio da cooperação leal, em suma, sua redação assegura um dever de respeito e assistência mútua entre a União Europeia e seus EstadosMembros nos objetivos estabelecidos nos Tratados. Em razão do seu caráter abstrato, coube ao Tribunal de Justiça da União Europeia a tarefa de interpretá-lo de maneira contextualizada aos casos concretos, onde o princípio da cooperação leal possui um papel instrumental, principalmente na resolução de conflitos entre a legislação europeia e a legislação nacional dos Estados-Membros, como no caso Aliny Wojciechowski contra Office national des pensions (ONP)25. No caso mencionado, o conflito originou-se pelo fato de a parte autora ter trabalhado por um período de sua vida como trabalhadora assalariada na Bélgica e outro em um cargo na Comissão Europeia, instituto importante da UE. O ONP, órgão de serviço social belga, ao analisar o pedido de pensão por aposentadoria da autora, 20

2. No quadro dos princípios e objectivos da sua acção externa, a União conduz, define e executa uma política externa e de segurança comum baseada no desenvolvimento da solidariedade e política mútua entre os Estados-Membros, na identificação das questões de interesse geral e na realização de um grau de convergência crescente das acções dos Estados-Membros. 3. Os Estados-Membros apoiarão activamente e sem reservas a política externa e de segurança da União, num espírito de lealdade e de solidariedade mútua, e respeitam a acção da União neste domínio. 21 1. A acção da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objectivo promover em todo o mundo: democracia, Estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, respeito pela dignidade humana, princípios da igualdade e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional. 22 Parágrafo 1 do Artigo 5º do TUE 23 Parágrafo 3 do artigo 4º do TUE 24 Parágrafo 2 do Artigo 13º do TUE 25 Processo C-408/14. Aliny Wojciechowski contra Office national des pensions (ONP) [2015] ECLI:EU:C:2015:591

17

aplicou a legislação nacional ao caso concreto (Decreto real nº 50 de 1967), que se mostrou extremamente oneroso à autora, levando-a a postular a aplicação do regime de pensões definido no Estatuto dos Funcionários da União Europeia junto ao Tribunal do Trabalho da Bélgica, que dada à questão prejudicial de conflito de legislações, submeteu-a ao Tribunal da União Europeia com base no artigo 267 do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia)26.Em sede de análise do pedido de decisão prejudicial, a Terceira Secção do Tribunal de Justiça da UE, sob a luz do princípio da cooperação leal, decidiu em Acórdão27 proferido, pela aplicação do regime de pensões contido no Estatuto dos Funcionários da União Europeia, esclarecendo o seguinte:

Há que recordar que o direito da União não prejudica a competência dos Estados-Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social e que, na falta de harmonização a nível da União, compete à legislação de cada Estado-Membro determinar as condições que conferem direito a prestações em matéria de segurança social. No entanto, não deixa de ser verdade que, no exercício dessa competência, os Estados-Membros devem respeitar o direito da União (acórdão Melchior, C-647/13, EU:C:2015:54, n.º 21 e jurisprudência referida), o qual inclui os princípios consagrados pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência relativa à interpretação do princípio

da cooperação leal em

conjugação

com

o

Estatuto

[dos

Funcionários da União Europeia].

A decisão colegiada mencionada demonstra a retirada do princípio da cooperação leal do seu caráter abstrato no Tratado da UE, dando a ele um caráter de instrumentalidade, instrumento esse utilizado pelo Tribunal de Justiça da UE para solução dos conflitos de legislação, mantendo desta forma o respeito e assistência mútuos na relação entre a União Europeia e seus Estados-Membros. O princípio da cooperação leal encontra-se previsto nas disposições comuns do Tratado da UE, 26

Artigo 267º: O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. 27 Processo C-408/14 Aliny Wojciechowski contra Office national des pensions (ONP) [2015] ECLI:EU:C:2015:591

18

possuindo um caráter de interdisciplinaridade, ou seja, é um princípio comum a todas as áreas da União Europeia, inclusive a política externa, realizando a manutenção da cooperação e coerência nas relações da UE com países terceiros e organizações internacionais, além de assegurar que os países-membros cooperem com a UE respeitando o princípio da coerência vertical28. Acerca do assunto, destaca-se o caso 459/03 Comissão das Comunidades Europeias contra Irlanda, decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, quando no caso em questão, A República da Irlanda era membro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar juntamente com a UE e em uma tentativa de resolver um impasse diplomático decorrente da interpretação de um dispositivo da presente convenção, a Irlanda instaurou um Tribunal Arbitral com o Reino Unido para resolução da questão, conforme permitia a Convenção em sua redação. Entretanto, por se tratar de uma convenção que tratava do meio-ambiente, matéria cuja competência para celebrar tratados é mista, ou seja, tanto da União quanto de seus Estados-Membros, a Irlanda submeteu a questão a uma jurisdição diversa do Tribunal de Justiça da UE sem consultá-la, o que resultou no ajuizamento, por parte da Comissão das Comunidades Europeias, de uma Ação de Incumprimento de Estado contra a Irlanda. No acórdão proferido pela Grande Secção do Tribunal de Justiça europeu foi prolatada a seguinte decisão:

5.

Os Estados‑Membros e as instituições comunitárias estão vinculados a

uma obrigação de cooperação estreita na execução dos compromissos que assumiram por força de uma competência partilhada para celebrar um acordo misto. É assim especialmente no caso de um diferendo que diz essencialmente respeito a compromissos decorrentes de um acordo misto que fazem parte de um domínio em que as competências da Comunidade e dos Estados‑Membros são susceptíveis de estar estritamente imbricadas. O facto de se submeter um diferendo desta natureza a um órgão jurisdicional como um tribunal arbitral constituído em conformidade com o anexo VII da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar implica o risco de que um tribunal diferente do Tribunal de Justiça se pronunciar sobre o

28

CRAIG/DE BÚRCA, 2011, p.359-360

19

alcance de obrigações decorrentes, para os Estados‑Membros, do direito comunitário. Nestas condições, a obrigação de cooperação estreita no quadro de um acordo misto implica para um Estado‑Membro o dever de informação e de consulta prévias das instituições comunitárias competentes antes de desencadear um processo de resolução do diferendo no quadro da convenção

29 .

No acórdão proferido, O Tribunal de Justiça entendeu pela violação do princípio da cooperação por parte da Irlanda, pois ao submeter o impasse com o Reino Unido a uma jurisdição diversa da europeia, a Irlanda estava dando a outro órgão o poder de decidir acerca do alcance das obrigações dos Estados-Membros com relação a convenções e tratados celebrados pela Comunidade Europeia. A partir de uma análise jurisprudencial do Tribunal de Justiça, conclui-se que o princípio da cooperação leal é aplicado com eficácia na resolução de conflitos tanto na esfera dos assuntos domésticos da União Europeia (caso Aliny Wojciechowski), quanto nos assuntos que extrapolam a fronteira comunitária (caso Irlanda), sendo neste último um controlador da atividade externa dos Estados-Membros europeus. Além do princípio da cooperação leal, a União Europeia rege seus atos no âmbito da política externa pelo princípio do equilíbrio institucional, que encontra previsão no parágrafo 2 do artigo 13º do Tratado da UE, in verbis: “Cada instituição actua dentro dos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados, de acordo com os procedimentos, condições e finalidades que estes estabelecem. As instituições mantêm entre si uma cooperação leal”. Pelo princípio do equilíbrio institucional, são concedidas atribuições e competências para cada uma das instituições da União Europeia dentro do processo de tomada de decisões, que devem atuar dentro destas. Para o professor da Universidade de Oxford, Paul Craig, esta divisão de atribuições foi adotada com o objetivo de garantir que o processo de tomada de decisões serviria o interesse público ao invés do interesse de uma pequena fração da sociedade civil30. 29

Processo C-459/03 Comissão ECLI:EU:C:2006:345 Grifou-se. 30 CRAIG/DE BÚRCA, 2011, p.41

das

Comunidades

Europeias

contra

Irlanda

[2006]

20

Apesar de haver certa semelhança, o princípio do equilíbrio institucional não se confunde com o princípio da separação de poderes de Montesquieu, como bem afirmaram Van Vooren/Wessel (2014, p. 66): O princípio do equilíbrio institucional não significa que há uma ‘balança de poderes’, onde cada uma das sete instituições pode ser rotulada como sendo parte do Executivo, Legislativo e Judiciário. Pelo contrário, seu significado é mais formal na essência e envolve que a cada uma destas instituições foi dada uma ‘função específica’ e um conjunto de competências no processo de tomada de decisão da União (Artigos 13-19 do TUE).O princípio do equilíbrio institucional simplesmente significa que essa divisão de poderes estabelecida pelos Tratados é para ser respeitada.31

Dessa forma, o princípio do equilíbrio institucional não estabelece uma separação de poderes, mas apenas confere competências às instituições da UE e delimita sua capacidade de agir, tratando-se apenas de um princípio desprovido de valor constitucional. 2.2.2. Objetivos de Ação Externa

Além de princípios que norteiam suas ações, A União Europeia executa suas ações fundadas em objetivos, que estão previstos no artigo 21º do Tratado de Lisboa: 1. A acção da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objectivo promover em todo o mundo: democracia, Estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, respeito pela dignidade humana, princípios da igualdade e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional. A União procura desenvolver relações e constituir parcerias com os países terceiros e com as organizações internacionais, regionais ou mundiais que partilhem dos princípios enunciados no primeiro parágrafo. Promove 31

Texto original: “The principle of institutional balance then does not mean that there is a ‘balance of powers’ whereby each of these seven institutions can be labelled as being part of the executive, legislative and judicial branch. Rather, its meaning is more formal in nature and entails that each of these institutions has been given a ‘specific function’ and set of competences in the decision-making process of the Union (Articles 13–19 TEU). The principle of institutional balance simply means that this division of powers established by the Treaties is to be respected”.

21

soluções multilaterais para os problemas comuns, particularmente no âmbito das Nações Unidas. 2. A União define e prossegue políticas comuns e acções e diligencia no sentido de assegurar um elevado grau de cooperação em todos os domínios das relações internacionais, a fim de: a) Salvaguardar os seus valores, interesses fundamentais, segurança, independência e integridade; b) Consolidar e apoiar a democracia, o Estado de direito, os direitos do Homem e os princípios do direito internacional; c) Preservar a paz, prevenir conflitos e reforçar a segurança internacional, em conformidade com os objectivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, com os princípios da Acta Final de Helsínquia e com os objectivos da Carta de Paris, incluindo os respeitantes às fronteiras externas; d) Apoiar o desenvolvimento sustentável nos planos económico, social e ambiental dos países em desenvolvimento, tendo como principal objectivo erradicar a pobreza; e) Incentivar a integração de todos os países na economia mundial, inclusivamente através da eliminação progressiva dos obstáculos ao comércio internacional; f) Contribuir para o desenvolvimento de medidas internacionais para preservar e melhorar a qualidade do ambiente e a gestão sustentável dos recursos naturais à escala mundial, a fim de assegurar um desenvolvimento sustentável; g) Prestar assistência a populações, países e regiões confrontados com catástrofes naturais ou de origem humana; e h) Promover um sistema internacional baseado numa cooperação multilateral reforçada e uma boa governação ao nível mundial

Segundo Koutrakos (2015, p.13) “a articulação de um conjunto comum de objetivos que deveriam ser atingidos, não importa o que a União faça no mundo, preveniria uma fragmentação política, fortaleceria a coerência e facilitaria a coordenação”32. O ilustre professor interpreta de forma integracionista e comunitária o artigo 21 do Tratado da UE, que vê dotado de objetivos que visam promover uma aproximação com outros Estados pelo crescimento econômico e pela promoção dos princípios contidos na Carta das Nações Unidas. Mas há quem veja no texto do referido artigo um interesse particular da UE inserido, como o Professor Damian Chalmers (2010, p. 636), que na sua interpretação afirma que:

32

Texto original: “[T]he articulation of a common set of objectives which would be achieved by whatever it is the Union does in the world would prevent policy fragmentation, enhance coherence and facilitate coordination”.

22

“Um segundo tema implícito no Artigo 21 (1) é como a União pretende influenciar a política de desenvolvimento de países terceiros: há uma cooperação próxima com eles, na condição que eles compartilhem dos princípios políticos da União”33. Ou seja, a cooperação pela promoção do crescimento econômico e dos valores previstos nos objetivos só é firmada pela UE com países que estejam dispostos a exercer uma política embasada nos “princípios europeus”, o que pode acabar tornando-se um artifício para a União Europeia influenciar a ordem econômica mundial, pois se levarmos em consideração que a União Europeia é um dos blocos econômicos mais bem sucedidos em termos de integração política e econômica, essa condição de supremacia, poderia fazer muitos países de fora da comunidade europeia amoldarem suas políticas externas na forma dos princípios políticos da UE como “um pequeno preço a pagar” para cooperar com este, e consequentemente, alcançar um crescimento econômico e desfrutar de benefícios de ordem política, como acordos bilaterais.

Uma vez delimitados os princípios pelos quais a União Europeia atua e os objetivos que defende em suas relações internacionais, resta delimitar o alcance de sua competência e de seus Estados-Membros para o exercício de ação baseado nestes princípios e direcionada a tais objetivos.

2.3.

COMPETÊNCIAS EXTERNAS APÓS O TRATADO DE LISBOA

Uma das novidades trazidas pelo Tratado de Lisboa é a delimitação mais detalhada das competências da União Europeia e de seus Estados-Membros, que haviam permanecido as mesmas desde o Tratado que estabeleceu a Comunidade Econômica Europeia em 1958. No Tratado de Roma, as competências da Comunidade Econômica Europeia (CEE) nas relações exteriores eram delimitadas e executadas através do sistema funcionalista, que possuía uma abordagem setorial das competências. Ou seja, a Comunidade possuía base legal explícita para ação

33

Texto original: “A second theme implicit in Article 21 (1) is how the Union proposes to influence third countries’ political development: there is to be close cooperation with them on the condition that they share the Union’s political principles”.

23

externa apenas em algumas áreas específicas, sendo necessário ler as disposições do Tratado relativas a cada domínio para saber em qual deles a Comunidade detinha competência para atuar no âmbito internacional34. Como forma de amenizar o problema, coube ao Tribunal de Justiça da União Europeia interpretar os dispositivos do Tratado da CEE que não possuíam uma base legal específica explícita, de forma a tornar possível a execução de uma política externa em outras áreas, dando origem às chamadas competências externas implícitas35. Além disso, o Artigo 235.º do Tratado de Roma criou o instituto da “cláusula de flexibilidade”, que permitia à Comunidade executar uma ação para atingir um dos objetivos estabelecidos no Tratado mesmo que sem previsão expressa de tal prerrogativa. A cláusula de flexibilidade foi mantida pelo Tratado de Lisboa, estando agora prevista no artigo 352.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e para ser adotada, a Comissão deve elaborar a proposta, que necessita de aprovação do Parlamento Europeu e deliberação unânime pelo Conselho. Ao longo das revisões nos Tratados da UE utilizou-se, além da jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE e da prática institucional, a cláusula de flexibilidade para inserção de novas bases legais específicas36. O Tratado de Lisboa trouxe mudanças ao instituto do artigo 352.º do TFUE, com a inclusão de mais três parágrafos em relação à redação original. O parágrafo 2 confere à Comissão a obrigação de comunicar os Parlamentos nacionais quando feita alguma proposta de tomada de ação com base na cláusula de flexibilidade, a fim de se estabelecer um controle do princípio da subsidiariedade. A existência dessa disposição se dá, pois por meio da cláusula de flexibilidade, a União Europeia amplia sua competência sem submeter os seus Tratados ao processo de revisão, o que impossibilita aos Parlamentos dos Estados-Membros manifestarem seu aceite através da ratificação37. Ainda, o parágrafo 4 preceitua que os atos adotados sob o fundamento do Artigo 352.º, parágrafo 1 do TFUE devem respeitar os limites do Artigo 40.º, parágrafo 2 do

34

ROSSI, 2012, p.104-105. DE BAERE, 2010, p.7 36 ROSSI, 2012, p. 105-106. 37 Ibid, p.120. 35

24

TUE38, que dispõe acerca da preservação das atribuições das instituições europeias no exercício das competências da UE dentro da Política Externa e de Segurança Comum, enquanto o parágrafo 3 dispõe que as medidas baseadas no presente artigo não podem implicar a harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos casos em que os Tratados excluam tal harmonização. De uma forma geral, o Tratado de Lisboa trouxe algumas alterações que se caracterizam, principalmente pela atribuição maior de poderes as instituições europeias,

enfraquecendo

a

influência

dos

Estados-Membros

em

âmbito

comunitário. Todavia, parte das disposições anteriores ao Tratado de Lisboa relativo às competências foi mantida, criando um sistema “misto”, no qual características supranacionais e intergovernamentais conflitam dentro dos diversos procedimentos inseridos no sistema de competências da União Europeia, mas que ainda está fundado nos princípios da atribuição, subisidiariedade e proporcionalidade.39 O princípio da atribuição está expressamente previsto no parágrafo nº 1 do Artigo 5º do Tratado da UE, in verbis: “A delimitação das competências da União rege-se pelo princípio da atribuição. O exercício das competências da União rege-se pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade”. Pelo princípio da atribuição, a União Europeia apenas atuará dentro das competências que lhe são atribuídas por seus Estados-Membros nos Tratados. Conforme ensina Geert De Baere (2010, p. 5-6): “Isso implica dizer que a UE é incapaz de estender suas próprias competências, e que ela não tem uma capacidade geral para criação de leis: cada ação exige uma base legal nos Tratados que determinam ambas as divisões verticais e horizontais de competências”40. Esse rol de competências atribuídas à União encontra-se nos artigos 3º a 6º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) de 2009 e não é exaustivo, pois há outros artigos ao longo do TFUE que tratam de competências

38

De igual modo, a execução das políticas a que se referem esses artigos também não afecta a aplicação dos procedimentos e o âmbito respectivo das atribuições das instituições previstos nos Tratados para o exercício das competências da União a título do presente capítulo. 39 ROSSI, 2012, p.106-108 40 Texto original: “This implies that the EU is incapable of extending its own competences, and that it does not have general law-making capacity every single action requires a legal basis in the Treaties, which determines both the vertical and horizontal division of competences”.

25

externas da União Europeia (UE) como o Artigo 186º do TFUE que trata da cooperação da UE com organizações e países terceiros em matéria de desenvolvimento tecnológico ou ainda, a competência atribuída no artigo 79º, parágrafo nº 3 do TFUE, que da a União legitimidade para celebrar acordos de reintegração de imigrantes de países terceiros.

Os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, bem como o da atribuição, encontram-se previstos no Artigo 5.º, parágrafo 1 do TUE. O princípio da subsidiariedade consiste na capacidade de intervenção da União Europeia quando a os seus Estados-Membros não conseguem atingir os objetivos da ação que pretendiam, podendo ser mais facilmente alcançado no nível da UE41, enquanto o princípio da proporcionalidade vincula as ações da União Europeia a suas finalidades, não podendo exceder o conteúdo e a forma necessárias para atingilas42. Sobre o assunto, preleciona Eduardo Biacchi Gomes (1997, p. 168-169): Os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade estão previstos no art. 5º do TCE e servem como um divisor de águas entre a competência dos Estados e da Comunidade. Esta somente poderá atuar quando as políticas fixadas pelos Estados forem insuficientes para atingir os objetivos comunitários (princípio da subsidiariedade); por outro lado, essa atuação deve ser adstrita aos limites necessários para que a Comunidade possa atingir os objetivos perseguidos (princípio da proporcionalidade).

A doutrina classifica a competência externa da União Europeia em duas categorias: competências externas expressas e competências externas implícitas. São consideradas competências externas expressas, as competências atribuídas de maneira explícita no texto do Tratado para a União atuar externamente no âmbito de determinada matéria, ou seja, está claro no Tratado que a competência é da União Europeia para legislar e atuar externamente em determinada área, não havendo espaço para múltiplas interpretações ou omissões, como por exemplo, no caso do Artigo 212º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, onde é atribuída competência para a União para cooperação e econômica, financeira e técnica com países terceiros:

41 42

Artigo 5.º, parágrafo 3 do TUE. Artigo, 5.º parágrao 4 do TUE.

26

1. Sem prejuízo das restantes disposições dos Tratados, nomeadamente dos artigos 208º a 211º, a União desenvolve acções de cooperação económica, financeira e técnica, inclusive de assistência em especial no domínio financeiro, com países terceiros que não sejam países em desenvolvimento. Essas acções são coerentes com a política de desenvolvimento da União e são conduzidas de acordo com os princípios e objectivos da sua acção externa. As acções da União e dos Estados-Membros completam-se e reforçam-se mutuamente.

2. O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adoptam as medidas necessárias à execução do n.o 1.

As disposições do artigo acima não deixam dúvidas de que a competência para desenvolver ações de cooperação no âmbito da política externa é da União Europeia apenas, estando expressa na redação do artigo a delimitação de tal competência, qual seja, a de cooperação econômica, financeira e técnica no domínio financeiro com países terceiros. Enquanto há competências que são claramente definidas no texto dos Tratados, há também aquelas que precisam ser extraídas por meio de uma interpretação. São as competências externas implícitas.

As competências externas implícitas são as que permitem a União Europeia celebrar acordos internacionais, mesmo quando os Tratados da UE não prevejam a hipótese, estando a base legal dessas competências previstas no Artigo 216.º, parágrafo 1, do TFUE: A União pode celebrar acordos com um ou mais países terceiros ou organizações internacionais quando os Tratados o prevejam ou quando a celebração de um acordo seja necessária para alcançar, no âmbito das políticas da União, um dos objectivos estabelecidos pelos Tratados ou quando tal celebração esteja prevista num acto juridicamente vinculativo da União ou seja susceptível de afectar normas comuns ou alterar o seu alcance.

Dessa forma, o Artigo 216.º confere à União Europeia, mesmo nos casos que não haja previsão expressa, a base legal para celebrar acordos internacionais, fundado em uma base principiológica, conferindo uma maior autonomia para celebrar acordos quando se fizer necessário. Sobre o assunto, preleciona Damian Chalmers (2010, p. 640):

27

Em 1971, o Tribunal de Justiça começou uma linha de jurisprudência que sublinhava que onde o Tratado conferisse uma competência, apesar da ausência de uma dimensão explícita externa, um poder de celebrar tratados paralelo estaria implícito em várias circunstâncias. Como essa linha de jurisprudência era controversa, agora ela foi cristalizada no TFUE pelo Tratado de Lisboa, refletindo a aceitação política da abordagem do Tribunal 43.

Diante do exposto, pode-se concluir que houve uma evolução na organização e distribuição de competências na União Europeia, pois no período pré-Lisboa, as competências eram setorizadas, e apenas algumas políticas mais relevantes possuíam uma base legal, não sendo o caso da PESC. Com o advento do Tratado de Lisboa, foram conferidas prerrogativas no TFUE que tornaram possível à União celebrar acordos internacionais, e consequentemente lhe conferiu competências externas expressas, além de positivar o entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia, que deu poderes implícitos, fundados nos princípios da e objetivos da UE, para celebração de acordos internacionais com discricionariedade.

43

Texto original: “In 1971, the Court of Justice began a line of case law which ruled that where the Treaty granted a competence, notwithstanding the absence of an explicit external dimension, a parallel treaty-making power would be implied in many circumstances. Controversial as this case law was, it has now been crystallised in the TFEU by the Lisbon Treaty, reflecting political acceptance of the Court’s approach”.

28

3. INSTITUCIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA EUROPEIA

Desde a criação da Comunidade Econômica Europeia em 1958 à entrada em vigor do Tratado de Lisboa em 2009, vinte e um países aderiram a União Europeia. Ao longo dessas novas adesões, as instituições europeias sofreram reformas constantes, de forma a acompanhar sua expansão geográfica e manter o bom funcionamento. Com o Tratado de Lisboa não foi diferente, sendo que além de alterações pontuais em algumas instituições, foram trazidas inovações como a criação do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (Alto Representante) e o Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE). O presente capítulo analisa as mudanças mais substanciais sofridas pelas instituições europeias no concernente a sua atuação na PESC e os novos institutos trazidos.

3.1.

PERÍODO PRÉ-LISBOA: INCOERÊNCIA E FRAGMENTAÇÃO

Nos anos que precederam a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, A União Europeia enfrentava uma realidade problemática em termos de política externa: problemas de interação e coerência entre as instituições europeias, uma estrutura fragmentada em pilares, somada a ausência de representatividade diplomática frente a países terceiros mergulharam a política externa europeia em uma crise política.

O fato gerador da crise está nos chamados problemas de coerência

horizontal e vertical.

Coerência horizontal consiste na relação coordenada e consistente das políticas, ou “pilares”44 da UE, e que pelo fato de não haver hierarquia entre as políticas europeias, e sim igualdade, recebe esse nome. Os problemas de coerência horizontal decorriam da estrutura de pilares: as políticas europeias eram setorizadas em pilares, e em cada um deles as instituições possuíam diferentes atribuições, que por não estarem bem delimitadas nos Tratados da UE, agravaram os problemas na integração de políticas, e afetaram as relações interinstitucionais europeias, com

44

A estrutura dos três pilares consolidada pelo Tratado de Maastricht em 1993 perdurou por todo o período pré-Lisboa até ser reorganizada em 2009.

29

divergências entre a Comissão e o Secretariado do Conselho serem cada vez mais frequentes na condução da política externa45. Enquanto coerência horizontal permeia a relação isonômica que há entre as instituições da UE, bem como entre suas políticas, a coerência vertical consiste na congruência presente na relação entre a UE e seus Estados-Membros. O termo “vertical” está relacionado ao fato de haver uma hierarquia na relação da União Europeia com seus países-membros, que devem alinhar suas políticas e ações conforme as da UE. Todavia, antes de 2009 a relação da União Europeia com os Estados-Membros carecia dessa coerência, pois o processo de tomada de decisão na Política Externa e de Segurança Comum (PESC) era intergovernamental, ou seja, deveria haver a concordância de todos os países-membros.

O fato de os Estados-Membros possuírem grande poder decisório na política externa da UE os possibilitou exercer suas políticas externas de forma mais autônoma, não havendo uma relação de superioridade da política externa da UE sobre a dos Estados-Membros, mas de coexistência, como explica Rasmussen (2014, p.41): [O]utro obstáculo principal para atingir influência global é sem dúvida a combinação de uma falta de acordos mais amplos em questões de política externa, combinado com um processo de tomada de decisão nas áreas de PESC e PCSD [Política Comum de Segurança e Defesa] do segundo pilar baseado no consenso. Como os Estados-Membros da UE retêm competência exclusiva nos assuntos de política externa e segurança. Isso significa que a política externa da UE coexiste com a política externa de 28 Estados-Membros, e a cena, assim, tem sido assolada por problemas de coerência vertical entre políticas do nível da UE e as individuais dos Estados-Membros.

45

46

RASMUSSEN, 2014, p. 41 Texto original: “[A]nother principal obstacle to achieving global influence is undoubtedly the combination of a lack of wide-spread agreement on foreign policy issues, coupled with a decisionmaking procedure in the area of the second-pillar issue areas of the CFSP and CSDP based on consensus. As the individual EU Member States retain full competences in traditional foreign policy and security matters. This means that any EU foreign policy coexists with the 28 individual foreign policies of the Member States, and the scene has thus also been set for serious problems of vertical coherence, i.e. between EU-level policies and those of individual Member States”. 46

30

Além de gerar problemas na estrutura institucional da PESC, os reflexos da incoerência e fragmentação atingiram a União Europeia no cenário internacional. Um dos exemplos mais claros está na presidência do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, pois semestralmente o posto era ocupado por pessoas diferentes, o que gerava não só uma incoerência na gestão da política externa como também insegurança por parte dos países-terceiros e organizações internacionais que não viam previsibilidade nas relações com a Comunidade Europeia. Além disso, como a rotatividade se dava entre todos os membros da UE, muitas vezes países com pouca representatividade política e influência ocupavam o posto, o que afetava a diplomacia, pois muitos países que se relacionavam com a UE, nessas situações, preferiam dialogar diretamente com membros de maior importância política.

Diante de tantos problemas, a necessidade de uma reforma tornava-se cada vez mais evidente. Apesar de uma tentativa ter sido feita com o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, que não chegou a ser ratificado por todos os Estados-Membros, as mudanças viriam apenas em 2009.

3.2.

A REFORMA DE 2009 E A NOVA DIPLOMACIA EUROPEIA

Assinado em 13 de dezembro de 2007, o Tratado de Lisboa passou a vigorar em 1º de Dezembro de 2009, e em termos de política externa, possuía dois objetivos: proporcionar uma reforma institucional e fortalecer a imagem da União Europeia no cenário internacional. Para isso, foram implementadas algumas medidas como o fim da estrutura dos pilares e a sua substituição por uma estrutura com perfil “mais constitucional”, assentada em princípios comuns47 a todas as políticas da União e que distribuiu as competências entre a UE e seus Estados-Membros.

Nesta redistribuição de competências, a matéria de política externa e de segurança comum passou a ser domínio da UE, o que reduziu em parte a autonomia dos Estados-Membros, pois o artigo 24.º da nova redação do Tratado da UE tornou expresso o dever de lealdade dos países-membros para com a PESC da UE:

47

Esses princípios estão previstos nos Títulos I, II e III do Tratado da UE.

31

1. A competência da União em matéria de política externa e de segurança comum abrange todos os domínios da política externa, bem como todas as questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradual de uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesa comum. 3. Os Estados-Membros apoiarão activamente e sem reservas a política externa e de segurança da União, num espírito de lealdade e de solidariedade mútua, e respeitam a acção da União neste domínio. Os Estados-Membros actuarão de forma concertada a fim de reforçar e desenvolver a solidariedade política mútua. Os Estados-Membros abster-seão de empreender acções contrárias aos interesses da União ou susceptíveis de prejudicar a sua eficácia como força coerente nas relações internacionais.

A redação do parágrafo 3 deixa claro que o objetivo da União Europeia é resolver os problemas de coerência vertical através da cooperação e alinhamento entre a sua política externa e de seus Estados-Membros, delimitando o exercício da PESC desses últimos dentro dos interesses da UE. No que concerne o cenário internacional, era preciso ser adotada alguma medida para o problema que a rotatividade da presidência do Conselho vinha causando à UE na relação com países terceiros. Diante desse cenário, foi criado um cargo permanente para dialogar com a comunidade internacional em nome da UE, sendo denominada Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (Alto Representante), que pode ser considerado uma das principais inovações trazidas pelo Tratado de Lisboa na PESC.

O Alto Representante passaria a presidir um Conselho dos Negócios Estrangeiros (CNE) criado a partir do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Exteriores. Para exercer todas as competências que lhe foram delegadas, foi criado também um corpo diplomático dedicado a ajudar na condução da Política Externa e de Segurança Comum, constituindo a segunda principal inovação da reforma de 2009: o Serviço Europeu de Ação Externa.

3.2.1. Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança

O cargo do Alto Representante teve sua origem no Tratado de Amsterdã de 1997 como “Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum” e

32

originalmente era um cargo acumulado pelo Secretário-Geral do Conselho da UE, cuja função era auxiliar o Presidente do Conselho, contribuindo para a formulação, preparação e implementação de decisões políticas, além de conduzir diálogos políticos com terceiros a pedido do Presidente48. Na época, além do Alto Representante para a PESC, havia um cargo na Comissão Europeia que também era responsável pela política externa: o Comissário Europeu para as Relações Externas. Essa dualidade de cargos para a política externa se dava, segundo Eeckhout (2012, p.285) “em razão do distanciamento constitucional e institucional entre a PESC e outras áreas de ação externa da UE” 49.

Com o objetivo de centralizar a coordenação da política externa em um só posto e integrar outras áreas concernentes às relações exteriores, o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, assinado em 2004, previu a unificação destes dois cargos na figura do “Ministro dos Negócios Estrangeiros da União”, mas não entrou em vigor. Todavia, o Tratado de Lisboa criou posteriormente o cargo sob o nome de Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, pois houve objeções acerca do uso da palavra “Ministro” durante o Conselho Europeu de Bruxelas de Junho de 200750.

O “novo” Alto Representante possui um papel mais ativo e amplo dentro da estrutura da UE em relação àquele previsto no Tratado de Amsterdã, pois é um cargo autônomo, não mais acumulado pelo Secretário do Conselho da UE e sua função não está mais restrita a assistir a Presidência do Conselho da UE, mas a conduzir a política externa e de segurança. De forma a possibilitar essa “conduta” ativista do Alto Representante dentro da PESC, foram-lhe concedidas prerrogativas pelo Tratado reformador de 2009 como o poder de elaborar propostas para o desenvolvimento de políticas dentro da política externa ao Conselho51, representar a União Europeia no cenário internacional e manifestar sua posição em conferências e organizações internacionais52, além de ser um dos sete Vice-presidentes da 48

MORILLAS, 2012, p.122 Texto original: “[B]ecause of the constitutional and institutional gap between the CFSP and other areas of EU external action”. 50 Conselho Europeu de Bruxelas (21 e 22 de junho de 2007) - Conclusões da Presidência, Anexo 1, parágrafo 3. 51 Artigo 18.º, parágrafo 2 do Tratado de Lisboa. 52 Artigo 27.º, parágrafo 2 do Tratado de Lisboa. 49

33

Comissão Europeia53 e presidir o CNE54, um Conselho criado pelo Tratado de Lisboa que antes compunha o Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas, sendo formado por ministros dos negócios estrangeiros de todos os Estados-Membros da UE e cuja função é definir e executar a política externa e de segurança da União Europeia, reunindo-se mensalmente55. Desta forma, pode-se dizer que o Alto Representante, como bem mencionou Craig (2011, p.50): “usa ‘dois chapéus’, ou talvez três se considerarmos aquele referente ao papel de presidir o Conselho dos Negócios Estrangeiros como distinto das outras funções” 56.

O grande objetivo de se atribuir esses “dois chapéus” ao Alto Representante, com funções tanto na Comissão quanto no Conselho Europeu foi integrá-los e assim, dar mais coerência a política externa da UE. Entretanto, para alguns estudiosos, o Tratado de Lisboa falhou neste aspecto ao utilizar o Alto Representante como “a ponte” entre estas duas instituições, sendo alvo de críticas que consistem, sobretudo, na incerteza acerca da capacidade do Alto Representante ser capaz de cumprir suas atribuições de forma efetiva, dada suas numerosas atribuições, o que poderia afetar a relação institucional entre a Comissão e o Conselho como esclarece Marangoni (2012, citada por MEINEN, 2015, p.16): A função de dois chapéus do Alto Representante na Comissão e no Conselho não garantiu coerência em um nível interno e institucional. O Alto Representante não estava o tempo todo presente nem na Comissão e nem no Conselho. Isso poderia levar a uma falta de confiança entre os membros da Comissão ou do Conselho. Falta de confiança teria enfraquecido a 57

capacidade do Alto Representante de assegurar coerência institucional.

Portanto, a multiplicidade de funções não só impede o Alto Representante de conduzir a politica externa e de segurança, conforme prevê o artigo 18.º, parágrafo 2 53

Artigo 18.º, parágrafo 4 do TUE. Artigo 18º, parágrafo 3 do TUE. 55 Disponível em . Acesso em 14 fev.2016. 56 Texto original: “The High Representative therefore wears ‘two hats’, or perhaps three if one regards the role of chairing the Foreign Affairs Council as distinct from the other functions”. 57 Texto original: “The double-hat function of the High Representative in the Commission and Council did not guarantee coherence on an intra- and institutional level. The High Representative was not fulltime present in neither the Commission nor the Council. This could lead to a lack of trust among members of the Commission or the Council. Lack of trust, would have weakened the High Representative’s capacity to enhance institutional coherence”. 54

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do Tratado de Lisboa, mas também atinge as relações institucionais europeias intrínsecas (entre os membros da instituição internamente) e extrínsecas (entre as instituições). O Alto Representante é nomeado pelo Conselho Europeu por maioria qualificada de seus membros e com o consentimento do Presidente da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu58 para um mandato de cinco anos, podendo ser retirado do cargo por meio do mesmo procedimento59. O cargo atualmente é ocupado pela italiana Federica Mogherini, tendo sido nomeada em 2014 e cujo mandato se estenderá até 2019. 3.2.2. Serviço Europeu de Ação Externa: O serviço diplomático da União Europeia

Para a execução de todas as suas atribuições, o Alto Representante conta com o auxílio do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), um serviço diplomático europeu que trabalha em cooperação com os serviços diplomáticos dos EstadosMembros para executar a política externa proposta pelo Alto Representante, seu superior imediato, que é definida pelo Conselho e a Comissão. Esse método de atuação integracionista do SEAE possui um papel relevante no que concernem as relações institucionais entre a Comissão e o Conselho, bem como entre o serviço diplomático europeu e os Estados-Membros, como concluiu o professor Piet Eeckhout60 da University College London: Assim como o Alto Representante, a ideia é claramente estabelecer uma conexão entre os departamentos da Comissão e do Conselho responsáveis pela ação externa. Entretanto, a inclusão do corpo diplomático dos EstadosMembros também mostra que esse novo serviço diplomático tem a intenção de conquistar sucesso e trabalhar em uma cooperação próxima com as administrações nacionais.

58

61

O artigo 17.º, parágrafo 7 do TUE prevê que o Alto Representante, como membro da Comissão Europeia, tem sua nomeação sujeita a aprovação por maioria qualificada pelo colegiado do Parlamento. 59 Artigo 18.º, parágrafo 1 do TUE. 60 EECKHOUT, 2012, p.289. 61 Texto original: “As with the office of the High Representative, the idea is clearly to bridge the gap between the Commission and Council departments responsible for external action. However, the inclusion of diplomatic staff from the Member States also shows that this new EU diplomatic service is intended to build on and work in close cooperation with national administrations”.

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Desta forma, entende-se que o objetivo do Tratado de Lisboa ao prever a composição do SEAE por membros da Comissão, do Conselho e dos serviços diplomáticos nacionais de cada Estado-Membro era estimular a cooperação dos componentes das instituições europeias, de forma a melhorar a relação já existente e, consequentemente, aperfeiçoar suas capacidades operacionais.

O SEAE é uma das inovações institucionais trazida pelo Tratado de Lisboa na política externa e começou a operar em 1 de Janeiro de 201162, com sede em Bruxelas, sendo composto por funcionários do Secretariado-Geral do Conselho e da Comissão, além de alguns membros dos serviços diplomáticos nacionais. O Tratado de Lisboa previu a regulamentação e organização do SEAE por meio de decisão do Conselho da UE, mediante iniciativa do Alto Representante que deveria apresentar a proposta com as disposições regulamentadoras do serviço de ação externa, que seriam analisadas pelo Conselho, após consulta ao Parlamento e aprovação da Comissão63. Uma primeira proposta de regulamentação do Serviço Europeu de Ação Externa foi encaminhada em março de 2010 pela Alta Representante da época Catherine Ashton, que contou com a ajuda de um comitê de treze pessoas, entre membros do Conselho e da Comissão, na redação da primeira versão do texto64.

O texto da primeira proposta foi rejeitado pelo Parlamento Europeu, sob o fundamento de disposições inadequadas da parte financeira e orçamentária, carentes de um detalhamento maior, além de não regular de forma precisa as responsabilidades financeiras e orçamentárias do SEAE65.

Foram meses de

negociações entre as instituições da UE e os Estados-Membros até que em 21 de Junho de 2010, chegou-se a um acordo em Madri, com alterações ao texto original além da inclusão de duas declarações anexas da Alta Representante: uma Declaração sobre Responsabilidade Política, na qual se compromete a honrar os deveres de consulta, informação e comunicação para com o Parlamento, previstos no Artigo 36.º do TUE e uma Declaração sobre a Estrutura Básica da Administração Central que contém a relação de serviços e funções que seriam transferidas do Secretariado-Geral do Conselho e da Comissão para a competência do Serviço 62

Disponível em . Acesso em 29 fev.2016 Artigo 27.º, parágrafo 3 do TUE. 64 DIALER, NEISSER e OPITZ, 2014, p.47 65 TRYBUS, RUBINI, 2012, p.256 63

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Europeu de Ação Externa66. A decisão do Conselho regulamentadora do SEAE foi publicada em 26 de Julho de 2010 no Jornal Oficial da União Europeia. A decisão do Conselho estabelece o Serviço de Ação Externa da UE como um órgão “funcionalmente autônomo”, dotado de autonomia tanto pessoal quanto orçamentária, com uma seção própria no orçamento da União e previsão no Regulamento Financeiro67, além de organizar sua estrutura em uma administração central, sediada em Bruxelas e em delegações da UE, presentes em países terceiros e organizações internacionais.

A administração central é subdividida em Direções-Gerais com funções determinadas: Há Direções-Gerais compostas por unidades de ação presentes em todos os países e regiões do mundo que agem de forma coordenada com o Secretariado-Geral do Conselho e a Comissão, uma Direção-Geral administrativa, orçamentária, pessoal e de segurança e Direções-Gerais para gestão de crises e planejamento, do Estado-Maior da UE e o Centro de Situação da União Europeia para a condução da PESC. Além das Direções-Gerais, a administração central do SEAE possui uma unidade de planejamento estratégico, um serviço jurídico que trabalha em cooperação com os serviços jurídicos das outras instituições europeias, além de unidades de relações interinstitucionais, informação e diplomacia pública, auditoria interna, inspeções e proteção de dados pessoais68.

As delegações são responsáveis pela representação da UE em países terceiros e organizações internacionais69 e são compostas, normalmente, por funcionários do Serviço Europeu de Ação Externa, exceto quando necessária à execução do orçamento de União Europeia e das políticas fora da competência do SEAE, quando serão executadas por funcionários da Comissão Europeia. No que concerne à sua organização, cada delegação é subordinada a um Chefe de Delegação, que

66

Disponível em . Acesso em 12 mar.2016 67 Decisão 2010/427/UE do Conselho, de 26 de Julho de 2010, que estabelece a organização e o funcionamento do Serviço Europeu para a Acção Externa. JO L 201, 3.8.2010, p. 30–40. 68 Artigo 4.º, parágrafo 3 da Decisão 2010/427/UE do Conselho. 69 Artigo 221.º, parágrafo 1 do TFUE.

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responde diretamente ao Alto Representante70 e é responsável por executar a parte operacional dos projetos de política externa da União, podendo celebrar contratos e representá-la em Juízo71. As delegações da UE trabalham em cooperação com as missões diplomáticas dos Estados-Membros através do compartilhamento de informações72 e do auxílio na proteção consular de seus nacionais, também cidadãos da União Europeia73.

Além da estrutura organizacional, a decisão do Conselho da UE dispôs também acerca das normas de recrutamento e composição de pessoal do Serviço de Ação Externa da UE, que estão consubstanciadas no seu artigo 6.º. Na época de sua criação, o SEAE possuía um corpo funcional com perfil semelhante ao da Comissão e do Secretariado-Geral do Conselho, predominantemente composto por nacionais de alguns Estados-Membros nos cargos administradores (AD)74. Esse cenário se deu em razão do artigo 98, parágrafo 1, subparágrafo dois do Estatuto dos Funcionários da Comunidade Europeia (Estatuto) prever que, até 30 de Junho de 2013, o SEAE deveria recrutar apenas Funcionários do Secretariado-Geral do Conselho e da Comissão, bem como, funcionários do serviço diplomático dos Estados-Membros.

Essa disposição foi inserida no Estatuto de forma a adequar o corpo de funcionários do Serviço de Ação Externa da UE ao artigo 6.º, parágrafo 9 da Decisão do Conselho: Quando o SEAE tiver atingido a sua plena capacidade, o pessoal proveniente dos Estados-Membros [...] deverá representar pelo menos um terço de todo o pessoal do SEAE a nível do grupo de funções AD. Do mesmo modo, os funcionários permanentes da União deverão representar pelo menos 60 % de todo o pessoal do SEAE a nível do grupo de funções

70

Artigo 221.º, parágrafo 2 do TFUE e Artigo 5.º, parágrafos 2 e 3 da Decisão 2010/427/UE do Conselho. 71 Artigo 5.º, parágrafo 8 da Decisão 2010/427/UE do Conselho. 72 Artigo 5.º, parágrafo 9 da Decisão 2010/427/UE do Conselho. 73 Artigo 221.º, parágrafo 2 do TFUE e artigo 5.º, parágrafo 10 da Decisão 2010/427/UE do Conselho. 74 O artigo 5.º do Estatuto dos Funcionários da CEE estabelece uma classificação para as funções dentro da UE conforme sua natureza e importância de tarefas. São divididas em: administradores (AD), que elaboram políticas e realizam atividades de análise e assessoria, assistentes (AST), que realizam tarefas técnicas e de execução e assistentes-secretários (AST/SC), que realizam atividades de apoio à administração.

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(AD), incluindo os membros do pessoal provenientes dos serviços diplomáticos dos Estados-Membros que se tenham tornado funcionários permanentes da União, e conformidade com as disposições do Estatuto.

Depreende-se do artigo que há uma clara intenção de manter uma predominância de funcionários permanentes da União Europeia no quadro de funcionários e, ao mesmo tempo, dar alguma representatividade aos EstadosMembros dentro do serviço diplomático europeu. Após 30 de Junho de 2013, o artigo 29 do Estatuto, que dispõe acerca do processo de preenchimento de cargos em vacância dentro das instituições europeias e estabelece a preferência de funcionários internos para preenchimento de cargos vacantes nas instituições da UE, voltou a ser aplicado ao SEAE.

Com a finalidade de construir um quadro de funcionários eficiente, democrático, e consequentemente se desalinhar dos modelos da Comissão e do SecretariadoGeral do Conselho, o artigo 6.º, parágrafo 8 da Decisão do Conselho estabelece que é competência da Alta-Representante estabelecer o processo de recrutamento de pessoal transparente que preze pela competência, eficiência e integridade e ao mesmo tempo garanta um equilíbrio geográfico75 e de gênero.

75

Todos os Estados-Membros devem ter representantes e em números semelhantes, sem haver supremacia de um ou alguns.

39

4. REFORMA LEGISLATIVA NA POLÍTICA EXTERNA DA UE

O Tratado de Lisboa trouxe uma reforma ampla ao Direito da União Europeia, tendo alcançado a esfera das relações exteriores, mais precisamente, as competências legislativas neste campo, destacando-se as reformas introduzidas nos artigos 48.º do Tratado da UE e 218.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE, que dispõem acerca dos processos de revisão dos Tratados fundadores da UE e de conclusão de acordos internacionais pela União Europeia com países terceiros e organizações internacionais, que serão tratadas a seguir.

4.1 PROCESSOS DE REVISÃO DE TRATADOS

Uma das características mais marcantes na evolução da União Europeia no transcorrer da história é a frequente revisão dos seus tratados constitutivos, que acontece desde 1958, como forma de manter a estrutura de suas instituições adequadas para acompanhar o crescimento político e econômico. Desde a criação da Comunidade Econômica Europeia em 1958, utilizava-se um processo rígido e complexo para se alterar todos os tratados e protocolos assinados, até que o Tratado de Lisboa em 2009, com sua proposta de reformar o ordenamento jurídico europeu, implementou algumas mudanças ao processo com o objetivo de facilitar emendas e outras alterações no Tratados da União Europeia (TUE) e sobre o Funcionamento da UE (TFUE), além de seus protocolos76.

4.1.1 Processo de revisão pré-Lisboa

Antes de 2009, o processo de revisão de tratados consistia em um procedimento único, que se aplicava a qualquer proposta de alteração, independentemente de ser relativa a todo o texto ou apenas em parte, além de inflexível, pois a maioria das decisões deveriam ser tomadas por unanimidade, o que dificultava a aprovação dos projetos de revisão. O processo geralmente era precedido de uma Conferência Intergovernamental (CIG), onde o Conselho Europeu, juntamente com a Comissão Europeia, membros do Parlamento Europeu além de 76

DE WITTE, 2012, p. 123-124

40

representantes dos Estados-membros, discutiam os temas que integrariam projeto de revisão, além de seus pontos controvertidos. A Conferência Intergovernamental não integrava o processo de revisão, tratando-se apenas de uma rodada preliminar de negociações.

O processo de revisão iniciava-se formalmente apenas com a submissão do projeto de revisão, pelo governo de qualquer Estado-membro ou pela Comissão Europeia ao Conselho da UE, conforme previa o artigo 48º do Tratado da UE antes da nova redação dada pelo Tratado de Lisboa. O projeto de revisão era analisado pelo Conselho que, após consulta ao Parlamento Europeu e quando preciso, à Comissão, redigia um parecer acerca da necessidade da realização de uma conferência de representantes dos governos dos Estados-membros. Sendo o parecer favorável, o presidente do Conselho convocava a conferência, onde seus integrantes deveriam de comum acordo, ou seja, com a concordância de todos os membros, decidir as alterações a serem adotadas nos tratados, que deveriam ser ratificadas por todos os Estados-membros em conformidade com as normas constitucionais de cada Estado.

Esse processo de revisão sofreu críticas por vários aspectos, entre eles, devido a sua rigidez que criava uma grande dificuldade na introdução de alterações aos Tratados da UE, sendo que em algumas organizações internacionais uma maioria qualificada já é suficiente para alterar as Cartas que as originaram, conforme ensina Bruno De Witte (2012, p.125):

Um segundo tipo de criticismo relacionado particularmente à natureza rígida do processo de revisão específico adotado pelos Tratados da UE. A prática das organizações internacionais multilaterais mostra que suas cartas de criação podem geralmente ser alteradas sem a necessidade de uma concordância de todos os membros (e, também, sem referendos). Vários tipos de maiorias qualificadas permitem emendas nos Tratados da Organização das Nações Unidas, Organização Internacional do Trabalho, Organização Mundial da Saúde, Organização Mundial do Comércio e o Conselho da Europa, para citar alguns. [...] O requerimento de unanimidade para revisão dos Tratados Europeus não era originalmente muito um problema quando havia apenas seis membros. Em uma União com 27

41

Estados-membros, entretanto, a regra da unanimidade para emenda de tratado se tornou um obstáculo maior para alterá-lo77.

Outra característica que ensejou críticas por parte da comunidade europeia foi o fato das Conferências Intergovernamentais, precedentes ao processo de revisão em si, não divulgarem informações das mudanças que estavam sendo discutidas ou o resultado de seus trabalhos, sendo realizadas “de portas fechadas”, como muitos autores definiram, restringindo as discussões apenas as instituições europeias e chefes de Estado europeus. Todavia, as Conferências Intergovernamentais se tornaram mais acessíveis com a chegada da internet e da globalização, como bem preleciona Craig (2010, p.444):

As primeiras CIGs eram conduzidas de portas fechadas, mas a situação melhorou consideravelmente com o advento da internet. Position papers e contribuições foram postadas em um site dedicado à CIG. Isso tornou possível acompanhar o desenvolvimento da política e entender as forças que moldaram as disposições incluídas no Tratado revisado. Havia, entretanto, como nós já vimos, pressões para um fórum de discussão mais inclusivo para a reforma do Tratado, o que levou a criação da Convenção 78

sobre o Futuro da Europa que produziu o Tratado Constitucional .

Diante das críticas, o tema da reforma do processo de revisão de tratados entrou na agenda de discussões das instituições europeias, que deveriam encontrar meios

77

Texto original: “A second type of criticism related to the particularly rigid nature of the specific revision procedure adopted for the EU Treaties. The practice of multilateral international organizations shows that their founding charters can usually be changed without the need for a unanimous agreement of all the members (and, indeed, without national referendums). Various kinds of special majorities allow amendments of the treaties establishing the United Nations Organization, the International Labour Organization, the World Health Organization, The World Trade Organization and the Council of Europe, to name but a few. […] The unanimity requirement for revision of European Treaties was originally not much of a problem, when there were only six members. In a Union with 27 Member States, however, the unanimity rule for treaty amendment has become a major obstacle to change”. 78 Texto original: “The early IGCs were largely carried on behind closed doors, but matters improved considerably with the advent of the internet. Position papers and contributions were posted to a website dedicated to the IGC. This made it possible to follow the development of policy and understand the contending forces that shaped provisions included in the revised Treaty. There were, however, as we have seen, pressures for a more inclusive forum for Treaty reform, which led to the creation of the Convention on the Future of Europe that produced the Constitutional Treaty”.

42

de tornar o processo mais simples, acessível e transparente aos olhos da opinião pública, mas as mudanças viriam apenas em 2009.

4.1.2 Processo de revisão pós-Lisboa: Um “novo” processo

Foram sete anos de negociações (2002-2009) até se chegar ao texto final do Tratado de Lisboa que, além de introduzir mudanças no processo ordinário de revisão de tratados, trouxe novas “ferramentas” de revisão dos tratados resumidas em dois processos mais simplificados previstos nos parágrafos 6 e 7 do artigo 48º do Tratado da UE, sendo o primeiro aplicável à alterações na parte III do TFUE referente à política e ações internas e o segundo para alterar o quórum de tomada de decisão previsto na parte V do TUE ou no Tratado sobre o Funcionamento da UE em um domínio específico ou dar prerrogativa ao Conselho Europeu de autorizar o uso do processo legislativo ordinário para adoção de atos legislativos quando o TFUE determinar o uso de um processo legislativo especial. Este segundo processo é chamado de “cláusula-ponte”.

O processo de revisão ordinário, como o nome diz, é o processo usual para se realizar alterações nos Tratados e seus Protocolos, principalmente as mais relevantes, como aumentar ou reduzir competências da UE e para pequenas alterações que não se encaixem nas hipóteses previstas para os processos simplificados. O novo processo de revisão ordinário está previsto nos parágrafos 2 a 5 do artigo 48º do Tratado da União Europeia e pode ser iniciado pelo Governo de qualquer Estado-Membro, pelo Parlamento Europeu ou pela Comissão através da submissão de um projeto de revisão ao Conselho, que o envia ao Conselho Europeu e notifica os Parlamentos Nacionais. Nesta primeira fase do processo, já se nota uma das alterações trazidas pelo Tratado de Lisboa que consiste na inclusão do Parlamento Europeu no rol de entidades competentes para propor alterações aos Tratados, antes restrito à Comissão e ao Governo dos Estados-Membros.

Depois de recebido o projeto pelo Conselho Europeu, o Parlamento Europeu e a Comissão são consultados, além do Banco Central Europeu se as alterações

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propostas afetarem o domínio monetário ou a política fiscal da UE, e a partir deste ponto dois desfechos podem ocorrer:

a) O Conselho pode decidir, por maioria simples, no sentido de analisar o projeto de revisão e convocar uma Convenção, que analisará o projeto de revisão e adotará, com a concordância de todos os membros, uma recomendação dirigida a uma Conferência dos Representantes dos Governos dos EstadosMembros, que opera na forma de uma CIG; ou

b) O Conselho decide, por maioria simples e com a aprovação do Parlamento, não convocar uma Convenção e assume o mandato de uma Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros, a qual será presidida pelo Presidente do Conselho e onde será definido, de comum acordo, as alterações a serem introduzidas nos Tratados, conforme parágrafos 3 e 4 do artigo 48º do TUE.

Nesta fase do processo ordinário de Tratados encontra-se uma das mais importantes alterações trazidas pelo Tratado de Lisboa, qual seja, a introdução da Convenção no processo. A Convenção é formada por representantes dos Parlamentos nacionais, dos Chefes de Estado ou de Governo dos EstadosMembros, do Parlamento e da Comissão e surgiu durante a reunião do Conselho Europeu de 1999 em Colônia, com o objetivo de negociar uma Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, sendo convocada novamente na reunião do Conselho de Laeken para redigir um projeto de Constituição, que serviria de texto preparatório para uma Conferência Intergovernamental que redigiu o texto final79.

O método da Convenção é mais democrático e transparente que as CIGs, pois não há reuniões “de portas fechadas” e envolve a participação das partes interessadas na discussão acerca das alterações a serem introduzidas aos Tratados, não restringindo a discussão aos Governos dos Estados-Membros e representantes das instituições europeias. Um exemplo disso é parte de seus

79

DE WITTE, 2012, p.129

44

membros serem representantes dos Parlamentos nacionais, pois como bem afirma De Witte (2012, p.128):

O envolvimento dos membros dos Parlamentos nacionais permitiu uma contribuição significativa destes Parlamentos nacionais antes do acordo final acerca do texto revisado (evitando assim a situação de texto pronto das últimas revisões de tratados) e a revisão do tratado poderia esperar, obviamente, encontrar muita boa vontade entre os Parlamentos nacionais 80

quando fossem chamados para aprová-la mais tarde .

Conforme se depreende das observações do autor, além de tornar o processo de revisão mais democrático, o fato de os representantes dos Parlamentos Nacionais comporem a Convenção contribui para acabar com o problema de ratificação nos Estados-Membros, pois ao participarem das discussões da revisão do tratado, sua resistência será menor em aprová-la no processo constitucional interno dos EstadosMembros.

Todavia, a Convenção ainda possui um papel limitado e até ineficaz dentro do processo de revisão ordinário, uma vez que, apenas elabora uma recomendação acerca dos projetos de revisão, que não vincula81 a decisão da Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros que é soberana, conforme disposto no parágrafo 3 do artigo 48º do Tratado da UE. Além disso, a recomendação da Convenção pode ser dispensada, se assim entender o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu aprovar, conforme já mencionado.

Uma vez decidida as alterações que serão aplicadas pela Conferência dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros, o texto do Tratado com a nova redação deve ser ratificado por todos os Estados-Membros da União Europeia de acordo com as normas constitucionais de cada Estado. A experiência vivenciada 80

Texto original: “The involvement of the members of national parliaments allowed for a meaningful input of those national parliaments prior to the final agreement on the revised text (thus avoiding the fait accompli situation of earlier treaty revisions) and the revision treaty could be expected, logically, to meet with greater goodwill among the national parliaments when they would be called to approve it afterwards”. 81 Artigo 288.º do TFUE: “Para exercerem as competências da União, as instituições adoptam regulamentos, directivas, decisões, recomendações e pareceres. [...] As recomendações e os pareceres não são vinculativos”.

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com a dificuldade na ratificação de tratados anteriores como o Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, que nem sequer chegou a entrar em vigor, ou o próprio Tratado de Lisboa que chegou a ser rejeitado na Irlanda em um primeiro referendo, levou à inserção do parágrafo 5 no artigo 48º do TUE com a seguinte redação:

Se, decorrido um prazo de dois anos a contar da data de assinatura de um Tratado que altera os Tratados, quatro quintos dos Estados-Membros o tiverem ratificado e um ou mais Estados-Membros tiverem deparado com dificuldades em proceder a essa ratificação, o Conselho Europeu analisa a questão.

Este dispositivo recebeu muitas críticas pelo fato de ser pouco prático e até repetitivo, pois como bem afirma Craig (2010, p.446): “Isso mais uma vez representa o texto legal tentando alcançar a realidade política, desde que o Conselho Europeu se encarregou desse papel no passado, mesmo antes da passagem de dois anos após a alteração do Tratado.” 82. Ao afirmar que o Conselho Europeu “se encarregou desse papel no passado”, o professor da Universidade de Oxford refere-se ás situações ocorridas com a Dinamarca no Tratado de Maastricht em 1992 e com a Irlanda nos Tratados de Nice em 2002 e Lisboa em 2009, onde o Conselho interveio para ajudar na ratificação dos Tratados nesses respectivos países. Os mesmos casos foram sublinhados por De Witte (2012, p.135), em sua crítica ao parágrafo 5:

Em ocasiões anteriores, o Conselho Europeu interveio, de fato, quando um único estado ‘encontrou dificuldades’ para ratificar, em vez de esperar por quatro quintos dos outros países ratificarem. Assim, o novo paragrafo 5 é desnecessário (instrui o Conselho Europeu a fazer algo que já vinha sendo feito repetidamente no passado sem autorização específica) e pouco prático 83

(pela sua referência aos quatro quintos dos Estados) .

82

Texto original: “This once again represents legal form playing catch up with political reality, since the European Council has undertaken this role in the past, even before the passage of two years after the Treaty amendment”. 83

Texto original: “On those earlier occasions, the European Council intervened, in fact, when one single state ‘encountered difficulties’ to ratify, rather than waiting for four-fifths of the other countries to have ratified. Thus, the new paragraph 5 is both unnecessary (it instructs the European Council to do something which it has been

doing repeatedly in the past without specific authorization) and impractical (by its reference to the fourfifths of States)”.

46

Dessa forma, as mudanças introduzidas pelo Tratado de Lisboa não surtiram os efeitos esperados, pois se de um lado tornou o processo mais democrático e transparente com a inclusão do método da Convenção, de outro, conservou sua rigidez ao manter a exigência de uma tomada de decisão em comum acordo para introduzir alterações nos Tratados da UE e a necessidade de ratificação por todos os países da nova redação do Tratado. Dada essa complexidade do processo ordinário para aprovação de alterações nos Tratados, foram inseridos dois novos procedimentos mais simplificados de revisão, dedicados a partes específicas dos Tratados da União Europeia.

Os processos de revisão simplificados tratam de assuntos diversos, sendo o primeiro dedicado á introduzir mudanças nas disposições relativas à política e ações internas da União Europeia, enquanto o segundo, chamado de cláusula-ponte, concede poderes ao Conselho Europeu para autorizar alterações no processo de tomada de decisão do Conselho da UE (quando determinado pelo TFUE ou pelas disposições de ação externa da União que o processo se dê por unanimidade) e permitir o Conselho da UE adotar atos legislativos através de processo legislativo ordinário, quando o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia determinar a utilização do processo legislativo especial84.

O primeiro processo de revisão simplificado está previsto no parágrafo 6 do artigo 48º do Tratado da União Europeia e sua simplicidade consiste no fato de seu procedimento dispensar a instauração de uma Conferência com representantes do Governo dos Estados-Membros, bastando uma decisão unânime do Conselho Europeu, depois de consultados o Parlamento Europeu e a Comissão, além do Banco Central Europeu quando as alterações atingirem a política monetária da União, e a ratificação do Tratado por todos os Estados-Membros conforme suas normas constitucionais (CRAIG, 2010, p.99). Todavia, o processo possui uma série de limitações como, por exemplo, os projetos de revisão só podem propor alterações concernentes às políticas e ações internas da UE, além de não poderem propor alterações visando aumentar as competências atribuídas à União pelos Tratados.

84

DE WITTE, 2012, p. 138

47

O segundo processo de revisão simplificado consiste na chamada cláusulaponte geral85, prevista no parágrafo 7 do artigo 48º do TUE, que visa facilitar a reforma do texto dos Tratados da União Europeia em domínios, cujo processo de tomada de decisão é mais conservador. Ela concede poderes ao Conselho Europeu para autorizar, por unanimidade de seus componentes e com aprovação do Parlamento Europeu, o Conselho da UE a deliberar por maioria qualificada determinado caso quando o TFUE ou disposições relativas à ação externa da UE exigirem deliberação por unanimidade. Além disso, ela concede autorização para adoção de atos legislativos conforme o processo legislativo ordinário quando o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia determinar que sejam adotados com base em um processo legislativo especial, sendo que as alterações introduzidas no texto dos Tratados da UE através desse processo não necessitam ser ratificadas por cada Estado-Membro separadamente, pois a maioria já expressou sua concordância por meio de seus representantes no Conselho da UE86.

Apesar da dinâmica simples da cláusula-ponte geral, tornando quóruns de deliberação e processos legislativos flexíveis e dispensando a ratificação das alterações nos Tratados, ela se revela frágil, pois há previsão no parágrafo 7 do artigo 48º do TUE que, uma vez que o Conselho Europeu decide autorizar o Conselho da UE a utilizar-se de um método de tomada de decisão ou processo legislativo mais flexível, os Parlamentos nacionais dos Estados-Membros devem ser comunicados, bastando que um deles exerça seu direito de veto à decisão do Conselho Europeu no prazo de seis meses, contados da comunicação, para que a decisão não possa mais ser adotada.

Diante do exposto, podemos concluir que, apesar das mudanças inseridas pelo Tratado de Lisboa em alguns aspectos do processo de revisão ordinário e a inclusão de dois novos mais simplificados, a estrutura do processo permanece a mesma, 85

A cláusula-ponte geral foi uma inovação trazida pelo Tratado de Lisboa, e recebeu esta nomenclatura em razão de já existirem “cláusulas-pontes específicas” para algumas áreas desde o Tratado de Maastricht. São seis cláusulas-ponte específicas concernentes às áreas de Política Externa e Segurança Comum, Política Social, Meio-Ambiente, Cooperação Judiciária em direito de família com implicações transfronteiriças, Cooperação Reforçada e ao Quadro Financeiro Plurianual. Ver em: Processos Legislativos. Síntese da Legislação da UE. Disponível em: Acesso em 18 mai 2016. 86 DE WITTE, 2012, p.138-139

48

visto que, algumas características responsáveis pela rigidez do processo anteriormente permaneceram como: a necessidade de ratificação das alterações nos Tratados pelos vinte e oito Estados-Membros e a necessidade de tomadas de decisão unânimes. Como bem precisou De Witte (2012, p.142): “Mais cedo ou mais tarde, os Estados-Membros da União Europeia irão precisar confrontar o “tabu” da exigência de unanimidade para qualquer tipo de alterações de tratado.”87.

4.2.

ACORDOS INTERNACIONAIS

Os acordos internacionais88 são instrumentos pelos quais a União Europeia opera sua política externa no âmbito das relações exteriores, sendo utilizados, sobretudo, na relação com países terceiros89 e organizações internacionais. Atualmente, o processo de conclusão de acordos internacionais está previsto no artigo 218º do TFUE e substituiu o processo previsto no artigo 300º do Tratado da Comunidade Europeia (TCE), resultado da introdução de alterações pontuais na redação do artigo anterior, com a conservação de sua essência.

Houve também uma reorganização do processo, de forma a dar-lhe coerência, com todas as suas disposições reunidas no artigo 218º do TFUE, uma vez que, antes de 2009, o processo era dividido: os acordos internacionais de domínios internos da UE tinham seu processo regido pela regra geral do artigo 300º do TCE, enquanto os relativos à Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e à Cooperação Policial e Judiciária em matéria penal seguiam as disposições do exartigo 24º do TUE. Este último foi retirado do Tratado da UE e dessa forma, o artigo 218º do TFUE ganhou disposições específicas destinadas a orientar o processo de conclusão dos acordos da PESC, sendo considerado uma exceção à regra.

O processo de conclusão de acordos internacionais se inicia no parágrafo 3 do artigo 218º do TFUE com a Comissão encaminhando recomendações ao Conselho 87

Texto original: “Sooner or later, the Member States of the European Union will need to confront the ‘taboo’ of the unanimity requirement for any kind of treaty amendment”. 88 Apesar de possuir a definição de tratado, o termo “acordo” é utilizado, pois quando falamos em tratados, nos referimos aos Tratados da União Europeia e ao TFUE, além dos Tratados de Adesão de novos membros à UE. 89 O termo engloba países vizinhos, países-candidatos a ingresso na UE e o resto do mundo.

49

da UE, que as analisa através de um processo de votação por maioria qualificada90 ou, em alguns casos específicos, por unanimidade e profere uma decisão, autorizando ou não, a abertura das negociações. Comparado ao artigo anterior, houve uma ampliação das exceções nas quais o Conselho decide por unanimidade, que antes englobava apenas os acordos de associação e os domínios internos que exigiam unanimidade para adoção de regras internas91. Com a redação atual, além dos casos mencionados, acordos celebrados com países candidatos ao quadro de membros da UE e acerca da política externa e de segurança comum92 estão sujeitos à votação unânime.

No caso dos acordos na área de PESC, o artigo 218º estabelece que o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (Alto Representante) submete as recomendações ao Conselho quando o acordo “incida exclusiva ou principalmente sobre a política externa e de segurança comum”. Esta última disposição é criticada pelos estudiosos, uma vez que, o texto legal é omisso e não estabelece os critérios para identificar se o tratado dispõe exclusiva ou principalmente sobre a PESC. Entretanto, Koutrakos (2013, p.187) aponta a solução da controvérsia, deixando-a a cargo do Tribunal de Justiça da União Europeia: “Em casos onde um acordo internacional cobre diferentes áreas nas quais a União é dotada de diferentes poderes, O Tribunal identifica a base jurídica correta para a negociação e conclusão do acordo” 93.

A medida mencionada por Panos Koutrakos está fundamentada no seguinte raciocínio: todo ato da União Europeia deve estar baseado em elementos objetivos suscetíveis de controle judicial pelo Tribunal de Justiça da UE, como o seu conteúdo ou finalidade, por exemplo, sendo esta disposição válida tanto para atos de ação

90

Artigo 218.º, parágrafo 8 do TFUE. Artigo 300.º do TCE 92 Ao contrário dos outros domínios, a unanimidade requerida na apreciação de recomendações de acordos na área de PESC está fundamentada nos artigos 24.º do TUE, que dispõe: “A política externa e de segurança comum está sujeita a regras e procedimentos específicos. É definida e executada pelo Conselho Europeu e pelo Conselho, que deliberam por unanimidade”. 93 Texto original: “[I]n cases where an international agreement covers different areas in which the Union is endowed with different powers, the Court identifies the correct legal basis for the negotiation and conclusion of the agreement.” 91

50

interna quanto acordos internacionais94. Estando sujeito a controle judicial, O Tribunal de Justiça pode exercê-lo sobre a base jurídica do acordo, que no caso em questão trata “exclusiva ou principalmente sobre política externa e segurança comum”, e por isso, o controle consistirá em analisar qual o componente predominante no texto do acordo e definir sua base jurídica, pois os atos da União Europeia só devem possuir uma única base jurídica nestes casos, conforme entendimento consolidado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE95: 41. A jurisprudência do Tribunal de Justiça esclareceu também que se um ato comunitário prossegue duas finalidades ou tem duas componentes, e se uma dessas finalidades ou dessas componentes for identificável como principal ou preponderante, o ato deve assentar na base jurídica exigida por esta última.

Portanto, se o acordo internacional versar exclusiva ou predominantemente acerca de PESC, A base jurídica desta última irá fundamentar o ato, e uma vez definida a base jurídica, será possível definir o processo de tramitação a ser aplicado. Aberta as negociações, o Conselho definirá o negociador ou chefe da equipe de negociação da União com base na matéria do acordo. O parágrafo 3 do artigo 218.º do TFUE possui uma redação superficial e não especifica quem deve ser nomeado como negociador ou chefe da equipe de negociação e em que situação, o que não acontecia com o artigo antecessor, que definia expressamente a Comissão como a responsável por conduzir as negociações96, e no caso da política externa e de segurança, o ex-artigo 24º do TUE delimitava expressamente que a Presidência da Comissão Europeia, mediante autorização do Conselho da UE, seria responsável por encaminhar as negociações dos acordos.

Com a omissão do artigo, os estudiosos encontraram respostas na interpretação do texto legal, tendo à maioria concluído que pelo contexto do parágrafo 3 do artigo 218.º, a Comissão será a negociadora dos acordos internacionais que não disponham apenas ou predominantemente acerca da PESC, 94

Ver acórdãos de 10 de janeiro de 2006, Comissão/Conselho, C-94/03, ECLI:EU:C:2006:2, nº 34; e de 22 de outubro de 2014, Comissão/Conselho, C-137/12, ECLI:EU:C:2013:675, nº 52. 95 Conclusões do advogado-geral Mengozzi de 18 de abril de 2012, Parlamento/Conselho, C-490-10, ECLI:EU:C:2012:209, parágrafo 41. 96 artigo 300.º, parágrafo 1, do TCE

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cujo negociador, por sua vez, será o Alto Representante, e no caso de acordos híbridos que englobem PESC e outras matérias, o Alto Representante e a Comissão Europeia irão compor a equipe de negociações da União Europeia. Essas foram as conclusões de Panos Koutrakos97, Bart Van Vooren e Ramses Wessel98. Todavia, outros autores foram mais além e interpretaram o texto do Tratado da UE à luz dos princípios institucionais e constitucionais da UE, como Piet Eeckhout (2011, p.196):

Não obstante linguagem tão indeterminada, está claro a partir das outras disposições do artigo 218.º, assim como da divisão geral de poderes entre as instituições e do princípio do equilíbrio institucional, que a escolha para o negociador é entre a Comissão e o Alto Representante […] a Comissão deveria ser o negociador, exceto quando os acordos previstos sejam referentes exclusivamente ou principalmente à PESC.

99

O parágrafo 4 do artigo 218º do TFUE prevê a possibilidade de o Conselho delimitar a forma pela qual a Comissão ou o Alto Representante conduzem as negociações, estabelecendo diretrizes e designando um comitê especial, devendo o negociador consultá-lo durante as negociações. Este dispositivo do artigo antecessor foi mantido, mas com uma alteração sutil: na antiga redação, havia não só uma obrigatoriedade do Conselho em instaurar “comitês especiais”, como da Comissão em conduzir as negociações do acordo sob a orientação destes, que visavam auxiliar a Comissão Europeia na tarefa de realizar as negociações dentro das diretrizes estabelecidas pelo Conselho100. Entretanto, o texto atual torna facultativo ao Conselho estabelecer comitês e diretrizes, podendo deixar a negociação totalmente nas mãos da Comissão, o que não acontece na prática, pois o comitê é sempre designado, e a Comissão deve consultá-lo para conduzir as negociações, sendo uma forma do Conselho Europeu “controlar” as negociações, como esclarece Eeckhout (2011, p.196):

97

KOUTRAKOS, 2013, p. 189. VAN VOOREN/WESSEL, 2014, p.110. 99 Texto original: “Notwithstanding such indeterminate language, it is clear from the other provisions of Article 218, as well as from the general division of powers between the institutions and the principle of institutional balance, that the choice for the negotiator is between the Comission and the High Representative.[…] the Comission should be the negotiatior, except where the agreement envisaged relates exclusively or principally to the CFSP”. 100 Artigo 300.º, parágrafo 1 do TCE 98

52

Através dos “comitês especiais”, que consistem em representantes dos governos nacionais, o sistema do Conselho monitora de perto o modo em como as negociações estão evoluindo. O negociador é, desta forma, sempre um duplo negociador: com a outra parte nas negociações e com os representantes dos Estados-Membros ou o próprio Conselho.

101

Uma vez terminadas as negociações, o Conselho profere decisão, autorizando assinatura do acordo, podendo autorizar sua aplicação provisória antes da entrada em vigor102. Esta decisão normalmente é tomada por maioria qualificada, mas aqui se aplicam as mesmas exceções da decisão que autoriza a abertura das negociações: a decisão será tomada por unanimidade nos casos previstos no parágrafo 8 do artigo 218.º do TFUE. Depois da assinatura, o acordo é encaminhado para a fase de conclusão, onde o Conselho profere a decisão de celebração do acordo, que equivale à sua ratificação. O Parlamento Europeu participa dessa fase do acordo103, podendo, conforme o artigo 218º, parágrafo 6, atuar de duas maneiras:

a) No caso de acordo acerca das matérias contidas no rol do parágrafo 6 do artigo 218.º do TFUE104, o Parlamento deve aprová-lo antes de o Conselho decidir celebrá-lo, podendo ser acordado um prazo para a aprovação entre estes, em caso de urgência; ou

b) Na hipótese de acordo das demais matérias, o Parlamento deve ser consultado pelo Conselho antes da decisão de celebração, elaborando um parecer dentro de um prazo que pode ser estabelecido pelo Conselho em situação de urgência. No caso do Parlamento não entregar o parecer até o decurso do prazo, o Conselho pode deliberar e proferir decisão.

101

Texto original: “Through the ‘special committees’, consisting of national government representatives, the Council machinery keeps a close eye on how the negotiations are evolving. The negotiator is therefore often a double negotiator: both with the other party to the negotiations and with Member States representatives or the Council itself”. 102 Artigo 218.º do TFUE, parágrafo 5. 103 Quando os acordos incidirem exclusivamente acerca da PESC o Parlamento Europeu não participa desta fase. 104 i) Acordos de associação; ii) Acordo de adesão da União à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; iii) Acordos que criem um quadro institucional específico mediante a organização de processos de cooperação; iv) Acordos com consequências orçamentais significativas para a União; v) Acordos que abranjam domínios aos quais seja aplicável o processo legislativo ordinário ou o processo legislativo especial, quando a aprovação do Parlamento Europeu é obrigatória.

53

Ao celebrar um acordo, o artigo 218.º, parágrafo 7, do TFUE prevê a possibilidade de o Conselho da UE conceder poderes ao negociador para aprovar alterações no texto em nome da União Europeia, quando o Conselho decidir que as alterações devam ser adotadas por um processo simplificado ou instância criada pelo próprio acordo, sendo que estes poderes podem ser delimitados. Além disso, o negociador pode propor ao Conselho a suspensão da aplicação do acordo quando necessário e o parágrafo 10 do artigo 218.º estabelece que o Parlamento deve ser informado em todas as fases do processo, devendo a notificação se dar de forma imediata.

Ainda, o parágrafo 11 prevê a possibilidade de qualquer Estado-Membro, do Parlamento Europeu, do Conselho ou a Comissão pedirem o parecer do Tribunal de Justiça no sentido de analisar se o projeto do acordo viola algum dispositivo dos Tratados. Este parecer do Tribunal analisa o projeto de acordo sob a perspectiva legal (se houve irregularidades procedimentais) e material (se a matéria do acordo viola alguma disposição dos Tratados fundadores da União), sendo que no caso de parecer desfavorável, o acordo não pode entrar em vigor e deve haver mudanças: ou na redação do acordo ou nos Tratados, de modo a acabar com a incompatibilidade entre ambos105. Em relação à redação anterior, as atuais disposições se mostram mais flexíveis, pois quando o Tribunal se manifestava pela incompatibilidade do acordo com os Tratados antes de 2009, o ex-artigo 300.º previa que apenas os Tratados deveriam ser alterados106 para se ajustarem aos acordos, o que gerava dificuldades, tendo em vista que o processo para se alterar a redação dos Tratados do ex-artigo 48.º era inflexível e adotava um sistema de decisões por unanimidade, conforme já foi visto.

Partindo de uma análise genérica, pode-se dizer, em suma, que apesar do Tratado de Lisboa de ter trazido alterações substanciais ao ordenamento jurídico europeu, sendo conhecido como o “Tratado da Reforma”, não fez jus ao nome no que se refere à competência legislativa nas relações internacionais da UE, não trazendo as mudanças esperadas e basicamente manteve o escopo da estrutura

105 106

EECKHOUT, 2011, p.268-269. Artigo 300.º TCE, parágrafo 6.

54

jurídica vigente à época de sua celebração, sendo alvo de várias críticas e com muitos desafios para o futuro.

55

5. TRATADO DE LISBOA E A RELAÇÃO COM PAÍSES VIZINHOS E AMÉRICA LATINA

Ao longo do seu processo de expansão, a União Europeia (UE) alcançou uma dimensão geográfica considerável, estendendo seu alcance ao Leste, nas fronteiras com a Ucrânia e a Turquia, e ao sul, até o estreito de Gibraltar e norte da África. Visando preservar sua segurança interna, a UE constatou a necessidade de se estabelecer uma política de vizinhança com essas regiões, fundada em Acordos de Associação. Essa política tem um papel relevante na relação da UE com os países candidatos á adesão a União, servindo como uma etapa de preparação, consubstanciada em Planos de Ação e implementada gradualmente à estrutura político-institucional desses Estados107. Além disso, a UE desenvolveu sua política externa ao longo dos anos, estabelecendo diálogos e relações com outras regiões do globo, como a América Latina, com o objetivo de por em prática os princípios e objetivos que embasam sua criação, além de aumentar sua zona de influência através da celebração de acordos internacionais e investimentos estrangeiros.

Este capítulo trata da influência do Tratado de Lisboa na Política Europeia de Vizinhança e na relação da União Europeia com a América Latina, analisando os principais efeitos decorrentes das alterações do Tratado na estrutura institucional e legislativa da Política Externa e de Segurança Comum (PESC).

5.2.

IMPLICAÇÕES DE “LISBOA” NA POLÍTICA EUROPEIA DE VIZINHANÇA

A Política Europeia de Vizinhança (PEV) foi criada em 2004 com uma proposta de aproximar a União Europeia dos países presentes nas suas fronteiras no leste e no sul, com o objetivo de criar uma aproximação política e econômica. Uma das suas principais características é o fato de sempre ter sido uma política intergovernamentalista, na qual os Estados-Membros detinham maior poder, o que pode ser representado pelo grande ativismo da Comissão na política, sendo um

107

GHAZARYAN, 2012, p.236.

56

retrato da conjuntura institucional da PESC, que mesmo com as alterações do Tratado de Lisboa, conservou seu caráter intergovernamentalista.

Antes do Tratado de Lisboa, a PEV era composta pela Política Global Mediterrânea, criada durante a Cúpula de Paris de 1972 com objetivo de aproximar a UE dos países vizinhos no norte da África e Oriente Médio, que resultou em uma série de acordos bilaterais de cooperação e comércio entre a Comunidade Europeia e os países da região108. Não obstante, durante a Conferência ministerial euro-mediterrânica de Barcelona em novembro de 1995, foi assinada a Declaração de Barcelona que estabelecia a criação de uma área comum de paz e estabilidade de acordo com a Carta das Nações Unidas, além de uma zona de livre comércio entre a UE e o Mediterrâneo109.

Ainda, a PEV era composta ainda pelo Programa Phare, que consistia em um instrumento de auxílio a países da Europa Central e Oriental no processo de adesão à União Europeia. Em 2006, com o intuito de dar mais coerência ao sistema de assistência de pré-adesão da Comunidade Europeia, as disposições de todos os programas de assistência foram reunidas em um único instrumento denominado

Instrumento

de

Assistência

de

Pré-Adesão

(IAP),

que

consequentemente revogou o Regulamento do Phare110. Outros programas que integravam a política de vizinhança da UE eram o CARDS de assistência comunitária aos países do sudeste europeu com vista a incluí-los no processo de estabilização e associação europeu, além do Programa TACIS, cuja finalidade era auxiliar a implantação da economia de mercado e da democracia em países da Europa Oriental e Ásia Central111.

Como consequência das alterações promovidas na PESC e nas instituições europeias que atuam nela, o Tratado de Lisboa trouxe também mudanças na forma como a UE e suas instituições se relacionam com seus países-vizinhos. Uma das 108

Disponível em: http://www.medea.be/en/themes/euro-mediterranean-cooperation/euro-mediterranean-cooperationhistorical/. Acesso em 21 mai 2016 109 VAN VOOREN/WESSEL, 2014, p. 696-697. 110 Regulamento (CE) N.O 1085/2006 do Conselho de 17 de Julho de 2006, parágrafo 33 dos considerandos. 111 WESSELINK/BOSCHMA, 2012, p. 7-8

57

primeiras alterações é a criação do artigo 8.º no Tratado da UE que torna expressa a capacidade da União Europeia para exercer a PEV:

1. A União desenvolve relações privilegiadas com os países vizinhos, a fim de criar um espaço de prosperidade e boa vizinhança, fundado nos valores da União e caracterizado por relações estreitas e pacíficas, baseadas na cooperação. 2. Para efeitos do n.º 1, a União pode celebrar acordos específicos com os países interessados. Esses acordos podem incluir direitos e obrigações recíprocos, bem como a possibilidade de realizar acções em comum. A sua aplicação é acompanhada de uma concertação periódica.

Os valores da União mencionados no parágrafo 1 são aqueles previstos no artigo 3.º, parágrafo 5 do TUE112, que são aplicáveis à relação da UE no contexto global. Ainda, o mesmo parágrafo cria uma obrigação da União Europeia em possuir uma política de vizinhança, devendo ter o objetivo de “criar um espaço de prosperidade e boa vizinhança” em suas fronteiras, enfatizando isso com o uso de uma linguagem imperativa: “A União desenvolve”. Ou seja, a UE não pode escolher desenvolver ou não relações com países vizinhos, é uma obrigação legal113.

Além desses valores comuns, a PEV é regida também pelo artigo 21.º do TUE, que define, no seu parágrafo 1, os princípios e objetivos de ação externa da UE. Esses princípios e objetivos vinculam a forma de agir das instituições europeias nas relações exteriores, sendo chamados por Nariné Ghazaryan como “objetivos normativos”114. Com a criação de objetivos e princípios comuns, o Tratado de Lisboa visou dar mais coerência à ação externa, encarregando ao Conselho, a Comissão e o Alto Representante o dever de assegurá-la115, como bem explica Ghazaryan (2012, p.241-242): 112

Nas suas relações com o resto do mundo, a União afirma e promove os seus valores e interesses e contribui para a protecção dos seus cidadãos. Contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a protecção dos direitos do Homem, em especial os da criança, bem como para a rigorosa observância e o desenvolvimento do direito internacional, incluindo o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas. 113 VAN VOOREN/WESSEL, 2014, p.693. 114 GHAZARYAN, 2012, p.241. 115 Artigo 21.º, parágrafo 3.

58

[E]stabelecer objetivos comuns de ação para todas as áreas das relações exteriores é um desenvolvimento significativo. Isso sugere que há uma estrutura comum de ação para todas as instituições da UE. Há uma obrigação no parágrafo 3 do mesmo artigo [artigo 21.º] de assegurar consistência entre as diferentes áreas de ação externa, e são o Conselho e a Comissão, assistidos pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, exigidos de assegurar essa consistência. 116

O parágrafo 2 do artigo 8.º do TUE fornece a União Europeia a possibilidade de celebrar acordos com países interessados em manter uma política de vizinhança e desejam entrar na zona de influência da UE. Esse parágrafo gerou dúvidas entre os estudiosos, pois a sua redação dava a entender que seria a base jurídica para acordos internacionais diferentes daqueles previstos no artigo 217.º do TFUE. A dúvida se acentuava pelo fato de que, o último artigo também teria legitimidade para fundamentar os acordos com países vizinhos, visto que sua redação fala em celebrar acordos com “países terceiros ou organizações internacionais”, dando-se a entender ser qualquer país.

A resposta para tal questionamento tomou por base a proposta do Regulamento de Fundos da PEV de 2014 da Comissão Europeia, na qual se argumentou que o artigo 8.º do TUE dava as disposições e bases gerais, mas que a base legal específica seria o artigo 217.º do TFUE, como bem explicam Van Vooren e Wessel (2014, p.694): Em geral, essa disposição do Tratado deveria ser vista de forma similar aos Artigos 3.º, parágrafo 5 e Artigo 21 do TUE: determina um objetivo, mas não fornece uma base legal substancial. O Artigo 8.º indica os pontos chave e objetivos do compromisso da UE com seus vizinhos, mas não confere novos ou distintos poderes à União. Isso é reforçado pelo fato que a proposta da Comissão para o Regulamento de Fundos da PEV de 2014 vê o Artigo 8.º do TUE como provedor de bases principais e gerais para a PEV,

116

Texto original: “[P]roviding common objectives of action for all areas of foreign relations is a significant development. It suggests that there is a common framework of action for all EU institutions. There is an obligation in para 3 of the same article to ensure consistency between the different areas of external action, and it is the Council and the Commission, assisted by the High Representative of the Union for Foreign Affairs and Security Policy, that are required to ensure this consistency”.

59

mas que a verdadeira base legal para o instrumento financeiro seriam os Artigos 209.º, parágrafo 1 e Artigo 212, parágrafo 2 do TFUE.117

Desta forma, por analogia, o artigo 8.º, parágrafo 2 seria o gênero, enquanto o artigo 217.º do TFUE seria a espécie, em se tratando de acordos internacionais e de associação. As relações da União Europeia no âmbito internacional não se restringem meramente a seus países-vizinhos, possuindo relações em outras regiões do globo, dentre elas, a América Latina, a qual será tratada a seguir.

5.3.

REFLEXOS DO TRATADO DE LISBOA NA RELAÇÃO UE-AMÉRICA LATINA

Além de estreitar as relações com seus países vizinhos, a União Europeia desenvolveu relações com outros regiões do globo, sendo uma delas o continente latino-americano. Apesar de diálogos e tratativas existirem desde os anos 1960 e 1970, a relação com a América Latina começou a se tornar relevante para a comunidade europeia apenas em 1986 com a acessão de Espanha e Portugal à UE, pois antes disso a política externa europeia era pouco desenvolvida e não havia interesse dos Estados-Membros da época em uma aproximação com os países latinos- americanos, como bem explica Joaquín Roy (2010, p. 221):

O reconhecimento da América Latina e do Caribe na estrutura institucional da União Europeia é um fenômeno recente. Essa peculiaridade é em parte explicada por algumas dimensões complementares. [...] Nos seus primeiros anos, A CE [Comunidade Europeia] concentrou seus esforços em desenvolver sua política comercial comum. A Política de Cooperação Europeia (PCE), A predecessora da Política Externa e de Segurança Comum da UE (PESC), era muito modesta em seu alcance. [...] Apenas a Africa foi nomeada como uma beneficiária adicional das pretensões e propósitos da integração europeia. [...] Por conta dos interesses franceses e alemães, as instituições europeias começaram a prestar atenção a essa

117

Texto original: “Overral, this Treaty provision should be viewed in a similar vein to Article 3 (5) and 21 TEU: stating an objetive, but not providing a substantive legal basis. Article 8 TEU indicates the key features and objetives of EU engagement with its neighbours, but does not confer new or distinct powers upon the Union. This is supported by the fact that the Comission proposal for the ENP funding Regulation from 2014 onwards views Article 8 TEU as providing the general thrust and basis for the ENP, but that the actual legal basis for the financing instrument would be Articles 209(1) and 212(2) TFEU”.

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região. A América Latina apenas recebeu os favores de Bruxelas quando Portugal, e especialmente Espanha, se tornaram membros em 1986.118

Pelo fato de já possuir diálogos avançados e uma relação mais bem construída com o continente latino-americano, a Espanha assumiu o posto de principal portavoz dos interesses europeus nas relações com a região. Isso porque, no momento de sua adesão, houve uma “troca” entre a Espanha e a UE: os espanhóis adequaram sua política comercial comum, agrária e de ajuda ao desenvolvimento, às diretrizes europeias e em troca, suas boas relações com a América Latina lhe propiciaram um aumento de influência e um papel político importante dentro do continente europeu119.

Com a Espanha à frente dos diálogos com a América Latina, a política da União Europeia na região se fortaleceu, com a criação de uma parceria estratégica firmada na primeira Conferência de Chefes de Estado e Governo das duas regiões no Rio de Janeiro em 1999, e consequentemente o estabelecimento de reuniões bianuais. Houve também, a ampliação de seus investimentos na área, tornando-se um dos principais investidores e parceiros comerciais,120 além de desenvolver planos de integração com sub-regiões como a Comunidade Andina e o Mercosul121. Portugal também contribuiu para o crescimento da política europeia na América Latina, com a assinatura de um Acordo-quadro de cooperação entre a Comunidade Europeia e o Brasil durante a presidência portuguesa do Conselho da UE (Conselho) em 1992, abrangendo a cooperação nas matérias de comércio, investimentos, finanças e tecnologia122. Além disso, um Acordo de Associação Estratégica foi assinado entre o Brasil e a UE em uma nova presidência semestral lusitana Conselho em 2007123. 118

Texto original: “The recognition of Latin America and the Caribbean in the institutional framework of the European Union is a late phenomenon. This peculiarity is in part explained by some complementary dimensions.[...] In its early years, the EC concentrated its efforts on developing its common commercial policy. The European Political Cooperation (EPC), the predecessor of the EU’s Common Foreign and Security Policy (CFSP), was very modest in its reach.[...] Only Africa was named as an additional beneficiary of the aims and purposes of European integration. [...] Because of the French and German interests, European institutions began to pay attention to this region. Latin America at last received the favors of Brussels when Portugal and especially Spain became members in 1986”. 119 SAURA, 2014, p.39-40 120 ROY, 2010, p. 220. 121 Ibid, p. 222. 122 Artigo 2º, parágrafo 1 do Acordo-quadro de cooperação. Ver em: http://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:21995A1101(01)&from=EN. Acesso em 19 mai 2016. 123 GOMES, 2010.

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Apesar de não ter influenciado diretamente, as alterações promovidas pelo Tratado de Lisboa na estrutura da política externa atingiram de forma colateral as relações da UE com a América Latina. A atribuição do papel de representação externa da União Europeia ao Presidente do Conselho Europeu juntamente com o Alto Representante124, sem detalhar como se dará esse exercício compartilhado, criou uma incoerência na PESC, pois se antes de “Lisboa”, Henry Kissinger questionava a Europa pela falta de um “número” para entrar em contato125, agora havia números demais e sua pergunta permanece em aberto, esperando uma resposta mais coerente.

A professora Bettina Trueb, da Universidade de Mannheim, exemplifica os reflexos dessa incoerência e excesso de representação na relação com as Américas ao mencionar a Conferência UE-América Latina e Caribe (ALC) de Madri em 2010, onde o Presidente da Espanha, do Conselho Europeu e da Comissão Europeia representaram os interesses da UE, dando discursos e declarações em seu nome126.

A partir do Tratado de Lisboa, o cargo de presidente do Conselho Europeu foi oficialmente estabelecido como cargo permanente127 e algumas das competências relativas à política externa que pertenciam ao Conselho da UE foram-lhe atribuídas. Com isso, os Estados-Membros perderam poder político no âmbito da PESC, pois se transferiram as competências de um Conselho, que lhes dava mais autonomia, com uma Presidência semestral e alternada entre eles, para outro formado por Chefes de Estado, cuja prioridade são assuntos políticos de nível comunitário e a Presidência é permanente, sendo eleita por maioria qualificada.

A mudança influenciou nas relações da UE com a América Latina e foi alvo de críticas pelos espanhóis, alegando que a redução de seus poderes no âmbito da política externa da União poderia prejudicar o desenvolvimento das relações e a 124

Artigo 15.º, parágrafo 6 do TUE. Durante uma declaração nos anos 1970, o secretário de Estado estadunidense da época, Henry Kissinger, disse: “Se eu quero ligar para a Europa, para quem eu ligo?”. Com isso, queria simbolizar a falta de clareza na representação externa europeia da época. 126 TRUEB, 2012, p. 319-320. 127 Antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o cargo de Presidente do Conselho Europeu era acumulado por aquele que exercia a presidência rotativa do Conselho da UE. Ver em: http://www.consilium.europa.eu/pt/european-council/president/role/ 125

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forma como seria conduzida. Tomando por base a Conferência UE-ALC de Madri, o principal argumento utilizado pelos membros espanhóis do Conselho estava no fato que, sob a Presidência do Conselho Europeu, os avanços conquistados128 naquela ocasião jamais teriam se concretizado, pois foram possíveis pela Presidência rotativa do Conselho na época ser ocupada por um espanhol129.

Outra inovação importante de Lisboa para a política da União Europeia na América Latina foi a criação do Serviço Europeu de Ação Externa, que se tornou um instrumento para fortalecer a presença da UE na região por meio de suas delegações. Como forma de dar a esse instrumento maior eficiência, foram nomeados chefes de delegação espanhóis em nove das dezenove delegações da UE na América Central e do Sul. Com isso, o objetivo das instituições europeias era facilitar para os espanhóis a utilização de suas boas relações com as Américas para buscar uma aproximação entre a UE e os países da região. Em comparação com a antiga Presidência rotativa do Conselho Europeu, O SEAE se mostra uma ferramenta mais eficaz em razão de assegurar uma continuidade maior no trabalho, pois está subordinado ao Alto Representante, que possui um mandato de cinco anos e não de rotação semestral130.

De uma forma geral, podemos concluir que as mudanças inseridas na PESC fortaleceram a relação da União Europeia com a América Latina, aumentando a presença da UE na região por meio das delegações do SEAE e facilitou o trabalho da Espanha em utilizar suas boas relações com a América Latina em um nível comunitário. Todavia, a declinação de competências na matéria de política externa para o Conselho Europeu, criou um problema de incoerência na representação da UE ante os países das Américas. Apesar dos progressos, ainda há problemas que precisam de solução, como a grande dependência espanhola da política da UE para a América Latina, e que só poderão ser resolvidos a partir do momento que for dada uma relevância maior ao papel da relação com a América Latina na agenda de política externa da UE. 128

Alguns desses avanços consistiram na conclusão de Acordos de Associação com países da América Central e a reabertura de negociações por um acordo com o Mercosul, além do estabelecimento de um Plano de Ação da UE para a América Latina. (TRUEB, 2012, p. 321). 129 Ibid, p. 321. 130 SAURA, 2014, p.44-47

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6. CONCLUSÃO

O Tratado de Lisboa foi criado com o ideal de reformar a estrutura da União Europeia, com o objetivo de trazer clareza às divisões de competências, dar coerência e maior organização às instituições europeias e aperfeiçoar os processos legislativos de tomada de decisão tanto na política interna, quanto na revisão dos Tratados da UE e celebração de acordos internacionais na Política Externa e de Segurança Comum. Tudo isso, como forma de adaptar o funcionamento da União Europeia ao grande processo de alargamento sofrido no início dos anos 2000.

No tocante à Política Externa e de Segurança Comum, pode-se dizer que o Tratado de Lisboa trouxe, de fato, mudanças relevantes, como a institucionalização da política externa europeia, com a criação de um serviço diplomático atuante em escala global e o posto de Alto Representante, que proporcionou maior nas relações exteriores, possibilitando à União Europeia “falar em uma única voz”. Além disso, “Lisboa” trouxe mudanças na conjuntura legislativa da política externa, dando publicidade a um processo de revisão de tratados, que antes tinha reuniões à “portas fechadas”, e tornou o processo mais flexível, com a criação de dois processos mais simplificados que permitem ao Conselho da UE utilizar o processo legislativo ordinário e tomar decisões por maioria qualificada, quando autorizado pelo Conselho Europeu, no domínio relativo à ação externa da UE ou em qualquer domínio presente nas disposições do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Entretanto, foi de forma geral, um Tratado conservador, pois se de um lado trouxe mudanças relevantes em alguns aspectos, dando grande eficiência prática, de outro, manteve o escopo da estrutura anterior, principalmente no que diz respeito ao caráter intergovernamentalista da PESC. Além disso, alguns problemas remanesceram após sua entrada em vigor como a falta de clareza acerca do funcionamento e das funções do SEAE, a sobrecarga de funções do Alto Representante, dificultando a condução da política externa por sua parte.

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Não obstante os problemas institucionais remanescentes, A União Europeia possui adversidades a serem resolvidas nas suas relações internacionais como a política externa dependente da Espanha na América Latina e com pouca relevância para os Estados-Membros da UE, que a torna frágil, pois problemas na relação entre os espanhóis e a UE ou uma eventual saída da Espanha da União Europeia impactaria de forma relevante as relações com a América Latina. Além disso, o histórico da relação entre União Europeia e América Latina é marcado por uma ausência de caráter comunitário nas ações da UE, pois grande parte dos avanços ocorreu após a adesão da Espanha em 1986 e durante a Presidência espanhola do Conselho da UE, além do fato de quase metade das delegações europeias na América Latina serem chefiadas por espanhóis. A Política Externa e de Segurança Comum ainda é uma política em desenvolvimento na União Europeia e há muitos desafios que precisam ser superados antes que possa atingir o seu potencial máximo.

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