EJA, juventude negra e formação de professores

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EJA, juventude negra

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e formação de professores

ALINE NEVES RODRIGUES ALVES Graduada em Geografia e mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). [email protected] ANA AMÉLIA DE PAULA LABORNE Graduada em Ciências Sociais e doutora em Educação pela (FaE/UFMG). [email protected] FERNANDA VASCONCELOS DIAS Pedagoga e mestre em Educação pela (FaE/UFMG). [email protected] 26 • presença pedagógica • v.21 • n.121 • jan./fev. 2015

Os indicadores sociais revelam que há, no Brasil, uma enorme distância entre brancos e negros no que se refere a oportunidades de estudo e

mais jovens negros da periferia. Conheça a experiência inédita de um

as desigualdades, o racismo e a violência contra os jovens no País

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Com o objetivo de discutir a realidade vivenciada por jovens em territórios com alto índice de violência e vitimização da juventude negra, o Curso de Atualização EJA e Juventude Viva (Juviva) é uma experiência inédita no campo da formação continuada de professores e gestores da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O curso é desenvolvido pelo Observatório da Juventude da Universidade Federal de Minas Gerais por meio de uma iniciativa da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi/ MEC). Oferecido em cidades do Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste do País, o Juviva busca sensibilizar professores e gestores para o “genocídio” da juventude negra e refletir sobre o papel da escola no enfrentamento das violências contra os jovens. Um seminário presencial abre o curso, que é desenvolvido na modalidade de Educação a Distância (EaD). Utiliza-se o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) da plataforma Moodle (Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment) para o desenvolvimento dos seis módulos do curso, nos quais são abordados os seguintes assuntos:

• Módulo 1: Apresentação do Curso Juviva. • Módulo 2: Juventudes, escola e políticas públicas. • Módulo 3: Juventudes e relações étnico-raciais. • Módulo 4: Juventude negra: articulações entre racismo e violência. • Módulo 5: Juventudes, sexualidades, relações raciais e de gênero, composto por: Tema A: Territórios e culturas juvenis. Tema B: Juventudes, projetos de vida e relação com o trabalho. Tema C: Juventude negra: formas de participação e luta contra o racismo. Tema D: Juventude, drogas e racismo: redução de danos e enfrentamento ao “genocídio” da juventude negra. • Módulo 6: Educação em rede: a escola, as redes de políticas sociais e de enfrentamento ao racismo (JUVIVA, 2014).

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Uma temática urgente Nos últimos tempos o racismo tem sido um tema presente nas discussões cotidianas, principalmente diante de tantos casos de discriminação racial que vêm à tona na mídia. Discutir o racismo no Brasil tem se tornado algo mais frequente, mas quase sempre envolve conflitos. Os estudiosos das relações étnico-raciais no Brasil partilham a opinião de que, para o campo das ciências biológicas, não é possível classificar os indivíduos utilizando o termo raça. Ou seja, do ponto de vista genético, não existem diferenças suficientes entre indivíduos com a pele mais clara e indivíduos com a pele mais escura que nos permitam afirmar que esses indivíduos fazem parte de raças diferentes. As diferenças visíveis entre os seres humanos são resultado, em grande medida, de lentos processos de adaptação às condições do ambiente. De acordo com Guimarães (1999), apesar de raça não existir do ponto de vista genético, esse conceito é expresso nas relações sociais, na medida em que continuamos a classificar as pessoas de acordo com características do fenótipo, tais como: cor da pele, textura do cabelo, traços fisionômicos etc. Há, então, uma construção social das raças. Isso ajuda-nos a compreender a complexidade das desigualdades construídas entre pessoas de etnias e ancestralidades distintas. Gomes (2005) acredita que é preciso abordar essas desigualdades entre negros (autodeclarados pretos e pardos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e brancos no Brasil, conscientes de que ignorá-las não nos fornece elementos necessários para superação dessas discriminações históricas baseadas em fenótipos. Mas, afinal, qual é a situação do Brasil quando falamos sobre as desigualdades raciais nos indicadores sociais? O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um importante instrumento para mensurarmos as condições de vida da população. O índice leva em consideração

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uma série de variáveis, como renda, escolaridade e acesso à saúde. Se considerarmos o IDH apenas dos brancos, o Brasil está em 46º em uma lista de 173 nações. No entanto, se considerarmos a população negra, o Brasil passa para o 105º lugar (JACCOUD, 2008). Analisando as oportunidades educacionais, em 2001, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as taxas de analfabetismo para pessoas com 15 anos ou mais de idade eram duas vezes mais elevadas para a população negra (18%) do que para a população branca (8%) (SHICASHO et al., 2002). Considerando os dados estatísticos acerca da população não alfabetizada, no caso dos considerados analfabetos funcionais, ou seja, adultos com menos de quatro anos de estudo, nos dados relativos ao ano de 1999, observou-se que 26,4% dos brancos se enquadravam nessa categoria, contra 46,9% dos negros (HENRIQUES, 2001, p. 31). No ensino fundamental, os pretos e pardos representam 53,2% do total de alunos, e os brancos são 46,4%. Na pós-graduação, o índice de participação de negros é de 17,6%, enquanto os brancos somam 81,5% do total (JACCOUD, 2008). Os indicadores sociais permitem-nos afirmar que existe um abismo que separa brancos e negros no que diz respeito às oportunidades de estudo e de trabalho no Brasil. Pode-se dizer que há ainda um “extermínio” da juventude negra. A taxa de homicídios da população de 15 a 25 anos é de 38,1% entre os brancos e chega a 52,6% entre os negros (WAISELFISZ, 2013). O mapa da violência de 2013 (WAISELFISZ, 2013) apresenta-nos dados alarmantes sobre essa realidade. Em 2010, cerca de 70% dos homicídios registrados no Brasil foram de jovens negros do sexo masculino, moradores de periferias das regiões metropolitanas. Assim, pode-se dizer que construir caminhos que possibilitem a superação dessas desigualdades entre negros e brancos no Brasil é um grande desafio. Nas últimas décadas, políticas públicas diversas implementadas

em diferentes setores do governo têm sido capazes de construir as bases para a almejada equidade. Foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 2003 e instituíram-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, por meio da resolução CNE/CP nº 01/2004 e do Parecer CNE nº 03/2004. O progresso dos últimos anos também pode ser observado na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, por meio da Lei nº 12.288, de 2010, e na adoção das reservas de vagas (cotas) no ensino superior (Lei nº 12.711, de 2012), mostrando que é possível reduzir as desigualdades raciais no campo educacional. De fato, resultados encorajadores têm sido revelados por ações, programas e projetos vinculados às legislações mencionadas, que indicam um rumo positivo das denominadas políticas públicas de ações afirmativas no Brasil. O curso Juviva situa-se nesse contexto, pois faz parte de um conjunto de políticas sociais estratégicas de caráter interministerial integrantes do Plano Juventude Viva. A coordenação do plano está a cargo da Secretaria-Geral da Presidência da República, por meio da Secretaria Nacional de Juventude, e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. O Plano Juventude Viva reúne ações de prevenção que visam a reduzir a vulnerabilidade dos jovens em situações de violência física e simbólica, a partir da criação de oportunidades de inclusão social e autonomia e da oferta de equipamentos, serviços públicos e espaços de convivência.

momentos relevantes da discussão proposta pelo curso: a aula inaugural, que ocorre presencialmente, e o balanço das aprendizagens observadas pela equipe pedagógica, que é realizado por meio dos fóruns virtuais de discussão ao longo do primeiro semestre do curso. Entre os educadores participantes da formação no primeiro semestre de 2014, contamos com 80,5% de docentes do sexo feminino e 19,5% de docentes do sexo masculino. No quesito raça/cor verificamos que 54,8% dos cursistas declararam-se brancos; 22,6% pardos; 17,6% pretos; 3,2% declararam-se amarelos; 0,9% declararam-se indígenas e 0,9% não responderam a essa questão. Esses educadores tiveram o primeiro contato formativo com a equipe do curso nas aulas inaugurais, realizadas no estado de São Paulo, nas seguintes cidades: São Paulo, Campinas, Diadema, Guarulhos e Osasco. No estado de Alagoas, as aulas inaugurais foram em Maceió, Arapiraca, Marechal Deodoro e União dos Palmares.

No processo de construção dessa formação continuada de professores do Juviva, os aprendizados verificados e os desafios observados motivaram-nos a apresentar brevemente essa experiência de formação na perspectiva da educação para as relações étnico-raciais. Há dois

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Nesses encontros apresentamos a estruturação do curso e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Também fizemos um levantamento de suas impressões sobre a temática étnico-racial no Brasil. Os educadores da EJA que participaram dessa formação reconheceram majoritariamente (92,3%) a existência de racismo no Brasil, dado que vem sendo confirmado por pesquisas realizadas no País, especialmente nos últimos 20 anos (TELLES, 2003; HASENBALG e SILVA, 1992; entre outros). Perguntamos aos educadores sobre seu conhecimento da Lei nº 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de história da África e das culturas africana e afro-brasileira no currículo escolar. A maioria

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(92,2%) respondeu que conhece a lei e 7,4% disseram que a desconhecem. Esses e outros dados diagnósticos foram colhidos por nossas equipes de tutores e demais formadores no decorrer dos encontros presenciais. Apresentamos a seguir algumas percepções relatadas por essa equipe, que foram fundamentais para nossa intervenção educativa no decorrer do curso. De maneira geral, durante as aulas inaugurais, notamos que muitos relatos pessoais de experiências ligadas à discriminação racial vieram à tona. Entretanto, ao mesmo tempo em que reconhecem o racismo em suas relações mais próximas, os educadores apontam grande dificuldade em conceber o racismo como estrutura de poder

que organiza historicamente no Brasil as oportunidades de acesso aos bens básicos por parte de negros e brancos. Acreditamos que isso ocorra em função da crença de que o racismo seja apenas uma atitude pessoal, comportamental, e que não causa prejuízos. Assim, desvincula-se o racismo de sua matriz calcada numa estrutura de perpetuação de imaginários negativos sobre a população negra que tem seus direitos historicamente negados. São consequências desse processo a baixa escolaridade, as precárias condições de moradia e de atendimento à saúde, enfim, a vulnerabilidade social. Durante os debates virtuais, percebemos nos participantes do curso uma tendência a um posicionamento que elege o mérito pessoal em detrimento de ações conjunturais de enfrentamento das desigualdades raciais na esfera pública. Nessa perspectiva, os esforços individuais sobrepor-se-iam a quaisquer dificuldades ligadas à questão sociorracial. Além disso, observou-se, em alguns cursistas, a crença no mito da democracia racial e da projeção de uma identidade nacional mestiça. Tais discursos, além de negar a existência de uma identidade negra, negam o direito à diferença, ao torná-la invisível. Notamos ainda que o reconhecimento da existência de uma situação de violência letal contra a juventude negra a partir dos dados estatísticos dos municípios atendidos pelo curso e divulgados nas aulas inaugurais impactam os educadores. Entretanto, esses são vistos como dados que dizem respeito à questão socioeconômica, e não racial. Assim, a culpa das mortes de jovens negros é considerada como uma omissão do Estado ao não prover condições materiais adequadas e à própria juventude negra, que muitas vezes assume, sob o ponto de vista de alguns cursistas, comportamentos pessoais de risco. Percebemos, no entanto, que a novidade de uma formação continuada de professores inserida na temática da juventude, do racismo e das relações étnico-raciais foi majoritariamente bem-recebida pelos educadores da EJA.

Todas essas observações e impressões iniciais foram então discutidas internamente entre coordenação pedagógica, formadores e tutores do Juviva e trabalhadas de modo que fosse possível levá-las para os fóruns virtuais de discussão e problematizá-las a partir das postagens e diálogos entre cursistas e tutores. Utilizamos vídeos, reportagens, textos-base, textos complementares e atividades de intervenção no cotidiano escolar que estimulassem o debate sobre discursos e práticas relacionados à questão racial na sociedade e na escola. O objetivo é potencializar as percepções dos educadores para as consequências das violências diversas relacionadas à questão racial, como o insignificante acesso dos negros a postos de comando e a pequena presença destes na mídia e na política. Dessa forma, mostramos que não se trata de desejo pessoal de negros estarem fora dos postos de comando, mas de reais entraves à sua continuidade nos estudos e diferentes expectativas de futuro. No decorrer do processo formativo, tentamos mostrar que a luta contra o racismo na educação exige mais que a definição de uma data comemorativa, como 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Lembramos que a Lei nº 10.639, de 2003, não foi uma “ação de cima para baixo”, mas uma das muitas demandas dos multifacetados movimentos sociais negros brasileiros, através de esforços de seus militantes, pesquisadores e agentes no/do Estado. Nos últimos anos, esses movimentos deram visibilidade a um problema denunciado há décadas – o racismo – que afeta a população negra brasileira, em especial, os jovens negros.

A educação para as relações raciais questiona a concepção acerca da sociedade e da justiça. Além disso, leva-nos a reconhecer as grandes contribuições da população negra e da história da África para a humanidade e

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para o nosso país. Esse enfoque é pouco frequente nos processos de formação inicial de professores, nos livros didáticos e, por conseguinte, nas salas de aula da EJA e de outras modalidades de ensino. Outro ponto que merece ser considerado é que a educação para as relações raciais oferece à população não negra a possibilidade de construir uma identidade branca que reconheça seus privilégios históricos na sociedade brasileira. A oferta do Curso de Atualização EJA e Juventude Viva (Juviva) foi considerada de grande importância para

referências sugestões de leitura BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, junho, 2005. BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. cial da União . Acesso em: 20 ago. 2014

os educadores cursistas. Eles revelaram suas inquietações com o fato de que hoje, o público de EJA é notadamente formado por jovens negros da periferia. Os depoimentos dos cursistas reforçam o nosso entendimento de que as ações de formação precisam de continuidade e aprofundamento para o enfrentamento da violência contra a juventude negra. Enxergamos, enfim, as potencialidades e os desafios do envolvimento da escola e seus educadores na composição de redes locais de ações intersetoriais em prol de uma educação emancipatória e antirracista.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve disEducação anti-racista: caminhos abertos pela Disponível em: . Acesso em: 18 dez. 2014. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei

HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do Valle. Relações raciais no Brasil

nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.

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. Acesso em: 20 ago. 2014. BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nºs 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário . Acesso em: 20 ago. 2014. BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2014. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de DireDi. Acesso em: 20 ago. 2014. BRASIL. Parecer nº 03, de 10 de março de 2004. Conselho Nacional de Educação. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2012.

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