El Galpón – narrador do sonho latino-americano. In Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.11 (Dez 2008)

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Urdimento: s.m. 1) urdume;

2) parte superior da caixa do palco, onde se acomodam as roldanas, molinetes, gornos e ganchos destinados às manobras cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção. etm. urdir + mento.

ISSN 1414-5731 Revista de Estudos em Artes Cênicas Número 11 Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

URDIMENTO é uma publicação anual do Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou seus representantes. FICHA TÉCNICA

Editor: Prof. Dr. André Carreira Secretário de Redação: Éder Sumariva Rodrigues (bolsa PROMOP) Capa: A Farsa da Panelada - montagem da prática de ensino dirigida pelo Prof. Toni Edson Contra-capa: Álbum Branco - montagem da prática de ensino dirigida pelo Prof. André Carreira Fotos: Cristiano Prim (capa) e Camila Ribeiro (contra-capa) Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina - IOESC Editoração eletrônica: Déborah Salves [[email protected]], Filipe Speck [[email protected]], Leonardo Silva Alvea [leonardosilvaalves @gmail.com] e Marcelo Adelar Andreguetti [[email protected]] Design Gráfico: Israel Braglia [[email protected]] Coordenação de Editoração: Célia Penteado [[email protected]] Editado pelo Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.11 (Dez 2008) Florianópolis: UDESC/CEART Anual ISSN 1414-5731 I. Teatro - periódicos. II. Artes Cênicas - periódicos. III. Programa de Pós-Graduação em Teatro. Universidade do Estado de Santa Catarina Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528 Biblioteca Setorial do CEART/UDESC

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de Souza Diretor do Centro de Artes: Antonio Carlos Vargas Sant’Anna Chefe do Departamento de Teatro: Sandra Meyer Nunes Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina Martins Collaço

CONSELHO EDITORIAL Prof. Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho Edelweiss – UNIRIO Prof. Dra. Beti Rabetti - UNIRIO Prof. Dr. Francisco Javier - Universidad de Buenos Aires Prof. Dra. Helena Katz - PUC/SP Prof. Dr. Jacó Guinsburg - ECA/USP Prof. Dra. Jerusa Pires Ferreira - PUC/SP Prof. Dr. Joao Roberto Faria - FFLCH/USP Prof. Dr. José Dias - UNIRIO Prof. Dr. José Roberto O’Shea - UFSC Prof. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo - ECA/USP Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi - UNESP Prof. Dra. Marta Isaacsson de Souza e Silva – DAD/UFRGS Prof. Dra. Neyde Veneziano - UNICAMP Prof. Dr. Osvaldo Pellettieri - Universidad de Buenos Aires Prof. Dr. Roberto Romano - UNICAMP Prof. Dr. Sérgio Coelho Farias - UFBA Prof. Dra. Silvana Garcia - EAD/USP Prof. Dra. Sílvia Fernandes Telesi - ECA/USP Prof. Dra. Sônia Machado Azevedo - Escola Superior de Artes Célia Helena Prof. Dra. Tânia Brandão - UNIRIO Prof. Dr. Walter Lima Torres -UFPR

UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina CEART - Centro de Artes PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado em 2002, e Doutorado, em 2009.

PROFESSORES PERMANENTES André Luiz Antunes Netto Carreira Antonio Carlos Vargas Sant’anna Beatriz Ângela Vieira Cabral Edélcio Mostaço José Ronaldo Faleiro Márcia Pompeo Nogueira Maria Brígida de Miranda Maria Isabel Rodrigues Orofino Milton de Andrade Sandra Meyer Nunes Valmor Beltrame Vera Regina Collaço

PROFESSORES VISITANTES Marcelo da Veiga - Universidade Alanus (Alemanha) Óscar Cornago - Conselho Superior de Pesquisas Científicas (Espanha)

O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo discente, dissertações e teses defendidas e outras informações, consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt

SUMÁRIO A teatralidade em Clarice Lispector Alex Beigui

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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico Éder Sumariva Rodrigues

25

Espaço teatral e performatividade. Estratégias e táticas na cena moderna e contemporânea Evelyn Furquim Werneck Lima

33

El Galpón – narrador do sonho latino-americano Yaska Antunes

51

O produtor e o produto no teatro de grupo Flávia Janiaski

67

O espírito travesso na mímica corporal dramática de Etienne Decroux George Mascarenhas

79

Tragédia grega e cenografia: a encenação dos textos trágicos na cena brasileira pós-moderna Gilson Motta

89

A investigação na dança: uma possível estratégia de aprendizado Gladis Tridapalli

101

O Auto da compadecida e um personagem extraordinário Irley Machado

113

A subpartitura corporal no processo de criação do espetáculo Batata! Leonardo Sebiani

123

Rainhas, sutiãs queimados e bruxas contemporâneas - reflexões a partir da montagem de Vinegar Tom Maria Brígida de Miranda

133

A criação de Robert Lepage e o modelo pós-dramático Marta Isaacsson

147

Pirandello encena Sei personaggi in cerca d’autore Martha Ribeiro

157

Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço: origens do pensamento teatral na obra de Rudolf Laban Milton de Andrade 169 O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem Óscar Cornago Bernal

177

Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo nas intervenções urbanas Desvio e Enfim um líder Pedro Diniz Bennaton 191 Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da cia dos atores: modernidade e pós-modernidade teatral Tania Alice Feix 203 Estética da existência na formação do professor-artista Tânia Cristina dos Santos Boy

215

As aparências mutantes de um corpo que se desnuda Vera Collaço

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U rdimento

APRESENTAÇÃO Este número da Revista Urdimento comemora o início do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC. Com a primeira turma do doutorado nosso programa, criado em 2001, avança em direção à sua consolidação como um núcleo de referência na pesquisa na área das artes cênicas no Brasil. Neste sentido, registramos o crescimento do corpo docente e a expansão dos campos de trabalho abordados pelos projetos de pesquisa como principais características desse processo. A Revista Urdimento é reflexo tanto da consolidação do projeto do PPGT, como do trabalho da equipe de professores, estudantes e técnicos que tem feito do Programa um espaço de intercâmbio e reflexão que vai muito além da rotina diária de aulas, orientações e defesas. Em consonância com a vocação do PPGT continua a representar um espaço de articulação com os diversos programas de pós-graduação em artes cênicas do país. Por isso, seguimos considerando fundamentais as contribuições espontâneas com o fim de conformar edições que espelhem as dinâmicas das pesquisas de pós-graduação. A atual edição traz uma ampla diversidade temática. O conteúdo que colocamos à disposição dos nossos leitores apresenta textos que visitam práticas relacionadas com a experimentação teatral nas ruas; com modos funcionais do espaço cênico; com dinâmicas organizativas e criativas de grupos teatrais; estudos sobre procedimentos criativos para atuação e sobre diferentes aspectos da dramaturgia; reflexões sobre técnicas corporais; estudos no campo da história do teatro e do gênero. Desejando que os leitores possam apreciar os materiais que difundimos, aproveitamos para reiterar nosso permanente chamado à colaboração, pois estamos seguros que a diversidade e multiplicidade de propostas é o que faz dos periódicos científicos um instrumento chave da vida da pós-graduação.

André Carreira

Editor

Dezembro 2008 - N° 11

Apresentação.

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U rdimento

A TEATRALIDADE EM CLARICE LISPECTOR Alex Beigui1

Resumo

Abstract

O artigo busca apontar e refletir sobre os aspectos da teatralidade presentes em Clarice Lispector, apontando os índices de materialidade e performatividade da linguagem plástico-sensorial de sua escrita. Para tanto, sustentamos nosso ponto de vista, sobretudo, na tensão entre literariedade e teatralidade que percorrem grande parte de sua produção desde sua obra inaugural Perto do Coração Selvagem.

This article comments on some aspects of Clarice Lispector’s theatricality. It aims to highlight particular aspects of Lispector’s plastic and sensorial text pointing out and discussing about its materiality and performartic qualities. So, this article will look at the existing tension between literality and theatricality which is a constant within Lispector’s work since her inaugural work Perto do Coração Selvagem.

Palavras-chave: teatralidade, literariedade, Clarice Lispector.

Keywords: theatricality, literality, Clarice Lispector.

O teatro em crise “Vou continuar, é exatamente de minha natureza nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em todos os palcos”. “... um instante antes da cena e um instante depois”. (LISPECTOR, 1999: 122-192) A matéria fugidia com que nos deparamos ao ler os romances e os contos de Clarice Lispector pode parecer, enquanto princípio e num primeiro momento, contraditória ao objetivo deste trabalho: buscar as marcas da teatralidade, lidas aqui como materialidade com que se tecem a construção literária e o universo ficcional em questão. Paradoxo sustentado, sobretudo, pelo campo árido e pouco demarcado de sua escrita e pelo próprio movimento de incompletude dos enredos, além de um conjunto Dezembro 2008 - N° 11

Alex Beigui, mestre em Artes Cênicas pela UFBA e doutor em dramaturgia brasileira pela USP, atualmente é professor adjunto da UFRN e membro do GT Territórios e Fronteiras da ABRACE. 1

A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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U rdimento de intertextos, citações e imagens que ampliam e enfatizam, por meio de arqueologismos e anacronismos, o fértil campo da subjetividade tão explorado pela crítica especializada e pelas inúmeras montagens cênicas das obras da autora. No entanto, ainda que sua obra recuse a síntese e evoque a pluralidade de modo excessivo, desde o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem de 1944, tal teatralidade já aparece enquanto questão subjacente ao tema. Com ele, a “crise da representação” inaugura uma diferente forma de preocupação com o ato da escrita, o recurso do fingimento abre paulatinamente espaço para a representação do real intercalada à experiência ou, em alguns casos, à construção de um estilo dramático. Assume-se a própria experiência como condutora da realidade aparente do mundo e das coisas. Para Alain Touraine (1994: 263): “As crises de mutação que fazem passar da sociedade industrial à sociedade programada correm o risco de fazer desaparecer a consciência de historicidade, e assim a própria idéia de modernidade, mas é também através dessas crises que a idéia de sujeito se desprende do historicismo”. No Brasil, a obra de Clarice é responsável por essa mutação na estética narrativa e, conseqüente, estreitamento das fronteiras entre os planos da história e o plano do discurso. Poderíamos dizer que o problema da mimese marca uma primeira discussão no campo parateatral da escrita clariciana. Vejamos como a questão nos é oferecida à maneira platônica e aristotélica do modo de criação e legitimidade do artista/ criador – aludimos à relação do artista com a sua obra e ao efeito da mimese enquanto conceito de valoração de sua produção na discussão iniciada por Platão e especificamente desenvolvida mais tarde por Aristóteles na Poética.

Todas as citações da obra Perto do Coração Servagem foram retiradas da edição cuja referência completa encontra-se presente na bibliografia. 2

O primeiro capítulo intitulado “O Pai” traz em primeira instância a preocupação com a origem da experiência e seu modo de apreensão pela lente do escritor (Artista), sem, contudo, privar pela regra de afastamento que dispõe de modo confortável sujeito e objeto, criador e criatura, escritor/ personagem: “A máquina do Papai batia tac-tac... tac-tac-tac”. (1980: 11)2. O problema da identidade a ser construída assume o movimento de desconstrução, do não-lugar do sujeito dentro da referência, tanto no plano da enunciação quanto no plano do enunciado. Como nos lembra Genette (1972: 72-108): “No interior do universo espácio-temporal dos eventos narrados, o discurso das personagens funciona, por seu turno, como um simulacro do ato de enunciação, no interior do próprio discurso narrativo”. Essa interferência do narrador traz as marcas de sua escolha, reveladas sempre por meio de estratégias dramatúrgicas cada vez mais híbridas, colocando o problema da criação de forma dialética: modelo e ruptura, referência e inferência, criação e imitação, ficção e representação. A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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U rdimento A teatralidade desse modo constitui um ponto de articulação entre o locutor e o locatário, este último estendendo-se às personagens por meio de deslocamentos: “sempre arranjava um jeito de se colocar no papel principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura” (1980: 13). A ambivalência do discurso acompanha a trajetória testemunhal de Joana que busca, sempre através da palavra-ação, concretizar sua experiência, materializar sua vivência, tornar palpável seu lugar no mundo. Tentativa sempre barrada pela dificuldade de uma identidade fixa, estável: “Nunca é homem ou mulher? Porque nunca não é filho nem filha?” (1980: 15). A busca de si é para Joana a busca do sujeito híbrido. Seu reconhecimento como sujeito passa por inúmeras tentativas de despersonificação: “sim ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnavalhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética” (1980: 17). O estágio primitivo da escritura lida a todo o momento com algo que a ultrapasse exige por parte do leitor atenção sobre a releitura interna da obra, realizada paralelamente à consolidação da persona de Joana, sempre incompleta e teatralizável. O ato de fingir como forma de atuar no mundo torna-se para Joana a única possibilidade de encontro consigo mesma. Ao contrário de Hamlet que persegue a verdade até suas últimas conseqüências, Joana abre mão da prerrogativa de um “Eu”: “Quem sou? Bem isso já é demais” (1980: 20). Talvez pela dura condição imposta pelo narrador: “Mente-se e cai-se na verdade” (1980: 20). Outro ponto que dificulta, pelos sucessivos atos de representação de Joana, o seu reconhecimento enquanto sujeito, são as perguntas impostas de modo beckettiano à professora de Joana: “O que é que se consegue quando se fica feliz?”; “Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?” (1980: 30); “o que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?” (1980: 73). Essas perguntas funcionam como recurso de trazer o olhar do leitor para a maquete imperfeita do mundo. Equação que nas personagens de Samuel Beckett gera um movimento de esfacelamento da idéia de identidade, impulsionando os personagens, mas impedindo-os de alcançar o que se quer. Tais questões, incluindo as de caráter mais intimista – “E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?” – conduzem sempre e inevitavelmente ao intervalo e nunca ao encontro entre as demais personagens do romance. Intervalo que, diferentemente do modelo trágico e renascentista do herói cuja trajetória o conduz ao abismo depois de uma seqüência ascensional ou condição privilegiada, leva a “heroína” de Clarice a partir de antemão do abismo, como se de lá jamais ela tivesse saído. O abismo é sempre um ponto de partida para a dúvida e a dispersão. Ele é criado não em torno da personagem, mas está dentro dela, fazendo parte integrante de sua composição. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento O movimento sempre indeterminado advém do esforço quase sempre inútil por parte de Joana de apreender o tempo passado, restando-lhe a experiência no ato de sua realização. O tempo teatral, isto é, o tempo da eternidade do agora: “A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no começo do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percepções – por meio delas Joana fazia existir alguma coisa – ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma”. (1980: 45) A posição de Joana, nesse sentido, caminha para o não-lugar do drama: “onde o que amava não era trágico, nem cômico” (1980: 46). A consciência dramática desse “não-lugar” aponta, já em Perto do Coração Selvagem para uma situação intermediária, nem trágica nem cômica da existência. Visão reforçada pela força da teatralidade assumida como recurso narrativo. Talvez por esse motivo seja tão presente a situação dialógica nos romances claricianos, invadindo a narrativa como forma de quadros, cenas e acontecimentos. A indeterminação do estado emocional das personagens abre espaço para o uso de recursos próprios ao teatro como, por exemplo, o da “máscara neutra”: “E não estou contente nem triste” (1980: 52). A indeterminação e o meiotermo aparecem como forma de permanecer no discurso, mantendo-o e condicionando-o a uma visão tragicômica do mundo. É pela consciência do estar “entre” o julgamento e o infortúnio, a redenção e a culpa que a dúvida, como corolário da crítica sobre a relação causa/efeito, aparece e se fixa. O “distanciamento” ou “estranhamento”, tão caros a Bertolt Brecht, funcionam através do “espanto”, estado em que o gesto se intensifica de acordo com o grau de comprometimento que se tem diante da situação. É o que notamos na parte do diálogo que Joana mantém com o Professor: “- É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor. Todo o desespero e as buscas de outros caminhos são a insatisfação. Eis aí um resumo, se você quer. Compreende? - Sim. - Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa - daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos. - Sim... - Eu disse: quem se recusa... Porque há os... os planos, os feitos de terra que sem adubo nunca florescerá. A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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U rdimento - Eu? - Você? Não, por Deus... você é dos que matariam para florescer. (Ela continuava a ouvi-lo e era como se os seus tios jamais tivessem existido, como se o professor e ela mesma estivessem isolados dentro da tarde, dentro da compreensão). - Não, realmente não sei que conselhos eu lhe daria, dizia o professor. Diga antes de tudo: o que é bom e o que é mau? - Não sei...” (1980: 54-55) Apesar de longo, o diálogo demonstra a inserção dentro do romance de enquadramentos e núcleos dramatúrgicos que, como assinalamos anteriormente, invadem a estrutura narrativa. O cerco dramático construído em torno de Joana revela a formação da personagem como algo inquisidor do ponto de vista da criação. Toda a ambiência do romance conduz Joana a assumir uma identidade de si mesma. O esforço causa-lhe vertigem, revelada ora pelo exercício de consciência ora pela experiência do fracasso diante o desamparo da vida, simultaneamente, humana e inanimada: “Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva” (1980: 72). Essa despersonificação do humano frente à fragilidade de identidade ou ao fracasso do entendimento acerca da experiência finita e incompleta, ao contrário do que se poderia supor, aproxima a obra de Clarice do teatro, pois a trajetória da personagem, mesmo sem movimento definido está elaborada no plano da ação. Aqui, cabe a retomada da acepção da palavra “drama” por Stanislavski: “A vida é ação. Por isso é que a nossa arte vivaz, que brota da vida, é preponderantemente ativa. Não é sem motivo que nossa palavra ‘drama’ é derivada da palavra grega, que significa ‘eu faço’. Em grego, isso se refere à literatura, à dramaturgia, à poesia e não ao ator ou sua arte. Ainda assim temos muito direito a nos apropriar dela” (1999: 69). Eis um adendo importantíssimo para a configuração do conceito de ação e de drama em Clarice. Ainda no livro A Criação de um Papel de 1999, o mestre russo pontua com precisão seu conceito de “ação” que, segundo ele, difere de “movimento”: “Na maioria dos teatros, incorretamente, toma-se ação no palco como sendo ação externa. Acredita-se, em geral, que as peças têm muita ação, quando as pessoas chegam e partem constantemente, Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento casam-se, separam-se, matam-se ou salvam-se umas das outras. Em suma, que uma peça é rica em ação quando tem um enredo exterior interessante e habilmente tecido. Mas isso é um erro. Ação cênica não quer dizer andar, mover-se para todos os lados, gesticular em cena. A questão não está no movimento dos braços, das pernas ou do corpo, mas nos movimentos e impulsos interiores” (STANISLAVSKI, 1999: 69). A proximidade com que a crítica aproximou a obra de Clarice de autores como Virginia Woolf e James Joyce, em alguns pontos plenamente justificada, inibiu uma leitura pela via negativa das obras da autora e, em contrapartida, estimulou a exploração do lado intimista de sua escrita, retirando-a às vezes do seu próprio tempo de realização. Dado evidente, mas que não se esgota no espelho subjetivo e epifânico frente ao qual sua obra quase sempre é refletida. Chamo de “via negativa” a necessidade de materialização da experiência em Clarice, a idéia não apenas de realização, mas de processo inacabado ou, nas próprias palavras da autora, do “movimento que explica a forma” (1980: 74). As vozes que marcam o tempo mnemônico no romance, e que são responsáveis pela própria memória da personagem principal, dão-se em forma de play-back. Joana, assim como Krapp – protagonista de Krapp’s Last Tape de Samuel Beckett (1958) –, “sentia vozes, compreendi-as ou não as compreendia. Provavelmente no fim da vida, a cada timbre ouvido uma onda de lembranças próprias subiria até sua memória, ela diria: quantas vozes eu tive...” (1980: 78). A dualidade entre o mundo interno de Joana e o mundo externo se torna cada vez menos demarcada, mesmo quando há esforço para reconhecê-la: “Na verdade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que era mesmo, profundamente. Apenas até então as duas trabalhavam em conjunto e se confundiam” (1980: 82). Há aqui todo um esforço de compreensão sempre frustrado no plano exclusivamente metafísico da palavra, ocorrendo sobremaneira com a experiência do plano físico, o que explica a forte presença do corpo e das marcas por ele deixadas na experiência de Joana. Esse apelo concreto aos sentidos já marca um primeiro desvio do plano narrativo em sentido ao dramático. Na observação de César Mota Teixeira (2004: 165-173): “A ênfase na apreensão do ‘instante já’ é outro indício de radicalização do projeto (existencial e estético) inaugurado em Perto do Coração Selvagem: novamente à maneira de Joana, narradora-pintora abre e fecha ‘círculos de vida’, incapaz de alcançar uma totalidade psicológica ou biográfica”. O aspecto plástico da narrativa clariciana pode ser considerado o primeiro indício da teatralidade que aqui formulamos. A fala e a ação são os mecanismos que acoplados ao gesto antecedem à palavra em Joana, A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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U rdimento talvez “porque a percepção do gesto vinha-lhe apenas no momento de sua execução – uma bofetada de suas próprias mãos em seu próprio rosto”. (1980: 87). A experiência com o absurdo é revelada na impotência frente a qualquer organização justificável e plausível da existência pelo hábito puro do discurso. No entanto, a experiência com o absurdo se mostra como forma de libertação anárquica e perversa para com o mundo tanto no que abarca sua estabilidade, enquanto uma referência externa ao sujeito, quanto no que toca a mente auto-sugestionável da personagem: “Às vezes ouvia palavras estranhas e loucas de sua própria boca. Mesmo sem entendêlas, elas deixavam-na mais leve, mais liberta” (1980: 87). Aqui, torna-se importante e sintomático o que diz Beckett no ensaio sobre Proust: “Assim, a distração é felizmente compatível com a presença ativa de nossos órgãos de articulação. Repetindo: a rememoração, em seu sentido mais alto, não se aplica a esses extratos de nossa ansiedade. Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por nossa extrema desatenção e armazenado naquele último e inacessível calabouço de nosso ser, para o qual o Hábito não possui a chave”. (BECKETT, 1986: 24) Disto segue-se o plano contra o campo do conhecido e do perpectivismo que em Clarice se altera pelo desvio. Por outro lado, abre-se o horizonte da irrecuperabilidade do passado, estando o tempo sujeito ao processo de decantação. Outro recurso importante em Perto do Coração Selvagem está concentrado na forma dialética movimento / imobilidade, ponto sob o qual colidem a inquietação da busca e o desamparo do desencontro, este último sempre triunfando sobre o encontro: “A covardia é morna e eu a ela me resigno, depondo todas as armas de herói que vinte e sete anos de pensamento me concederam. O que sou hoje, nesse momento? Uma folha plana, muda, caída sobre a terra. Nenhum movimento de ar balançando-a”. (1980: 89) Antes de pensar o conceito, pensemos o movimento da obra não como dilatação da experiência narrada, mas de afunilamento da mesma; a expansão, presente e ativa no gênero épico cede, gradativamente, lugar à constrição do lugar intermediário da personagem, nem completamente dentro nem completamente fora. Cria-se assim, uma espécie de “foco” que delimita a área de atuação da personagem e, no caso de Clarice, encontra o seu apogeu em A Paixão Segundo G. H. (1964), mais precisamente no quarto de empregada que G. H. resolve visitar. Ainda no caso específico de Joana, o espaço de uma pressuposta liberdade de atuação (os diferentes planos espácio-temporais pelos quais ela se desloca) só acontece com o reconhecimento do aprisionamento na linguagem: “Era uma falsa revolta, uma tentativa de libertação que vinha, sobretudo, com Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento muito medo de vitória” (1980: 95). O fracasso diante da experiência como auto-realização e enquanto drama histórico, em Clarice, corresponde à queda dos valores humanos tão presentes nas manifestações literárias do pós-guerra e ao conseqüente redimensionamento da idéia de sujeito e de sua identidade em crise. Acerca disso, esclarece-nos Júlio Galharte: “Há uma crescente atmosfera de crise com relação à linguagem que atinge o artista moderno. Tal atmosfera se faz presente nos textos de Lispector e Beckett no aflorar de alguns verbetes-chave em comum, como ‘fracasso’ ou ‘falha da linguagem’, por exemplo” (GALHAERTE, 2004: 70). Ainda no que diz respeito à linguagem beckettiana acrescenta o autor: “Fracasso e falha. Esses são nomes dados pelos ‘eus’ dos textos beckettianos para o resultado da busca de uma linguagem que mostre sua alma. Os enunciadores do autor assumem sua inépcia comunicativa e um indicativo desse aspecto é a repetição exaustiva de palavras uma ao lado da outra, como que para mostrar que o enunciado foi acometido de um acesso de gagueira” (GALHAERTE, 2004: 70). Percorreremos esses “riscos” e “falhas” no corpo do texto clariciano como índices latentes de teatralidade. No entanto, em Clarice assim como em Beckett, os valores apesar de trazerem ressonâncias históricas que culminam com a sua negação, eles não perdem a conotação positiva de denúncia, ainda que sem caráter panfletário. Trata-se antes de uma constatação deliberada da vida em seu estado puro de crueldade, sem nostalgia ou utopias. Em relação aos homens revela a a narradora Clarice através da personagem Joana: “Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos, ‘fraternidade’, ‘justiça’. Se elas tivessem um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo. Seria a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando todo o espaço mental e sentimental exatamente porque são impossíveis de realizar, são contra a natureza” (1980: 100). Nesse sentido, o conto Mineirinho é uma construção exemplar. Em Clarice, a quebra de utopias e a ausência de uma conotação nostálgica contradizem a própria idéia de busca, mas a amplia e a redimensiona. Pelo menos, a “busca” no sentido de transição, de entrega total para a fisicalização da linguagem. A experiência com a palavra surge, então, sempre de uma organização proposital de torná-la plástica (visível, sonora, auditiva, olfativa, tátil), o que dificulta a leitura estritamente estrutural de sua obra. Para Joana, A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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U rdimento o pouco entendimento que tem de si mesma vem pela indistinção entre corpo e espírito e os seus respectivos lugares na experiência: “E foi tão corpo que foi puro espírito” (1980: 104). A tentativa de tornar presente a experiência insurge no romance sob vários aspectos, incluindo o estatuto filosófico. Só que ao contrário do que a filosofia pode explicar, interessa à narradora exatamente o que escapa à razão e à inteligência, pois: “É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes” (1980: 126). A analogia ao par “luz/escuridão” aparece também sob o argumento filosófico da citação “Espinosa/Dante”, respectivamente introduzida em Perto do Coração Selvagem. Sobre isso é relevante o esclarecimento que Marilena Chauí fez da questão em Espinosa: “... em Espinosa, a luz (a substância) se refere e sempre se reflete nos modos finitos, porque estes são expressões determinadas dela: não só o intelecto finito conhece o mesmo e da mesma maneira que o infinito, do qual é parte, como também conhece a essência e potência do ser absoluto tais como são em si mesmas, e a diferença entre idéia inadequada (parcial, mutilada, abstrata) e adequada (total, genética, concreta) é a diferença entre a luz quando difratada pela imaginação e quando refletida pelo intelecto, pois a primeira é aquela que possuímos quando o absoluto não constitui apenas a essência de nossa mente singular e sim muitas mentes singulares simultâneas (a pluralidade de ondas que se cruzam e se interrompem no ponto de refração), enquanto a segunda é aquela que produzimos quando o absoluto constitui apenas a essência singular de nossa mente (a infinitude de ondas vindas de todos os lados e de todas as direções refletindo-se, sem perda nem desvio, num único ponto singular.” (CHAUÍ, 1999: 62) Esse “ponto singular” em Clarice é sempre o “Sujeito” reconhecido na contínua dualidade Sujeito/Outro. A experiência negativa adotada pelo ponto de vista narrativo corrobora para um melhor entendimento da posição anti-heróica de Joana. Aqui, ao contrário de Édipo, a cegueira deixa de ser um ato-punitivo fruto da inconsciência do herói sobre os fatos e passa a se configurar como aceitação do abismo sendo este fato encarado como “defeito desejado” no curso dos acontecimentos referentes à experiência da protagonista Joana: Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento “Sim, sim, foi isso, não fugir de mim, não fugir de minha letra, como é leve e horrível teia de aranha, não fugir de meus defeitos, meus defeitos, eu vos adoro, minhas qualidades são tão pequenas, iguais às dos outros homens, meus defeitos, meu lado negativo é belo e côncavo como um abismo” (1980: 127) Esse desnudamento da personagem frente à lente do leitor menos atento pode expressar apenas uma forma de contraposição com o real, mas levado a cabo junto à própria concepção de criação da obra aponta para uma imprecisão formal: a desarticulação da experiência da personagem com o foco narrativo. A voz de Joana se espalha pelo campo narrativo de modo contraproducente ao efeito de unidade. Esta, tal qual na tragédia moderna, dissipa-se e os acontecimentos narrados passam a existir em função de uma soberana consciência dramática: “A tragédia moderna é a procura vã de adaptação do homem ao estado de coisas que ele criou” (1980: 129). Se a procura é vã, não o é menos o caráter assistencialista das instituições a começar pela célula mater. Esse processo de desconstrução das bases institucionais que legitimam a condição social do sujeito no mundo, já presente em Perto do Coração Selvagem em forma embrionária, encontrará sua forma mais elaborada nos livros-contos da autora, entre eles Laços de Família (1961) e Felicidade Clandestina (1971), sob este aspecto, são os mais significativos. Característica que aponta para uma obra que, apesar da dispersão que assola as personagens, priva pela continuidade temática e pelos seus aspectos de organização. Elos que se ramificam na escritura clariciana e constroem, por meio de camadas, o movimento de adensamento de pontos aparentemente superficiais. A família acaba em Clarice na própria base que a alicerça: a incomunicabilidade. Nesse sentido a posição de Joana quando indagada por Lídia em situação dialógica, mais do que uma crítica ao casamento, mostra-se como atestado do seu fracasso enquanto instituição: “Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conservava porque se arrasta consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. E mesmo o cansaço da vida ter certa beleza quando é suportado sozinha e desesperada – eu pensava. Mas a dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo a própria derrota na derrota do outro... Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos do outro, o peso do leito comum, da mesa comum, da vida comum, preparando e ameaçando a morte comum” (1980: 159) A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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U rdimento Qualquer idéia de “felicidade” em Clarice não pode ser encarada sem o transtorno de sua reverberação. A própria questão da origem das coisas que já aparece, aqui, e sobre a qual aludimos no início deste capítulo, não deve ser compreendida fora da idéia de deformação e de fracasso, e da idéia de inutilidade da criação que se crer validada por um futuro de respostas positivas. Sobre isso, a imagem de Lady Macbeth trazida por Joana no que tange à maternidade parece a mais adequada: “Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei” (1980: 167). O espaço do “nada sei” é também o espaço do “entre”, do “intervalo”, não mais o tempo cronológico, apreendido no fluxo de uma consciência ativa e desperta, mas um tempo invadido pela interrupção do fluxo inconsciente no ato mesmo de sua reflexão-execução; no aqui e agora descomprometidos com a ordem das coisas. “Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer depois, guardar a memória estranha do intervalo sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sempre o pequeno ponto vazio – deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar” (1980: 168). É nesse sentido que a citação de James Joyce presente na primeira página, logo após o título do livro, mais que uma referência remetida com o intuito de diálogo entre “estilos”, conduz o leitor a enfrentar o desamparo dramatizado na experiência de Joana e na própria solidão do ato criador. Aqui temos mais um ponto de aproximação com o axioma proposto por Beckett e por ele levado a cabo no processo formal de sua obra: “Estamos sós. Incapazes de compreender e incapazes de sermos compreendidos”. É no enfrentamento de si que a existência de Joana se dá de modo muito próximo do teatral; o “como se” tão caro a Stanislávski e que aparece inúmeras vezes no interior do romance conduz ao ato de representação: “Como se fosse mentira a sua existência” (1980: 175). Em Clarice a personagem é sempre encarada do ponto de vista da criação, ou melhor, da relação imperfeita entre criador/criatura. A identidade da personagem oscila em todos os níveis possíveis, afastando-se de qualquer relação de dependência entre os fatos narrados e sua verossimilhança. Desse modo, a dissolução da identidade, impossível de ser apreendida em sua totalidade, aparece até no plano sexual da personagem: “homem assim era Joana, homem. E assim fez-se mulher e envelheceu” (1980: 183). Mais que uma crítica ao universo masculino, como, aliás, a crítica feminina sobre Clarice não cansa de repetir, o que está em jogo não é apenas a questão Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento de gênero, mas, sobretudo, a matriz de uma escrita andrógina referente, sobretudo, ao não-lugar do sujeito: “Eles dois eram duas criaturas. Que mais importa?” (1980: 182). Matriz responsável pela condição insuficiente do sujeito no mundo: “É que tudo o que eu tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma posso morrer de sede diante de mim”. (1980: 191). A aceitação da solidão como único caminho possível se caracteriza de modo determinante no espaço fechado, palco italiano, foco ainda que imaginário, no qual as personagens claricianas se vêem. Nesse sentido, Joana é um exemplo primoroso da crise experimentada pelas personagens no drama moderno: “havia um círculo intransponível e impalpável ao redor daquela criatura, isolando-a” (1980: 194.) A interposição de diálogos abundantes nos textos narrativos de Clarice, juntamente, com o isolamento típico de suas personagens, forma um paradoxo da escrita que beira o estiolamento da narrativa, salvo não fosse o ímpeto analítico da “busca” que a mantém. A tentativa de aproximação nunca consegue transpor o limite anteposto pela fronteira do ser. Todas as tentativas de ajuste entre esses limites fracassam, restando por vezes apenas a consciência de síntese: “tu és um corpo vivendo, eu sou um corpo vivendo, nada mais” (1980: 201). Daí resulta a imperfeição do movimento assumido como matéria de expressão: “... e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas...”, ou ainda mais contundente: “... serei brutal e mal feita...” (1980: 216). O ser-personagem é-nos dado em forma de exercício, um laboratório de criação e de novas simetrias em andamento.

Referências bibliográficas BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Rosen Blat Nestrovski. São Paulo: L&PM Editores, 1986. CHAUÌ, Marilena. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. GALHARTE, Julio Augusto Xavier. “Na Trilha da Despalavra: Silêncios em Obras de Clarice Lispector e Samuel Beckett”. In: Leitores Leituras de Clarice Lispector. Org. Regina Pontieri. São Paulo: Editora Hedra, 2004. LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. STANISLAVSKI, Constantin. A Criação de um Papel. Trad. Pontes de Paula Lima. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. TEIXEIRA, César Mota. “O Monólogo Dialógico: Reflexões sobre Água Viva de Clarice Lispector”. In: Leitores e Leituras de Clarice Lispector. (Org. Regina Pontieri). São Paulo: Editora Hedra, 2004. A Teatralidade em Clarice Lispector. Alex Beigui.

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CINE HORTO GALPÃO: UM PROJETO ARTÍSTICO PEDAGÓGICO Éder Sumariva Rodrigues1

Resumo

Abstract

Este texto aborda a trajetória do Grupo Galpão a partir do reconhecimento das diversas linguagens que sustentaram as montagens realizadas pelo grupo. Este reconhecimento permite perceber que o projeto pedagógico do grupo conforma um sistema aberto, destinado a constante formação do ator e a busca incansável de novos procedimentos, novas imersões cênicas. O grupo realiza ações pedagógicas através de um projeto catalisador das experiências produzidas ao longo de sua trajetória do grupo. O texto ainda identifica o projeto Galpão Cine Horto como um centro de referência para criação, pesquisa e fomento teatral.

This text approaches the pathway of the Galpão Group theatre where of the recognition of the different languages to support the realized montage of the group. This recognition allows realizing pedagogic project of the group as an open system, destined to the constant formation of the actor and the tireless pursuit of the news procedures, news cenics immersions. The group realizes pedagogic actions through of the catalyst project of the produced experience along of the its pathway of the group. The text still identifies the project Galpão Cine Horto as a centre of reference to creation, research and theatre furtherance.

Palavras-chave: Grupo Galpão, projeto pedagógico, Galpão Cine Horto.

Keywords: Galpão Group, Pedagogic Projetc, Galpão Cine Horto.

Grupo Galpão: a trajetória dos espetáculos O Grupo Galpão foi criado por cinco atores em 1982, após uma experiência de trabalho com o diretor George Frosher e o ator Kurt Bildstein, ambos do Teatro Livre de Munique. O Grupo Galpão ao longo de sua trajetória concentrou seus esforços em pesquisa de linguagem, percorrendo as mais diversas técnicas, buscando a introdução de novos referentes técnicos para o grupo. Neste sentido diversificou o olhar da direção, alternando convite a diferentes diretores, e eventualmente trabalhando com a direção de um dos integrantes do grupo. Dezembro 2008 - N° 11

Éder Sumariva Rogrigues é Mestrando do Programa de PósGraduação em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Participa do projeto de pesquisa "O Teatro de Grupo e a Construção de modelos de trabalho do ator". E-mail: sumariva_ rodrigues@yahoo. com.br 1

Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.

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U rdimento Nas diferentes encenações do grupo funcionaram sempre como estímulo à prática de pesquisa atorial. Por isso, o Galpão busca incorporar ao processo de ensaios a aprendizagem de técnicas que satisfaçam a necessidade para a montagem que estão realizando, mas que ao mesmo tempo impulsionem o grupo de atores a novos territórios. O desenvolvimento desse processo associado de aprendizagem e ensaio criativo pode ser considerado uma das matrizes geradas pelo grupo desde de seus primeiros passos. Consequentemente podese dizer que o trabalho grupal aparece imerso sempre na descoberta das novas possibilidades cênicas que vão além do desenvolvimento dos espetáculos. A primeira opção do Grupo Galpão foi encenar na rua, em 1982, “E A Noiva Não Quer Casar” com direção coletiva e texto de Eduardo Moreira, utilizando elementos da linguagem circense. Logo em seguida, em 1983, levaram à cena o espetáculo infantil “De Olhos Fechados” sob direção de Fernando Linares e autoria de João Vianney e, em 1984 encenam o espetáculo de teatro de rua “Ó Procê Vê na Ponta do Pé” (criação coletiva), espetáculos nos quais o grupo ensaiou a utilização da linguagem clownesca. Sob direção de Eduardo Moreira e Fernando Linares, encenam em 1985 o texto de Carlo Goldoni “Arlequim Servidor de Tantos Amores”, experimentam técnicas da Commedia dell´Arte e da máscara italiana que, posteriormente em 1986 foi aprofundado na montagem de criação coletiva e direção de Paulinho Polika “A Comédia da Esposa Muda - que Falava Mais do que Pobre na Chuva”. No mesmo ano, “Triunfo, um Delírio Barroco”, Carmen Paternostro foi responsável pela direção, concepção cênica e roteiro final do espetáculo, representou uma experiência com a Cia. de Dança do Palácio das Artes. Seguindo o viés experimental, em 1987 o grupo encenou o texto de Eduardo Moreira e Antonio Edson – que também foi responsável pela direção “Foi Por Amor”, esquete que abordava a realidade brasileira criticando os crimes passionais e o machismo dominante na sociedade. “Corra Enquanto é Tempo” foi encenado em 1988 com autoria e direção de Eid Ribeiro, uma paródia sobre grupos religiosos evangélicos que utilizava espaços da rua muito similares aos abordados pelos grupos religiosos. Também sob direção de Eid Ribeiro, “Álbum de Família” (1990) texto do dramaturgo Nelson Rodrigues marcou o retorno ao palco, e significou oportunidade para experimentação atorial com uma dramaturgia mais trágica e densa. Esta encenação foi marco divisor na estrutura organizacional do grupo, conseguiram adquirir a própria sede, o Galpão. “Romeu e Julieta” (1992) espetáculo de teatro de rua inspirado na obra de Willian Shakespeare e com direção de Gabriel Villeta , teve uma repercussão que contribuiu de forma significativa para o reconhecimento nacional do grupo, retratava o universo cultural do sertão mineiro, e ajudou a conformar uma imagem do grupo, constituindo quase uma marca do Galpão. Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.

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U rdimento O encontro com Villeta significou uma reestruturação no interior do grupo, gerou uma estrutura profissional que deu suporte aos posteriores trabalhos desenvolvidos pelo Galpão. Com a projeção conquistada pelo trabalho de direção de Villela, tanto a nível nacional e internacional2, o grupo decidiu continuar com novas concepções teatrais trazidas pelo diretor paulista. Seguindo o processo de renovação teatral, Villeta decide montar a partir da adaptação de Arildo de Barros do texto de Eduardo Garrido “O Mártir do Calvário” o espetáculo “A Rua Amargura” (1994). Esta encenação representou uma continuidade neste processo de formalização dessa imagem do grupo, ao associar a temática bíblica com elementos característicos da cultura popular brasileira. “Um Molière Imaginário” (1997) foi adaptado a partir do texto “Um Doente Imaginário”, último texto escrito por Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière. Este espetáculo foi dirigido por Eduardo Moreira e constituiu um momento de consolidação grupal e autonomia interna, “o grupo procurava andar com suas próprias pernas” (BRANDÃO, 2002: 138). Por um lado havia a pressão da continuidade qualitativa dos trabalhos realizados anteriormente que consequentemente refletia na expectativa do público.

O Galpão foi convidado para apresentar o espetáculo "Romeu e Julieta" no Globe Theatre (Londres/ Inglaterra). Globe Theatre é uma fiel reconstrução do teatro construído em 1599, onde trabalhou Shakespeare e para qual escreveu muitas peças de teatro. É um único teatro internacional dedicado à exploração da obra de Shakespeare. 2

Em 1998, o ator e diretor Cacá Carvalho ministra workshop com o Grupo Galpão baseado no texto O Cavaleiro Inexistente de Ítalo Calvino. A partir dessa experiência, o ano seguinte foi marcado pela produção do espetáculo “Partido” (1999) adaptado da obra “O Visconde Partido ao Meio”, também do escritor italiano Calvino. Carvalho nesta encenação explorou uma linguagem mais poética experimentando o universo existencialista. Esta produção marcou os 17 anos de trajetória e consolidação do trabalho desenvolvido pelo grupo. “Um Trem Chamado Desejo” (2000) do autor americano Tennessee Williams e dirigida por Chico Pelúcio, outro fundador do grupo. Este espetáculo foi concebido como comédia musical, recriava o difícil dia-a-dia de uma companhia teatral dos primeiros anos do século XX, estabelecendo um inevitável paralelo com a própria vida do grupo. “O Inspertor Geral” (2003) do russo Nicolai Gógol sob a direção de Paulo José representa uma reafirmação da estratégia do Galpão de se associar a diretores já renomados para experimentar novos caminhos. Essa parceria se reafirmou com a estréia em 2006 de “Um Homem é um Homem” do dramaturgo alemão Bertolt Brecht é possível visualizar outra vez o projeto cênico de Paulo José buscando uma articulação com o capital técnico do elenco grupal. Esta trajetória, que consolidou um espaço significativo no contexto teatral brasileiro, se articulou a partir de um projeto grupal que insistiu na formação técnica dos atores. Isso possibilitou a experimentação de diversas linguagens cênicas propostas pelos diretores convidados. Os atores do Galpão Dezembro 2008 - N° 11

Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.

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Artigo para o programa "Grupo Galpão: Uma História de Risco e Rito". 3

conformaram um capital criativo muito favorável para a apropriação de uma multiplicidade das possibilidades cênicas. Assim, o grupo pode pautar-se “por um teatro de pesquisa, onde o riso e a possibilidade são a tônica. Impulsionados pelo desejo de fazer um teatro calcado no desenvolvimento de uma própria linguagem de grupo”3 (MELLO, 2001: 01). Este coletivo de atores articulou sua prática cênica com um projeto coletivo de construção de uma estrutura de trabalho que permitisse o aprofundamento técnico e a sobrevivência por meio do teatro. Por isso a referência da aprendizagem caracteriza o grupo.

Galpão Cine Horto: espaço de pesquisa, aprendizagem e fomento do teatro Desde seus primeiros anos de trabalho o Galpão almejava ir além da criação de espetáculos. Em 1984, com apenas dois anos de existência e, contando com a jovialidade de seus integrantes as perspectivas promissoras do grupo eram visíveis também para a crítica. O jornalista Marcelo Procópio do Jornal Estado de Minas registrou em 14/10/1984 os anseios e os desejos desse conjunto de atores que mais tarde tornar-se-ia realidade: Eles acreditam que é possível ser profissional de teatro aqui [em Belo Horizonte]. Trabalham cerca de cinco horas por dia, buscam ter uma infra-estrutura que garanta a vida do grupo. E insistem no grande sonho do espaço: um galpão para espetáculo, escola. (apud BRANDÃO, 2002: 75) Essa dinâmica de trabalho profissional, baseada na disciplina e no companheirismo, repercutiu no projeto que redundou na abertura de um espaço cultural que representou um passo decisivo para o desenvolvimento artístico do Grupo Galpão.

O site do Galpão Cine Horto pode ser acessado pelo endereço: www. galpaocinehorto. com.br 4

O site da Redemoinho pode ser acessado pelo endereço: www. redemoinho.org 5

A percepção de que este “novo espaço simboliza o esforço destes quinze anos e inaugura os próximos que virão” (BRANDÃO, 2002: 146), impulsionou o grupo a assumir um projeto que demandou um grande esforço de produção. A abertura do espaço Galpão Cine Horto4, significou um importante acontecimento para a vida cultural de Belo Horizonte, proporcionou o desenvolvimento e fomento da criação teatral, compartilhamento de idéias e pesquisa bem como posteriormente repercutiu no nascente movimento de coletivos teatrais denominado Redemoinho5. Vizinho da sede do grupo na Rua Pitangui, o Cine Horto era um antigo cinema abandonado, que foi transformado a partir da intervenção do Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.

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U rdimento grupo no momento de expansão de suas atividades. Isso se deu também a partir de discussões com artistas da cidade. O Cine Horto Galpão, inaugurado em março de 19985, tornou-se um centro cultural que cumpre múltiplas funções, tendo como o eixo norteador à reciclagem de atores. Assim, o Cine Horto possibilita aos artistas locais o aprofundamento de técnicas, a realização de pesquisas, e formação técnica, além de ser um centro de fomento do teatral. Nos seus onze anos de trajetória, o Cine Horto abrigou projetos concebidos pelo grupo, que visavam suprir carências identificadas pelo Grupo no ambiente teatral de Belo Horizonte. O Cine Horto tornouse lugar de encontro de pessoas do teatro mineiro, possibilitando trocas de experiências entre diferentes grupos, bem como também contato com artistas de outras regiões do país.

O Grupo Galpão já tinha 16 anos de trajetória quando inaugurou o Cine Horto, portanto os atores tinham diversas experiências de linguagens. 5

O espaço também funciona como sitio de veiculação de projetos culturais produzidos na cidade. Neste sentido, seu principal eixo é a geração e a difusão de produtos teatrais. Estas tarefas são realizadas a partir de uma política de abertura para a comunidade civil e artística, criando oportunidades para o acesso às atividades desenvolvidas tanto neste centro cultural. Com a intensa carga de viagens que o Galpão realiza durante todo o ano, alguns projetos são realizados por profissionais, que se destacam no circuito teatral de Belo Horizonte, e são contratos pela direção do Cine Horto. Assim, o Cine Horto opera como um projeto de extensão do grupo, criando oportunidades de ensino e aprendizagem teatral através de diferentes atividades. Com apresentações de espetáculos, conferências, oficinas e encontros, o grupo estabeleceu um projeto que fomenta o acesso ao teatro e, dessa forma, discute os modos de criação e produção ao mesmo tempo em que constitui um lugar de encontro. Os projetos, atualmente em curso no Cine Horto, em suas especificidades atendem a diferentes anseios dos artistas. O projeto Oficinão6 está dirigido à realização de uma pesquisa temática que relaciona membros do grupo Galpão com alunos participantes. Neste projeto, o grupo aplica junto aos alunos, técnicas desenvolvidas no trabalho cotidiano do grupo, e particularmente aquelas absorvidas a partir da experiência com os diferentes diretores convidados. No Oficinão também se busca a elaboração de novos exercícios, e o aprimoramento de técnicas. Este projeto permite que os alunos participem de uma encenação que supõe o envolvimento com a construção geral do espetáculo desde a produção, realização de figurinos e cenários, além da Dezembro 2008 - N° 11

6 A primeira edição aconteceu em 1998 com a direção de Chico Pelúcio com o espetáculo "Noite de Reis". Até a oitava edição, totalizou-se 30.000 espectadores com 285 apresentações neste espaço cultural.

Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.

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U rdimento interpretação. Assim, esta oficina termina por conformar uma instância de formação de novos grupos, dado que, ao finalizar o projeto, vários alunos se reúnem para dar seguimento aos seus processos criativos. O primeiro festival aconteceu em 2000. 7

O Festival de Cenas Curtas 3 X 47 é um projeto de estímulo à criação cênica e a revelação de novos talentos. A seleção dos espetáculos breves é feita pelo Grupo Galpão e convidados e tem como critério de avaliação a pesquisa e da proposta teatral dos grupos proponentes. O Festival propõe que os grupos elaborem uma apresentação de um esquete, em aproximadamente 15 minutos. As esquetes são submetidas ao voto popular, e o ganhador ganha como prêmio a possibilidade de realizar uma temporada no Galpão Cine Horto. Sabadão é um evento mensal que tem por finalidade realizar aulasespetáculo, palestras, debates ou exibição de vídeo, sempre com a presença de um artista renomado das artes cênicas, que interagem com o público. A troca de experiências proporcionada por este projeto permite o contato direto com a comunidade artística local que, a partir disso, tem a oportunidade de interagir com outras formas de reflexão sobre a cena teatral brasileira. Aproveitando a própria história do Cine Horto, o Grupo Galpão insere no projeto Conexão Galpão dois tipos de atividades que têm a prioridade de atender estudantes e comunidade em geral, realizando assim um programa educativo na cidade. Já o Conexão Cinema, difunde a história do cinema, relacionando-a, quando possível com a própria história do local. Para isso o grupo utiliza a pequena sala de projeção que foi conservada no Cine Horto. Este projeto atende crianças de 5 a 10 anos relacionadas com diferentes instituições. Conexão Teatro é um projeto que se dedica à história do teatro e suas transformações, e está destinado às crianças e aos pré-adolescentes, abarcando a faixa etária dos 9 aos 12 anos. Retomando as origens do grupo, o projeto Cine Horto Pé na Rua, proporciona a vivência do teatro de rua. Assim, os alunos que freqüentam este projeto podem experimentar a linguagem da rua que foi a matriz do trabalho do Galpão. Ao abordar o uso da rua o projeto amplia as perspectivas de intervenção cênica dos atores nos espaços da cidade, propondo a criação de novas formas de imersão artística. A primeira montagem deste projeto intitulou-se “Papo de Anjo” com a direção de Chico Pelúcio e Lydia Del Picchia, e foi realizada com os atores participantes do projeto Oficinão de 2003/2004. Ultrapassando as fronteiras da cidade de Belo Horizonte, o Grupo Galpão lançou, em 2004, o projeto Redemoinho - Rede Brasileira de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral tem como finalidade reunir grupos de teatros que administram o próprio espaço de criação, o compartilhamento e a troca de experiências entre os grupos. As agrupações que compõem a rede de integração Redemoinho possuem espaço próprio para criação e pesquisa Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.

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U rdimento cênica. Esta rede de integração discute a produção teatral do Brasil, troca experiências e busca, através deste intercâmbio, fortalecer as bases de fomento cultural no país. O projeto Redemoinho caracteriza-se pela descentralização8, visando realizar o evento em todos os espaços culturais dos grupos integrantes, realizando o evento a cada ano em uma sede diferente.

Palavras finais O projeto do Galpão, grupo que nasceu de uma oficina em um evento teatral, consolidou a criação de um espaço de fomento que funciona como berço de novos grupos. Por isso, pode-se dizer que as atividades desenvolvidas no Cine Horto Galpão conformam um projeto pedagógico de impacto tanto local como nacional. Este projeto, além de oferecer aprendizagem técnica, também repercute como modelo de prática pedagógica grupal, apesar de que as condições de trabalho do Cine Horto Galpão sejam de difícil reprodução ao longo do país. Atualmente, o Cine Horto além de desenvolver projetos focados no fomento e produção teatral, possui outros dois projetos em andamento que completam a estrutura de funcionamento idealizada pelo grupo: o Centro de Memória e Pesquisa do Teatro que abriga acervo bibliográfico e videográfico especializado na área teatral e, desde 2004 publica anualmente a Revista de Teatro Subtexto, objetiva colocar em circulação as experiências dos coletivos de teatro.

2004 e 2005 na sede do Grupo Galpão em Belo Horizonte; 2006 na sede Barracão Teatro em São Paulo; e em 2007 será realizado em Porto Alegre na sede do Grupo de Atuadores Terreira da Tribo Ói Nóis Aqui Traveiz. 8

A política de compartilhamento levada a cabo no Cine Horto implica na abertura do grupo a novos olhares, por isso este espaço se constituiu em lugar de criação e de reflexão, onde se reflete sobre o fazer teatral em grupo.

Referências bibliográficas BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: Uma história de risco e rito. 2º ed. Belo Horizonte: o grupo, 2002. MELLO, Sérgio Bandeira de. Grupo Galpão: Uma História de Risco e Rito. 2001. MOREIRA, Eduardo da Luz. Grupo Galpão: Diário de Montagem A Rua da Amargura. Belo Horizonte, UFMG, 2003. PELÚCIO, Chico. Galpão Cine Horto – Espaço de criação e incentivo ao trabalho em grupo. Revista Subtexto, Belo Horizonte, v. 01, n 01, rona 2004. RODRIGUES, Eder Sumariva. Características e perspectivas da identidade do Teatro de Grupo no Brasil. In III JORNADA PEDAGÓGICA NACIONAL DO SINPRO, 2005, Santa Catarina: Itajaí, 2005. p. 67–77.

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ESPAÇO TEATRAL E PERFORMATIVIDADE. ESTRATÉGIAS E TÁTICAS NA CENA MODERNA E CONTEMPORÂNEA Evelyn Furquim Werneck Lima1

Resumo

Abstract

O presente artigo tem por objetivo discutir os conceitos de sistemas disciplinares e de performatividade no espaço cênico, buscando relacioná-los no âmbito da História do Espetáculo, com fundamento nas teorias e conceitos de Michel Foucault e Michel de Certeau. Ambos permitem uma abordagem teórica sobre a questão dos métodos e da disciplina do ator. Conclui-se que a técnica de improvisação freqüente na cena moderna e contemporânea parece refutar os conceitos foucaultianos, aceitando, ao contrário, a prática das táticas propostas por Certeau.

The present article focuses in the discussion of concepts of discipline and performativity in the scenic space, trying to relate them in the context of the Performing Arts History, based in the theories and concepts of Michel Foucault and Michel de Certeau. Both allow a theoretical approach on the subject of the methods and the actor’s discipline and performing. The conclusions are that the technique of the modern and contemporary scene seems to refute Foucault´s concepts, accepting, to the opposite, the practice of the tactics proposed by Certeau.

Palavras-chave: espaço teatral, sistemas disciplinares, história do espetáculo.

Keywords: theatrical space, disciplinary systems, performing arts history.

O presente artigo tem por objetivo discutir os conceitos de sistemas disciplinares e de performatividade2 no espaço cênico, buscando relacioná-los na História do Espetáculo. A História Cultural - vertente nascida na École des Annales-, com Marc Bloch e Lucien Fèbvre, nos anos 1930, e desenvolvida por Jacques Le Goff, Georges Duby, Pierre Bourdiu e, mais recentemente, Roger Chartier, foi atravessada Dezembro 2008 - N° 11

1 Evelyn Furquim Werneck Lima é professora Associada do Centro de Letras e Artes e do Programa de Pós-Graduação em Teatro (UNIRIO). Membro do Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone (Paris X-Nanterre). Pós-doutora em Artes e doutora em História Social (UFRJ/EHESS). Coordenadora do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral. Pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. 2 O termo performatividade, nascido e desenvolvido entre os estudos da performance, indica um "fazer como", "um fazer fazendo como". Designa as relações de simulação estabelecidas entre o autor/ator/performer com o real - quer através de recursos ficcionais quer autoinduzidos, visando iludir, fazer crer/ enganar o espectador e ou até a si mesmo, através de simulações. Disponível em http:// www.ceart.udesc.br, acessado em 25.set.2008.

Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento por duas personalidades que a meu ver são dois furacões no meio das teorias e filosofias históricas: Michel Foucault e Michel de Certeau. Ambos permitem uma abordagem teórica sobre a questão da performatividade e da disciplina do ator. Decidi discutir este tema, pois nos anos que se seguiram às publicações e palestras destes dois autores, foram radicalmente alterados não só conceitos da História tout court, porém da História de todas as atividades culturais, entre elas a do Teatro e, por conseqüência, da História do Espetáculo. Uma das discussões mais polêmicas é encontrada na obra de Foucault intitulada A Palavra e as Coisas, na qual o autor chama atenção para a questão da linguagem, mais precisamente, discute a emancipação da linguagem em relação às coisas. Segundo ele, não haveria mais unidade entre as coisas e a linguagem, unidade perdida no tempo, unidade que se deu no período clássico da história, e que na era moderna se esfacela. Esta afirmativa deflagra o paroxismo da fragmentação, que têm pautado as artes contemporâneas (FOUCAULT: 2002). Para Foucault, ainda no século XIX, Nietzsche teria sido o primeiro filósofo a trazer a linguagem para o cerne de todas as questões, a propor uma reflexão radical sobre a linguagem. Antes negligenciada como objeto de estudo filosófico, a linguagem constitui hoje o centro da curiosidade do pensamento contemporâneo, passando a ocupar um lugar central na produção de reflexão, arte, cultura.

Foucault tenta analisar, definir, o solo epistemológico que serviu de base para rupturas, o nascimento de novos saberes e, finalmente, o papel do homem e das ciências humanas a partir do século XIX. 3

Este autor defende que após a ruptura com a regra da “representação” e de uma “unidade” que não pode ser restaurada (FOUCAULT, 2002: 419), os “modos de ser passaram a ser múltiplos”. Acredita que houve uma ruptura da ordem clássica, um fracionamento da linguagem e uma unidade perdida da linguagem. A questão que aflora hoje é “seria o personagem teatral uma unidade?” Qual a unidade possível hoje?3 Segundo o autor, cada época se caracteriza por uma configuração geral do saber comum aos vários saberes particulares, a qual determina o que pode ser pensado, como pode ser pensado, dentro de critérios particulares. Além da questão da emancipação da linguagem, em sua obra Vigiar e Punir, escrita em 1975, Foucault defende, sobretudo, que o poder se instala na horizontalidade do sujeito individualizado, modelando seu corpo até à passividade. Uma anatomia do poder define o poder que se pode ter sobre o corpo, “aumentando as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminuindo essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”. Acrescenta que, “(...) a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 1987: 127). Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento Vigiar e punir é o relato das formas que produziram o indivíduo, tornado normatizado por um poder maior que ele. Entretanto, para refutar esta disciplina corporal do indivíduo face à sociedade e as instituições, destaco o também francês Michel de Certeau, que, em sua obra A Invenção do cotidiano, de 1980, conceitua as práticas das estratégias e táticas, demonstrando que o corpo pode transgredir a disciplina e dar conta das artes de fazer (CERTEAU, 1994: 21). Este pensador demonstra que um jogo que táticas silenciosas e sutis se insinuam quando o corpo ou o indivíduo não deseja se submeter às estratégias. Tratarei mais tarde destas questões quando falar de performatividade. Ao investigar a cena teatral entre 1970 e 1990, principalmente na Europa e EUA, o teórico Hans-Thies Lehmann identificou que aqueles espetáculos teriam como principal característica comum o rompimento com os conceitos utilizados no “teatro dramático”, o qual define como “pensado tacitamente como um teatro do drama”. Ele inclui entre os fatores teóricos conscientes as categorias “imitação” e “ação”. Este autor afirma que “o teatro dramático está subordinado ao primado do texto”. (LEHMANN, 2007: 25) Não creio que se possa generalizar este primado do texto com o que Lehmann conceitua como “teatro dramático” e que este teria cedido lugar ao “teatro pós-dramático” após os anos 1970, pois o teatro em cena é considerado diferente da literatura dramática há muito tempo. Entendo que houve uma passagem conflituosa do campo dos signos lingüísticos para o campo dos signos visuais, mas diferentemente de justificar esta mudança apenas quando surgiu a figura do encenador, ou defender esta transformação apenas na segunda metade do século XX, já identifico uma demarcação relevante desta “batalha” desde os trabalhos do autor inglês Ben Jonson e do arquiteto e cenógrafo Inigo Jones, como também afirmam Oddey e White, referindo-se às montagens encenadas nos Court Masques, ainda no século XVII, quando as peças escritas pelo primeiro eram radicalmente transformadas quando encenadas (ODDEY e WHITE, 2008: 145). Em recente estudo, Oddey e White traçam um brevíssimo, porém detalhado panorama da questão. Reafirmam que o ponto crucial da atividade teatral acontece no palco e esta atividade é uma experiência visual apresentada em três dimensões e que “refletem a identidade cultural da sociedade que o está assistindo” (ODDEY e WHITE, 2008: 145). Apesar de citar Brecht como um marco das bases do teatro pósdramático, Lehmann, alega que Brecht não pertence a essa nova estética marcada por uma absoluta liberdade no que tange à construção cênica, sem se subjugar a modelos, formas ou fontes. Para o autor alemão, as encenações de Brecht estavam sempre presas ao texto escrito. Assim como Gerd Borheim, Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento concordo que Brecht utilizava “uma gramática, um todo completo e exato de regras e métodos”. Entretanto, o próprio crítico argumenta que, partindo da racionalidade, Brecht provoca “uma cisão entre o espetáculo e o personagem, a cena e o texto, e esta cisão vai se refletir também na relação do público com o espetáculo” (BORNHEIM, 2001: 27). Para Pavis, na tradição ocidental o texto dramático permaneceu por muito tempo como um dos componentes essenciais da representação. Entretanto, após as mudanças de paradigmas e a possibilidade de o encenador imprimir no texto encenado a marca de sua visão pessoal, o texto dramático foi deixado à disposição dos filólogos, passando-se da filologia à cenologia (PAVIS, 2003:185). Citando como exemplo as encenações de Vilar, Jean-Jacques Roubine alega que o teatro contemporâneo contrapõe à literatura dramática uma nova história teatral: uma história das formas, das buscas, das inovações do palco (ROUBINE, 1998: 57) e Pavis defende que a encenação hoje não é mais a passagem do texto à cena e que o texto não deve ser o pólo de atração para o ato da representação (PAVIS, 2003:192).

Espaço teatral e performatividade: diálogos A experiência espacial, tanto no edifício teatral como fora dele, dispõe de duas possibilidades, entre as quais todas as teorias do espaço podem oscilar: (i) Concebe-se o espaço como um espaço vazio que se deve preencher; (ii) Considera-se o espaço como invisível, ilimitado e ligado a seus utilizadores, a partir de coordenadas, de seus deslocamentos, de sua trajetória, como uma substância “não a ser preenchida, mas a ser estendida”. A essas duas concepções antitéticas do espaço correspondem duas maneiras diferentes de descrevê-lo: o espaço objetivo externo e o espaço gestual. Pavis considera o espaço objetivo externo como o espaço visível, frontal muitas vezes, preenchível e descritivo, onde ele distingue duas categorias: • o lugar teatral, ou seja, o prédio e sua arquitetura, sua inscrição na cidade, mas também o local previsto para a representação ou ainda • o espaço cênico: lugar no qual evoluem os atores e o pessoal técnico: a área de representação propriamente dita e seus prolongamentos para coxia, platéia e todo o prédio teatral (PAVIS, 2003:141-142) As formas de lugar teatral foram se modificando de acordo com cada cultura e cada temporalidade. Na linguagem dos espetáculos, as relações espaciais criadas surgiram a partir da organização do espaço cênico, mais Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento especificamente, do desenvolvimento da arquitetura da casa de espetáculos. Na Grécia clássica as artes cênicas demandaram o anfiteatro grego. No palco principal apenas os protagonistas ocupavam esta faixa entre o palco e o público e tinham como função representar os comentários e reações do povo perante os nobres e os deuses. Havia, assim, uma grande interatividade entre os artistas e o público. O mesmo acontecia nos teatros em semi-círculos e anfiteatros romanos, os quais, apesar de não serem mais escavados nas rochas e sim edificados sobre estruturas em arcos, apresentavam sempre um palco tipo arena. Durante a Idade Média, o teatro profano era perseguido pelo Cristianismo, havendo permissão da Igreja apenas para realizar os “Mistérios” no adro ou no interior do edifício religioso. Ainda no medievo, os atores tiveram que ocupar espaços não muito nobres, como carroças, tablados, praças, não possuindo um espaço específico para apresentar seus espetáculos. Teatro de criação coletiva, de jogos cênicos sob máscaras e de personagens tipos, que caricaturavam a sociedade, a Commedia dell’arte significou, literalmente, a profissionalização do teatro: os atores ganhavam a sua vida representando tais comédias, ao serem freqüentemente contratados e remunerados para se apresentarem em espaços privados, como nos grandes castelos e palácios. Esses artistas eram capazes de representar comédias, tragédias, tragicomédias, pastorais, além de farsas. Surgiram por volta de 1550 e se eternizaram na historia da cultura. Desde a proposta do Teatro Olímpico de Vicenza, obra do arquiteto Andréa Palladio inaugurada em 1580, o ator ficava bem próximo à platéia até a adoção do longínquo e frontal palco italiano, cujo ápice é o La Scala de Milão. O corpo dos atores ficava então bem distante para criar espaços de ilusão. (LIMA & CARDOSO, 2006) O palco italiano foi planejado para criar um ambiente de magia ilusionista, com o palco cênico separado da orquestra e da platéia. Em obra de referência sobre a arquitetura do espetáculo no Ocidente afirmo que o palco italiano - adotado em todo o mundo ocidental devido à exportação de gosto pelo espetáculo lírico, foi o modelo que se reproduziu por mais de duzentos anos resultando num fenômeno de longa duração na história do espetáculo4 (LIMA, 2000: 135). Visando ampliar as dimensões reais do palco, desde o Renascimento, os cenógrafos criaram vários recursos usando grandes cenários, pintados em perspectiva5, com a finalidade de criar um efeito de profundidade ilusória. Esta ilusão criada é chamada de espaço virtual. Porém, este espaço perspectivado transformar-se-ia pelas vanguardas do século XX. Posteriormente, em Das Vanguardas à tradição (2006), discuti as revoluções cênicas do século XX, citando Gordon Craig, cenógrafo e arquiteto que estabeleceu nos anos 1920, um “quinto palco” para substituir os quatro Dezembro 2008 - N° 11

Em Arquitetura do Espetáculo discuto o advento e a permanência do palco italiano, inclusive o empréstimo de suas formas aos espaços destinados ao cinema. 4

Ver tratado de Sebastiano Serlio. 5

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U rdimento tipos de espaços teatrais a) o anfiteatro grego, b) o espaço medieval, c) os tablados da Commedia dell´Arte e d) o palco italiano. Esta proposta do quinto palco representava a substituição de um palco estático por um palco cinético, e para cada tipo de encenação um tipo especial de lugar cênico. A iluminação recebeu um tratamento inédito até então. Craig fez projetar a luz verticalmente sobre o palco e frontalmente por meio de projetores colocados no fundo da sala. A luz dos bastidores e da ribalta foi abolida, numa proposta inovadora e vanguardista. Neste sentido, o teatro teria como objetivo absorver estas novas tecnologias para transcendê-las, problematizando assim as tecnologias de comunicação na cultura contemporânea. O crítico Edélcio Mostaço afirma que a partir da implosão do espaço proposta pelo conceito de encenação ou mise-en-scène ao final do século XIX, quando André Antoine fez considerações a respeito, houve uma revolução no espaço da cena no que tange a) ao papel e a função da quarta parede; b) à definição do espaço cênico como contraponto ao espaço narrativo; c) à disciplina dos atores, O espaço cênico passa a ser vislumbrado, desde então, como uma galvanização das forças atuantes no espaço narrativo, uma busca de adequação entre os meios (da infra-estrutura da linguagem cênica, da iluminação e da cenotécnica, etc) e os fins (a articulação dos signos dentro de um código cênico e suas possíveis decodificações pelo espectador) a conformar a substância última do fenômeno teatral. Especial ênfase é então dispensada aos intérpretes, à noção de ensemble, à administração do elenco; evitando proeminências que comprometessem o conjunto artístico e a coerência de cena. Não se tratava de um “rebaixamento” da condição do ator, mas do redimensionamento de sua função dentro do espetáculo, alinhando-o aos demais possíveis narrativos da linguagem cênica. Com estas renovadas abordagens o teatro passa então a ser considerado como o espaço da representação, -- e não mais da apresentação do mundo (“o grande teatro do mundo” de matriz barroca) --, enfatizando o que possui de ficcional, narrativa artificiosa e produzida, universo propedêutico de vida; cabendo ao encenador formalizar a linguagem e conduzir este processo (MOSTAÇO, s/d). Desde então, o teatro não se propõe a ocupar apenas o espaço físico - real, cotidiano, concreto-, mas busca extrapolá-lo e, mesmo fazendo uso do espaço real, tem a intenção de criar um espaço onde simbolismos possam ser revelados. Os diretores, quando criam os espaços da cena, produzem sentidos, construídos a partir de uma experiência particular. Considero que os sentidos que os artistas criam através do espaço em suas obras se reportam às experiências espaciais já vividas ou almejadas. Estas experiências são re-elaboradas, constituindo-se de memórias e de desejos do artista (BACHELARD, 1993). Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento O teatro, a dança, o cinema e o circo, entre outras artes, desenvolvemse no tempo e no espaço. Para Patrice Pavis, a aliança de um tempo e de um espaço constitui o que Mikail Bakthin, na literatura, chama de cronotopo, que vem a ser a unidade na quais os índices espaciais e temporais formam um todo inteligível e concreto. Aplicados ao teatro, a ação e o corpo do ator se concebem como o amalgama de um espaço e de uma temporalidade: o corpo não está apenas no espaço, ele é feito de espaço e feito de tempo. Este espaço-tempo é tanto concreto (espaço teatral e tempo da representação) como abstrato (lugar funcional e temporalidade imaginária). A ação que daí resulta é ora física, ora imaginária. O espaço-tempo-ação é percebido como um mundo concreto e como um mundo possível imaginário. Nos anos 1970, com as performances e os happenings, o teatro e a dança utilizaram espaços não tradicionais e romperam limites em concordância com uma época, que aproximava arte e vida e que questionava as relações de poder e o lugar das coisas. Brigava-se com o autoritarismo, invadindo-se os espaços “formais”, como os próprios museus, galpões e praças públicas. Em 1969, o diretor Luca Ronconi exibiu a peça Orlando Furioso, espetáculo simultâneo em vários tablados, tal como Artaud previra nos anos 1930. (ROUBINE, 1998:105-109) Três anos depois, em 1971, Ariane Mnouchkine apresentou a peça 1789 - encenada na Cartoucherie de Vincennes - local no qual o público fica em pé e a ação se desloca através de passarelas, de um tablado para outro, em várias cenas fazendo o papel do povo de Paris. Durante o espetáculo, os espectadores participam da festa e do foguetório da tomada da Bastillha, ou seja, uma festa dentro da festa (ROUBINE, 1998: 114). Louvando a peça 1789 - uma encenação que nega a estruturação cênica ilusionista-, Lehmann afirma que estes tablados e passarelas e “as massas de espectadores aglomerando-se e dispersando-se por entre eles conferem ao teatro uma atmosfera semelhante à do circo”, mas que ao mesmo tempo apropriam-se do um espaço público, das ruas e praças da Paris revolucionária (LEHMANN, 2007: 266). Na verdade, a cidade e seus espaços públicos abrigam hoje inúmeros espetáculos, aumentando a performatividade no teatro contemporâneo. Em 1989, durante a entrevista concedida a Gael Breton e publicada em Theatres, Ariane Mnouchkine introduziu o conceito de espaço “encontrado” (BRETON, 1989 apud ODDEY e WHITE, 2008: 148). O termo “espaço encontrado” era incompreensível para muitos arquitetos de teatro, porém para os artistas experimentais e vanguardistas, o “espaço encontrado” anunciava claramente que o teatro contemporâneo é diferente do que era ou ainda é representado nos edifícios teatrais tradicionais6. O conceito de “espaço encontrado” consiste em um uso criativo de espaços inusitados, isto é, ambientes cujo potencial dramático dependerá da mão do artista, isto é, Dezembro 2008 - N° 11

Vale lembrar que nas Escolas de Arquitetura no Brasil, o tema edifício teatral é sempre projetado a partir do programa de um teatro à italiana. 6

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U rdimento a criação do artista modificando, transformando, (re) elaborando o espaço e interferindo no projeto. Esse conceito propiciou a idéia de que “o espetáculo já não deveria mais ser limitado ao palco, mas deveria invadir o espaço inteiro” (ODDEY e WHITE, 2008: 148).

Espaço gestual e disciplina Mas Pavis também identifica o espaço gestual - o que mais interessa a este ensaio, como o espaço criado pela presença, posição cênica e os deslocamentos dos atores: espaço emitido e traçado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair. A experiência cinestésica do ator é sensível em sua percepção do movimento, do esquema temporal, do eixo gravitacional, do tempo-ritmo. Dados que só pertencem ao ator, mas que ele transmite ao espectador. A sub-partitura na qual o ator se apóia (pontos de orientação no espaço, momentos fortes que facilitam sua ancoragem no espaço-tempo) fornece um percurso e um trajeto que se inscrevem no espaço tanto quanto o espaço se inscreve neles. O espaço centrífugo do ator se constitui do corpo para o mundo externo. O corpo encontra-se prolongado pela dinâmica do movimento. O corpo do ator em situação de representação é um corpo que tende a expressar o mais fortemente possível suas atitudes, escolhas, sua presença. (PAVIS, 2003: 142) O espaço ergonômico do ator, seu ambiente de trabalho e de vida, compreende a dimensão proxêmica (relação entre as pessoas), háptica (maneira de tocar os outros e a si mesmos) e cinéstésica (movimento de seu próprio corpo). No entanto, este espaço ergonômico tem sido diferenciado nos processos de criação de diretores e grupos de teatro ao longo do século XX. Para Stanislavski o ator manifesta-se pela ausência de tensão muscular, o corpo se sente livre para submeter-se às ordens do artista. Como ele próprio orientava seus atores, pedia-lhes para reparar que “a dependência do corpo em relação à alma é de particular importância em nossa escola de arte. A fim de exprimir uma vida delicadíssima e em grande parte subconsciente, é preciso ter controle sobre uma aparelhagem física e vocal extraordinariamente sensível, otimamente preparada” (STANISLAVSKI, 1968: 44-45). Destacam-se entre os ensinamentos de Stanislavski: a luta contra o clichê, a busca da sinceridade; o estabelecimento das vontades da personagem para motivar o jogo do ator; a elaboração de um subtexto para exprimir o que se encontra nas entrelinhas, nos silêncios, um clima favorável à emoção cênica, meios de desencadear uma emoção verdadeira no ator. Apesar de afirmar que “em todo ato físico há um elemento psicológico”, ele reconhece que é possível provocar, pela via exterior, uma grande intensidade física. A participação física Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento do ator é conseqüência dos passos dados internamente: circunstâncias dadas, imaginação e emoção, ligam-se automaticamente às sensações produzidas no corpo do ator e o impulsionam às ações exteriores. Seu Método das Ações Físicas parte do princípio de que, se se consegue criar o corpo de um personagem necessariamente termina-se, por seu intermédio, conhecendo e vivenciando também sua alma, pois “o elo entre o corpo e a alma é indivisível. (...) Todo ato físico, exceto os puramente mecânicos, tem uma fonte interior de sentimento”. Ministrou técnicas de “movimento plástico”, levando os atores a criarem formas, nunca desprovidas de sentido. O corpo pode levar o ator a encontrar a verdade interna, porque basta que o ator em cena perceba “uma quantidade mínima de verdade orgânica, em suas ações ou em seu estado geral, para que instantaneamente suas emoções correspondam à crença interior na autenticidade daquilo que seu corpo está fazendo” (STANISLAVSKI, 1972: 147). Outro adepto da disciplina do ator é Meyerhold (1874-1940), para quem o movimento cênico é o mais importante dos elementos da cena, e o ator tem que se apropriar de um código baseado em princípios técnicos muito bem determinados. Nos anos de 1916 e 1917, Meyerhold exigia dos atores que cursassem disciplinas diversas como dança, música, atletismo ligeiro, esgrima; trabalhava com a Commedia dell’Arte e com o drama hindu e criou o método da Biomecânica, um sistema de treinamento que leva o ator a se desenvolver a tal ponto que possa exprimir sinteticamente a substância social da personagem. Com vistas a que o intérprete possa expressar um sentimento não é necessária nenhuma mobilização interior, basta que ele se atenha aos reflexos físicos. O ator precisa praticar esportes e treinar intensivamente o corpo, capacitando-o a reagir aos estímulos mais imprevistos com toda precisão, sem intervalo de tempo para qualquer tipo de reflexão. Aldomar Conrado afirma que na técnica de Meyerhold, para representar o medo, o ator não deve começar por sentir medo (viver o medo e depois correr). Ele deve de início começar a correr (reflexo) e sentir medo depois que ele se viu a correr (CONRADO, 1969: 158). Como diretor teatral ele reestruturou a cena, desconstruiu a caixa cênica e abandonou o conceito de “uma caixa sem a quarta parede”. Mais precisamente ele buscou inspiração no espaço teatral espanhol dos corrales, da Commedia dell´Arte e, seguramente do teatro da antiguidade. Já Artaud pregava que o ator deveria desenvolver as potencialidades orgânicas de forma a ultrapassar o comportamento natural e cotidiano, para que acabasse atingindo o espectador. O autor considerava o mundo “como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida” (ARTAUD, 1993: 04). Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento A alma, concretizada no corpo, pode ser fisiologicamente reduzida a uma meada de vibrações, adquirindo assim uma materialidade na qual o ator há de acreditar. Se a alma dispõe dessa dimensão corpórea, o ator pode dominála partindo de seu físico. O “tempo das paixões” pode ser conhecido pela respiração, pois ao alterá-la, é possível alterar estados interiores; com uma modificação proposital da respiração, novos estados interiores podem ser descobertos e dominados pelo ator. O que ele pretende são gestos purificados, gestos essenciais que busquem sua linguagem autônoma, significando por si mesmos. Para que isso seja possível, a alma deve estar presente, unificada ao corpo, em permanente transformação. Trata-se, portanto, de deixar o próprio ator utilizar suas táticas e suas emoções podem fluir. No que tange às emoções do personagem, Brecht quer o ator distante – e muito mais distante ainda de suas emoções particulares. No ator brechtiano, o corpo retém as características de atuante e de narrador. Deve tornar-se um espectador atento de si mesmo. O teatro de Brecht pretende deixar à mostra o processo de feitura das ações e reações humanas num contexto histórico claro. Esse tipo de ator atua sem a quarta parede, demonstra consciência de que está sendo observado, ao mesmo tempo em que observa a si mesmo enquanto trabalha. O gesto, para ele, pretende ser uma mostra das relações sociais presentes na caracterização de um papel. Para Brecht “a dicção” e o “gesto” precisam ser cuidadosamente selecionados, e, devem ter amplitude. Como o interesse do espectador é canalizado exclusivamente para o comportamento das personagens o “gesto” destas personagens tem de ser significativo. Em O que é o teatro épico, Walter Benjamin, afirma a propósito da teoria de Brecht, que: O gesto é o material do teatro épico, que tem a missão de utilizar adequadamente este material. Face às declarações e afirmações profundamente enganadoras das pessoas, por um lado, e ao caráter impenetrável de suas ações, por outro, o gesto tem duas vantagens. Primeiro só em certa medida pode ser imitado, e isto é tanto mais difícil quanto mais banal e habitual ele for. Em segundo lugar, tem, ao contrário das ações e realizações das pessoas, um começo e um fim determináveis. Esta característica de delimitação rigorosa de cada elemento de uma atitude, que, no entanto, surge como um todo, e é um dos fenômenos dialéticos fundamentais do gesto (BENJAMIN, 1970: 40). Em fins de 1950, Grotowski se orienta para um teatro-acontecimento. O diretor estabelece uma relação inusitada ao propor que “o teatro é o encontro do ator com o espectador”, justificando a invasão do ator para dentro do espaço reservado à platéia, fazendo do público, uma peça chave para os dramas encenados. Incentivava o ator a detectar resistências de toda ordem e a lutar para ultrapassá-las. O seu treinamento realizava-se pela “via negativa”, pois Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento Grotowski pretendia anular o tempo entre o surgimento de um impulso e sua realização exterior. Em suas pesquisas investigou o Nô, o Kathakali e a Ópera de Pequim e inspirou-se nos princípios da composição artificial, ou seja, da estruturação disciplinada do papel. Através de uma formalização inicialmente exterior e bastante exigente do ponto de vista técnico, pode-se chegar ao espiritual. O princípio da expressividade, para ele, liga dois conceitos dicotômicos, auto-penetração e artificialidade, pois, quanto mais nos absorvemos no que está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação, na auto-penetração, mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas; isto quer dizer a forma, a artificialidade, o ideograma, o gesto (GROTOWSKI, 1968: 23). Para Grotowski, o ator “não deve usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; deve realizar esse movimento com o seu organismo”. O processo de cada ação deve ser todo visível: o local onde tem início o movimento, o momento do seu término e o início de uma nova ação. Desse modo o ator percebe que há um movimento interno que ocorre antes do movimento real, uma preparação orgânica que demanda uma mobilização de todo o organismo. O diretor acredita que o cansaço físico colabora para burlar as resistências da mente e acaba induzindo o ator a ser mais autêntico. Além de estimular certa liberdade do ator, este diretor dispensa estruturas arquitetônicas e os dispositivos habitualmente colocados a serviço do teatro. A busca grotowskiana, concentrada no aprofundamento da relação entre o ator e o espectador, define-se como um “teatro pobre”, e recusa a ajuda de qualquer maquinaria (ROUBINE, 1998: 101-102). Em alguns espetáculos o público está tão próximo que pode tocar o ator, aumentando a dinâmica centrípeta de energias co-vivenciadas, como alega Lehmann: “Quando o afastamento entre atores e espectadores é reduzido de tal maneira que a proximidade física e fisiológica (respiração, suor, tosse, movimento muscular, espasmos, olhar) se sobrepõe à significação mental, surge um espaço de intensa dinâmica centrípeta em que o teatro se torna um movimento das energias co-vivenciadas, e não mais dos signos transmitidos... Já o espaço de grandes proporções representa uma ameaça para o teatro dramático por seu efeito centrífugo” (LEHMANN, 2007: 268). Dirigido por Judith Malina e Julian Beck, desde 1947, o grupo Living Theatre traz o conceito de um “teatro vivo”, norteador tanto do trabalho quanto da vida de ambos. Influenciado inicialmente por Piscator e Brecht e com referências poéticas, filosóficas e teatrais de outras fontes, o grupo direcionouse para uma obra e uma postura política diferentes desses mestres, passando, então, a pregar, a partir de inúmeras encenações e peças, a revolução nãoDezembro 2008 - N° 11

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U rdimento violenta e o anarquismo. parte do princípio de que a presença do ator em cena estabelece uma relação com o espectador, e que essa presença é tanto mais materialmente verdadeira quanto mais forem desenvolvidas e utilizadas pelo ator a linguagem corporal e gestual. A ligação ator-público acontece ora no confronto aberto via agressão, ora pela comunhão. A palavra é tratada em suas possibilidades materiais de produção sonora. O trabalho corporal do Living liga-se estreitamente ao que se convencionou chamar de Expressão Corporal, que implica a mistura de arte-vida, com poucas regras técnicas e muita liberdade de improvisação, refletindo teorias que Certeau reafirmou nos anos 1980. Para Robert Wilson, diretor também contemporâneo, “I do movement before we work on the text. Later we’ll put text and movement together. I do movement first to makes sure it’s strong enough to stand on its own two feet without words. The movement must have a rhythm and structure of its own. It must not follow the text. It can reinforce a text without illustrating it. What you hear and what you see are two different layers. When you put them together, you create another texture” (WILSON apud HOLMBERG: 136).

Jean-François Lyotard alega que, "o corpo pode ser considerado como o hardware do complexo dispositivo técnico que é o pensamento". Segundo as idéias de Lyotard, o software humano, no caso da linguagem, não pode existir sem que haja um hardware, ou seja, o corpo. Para ele, seria conveniente tomar o corpo como exemplo na produção e programação das inteligências artificiais, já que o hard/soft humano é muito complexo e heterogêneo. (LYOTARD, 1989: 21) 7

Suas peças primam pela movimentação lenta, pela quase imobilidade. Um vocabulário foi organizado a partir de exploração individual de ações muito simples: pular, dar um passo à frente, correr, voltar à posição inicial. O diretor sugere que não se deve impor a quem quer que seja, seus próprios movimentos. Estimulando em seus atores a descoberta de padrões próprios de movimentos, prefere, portanto, movimentos naturais soltos7. No teatro e Centro de Estudos do Odin Teatret na Dinamarca, dirigido por Eugênio Barba desde 1961, a Antropologia Teatral é utilizada com a finalidade de induzir a descobertas que possam ser úteis ao ator na elaboração de sua arte. O trabalho corporal adotado tem origens em Grotowski e no teatro Kathakali: uma disciplina rigorosa e métodos precisos de codificação da arte da atuação. Barba trabalha com um princípio que trouxe da Índia: “depois de muitos anos de árdua formação, o ator Kathakali desenvolve não só uma excepcional capacidade física, mas, sobretudo, a habilidade para viver como ator sem viver para os espetáculos” (BARBA, 2007: 30). Muitos exercícios são usados e os que contêm elementos acrobáticos são chamados de biomecânicos. Visam a vencer o medo, chegar a uma completa disponibilidade para obedecer aos impulsos, mobilizar totalmente a energia em ações inesperadas, em reações imediatas. O intérprete compõe uma partitura a partir de signos físicos, em conformidade com as intenções que deseja imprimir ao seu trabalho; essas intenções devem achar seu ritmo próprio. Ao diretor cabe apenas a ajudar a fixar a seqüência. Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento Barba estimula que os atores inventem seus próprios exercícios, pois “chegou à conclusão que mais importante do que a forma de exercício, é a motivação tenaz de executá-lo até seus limites extremos, contribuindo desta forma para a sua mutação” ( BARBA, 2007: 30). Esta breve análise quanto aos métodos adotados demonstra a diversidade de percepção de alguns encenadores quanto à disciplina do ator. Tanto as questões espaciais, quanto as da performatividade em muito se modificaram a partir destes pressupostos que de certa maneira revolucionaram a História do Teatro, pois o espectador passa a ser constantemente acossado pelo espetáculo, que lhe permitia ver e ouvir, mas também vivê-lo e fazê-lo (ROUBINE, 1998:101). Em sua obra recente, Fios do Tempo, o diretor teatral Peter Brook – recorre ao, às técnicas desenvolvidas por Grotowski e às tradições orientais para explicitar melhor a performatividade do ator. Entre os exercícios propostos destaca-se o Tai Chi Chuan (para aumentar a consciência corporal e desenvolver a sensibilidade) e tudo aquilo que ajude o ator a ampliar sua gestualidade. Brook teme o ator que, desejando agir o mais naturalmente possível, lance mão dos clichês (seu próprio condicionamento gestual). O ator é visto como um artista que, além de imprimir em sua criação seus impulsos interiores, há de ser o responsável pela seleção da melhor forma, de modo que um gesto ou um grito se torne “um objeto que ele descobre e ele mesmo modela” (BROOK, 2001:198). Antes de montar sua companhia, Brook realizou investigações sob o ponto de vista do corpo. Os atores exploraram em cada uma das diferentes culturas os gestos mais ordinários (como apertar as mãos ou colocar a mão no coração); trocavam movimentos de dança de várias tradições; exprimiam-se com palavras e sílabas das línguas de cada um; deixavam que gritos se desenvolvessem gradualmente em padrões rítmicos; usavam varas de bambu para fazer geometrias silenciosas no ar entre outros exercícios (BROOK, 2001: 245). Percebe-se que o ator pode fazer uso das táticas certeaudianas a partir dos conceitos de Geertz, que julga impossível pensar a natureza humana como exclusivamente biológica e desvinculada da cultura, sendo que o homem se constitui nesta relação interativa entre componentes biológicos e socioculturais. Após as pesquisas sobre o corpo, Brook dedicou-se a explorar o espaço. A ferramenta utilizada para a promoção desses encontros era sempre a improvisação, e ocorria em lugares como albergues; nos arredores de Paris e em enfermarias de hospitais. Após viajar pela África, Ásia e América do Norte, Brook instalou-se finalmente num teatro à italiana situado na periferia de Paris, onde criou seu Centro de Pesquisas8. Dezembro 2008 - N° 11

O teatro Bouffes du Nord era um teatro sem cadeiras, sem palco e com um chão coberto de crateras, "um espaço íntimo, de modo que o público tem a impressão de que compartilha a mesma vida que os atores". A planta foi adaptada à semelhança do teatro elisabetano, The Rose, e a "sua intimidade não tolera qualquer subestima; ele requer dos atores a energia capaz de preencher um pátio, aliada à naturalidade de representar em uma sala pequena" (BROOK, 2001: 245). 8

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Os principais conceitos discutidos por estes encenadores/ cenógrafos estão nos Anais do Colloque Architecture et Dramaturgie, Paris: CNRS, 1948. 9

Para Marcel Mauss, "o corpo é o primeiro e mais natural instrumento do homem (...) o primeiro e mais natural objeto técnico" (MAUSS, 1974: 372). Mauss parte do pressuposto que o homem não é um ser dissociável, "no fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se mistura", sendo que os movimentos do corpo podem ser vistos como tradutores de elementos de uma cultura ou sociedade. Cada corpo expressa diferentemente a história de um povo e o uso que fazem de seus corpos. Ou seja, o corpo é um objeto técnico, um objeto cultural, que evolui e se insere na cultura. 10

Muito se discutiu sobre a questão da interatividade entre atores e espectadores, que era diminuta no teatro à italiana, mas bem mais adequada quando o público se reunia para assistir ao espetáculo no entorno de uma arena, onde todos, democraticamente tinham poltronas não distribuídas segundo uma hierarquia de classes. Nos espetáculos teatrais apresentados em palcos em arena corpo do espectador participa da peça e dos movimentos do atores. Estes aspectos já haviam sido abordados desde os anos 1940 por Étienne Souriau, que escreveu o conhecido artigo O cubo e a esfera e por André Barsacq que realizou diferentes experiências em parcerias com Jacques Copeau na França dos anos 19309.

Mais táticas do que estratégias Novos conceitos, como performance, improvisação e happenings ampliam os limites da cena, no último quartel do século XX. Estabeleceramse alguns princípios inusitados como: repetições, estruturas não-lineares, acontecimentos simultâneos e a mistura de linguagens: teatro, dança, poesia, música, artes plásticas. Além das demais artes ou mídias que integram o teatro contemporâneo, o trabalho do performer ou do ator demanda algum tipo de preparação. No teatro, os diretores exploram e instigam questões existenciais, promovendo o resgate dos registros de experiências vividas, de imagens, sons, percepções, odores, bem como para novas experiências. Essas expressões exigem do ator uma imersão nas investigações. Mais recentemente, no que tange à preparação do corpo do ator, Sonia Azevedo busca encontrar os elementos básicos de um trabalho corporal que ajudem o ator a desempenhar cada vez melhor o seu papel. Preparar o corpo, ampliar seus horizontes perceptivos e aprimorar sua sensibilidade, auxiliam a busca de uma intimidade cada vez maior do artista com ele próprio (AZEVEDO, 1998: XX). Esta autora propõe que o trabalho corporal deva ser pensado a partir da desconstrução da memória corporal, arraigada em tensões acumuladas ao longo dos anos. Marcel Mauss explica que o corpo é um transmissor de técnica e tradição. A técnica corporal consiste “nas maneiras” como os homens e as sociedades se serviram de seus corpos, podendo ser transmitida através de gerações, constituindo então uma tradição. O corpo e os movimentos humanos são expressões simbólicas de uma sociedade, já que podem ser passadas às gerações futuras por meio de símbolos. (MAUSS, 1974: 372) A técnica que um corpo comporta pode ser transmitida de forma impressa ou oral, conceituada, descrita, relatada; mas pode ainda ser transmitida por atitudes corporais e pelo próprio movimento10. Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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U rdimento Portanto, para Azevedo, a postura corporal não consciente e movimentos recorrentes daquele individuo devem ser abandonados para possibilitar a pesquisa objetivando a “metamorfose”. Deve-se então buscar uma “reeducação corporal, que passa, em seu início pela deseducação, ou seja, pela constatação de que uma série enorme de marcas arraigadas que terão de ser trocadas por novas atitudes corporais” (AZEVEDO, 1998: 138-140). Pode-se inferir que esta deseducação vai produzir táticas individuais que burlam as metodologias disciplinares. Na vida cotidiana, as práticas da expressão corporal, colocadas para restituir ao corpo seu poder imaginário, demonstram o quanto essa obsessão por uma redescoberta da primitividade concerne a múltiplas técnicas. Tal conclusão, comungada por Michel de Certeau, foi contrária à postulada por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir, na qual ele afirmava a passividade e disciplina do homem em relação às práticas e aos produtos impostos (LIMA & CALDEIRA, 2007). Para Certeau, as pessoas ordinárias reinventam a cada dia maneiras próprias de se apropriarem desses produtos, a partir de astúcias que compõem uma rede “antidisciplinar”. Certeau acredita que nas práticas corporais – “táticas silenciosas e sutis se insinuam e propõe algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas dos consumidores supondo no ponto de partida que elas sejam do tipo tático”. A idéia não é criar um modelo engessado de conjunto das práticas, porém, ao contrário, especificar esquemas operacionais e procurar se existem categorias comuns entre eles e ver se, com tais categorias, se pode explicar o conjunto das práticas corporais (CERTEAU, 1994:21).

A guisa de conclusões O processo de recriar a experiência no palco ou em outro lugar teatral pode ser cansativo, mas é imprescindível na História de Espetáculo, pois após cada experiência o registro da situação vivida se inscreve em cada célula, em cada músculo do corpo, numa memória celular corporal. Com o auxílio técnico do diretor, os movimentos dos atores surgidos no laboratório são retomados e realizados de forma consciente, estabelecendo uma seqüência. A performatividade surge, nessa “verdade” vivida e registrada como uma escrita cênica corpórea que passa a ser o texto dramatúrgico. Infelizmente, nem todos os atores conseguem se expor visceralmente e produzir arte com esta exposição, nem todos os diretores conseguem ajudar o ator a realizar este processo. Mas a técnica de improvisação livre parece refutar os conceitos foucaultianos, aceitando, ao contrário, a prática das táticas propostas por Certeau. Na contemporaneidade, ocorre a ruptura com as meta-narrativas. Ocorre um rompimento com a maneira de ler e compreender o mundo, que deixa Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento de ser o universal metafísico da unidade, constância, regularidade, para tornarse a diversidade e a descontinuidade fragmentária defendidas por Foucault.

Em Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade, Carreira desenvolve um conceito de queas "formas espetaculares não se contentam em estar nas ruas, mas procuram incorporar na cena os fluxos da rua, ou, por outro lado, subverter estes fluxos fabricando rupturas dos ritmos cotidianos" (2008: 69). 11

Uma vez que deixa de ser totalidade e razão global, o contexto - tão caro à modernidade-, cede espaço ao intertexto, ou seja, o entrecruzamento de múltiplas linguagens. A idéia de totalidade perdeu significação e abandonouse a história linear e seqüencial, em que pesem as críticas às afirmações de Foucault. Modificam-se as formas de representação de mundo referenciadas em princípios e origens. Não há mais raízes ou lógicas totalizantes. Some o padrão, fica o múltiplo. O espaço teatral e a performatividade entre ator e espectador estão relacionados a uma maior liberdade, às junções de várias artes em cena e, muitas vezes, à apropriação e à invasão da cidade, como defendeu recentemente André Carreira11 (2008). A linguagem teatral ganha um novo sentido. A contemporaneidade mudou a maneira como se passa a ver o teatro, visto que hoje, considera-se todo meio e modo de representação como linguagem. Uma paisagem, uma pintura, um espaço vivido, um movimento, são texto e intertexto, formas de linguagem. No teatro contemporâneo é necessário estar sempre alerta às diferentes formas de expressão e aos seus respectivos significados.

Referências bibliográficas ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993. AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 1998. BACHELARD, G. A Poética do Espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Coleção Tópicos). BARBA, Eugenio. O Quarto fantasma. Urdimento, dezembro 2007, n. 9, pp. 29-42. BENJAMIN Walter. O que é o Teatro Épico? (Um Estudo Sobre Brecht). Teatro e Vanguarda. Lisboa: Presença, 1970. BORNHEIM, Gerd. A estética brechtiana entre cena e texto. In Folhetim 10, mai-ago 2001, pp. 22-31. BROOK, Peter. Fios do Tempo. Trad. Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. CARREIRA, André. Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade. In: LIMA, Evelyn. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, pp.67-78. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. (1ª edição francesa 1980) Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.

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EL GALPÓN – NARRADOR DO SONHO LATINOAMERICANO Yaska Antunes1

Resumo

Abstract

O grupo El Galpón tornou-se uma referência na história do teatro latinoamericano. Como grupo independente e conectado com os problemas de seu tempo e de seu país, não se subordinou aos ditames de patrocinadores nem a outros tipos de subsídios. Forçado à dissolução pelo regime militar, parte de seus integrantes experimentou, no exílio, novas formas teatrais ao lado da denúncia da ditadura no Uruguai. Assim, alçaramse ao posto de grandes narradores dos sonhos do povo latino-americano.

The El Galpón became a reference in the history of Latin-American Theater. As an independent group and connected to the problems of their time and country, they did not subordinate themselves to the moral principles of sponsors or other types of subsidies. Forced to the dissolution by the military regimen, part of them experimented in exile new theatric ways on the side of indictment of the dictatorship in Uruguay. Therefore they reached the post of great narrators in the dreams of the Latin-American people.

Palavras-chave: teatro latinoamericano, teatro político, El Galpón.

Keywords: latin-american theater, political theater, El Galpón.

“El Galpón es el más lúcido narrador de los suenos del teatro latinoamericano”. Assim define Alfredo Alcón2 a experiência de um dos grupos mais importantes e mais longevos da história teatral latinoamericana. Para saber o que levou o autor a identificar a Institucion Teatral El Galpón àquilo que compreende como sendo os sonhos do teatro latino americano, faz-se mister conhecer um pouco da história do grupo e de sua prática, e, numa perspectiva mais ampla, o contexto social, político e econômico, no qual teve sua origem. O “El Galpón” é um grupo de teatro uruguaio que completará 56 anos de existência em setembro deste ano (2005). Essa longevidade para um grupo de teatro na América Latina é façanha no mínimo admirável. Supõe determinação no trato de todas as adversidades, as quais, no caso de país latino-americano, certamente não são poucas nem simples. Ainda mais Dezembro 2008 - N° 11

1 Yaska Antunes (Fátima Antunes da Silva) é atriz, professora do Curso de Teatro na Universidade Federal de Uberlândia e doutoranda em Sociologia da Arte na USP.

Ator argentino, em seu testemunho publicado na quarta parte do livro que conta a história do grupo: El vestuário se apolilló: uma historia del teatro el galpón, de César Campodônico, ator e diretor do grupo. Lançado em 1999, fez parte das comemorações dos cinqüenta anos de existência do grupo. 2

El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento quando este grupo advém do Movimento de Teatro Independente, cujas força e debilidade estão justamente no postulado da não subserviência a nenhuma instituição, seja ela estatal ou privada. A gênese do El Galpón está duplamente vinculada à fundação desse Movimento. Primeiro, porque fá-lo-á se inscrever num tipo de teatro determinado por princípios distintos daqueles do “teatro comercial” vigente no meio teatral da época; e, segundo, por ter entre seus principais fundadores a figura de um homem que se tornaria lendária para a historiografia teatral latino-americana, a figura do mestre Atahualpa del Cioppo.

Andrés Castillo apud (MIRZA, 1998: 172). 3

Com relação ao primeiro, é importante mencionar que o Movimiento de Teatro Independiente surge em 1937, a partir da fundação do Teatro del Pueblo por Manuel Domínguez Santamaría (MIRZA, 1998: 169), com cerca de seis grupos teatrais. Mas só viria a se consolidar em 1947 com o surgimento do F.U.T.I – Federación Uruguaya de Teatros Independientes, inicialmente com 16 grupos teatrais. Esta instituição deu início a um processo de organização dos “paupérrimos grupos sobreviventes”, nas palavras de César Campodónico (1999: 11), estimulando novos enfoques que dariam lugar a uma progressiva criação de mais grupos teatrais além de novos espaços cênicos. Entre 1947 e 1957, foram criadas, reformadas ou alugadas 13 salas novas de teatro em Montevidéu3. Segundo Roger Mirza, Los ideales del teatro independiente tomados de Romain Rolland consistían en la independencia con respecto a toda confesión política, religiosa o filosófica, el rechazo del teatro comercial, la defensa de un teatro de arte, del pueblo y para el pueblo, así como la organización democrática en cuanto al funcionamiento institucional, como se desprende de sus sucesivas declaraciones a lo largo de más de dos décadas (1998: 171).

Escénica. Revista de Teatro de la UNAM / Coordinación de Extensión Universitária / Epoca I, número 8, México, Julio 1984: 49-78. 4

Em relação ao segundo, caberia “preguntar”: que homem é este? Américo Celestino del Cioppo Fogliacco, poeta, jogador de futebol, sempre homem de teatro, funda em 1936 La isla de los niños, grupo teatral que “hacia teatro para niños, con niños”. O teatro infantil ocuparia um espaço importante na vida Del Cioppo e depois na do El Galpón. Em 1948, La isla de los niños passa a ser denominado apenas La Isla, uma vez que as crianças haviam se tornado adolescentes e jovens. Em 1949, La Isla e o Teatro del Pueblo se juntam para arrendar um galpão4. Nascia ali o El Galpón. Isso aconteceu exatamente em 2 de setembro de 1949. Mas, para a estréia do primeiro espetáculo, decorreriam ainda mais dois anos: o tempo que precisaram para transformar o galpão da rua Mercedes num espaço teatral. El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento Como relata César Campodónico (1999: 14), “no fue nada fácil. La sala de ‘El Galpón’ se fue transformando lentamente debido a que hubo que hacer un gran cambio”. De acordo com Dervy Vilas5, “ellos mismos construyeron el escenario, los camarines, las butacas. Una sala pequeña de 180 localidades, con un escenario pequeño se inaugura em 1951”. De modo que, depois de dois anos de trabalho intenso de reforma do lugar, no dia 4 de dezembro de 1951, é estreada a obra Heróis, de Bernard Shaw, dando início à longa, conturbada e fantástica história do El Galpón. De acordo com Campodónico, seria paradigmática a montagem de Montserrat, peça de Emanuel Robles, dirigida em 1953 por José Estruch6. Por influência desse diretor, El Galpón, após a montagem dessa peça, decidir-se-ia pelo teatro de repertório, o que marcaria definitivamente o destino do grupo, já influenciado pelo pensamento marxista, por meio principalmente de Juan Manuel Tenuta, Musitelli e, mais tarde, por Blas Braidot. No ano seguinte, seria a primeira vez em que apareceria no repertório do grupo um autor latino-americano: trata-se de R. Usigli, cuja obra, El gesticulador, dirigida por Atahualpa, estava “muito vinculada à política mexicana”. Devido à seleção de textos como este (com forte teor crítico tanto no plano da política quanto no do social), o grupo foi construindo uma imagem gradativamente colocada dentro do que se costumava chamar de “tendência esquerdista”. Não demorou muito para começarem, então, os primeiros ataques a alguns integrantes do grupo, qualificando-os de “comunistas”.

5 Em depoimento à autora, referindo-se à história de fundação do grupo.

Exilado espanhol que "enriqueceu o teatro uruguaio", segundo palavras de Roger Mirza.

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Os títulos das peças teatrais são ecléticos. Incluem desde os clássicos da literatura universal aos contemporâneos da dramaturgia local, mas o compromisso com o ponto de vista crítico da encenação parece se reforçar cada vez mais a cada montagem. Dentre as obras encenadas nos anos 50, constam, além das já citadas, Amor de Don Perlimplin de Federico García Lorca; El hospital de los podridos de Miguel de Cervantes; Pasos de comedia de Lope de Rueda; Knock de Jules Romains; Largo viaje de regreso de Eugenio O’neill; Los de afuera de Amado Canobra. O ano de 1956 é considerado um marco na história do “Movimiento del Teatro Independiente” do Uruguai, pelo alcance e grande sucesso das quatro montagens do El Galpón e outras realizadas pelo Club del Teatro; principalmente as montagens de Las tres hermanas de Anton P. Tchekov, pelo primeiro, e Doña Rosita, la soltera, pelo segundo, respectivamente. São montagens que ilustram os diferentes alinhamentos dentro do Teatro Independente: enquanto o El Galpón acentuava “os aspectos ideológicos dos seus espetáculos” e se “preocupava com o teatro de idéias e com a força de sua exposição”, descuidando dos aspectos formais, o Club del Teatro, por sua vez, optava por “reforçar o zelo para com a estética” e os dados formais, num “cuidado extremo com figurino, objetos de cena e cenário” (CAMPODÓNICO, 1999: 43). Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Cf. com artigos de Fernando Peixoto sobre o assunto. 7

Verfremdungseffekt, noção fundamental da teoria de Bertolt Brecht. Em vez de tentar definir essa noção que é extremamente complexa e cair numa simplificação, é preferível citar Bernar Dort, para quem, "o distanciamento brechtiano é um método rigoroso: supõe, para ser compreendido e utilizado de maneira fecunda, uma visão de conjunto da concepção que Brecht tem do teatro, e, mais amplamente, da arte como meio específico de representar a vida dos homens" (1977: 315). 8

Relato dado à pesquisadora. 9

Essa história lembra o embate entre José Celso Martinez Corrêa e o grupo Silvio Santos. O Teatro Oficina de José Celso está encravado num quarteirão, cujo dono é o senhor Sílvio Santos, que quer transformar o quarteirão num imenso Shopping Center "cultural". 10

No panorama latinoamericano, o grupo El Galpon seria também um dos primeiros a levar Brecht ao palco7. É de 1957 a montagem de La ópera de tres centavos quando então o grupo descobria, em meio a muitas discussões, tanto a postura do autor alemão quanto suas técnicas de atuação, dentre as quais a do distanciamento8. O grande mestre Atahualpa del Cioppo, que além de dirigir a Ópera de Brecht, dirigiria também o grande sucesso da temporada de 1959, O círculo de giz caucasiano, descobre que já fazia um teatro alinhado com o teatro épico brechtiano antes mesmo de conhecer sua teoria. O Círculo... seria a primeira vez que uma montagem do grupo viajaria ao exterior. Em Buenos Aires, a crítica o elege como o melhor espetáculo estrangeiro, recebendo o prêmio da revista Talía. Também em Montevidéu essa montagem seria premiada como a melhor direção do ano pela “Casa del Teatro” (ESCÉNICA, 1984: 54). A década de 60 contaria com dois acontecimentos importantes na vida do El Galpón: a inauguração da nova sala “18 de Júlio” e a montagem de Fuenteovejuna. A sala da rua Mercedes havia ficado pequena para as atividades da companhia. Uma grande campanha junto à população montevideana foi realizada com a finalidade de comprar uma sala maior. Como relata Dervy Vilas, um esforço muito grande foi feito pelo grupo para conseguir a nova sala, ...mucha gente pensó que no se iba a conseguir. En realidad era un cine en donde se exhibían películas mejicanas y estuvimos cerca de 7 años para construir la sala grande. Nuevamente tuvimos que ser pintores, carpinteros etc. Tuvimos que desmantelar todo el cine, porque la estructura de un cine es distinta a la de un teatro e hicimos esa platea escalonada que tiene ahora la sala grande. Esa sala fue construida no solo por la gente de El Galpón sino por muchos trabajadores carpinteros, herreros, pintores que se ofrecían generosamente a venir a trabajar gratis para construir la sala, después de su horario habitual de trabajo, venían a ver en que tareas podían ayudar. Así se hizo El Galpón (que se inauguró en 1969) y con la ayuda económica de la población de Montevideo: rifas, bonos. No hubo dinero algún dado por el gobierno. Esa es una obra de la gente de El Galpón y del pueblo uruguayo.9 A compra do cinema Gran Palace pelo El Galpón foi sem dúvida um ato heróico. O grupo disputou essa aquisição com um dono de supermercado do bairro, que queria expandir o negócio. Essa situação levou César Campodónico (1999: 58) a afirmar que “siempre los supermercados le han ganado a la cultura, pero aquella vez le ganamos al señor del supermercado la posibilidad de comprar”10. A estréia da nova sala de 615 lugares dar-se-ia no início de 1969 com a montagem do Sr. Puntila e seu criado Mati de Brecht, “ante una sala tan abarrotada como emocionada” (CAMPODÓNICO, 1999: 61). Além desse evento, destaca-se a montagem de Fuenteovejuna, em fins de El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento 1969, numa adaptação brechtiana do texto de Lope de Vega por Dervy Vilas e Antonio Larreta. Com essa montagem, a crítica ficou dividida. Uns (El País, El Día) a qualificaram de “descalabros de tom e de sentido comum” ou “exhumación distorcionada”; os mais progressitas e favoráveis à montagem (De Frente, El Diario, Marcha) viam “um espetáculo de uma força e um vigor que [respondiam] às coordenadas desse tempo e desse lugar”, de “formidável estrutura épica”, cujo texto fora convertido numa obra de e para uruguaios (CAMPODÓNICO, 1999: 73). Segundo Pedro Bravo-Elizondo, essa montagem “fue unos de los pretextos que utilizó la dictadura para clausurar El Galpón” (CAMPODÓNICO, 1999: 156). Do modo como Bravo-Elizondo avalia o evento, fica parecendo que logo na seqüência a esta montagem o El Galpón teria sido preso. Na verdade, segundo outros depoimentos, após esta montagem, teve início uma série de perseguições a integrantes do grupo, com cada nova estréia marcada por ameaças cada vez mais intensas até a promulgação do decreto de dissolução do grupo em 1976. Entre a década de 50 e meados de 70, a política uruguaia daria uma guinada radical. Já estava longe a época de ouro em que o país angariou para si o epíteto de “Suíça da América Latina”, uma referência ao alto padrão de vida que proporcionava a seus cidadãos, como resultado das reformas políticas e sociais empreendidas pelo presidente “colorado”, José Batlle Y Ordóñez ainda em seu primeiro mandato, de 1903 a 1907. O que ficou conhecido como “projeto batllista” estendeu-se até 1930, mas agora já sob duras críticas, quando começa então o freio das mudanças. De 1933 a 1942, o país é submetido à ditadura de Gabriel Torres, que ascende ao poder por meio de um golpe de estado. De 1942 a 1958, empreende-se no governo o projeto da restauração batllista. Mas já era tarde. Segundo Souza (2003), “o chamado neobatllismo não soube captar as mudanças econômicas, políticas e sociais pelas quais o mundo e o Uruguai passavam”. Ao invés de tentar desenvolver uma “nova maneira batllista” de reformar o país rumo ao desenvolvimento, mais adaptada à realidade do Segundo Pós-Guerra, procurou recuperar o “passado primeiro batllista”, desencadeando uma “defasagem entre a ideologia e a realidade” (SOUZA, 2002). A partir da década de 50, o que se passa no país é um processo de corrosão da estabilidade política e econômica e de todo o patrimônio, construídos e consolidados durante os primeiros trinta anos do século XX. Inflação, desemprego e outros problemas econômicos causam mal-estar social, ao mesmo tempo que grupos terroristas contrários ao governo tornam-se cada vez mais atuantes. A crise econômica que vinha ameaçando desde 1952, estoura nos anos 60, afetando profundamente o país social e politicamente numa deterioração progressiva em todos os âmbitos da vida da sociedade, inclusive nas próprias estruturas institucionais do Estado. A culminância desse estado de coisas vai ser a ditadura a partir de 1973. Em junho desse ano, líderes militares obrigam o presidente Bordaberry a dissolver Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento o parlamento e os conselhos de governo local. A partir daí, o país passa a ser governado por decretos. Em 1976, oficializa-se a instauração do regime militar com o afastamento de Bordaberry e a nomeação de um político octogenário pouco conhecido chamado Aparício Mendez. As perseguições políticas, os assassinatos, as torturas e os desaparecimentos de opositores tornariam-se rotina da vida em Montevidéu (SOUZA, 2002). É sob essa pressão política cada vez mais pesada que se vai moldando e configurando um determinado perfil do grupo El Galpón. De uma certa predisposição interna, relativamente tímida em seus primódios, à tendência esquerdista, mas aberta também a todo tipo de influência, vinculada à atitude de não submissão a ideologia alguma (como postulado no Movimento), o grupo passa pouco a pouco a militar fervorosamente em prol de ideologias que levantavam a bandeira da liberdade do homem e a denunciar os arbítrios praticados pelos senhores governantes, utilizando para isso a única arma de que dispunha: a arte do teatro. De 69 a 76, o El Galpón ainda montaria 23 espetáculos, dentre os quais, Rei da Vela de Oswald de Andrade; Los últimos, de Máximo Gorki; Delicado equilíbrio de Edward Albee; La madre de Bertolt Brecht (Gorki); La resistible ascensión de Arturo Ui de Bertolt Brecht; Las Brujas de Salem de Arthur Miller etc. Em todos esses espetáculos prevaleceria mais claramente agora um alinhamento ao teatro de denúncia e de contestação, com um teor crítico sociopolítico mais enfatizado. Um pouco antes, em 1968, o El Galpón tinha levado à cena o espetáculo Liberdade, Liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, como uma resposta às “Medidas de Seguridad” implantadas em 13 de junho de 1968 – “primer tramo de la espiral de sangre e irracionalidad en que se ha abismado el ejercicio del poder”(YÁÑEZ, 1984: 74). Nesse ínterim, até 1976, vários passos foram dados até a culminação do decreto; segundo Rubén Yáñez, em seu artigo “El Galpón a la hoguera”, publicado na revista Escénica, en primer lugar, los ataques de las bandas fascistas parapoliciales, que asolaron la vida montevideana entre 1968 y 1972, a los locales de El Galpón, bajo la forma de bombas de petróleo y “malones” armados de hierros, que destruyeron las puertas de acceso a los mismos. (...) En segundo lugar, la dictadura ya establecida, publicó en febrero de 1974 un suplemento, a ser repartido junto a la escasa prensa no clausurada, en el que se presentaba a toda la cultura uruguaia como “aliada a la subversión”; y en dicho suplemento, El Galpón ocupaba un lugar prominente. El significado de estas publicaciones ya era conocido por el pueblo uruguayo; ambientar o justificar una violenta acción represiva. (...) La tercera etapa de esta escalada, se produjo en El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento octubre de l975, cuando una nueva ola represiva incrementó en miles el número de presos; y tomó la forma de prohibirles, a algunos integrantes de El Galpón, “actuar, dirigir, escribir, o tener contacto alguno con organismo cultural en todo el territorio nacional” (1984: 74). A todas essas medidas El Galpón respondeu forte e energicamente. Aos atentados iniciais, a resposta foi a manutenção da linha de trabalho e o aprofundamento das questões da “ordem do dia” da realidade política com montagens como as já referidas Fuenteovejuna e La resistible ascensión de Arturo Ui. Com relação à segunda investida por parte da ditadura, o grupo respondeu com o reforço de sua “inserção latinoamericana” por meio de uma turnê na Venezuela e na Colômbia, retornando não só com um aumento da solidariedade continental como também com altas distinções pela qualidade de seus trabalhos, sem falar na possibilidade de efetuar o pagamento das últimas parcelas do novo imóvel. Segundo César Campódonico, “luego de pasar por el Festival Mundial de Caracas y en seguida por Colombia, trajimos una suma de dinero que nos permitió pagar las últimas cuotas” (CAMPODÓNICO, 1999: 59) da sala 18 de Julio, em 1974. E, finalmente, como resposta à proibição de realização de qualquer de suas atividades culturais feita a alguns integrantes do grupo, o El Galpón substituiu imediatamente os companheiros afetados por essa medida sem deixar de estrear na data prevista. Além da estréia da nova montagem, o grupo promoveu uma série de atividades paralelas convocando a população para a participação nos eventos. O povo uruguaio “concurrió en massa, a las jornadas del 12 de octubre, donde en sus dos escenarios, de la mañana a la noche y de manera continuada, desfilaron ocho títulos universales, latinoamericanos y nacionales”(YÁÑEZ, 1984: 74). A frustração por parte do governo militar em inibir e deter as atividades do El Galpón resultou numa quarta investida contra o grupo. Durante quatro meses, de dezembro de 1975 a março de 1976, foram presas e torturadas personalidades mais representativas dos quadros dirigentes e dos quadros artísticos do El Galpón. No entanto, em momento algum o grupo interrompeu suas atividades; os que se viram livres depois dessa prisão trataram de estrear a peça El gorro de Cascabeles de Pirandelo. A repercussão mundial da prisão desses homens de teatro provocou uma manifestação de solidariedade internacional em favor da libertação e do seu retorno a suas atividades. Nesse momento, as apresentações teatrais do grupo converteramse em “verdaderos actos de masas contra la dictadura”. Em conseqüência desses eventos, agravados pela não intimidação do grupo que persistia em suas montagens, sobreveio o decreto da dissolução do grupo e da apropriação da sala 18 de Julio, cuja quitação o grupo havia acabado de realizar. Por isso, como disse Dervy Vilas, “cuando en 1976 la dictadura clausura El Galpón, la gente consideró que le habían robado una Dezembro 2008 - N° 11

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Ainda segundo depoimento de Dervy Vilas a autora, "la sala fue cedida al Ministerio de Educación y Cultura para hacer los espectáculos de ballet y de música sinfônica, porque se había incendiado El Sobre que era el lugar de ellos (ahora lo están reflotando en las calles Andes y Mercedes). Los espectáculos de ballet y música hacían una función allí y otra el Solís porque sino la gente no iba. Hasta había gente que no pasaba por la puerta, pasaba por la vereda de enfrente. Hubo estudiantes, porque se dictaba clases allí, que se negaban a entrar. A muchos de ellos los expulsaron, porque consideraban que esa era una sala de la gente El Galpón y del pueblo uruguayo". 11

Em depoimento à pesquisadora, setembro de 2001. 12

sala”. Ainda segundo o depoimento de Dervy, ocorreu nesse momento um fato muito peculiar. Segundo suas próprias palavras, no período da ditadura, quando o governo começou a utilizar a sala para outros eventos, “se dio una situación curiosa, la gente no iba a esa sala, no entraba”11. Também referente a esse evento, Maria Azambuya relata que anos depois, ao voltar do exílio do México, e às voltas com a produção de uma peça, foi a um cortiço buscar um pedaço de couro. Ao se apresentar, ficou surpresa ao ser reconhecida por aquelas pessoas: “Ah! Você é do El Galpon!”. Todos conheciam o El Galpon, mas nunca tinham ido ao El Galpon. Cada um tinha uma desculpa e um senhor veio conversar comigo. “No dia em que fecharam o El Galpon, eu passei pela porta num ônibus, estavam tirando tudo, e me lembro que cheguei em casa a noite e falei para minha mulher: há que ser muito mau para fechar um teatro cujo único proposito é divertir as pessoas.”12 Ainda no transcorrer do ano de 1976, o grupo é posto na ilegalidade. Reproduz-se aqui os argumentos da polícia política da ditadura para a dissolução do El Galpón, os quais tinham o intento de fundamentar e justificar a ação da polícia; entretanto, como diz Rubén Yáñez, “más allá de alguna precisión malintendida, no hizo outra cosa que exponer la línea de trabajo de El Galpón”, assim pode-se ler “en los considerandos del decreto”: ...constante adhesión, apoyo, estímulo y realización de toda clase de actividades políticas de tendencia marxista-leninista, tales como: publicar manifiestos, hacer declaraciones, ofrecer representaciones a favor, y también en beneficio económico de ‘detenidos políticos’, tanto en nuestro país, como de otros Estados (España, Paraguay, etcétera.), adherir a los festejos de El Popular, ceder sus salas para la realización de un gran número de actos partidarios de asociaciones políticas marxistas que luego fueron disueltas: b) la invariable solidariedad con toda la labor de agitación y de deterioro de la situación política, económica y social que impulsaba la Convención Nacional de Trabajadores, asociación declarada ilícita, brindando su respaldo a toda clase de huelgas, paros, movilización y manifestaciones gremiales; c) su manifiesta adhesión con la actividad sediciosa, pudiéndose citar como ejemplo más claro la puesta en escena y posterior grabación en disco de la obra Libertad, Libertad, que es todo un canto de alabanza a la violencia guerrillera, como también la obra La Reja; d) un evidenciado propósito de penetrar ideológicamente entre los estudiantes y la juventud trabajadora, mediante el desarrolo de un teatro comprometido con el marxismo-leninismo (YAÑEZ, 1984: 73). El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento “Cuánta verdad junta para instrumentar una mentira”, diria Rubén Yánez. Todos esses eventos citados acima, somados ao recrudecimento do regime, os atentados contínuos ao teatro e a perseguição intensa a alguns integrantes do grupo forçaram-nos a deixar seu país de origem: a “diáspora do El Galpón” como foi chamado esse momento por Buenaventura. Alguns se espalharam por países da América Central e do Sul, até que finalmente dezesseis membros se juntaram exilados no México, país em que permaneceriam cerca de oito anos, durante os quais, numa grande demonstração de vontade, conseguiriam se organizar e continuar montando suas peças, vivendo todos estes anos praticamente do teatro. Rodaram o país de ponta a ponta, levando seus espetáculos a lugarejos tão afastados, nos quais companhias teatrais mexicanas jamais tinham se apresentado. Dando continuidade à condição de teatro comprometido com a realidade, descobriram no México a dimensão que pode ter o teatro didático, relacionado ao ensino de jovens, experiência que de algum modo já tinha estado presente na própria história do grupo, uma vez que parte dele proviera do La Isla. No México, eles desenvolveram um trabalho intenso nessa linha junto com a Secretaria de Educação Pública, num plano de estender o teatro por todo o país (CAMPODÓNICO, 1999: 98). A fama, a notoriedade e o respeito pelo El Galpon cresceram, principalmente, a partir dessa experiência no exílio, onde o grupo dera continuidade à luta contra a ditadura uruguaia, por meio de denúncias do arbítrio e da tortura que assolavam o país. Os espetáculos desse período, além do vínculo forte com o teatro de denúncia, representariam uma ruptura com tudo o que o El Galpón fizera até então. Esse é outro ponto na trajetória do grupo que mereceria uma análise mais profunda: analisar, por exemplo, o tipo de ruptura ocorrido tanto no nível do conteúdo quanto e principalmente no da forma teatral a partir dos próprios processos de criação. Para o que interessa nesse trabalho, basta observar com um pouco de atenção que a experiência do exílio representou pelo menos duas rupturas radicais com a experiência teatral pregressa. Primeiro, os integrantes do El Galpón nunca haviam vivido exclusivamente do teatro. Afiliado ao Movimento do Teatro Independente, era já pressuposta a não remuneração pelo trabalho no teatro; mais ainda, era justamente essa disposição do não pagamento aos atores e diretores que possibilatava a continuidade do grupo e a manutenção dos princípios básicos previamente delineados que orientavam o grupo, como o compromisso com a liberdade de repertório, com o “teatro de arte”, com a qualidade do trabalho e a não sujeição seja lá a quem for no que diz respeito ao teor e à natureza do espetáculo. O “teatro comercial’, contra o qual os grupos do “Movimento” se posicionaram, representava nesse sentido todo tipo de sujeição aos interesses do patrocinador, do produtor e de quem mais tivesse algum tipo de poder no Dezembro 2008 - N° 11

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Criação coletiva, segundo a prática de Enrique Buena-ventura do TEC, refere-se fundamentalmente à dramaturgia do ator. Em suas próprias palavras, "Con cualquier metodología, la creación colectiva se basa en la improvisación a condición de que ésta no sea utilizada para comprobar, corroborar, mejorar o adornar la concepción, las ideas o el plan de montaje del director. A condición de que se la reconozca —de hecho y de derecho— como el campo creador de los actores y de que se la acepte como antítesis de los planes de la dirección en el juego dialéctico del montaje". Citação do texto: "Actor, creación colectiva y dramaturgia nacional", publicado na página: Boletín Cultural y Bibliográfico. Número 4, Volumen XXII, 1985; site: http://www.banrep. gov.co/blaavirtual/ 13

meio, sem garantir nenhuma estabilidade de vida para os atores “profissionais” e, o que é pior, relegando a preocupação estética ao último plano, quando ainda existia. No Uruguai, apenas os atores integrantes da Comedia Nacional, o teatro oficial do país, gozavam e usufruíam de privilégios como o de serem pagos e muito bem pagos pelos ensaios de quatro horas por dia e pelas apresentações do espetáculo quando em cartaz. Frente a essa realidade, a única forma de dar continuidade ao teatro de grupo, com toda a conotação de pesquisa experimental, de liberdade ideológica e de teatro de arte que o termo suscita, era renunciando à profissionalização, no sentido de não viver do teatro. Sendo assim, a experiência do exílio propiciou, pela primeira vez, aos integrantes da companhia, “ganhar a vida” por meio do teatro. Isso representou, portanto, a profissionalização da sua atividade. E a segunda ruptura refere-se ao fato de que também pela primeira vez o El Galpón construiu espetáculos a partir do processo de “criação coletiva”13. Se se observar a relação de todos os espetáculos montados entre 1951 e 1976, não se encontrará nenhum cujo processo tenha sido o de criação coletiva. Só a partir do exílio começaram a aparecer tais experiências. A montagem da primeira peça no exílio, por exemplo, ainda em 1976, Musicamérica, deu-se a partir desse processo de criação. Isso vai representar um salto qualitativo no percurso do grupo, não porque montagens construídas a partir desse tipo de processo sejam de nível qualitativo superior, não se trata disso, mas porque este tipo de trabalho convoca uma participação muito mais ativa por parte do ator. Por meio de uma liberdade relativamente maior que o eleva ao status de co-criador da cena e do espetáculo, todos os recursos cênicos do ator são forçosamente reciclados, testados, criticados e mais aceleradamente desenvolvidos. Isso não quer dizer que o salto qualitativo de um grupo de teatro só seja possível por meio da “criação coletiva”. O que esse processo propiciava naquele momento, enfatizando mais uma vez, era uma maior liberdade por parte da criação do ator, o que levava por certo a uma nova espontaneidade e frescor de um grupo de atores tradicionais, acostumados com um tipo mais “tradicional” de processo de criação e de montagem. Assim, é possível afirmar então a dupla ruptura perpetrada pelo grupo: a um só tempo, a profissionalização de um lado e, de outro, a elevação na qualidade dos atores e do espetáculo, por meio de experimentos com novas técnicas no processo de criação. É ilustrativo disso a atenção que o espetáculo Puro cuento desperta na crítica norte-americana, quando apresentado em Nova York, no Festival Latino, em 1981. Os elogios não foram poupados pelos críticos a esse trabalho, referindo-se tanto à “destacable calidad de voz y movimiento” dos atores quanto à “espléndida introducción” do “delicioso show” (CAMPODÓNICO, 1999: 46). É verdade que esse espetáculo em particular não é exemplo de criação El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento coletiva, trata-se de uma colagem a partir de diversos contos de autores latinoamericanos, sob a direção de César Campodónico. Mas de qualquer maneira, os avanços formais adquiridos pela pesquisa na criação coletiva feita em outros espetáculos anteriormente não são perdidos, eles permanecem e contribuem na elaboração de novos espetáculos. Durante este período de exílio, cerca de oito anos, foram montados 24 espetáculos. Nove deles ou foram criações coletivas ou foram colagens a partir de seleção de poemas, músicas e contos, isto é, aproximadamente 37% das montagens contaram com esse tipo de experiência em seu processo de criação. Com o retorno do grupo a Montevidéu em 1984, após a anistia, é compreensível, no reencontro dos integrantes da companhia, o choque entre as experiências dos exilados e dos não exilados. Com relação a esses últimos, os não-exilados, é compreensível o desajuste entre os que foram impedidos de atuar ou dirigir no teatro e os que puderam continuar suas atividades normalmente. E no meio disso tudo há o desconcerto e o trauma do pequeno grupo retido em prisão. A enumeração resumida desses eventos, vicissitudes e dificuldades de toda natureza bem como as conseqüências advindas que marcaram o percurso do grupo só contribuíram para aumentar o respeito de grupos e de “la gente de teatro” dos países vizinhos para com o El Galpón e difundir a lenda viva na qual ele se tornou. Mas para o El Galpón ter se tornado o que é, contribuiu também a presença da figura daquele que foi considerado o grande mestre do teatro latino-americano, o já acima mencionado Atahualpa Del Cioppo. Atahualpa Del Cioppo terá toda sua vida ligada ao El Galpón. Ali, dirigiu inúmeras obras, fez parte das comissões artísticas e das de leituras, foi professor na Escola de Arte Dramática que o El Galpón também inaugurou. Ganhou vários prêmios no Uruguai e em outros países latino-americanos onde também dirigiu espetáculos, lecionou em suas escolas de teatro, formando atores, diretores e dramaturgos. No transcorrer das décadas de 60 e 70, tornara-se uma figura lendária, cuja fragilidade aparente se desdobrava em símbolo do teatro latino-americano. Foi ele quem rompeu as fronteiras nacionais, atravessando e marcando os países por onde passava, como se num grande abraço, assumisse tudo o que constitui o subdesenvolvimento, num gesto de solidariedade, compaixão e luta. Hernando Cortês dirá que Atahualpa é “la única persona que he conecido que practica en su vida y en su obra los versos maravillosos de ese eminente luchador que fue José Martí: ‘y para el cruel que me arranca / el corazón con que vivo / cardos ni ortigas cultivo / cultivo una rosa blanca...’”14. Dezembro 2008 - N° 11

14 Depoimento de Hernando Cortés na revista Escénica, (1984: 62). 15 Depoimento de Kive Staiff na revista Escénica (1984: 65).

Depoimento de Enrique Buenaventura, Escénica (1984: 65). 16

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U rdimento Para Kive Staiff, o mestre uruguaio “expandió su figura quijotesca, frágil y potente a la vez, por toda a América, como constructor de teatros”15. Já Enrique Buenaventura dirá a respeito dele que raras vezes viu se juntar em um só homem a “sabedoria e a modéstia; a flexibilidade e a firmeza; a generosidade mais radical e, ao mesmo tempo, a oportunidade minuciosa; a eficácia, a capacidade de sonhar e o manejo rigoroso, a racionalização implacável da fantasia”16. Estas citações de outras grandes figuras do teatro ilustram o impacto que a imagem de Atahualpa Del Cioppo provoca em toda parte no que concerne à força que sua presença irradia. Mas para além de toda a contribuição que o Mestre legou no campo da pedagogia do teatro com seu magistério, ou no da criação artística com suas “encenações inteligentes” e seu “método” de direção, o que permanecerá no imaginário dos artistas de teatro latino-americano é seu

Depoimento de Kive Staiff na revista Escénica (1984: 65). 17

Depoimento de Luis de Tavira na revista Escénica (1984: 38). 18

Depoimento de Enrique Buenaventura, Escénica (1984: 64). 19

empecinamiento por mantener vivas las banderas éticas del artista y el sentido de su responsabilidad social. [...] En cualquier parte latinoamericana, Atahualpa consolidó la imagen del artista que debe aspirar, constantemente, a lograr la categoría de persona para poder ser, recién entonces, un artista de verdad; afirmó la convicción de que el arte es un instrumento para la liberación del hombre, una herramienta cotidiana en la lucha por el cambio social.17 Atahualpa foi um viajante incansável pelo teatro e pelo exílio, afirma a revista citada acima numa homenagem a seus oitenta anos de idade: “el que se va, se aleja y se acerca, interminablemente. Su patria, espacio sagrado, se traslada al estadio de una alta condición: la de los argonautas, la de Troya o Utopía; la de Bolívar y Martí: Latinoamérica”18. Afiliado ao partido comunista desde 1945, Atahualpa Del Cioppo era um dos homens que encabeçava, na linha das lutas culturais e artísticas, a formação da Frente Ampla, movimento de coalizão de opositores e esquerdistas que lutavam pelo poder no início dos anos 60. Talvez tenha sido o diretor que mais tenha montado Brecht no Cone Sul. Ao tomar conhecimento da obra e do teatro épico de Brecht, diria “hacíamos a Brecht sin conocerlo”, ao que Luis de Tavira replica “coincidían con Brecht, o Brecht con ellos, da igual”19. De qualquer maneira, parece ter havido uma grande afinidade de Atahualpa para com o pensamento brechtiano. Em 1957, às voltas com a montagem de La ópera de tres centavos vai refletir sobre as propostas revolucionárias do teatro dialético que o levou a afirmar: Entre los muchos problemas que el teatro de Brecht plantea para hacerlo en nuestro medio, es que no poseemos una experiencia de su técnica – a pesar de contar con su formulación teórica. Pero eso no basta: hay que darle vigencia sobre el escenario, posser el nuevo arte El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento del actor. Ademais, esa experiencia debe realizarse también sobre y con el público. De modo que para no desconcertalo ni desconcertanos nosotros mismos, nos serviremos en parte de la modalidad tradicional de la puesta introduciendo en ella alguns elementos de la nueva técnica exigida por Brecht (DEL CIOPPO, 1984: 55). Enrique Buenaventura, diretor do Teatro Experimental de Cali na Colômbia, mais uma vez referindo a Atahualpa, disse: es más difícil ser hombre que ser artista y él es, ante todo eso, Hombre. Hombre, metido en su tiempo, en las luchas de su tiempo y hombre com brújula, porque sabe que sin brújula no se descubre al nuevo mundo. Orientación, sabe que eso es importante pero, orientación que tiene en cuenta todas las desorientaciones, tentaciones y desvíos que, felizmente, nos asedian y nos impiden el sectarismo y el dogmatismo20.

Ibid: 38

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Mestre Atahualpa foi o grande mentor e guia do El Galpón. Após sua morte em 1996, ocorre o aprofundamento de um impasse na estrutura da companhia que já se vinha delineando desde fins da década de 80. Depois da anistia, quando os integrantes do grupo voltaram para Montevidéu, conseguiram reaver o espaço físico, o antigo cinema que haviam comprado com tanta dificuldade e convertido em teatro, sede do grupo. Mas os tempos haviam mudado. O que era condição de sobrevivência e sonho de qualquer grupo de teatro – ter seu próprio espaço onde pudesse ensaiar e apresentar suas obras – , tornara-se uma incógnita. O teatro El Galpón da Rua 18 de Julio transformara-se num complexo cultural com três espaços para apresentações teatrais: o maior, com capacidade para 400 pessoas, é o mais tradicional, com palco italiano; os outros dois, além de serem menores, têm uma proposta mais experimental, com palco semi-circular e arquibancadas; um mezanino, com uma cafeteria onde acontecem também seções de leitura de poemas e performances; embaixo, no saguão, há uma livraria e uma loja de Cd´s. A grandiosidade do centro cultural criado pela companhia só poderia sobreviver no mundo capitalista se se assumisse como uma “empresa” cultural. Isto representaria o mais duro golpe que a política conservadora poderia desfechar contra esse grupo teatral. Sem nunca ter tido subsídio nem de governo nem de empresas privadas, o grupo subsistira anos e anos por meio de um sistema de associados individuais que pagavam mensalmente cotas, em troca das quais tinham suas entradas garantidas para todas as montagens do grupo. Mas só o sistema de cotas e as contribuições dos associados não eram suficientes para arcar com todo o custo do teatro. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Na década de noventa ocorre outra guinada na política, e o acirramento do processo de pauperização da população fez diminuir paulatinamente o número de associados. Outro revés para o grupo. O peso do mito do El Galpón, do teatro comprometido, teatro da resistência, somado ao peso da estrutura empresarial na qual se transformara, foram elementos determinadores do choque interno iminente: no horizonte, um impasse; na percepção de parte da companhia: um desajuste. Impasse e desajuste internos indicavam o atropelo sofrido pelo grupo das exigências políticas e econômicas dos novos tempos. Situação não percebida por todos, mas suficiente para mergulhar os mais conscientes numa angústia que os impediam de buscar solução. Como bem dito por uma atriz da companhia, Graciela Escuder, referindo-se à conclusão de um grupo de psicólogos que tentara analisar a companhia: “o que acontece é que vocês têm uma estrutura que tampa a realidade”. Do sonho inicial, comum a qualquer grupo de teatro, de ter sua sede própria para não depender da máfia dos aluguéis de teatro, de modo que pudesse escolher seu repertório sem nenhum tipo de entrave ou imposição, resultou um complexo cultural com três salas de teatro, uma livraria, uma loja de discos, uma cafeteria, que envolve 36 funcionários entre bilheteiras, técnicos e administradores. Tem uma atividade contínua com espetáculos de segunda a segunda, espetáculos infantis, infanto-juvenis e adultos, recitais de poesias e shows de música, tudo a preços populares. A situação-limite da companhia forçou a criação do “sócio espetacular”, que atrai públicos novos, não acostumados ao teatro. Isso significa que pela primeira vez o El Galpón está tendo que recorrer a montagens de peças comerciais para sobreviver. O custo desse complexo é imenso e sem nenhum subsídio público e sem patrocinadores privados, a situação do El Galpón se complica ainda mais. Os sérios obstáculos relacionados à administração e à organização do complexo cultural enfrentados pelos integrantes do grupo deixam-lhes pouco tempo disponível para a pesquisa estética e para as relacionadas à escolha do repertório. O ritmo alucinante do complexo cultural impõe um ritmo também cada vez mais acelerado para montagens de obras novas, resultando em pouco tempo para a seleção delas. Montevidéu. Setembro de 2001. Instituición Teatral El Galpón, rua 18 de Julio. Espetáculos em cartaz: Lo que vio el mayordomo de Joe Orton e Hay que deshacer la casa de Sebastián Junyent. Próxima estréia: La gata en teto de zinco quente, de Tennessee Williams. Ao longo de cinqüenta e dois anos de trabalho, foram mais de 200 montagens do grupo, contabilizando em 1999, exatamente 217 peças. Tratase de uma trajetória excepcional, única na América Latina. E se os tempos El Galpón - Narrador do sonho latino-americano. Yaska Antunes.

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U rdimento e o repertório do El Galpón mudaram, o seu compromisso principal com a arte e com a América Latina continua efetivamente válido. Continua a sonhar, a traduzir os anseios de um povo para a linguagem teatral, alternados com entretenimento da melhor qualidade. De um modo ou de outro, continua como o narrador dos sonhos do teatro latino-americano, que não são outros que os próprios sonhos do conjunto dos povos da América Latina. Sonhos de eqüidade, liberdade e felicidade, justiça e harmonia nos próprios modos de ser das culturas latino-americanas.

Referências bibliográficas BRAVO-ELIZONDO, Pedro. “Teatro em Uruguay: Conversación con Jorge Pignataro Calero”. In: Latin American Theatre Review, Lawrence, Kansas, USA, v.33, n.1, Fall 1999, p.153-160. CAMPODÔNICO, César. El vestuário se apolilló: una historia del teatro El Galpón. Montevideo, Banda Oriental, 1999. DEL CIOPPO, Atahualpa. Dramaturgo del Viejo Mundo, para una sociedad nueva. Escénica - Revista de Teatro de la UNAM / Coordinación de Extensión Universitária / Epoca I, n° 8, México, Julio 1984, p.55. DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. Trad. Fernando Peixoto. São Paulo: Perspectiva, 1977. ESCÉNICA. Revista de Teatro de la UNAM / Coordinación de Extensión Universitária / Epoca I, n° 8, México, Julio 1984. MIRZA, Roger. El Teatro: de la ‘refundación’ a la crisis (1937-1973). Montevidéu: 1998, p.167-198. SOUZA, Marcos Alves de. “O reformismo uruguaio sob a égide do ‘battlismo’ na primeira metade do século XX”. Disponível em: . Acessado em 10/03/2002. YÁÑEZ, Ruben. El galpón a la hoguera. Escénica, Revista de Teatro de la UNAM / Coodinación de Extensión Universitária / Época I, n° 8, Julio-1984. México, 1984, p. 71-74.

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U rdimento

O PRODUTOR E O PRODUTO NO TEATRO DE GRUPO Flávia Janiaski1

Resumo

Abstract

Opresenteartigoapresentaumareflexão crítica sobre a figura do produtor cultural inserido no universo do teatro de grupo no contexto de uma contemporaneidade definida como pós-moderna, onde fica difícil delimitar o lugar social da arte, e a tênue linha que existe entre o que é produto artístico e o que é produto de mercado. Neste contexto torna-se importante delimitar qual o lugar do produtor teatral que está inserido dentro de um grupo de teatro e que participa do seu processo de criação artística.

This article presents a critical reflection on the figure of the producer is in the cultural world of the theater group in a contemporary defined as postmodern, which is difficult to define the social place of art, and fine line that exists between what is artistic product and what product market. In this context it is important to define what the producer's seat theater that is inserted inside a theater group and involved the process of artistic creation

Palavras-chave: produtor cultural, mercado, pós-modernidade, teatro de grupo.

Keywords: cultural producer, marketing, post-modernity, groups theater. Flávia Janiaski é professora colaboradora do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina e mestre em Teatro pela UDESC. 1

No contexto de uma contemporaneidade definida como pós-moderna, fica difícil delimitar o lugar social da arte e a tênue linha entre o que é produto artístico e o que é produto de mercado. Segundo o crítico Fredric Jameson, a cultura colapsou com o capital, de tal forma que é impossível separar a lógica da cultura da lógica do mercado. No campo das artes, nada mais choca nada mais escandaliza ninguém, tudo é permissível, tudo é aceitável, o artista não tem o que transgredir, tudo é ‘normal’. A cultura da imagem e do simulacro destaca-se, deixando a realidade e o conceito de real em segundo plano. Partindo desta afirmação e vislumbrando uma realidade onde tudo é produto, tudo é vendável, onde a produção estética está integrada à produção das mercadorias em geral, é importante delimitar qual o lugar do produtor Dezembro 2008 - N° 11

O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento teatral que está inserido dentro de um grupo de teatro e que participa do seu processo de criação artística. Perguntar qual o lugar deste produtor que tem a função de veicular seu produto cultural, ou seja, fazer a produção de um espetáculo, mas corre o risco de se adaptar ao mercado, constitui um elemento chave para o estudo do fenômeno do teatro de grupo.

Teatro de Grupo O teatro de grupo é entendido aqui como aquele teatro que parte de um modelo idealizado de organização grupal que trabalha como um indicativo que movimenta muitas ações criativas e de organização social no âmbito do teatro. Teatro de grupo implica em uma idéia de um grupo sustentado mais pelo eixo do trabalho artístico e ideológico do que pelas circunstâncias da sobrevivência ou pela realização de um espetáculo específico. Isto é, os elementos de identificação passam pelas vias afetivas e técnicas, funcionam com auto-gestão e tem leituras semelhantes frente aos códigos de criação e produção teatral. Buscam, em geral, uma estabilidade de elenco, através de projetos de longo prazo e de uma organização de práticas pedagógicas, não esquecendo de mencionar a importância de uma ordem ética para o trabalho coletivo. Segundo Eugênio Barba, Antropologia Teatral "é o estudo do comportamento humano quando o ator usa sua presença física e mental em uma situação organizada de representação e de acordo com os princípios que são diferentes dos usados na vida cotidiana" (BARBA, 1999: 74). Ele ainda complementa que a Antropologia Teatral não busca princípios universais, mas indicações que possam vir a ser úteis para o trabalho do ator-bailarino. 2

É um teatro fortemente influenciado pelas idéias do diretor italiano Eugênio Barba (1936-), e seu teatro Antropológico2. Barba renegou as formas comerciais de teatro e buscou sempre uma organização baseada em um forte grupo independente. Valorizando a noção de coletivo ele busca uma forma grupal constituída com um referente ideológico comunitário. Em 1964 ele funda em Oslo na Noruega o Odin Teatret – que se muda para Holstebro na Dinamarca em 1966 – com o Odin Barba criou um instituto de pesquisa para a formação do ator, e para desenvolver o trabalho de ator era preciso trabalhar com atores que fizessem parte de um projeto com estabilidade e continuidade, isto seria possível dentro de um grupo, onde os atores não se separassem ao final de uma montagem, por exemplo. Eugênio Barba acompanhou o trabalho de Grotowski em Opole por cerca de dois anos, entre 1962 e 1964, e foi com ele que Barba “aprendeu” a noção do trabalho grupal, valorizando a noção de coletividade onde a união do grupo está alicerçada em sua ideologia. É certo dizer que o Odin se situa em uma zona periférica em relação ao ambiente artístico, por sua sede se localizar no interior da Dinamarca, no entanto suas ações de disseminar o Teatro Antropológico são muitas e variadas, entre elas podemos destacar a publicação de uma revista teatral; organização de seminários internacionais sobre o trabalho do ator realizando intercâmbios com outros grupos e dedicação de horas diárias para o treinamento do ator. Vale destacar que este treinamento está baseado em uma estrutura coletiva, em um grupo com trabalho contínuo. O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento É importante ressaltar que apesar do Odin Teatret receber subvenção do governo dinamarquês, este opera como um grupo independente com fortes características o teatro de grupo, onde cada membro tem projetos individuais dentro dos projetos coletivos. Seu diretor teve iniciativas de caráter pedagógico e fundou a International School of Tehatre Anthropology (ISTA) reunindo especialistas de teatro, antropólogos, sociólogos, entre outros mestres com o intuito de ensinarem os alunos a “aprenderem a aprender” criando um método pessoal e individual de trabalho. Eugênio Barba sempre teve a preocupação e a prática de realizar intercâmbios com fazedores teatrais do mundo inteiro. Foi, especialmente, através destes intercâmbios que as idéias do Teatro Antropológico e sua cultura de grupo chegaram ao Brasil na década de 1980 e tiveram, ao lado de outras companhias estrangeiras3, impacto no ideal de teatro de grupo brasileiro. Na década de 1980 o número de festivais internacionais cresce consideravelmente no Brasil, o que proporciona a visita de inúmeros grupos estrangeiros no país, entre eles o Odin Teatret. É certo dizer que a influência que Barba tem no teatro de grupo brasileiro a partir da segunda metade dos anos 80, e em toda América Latina, é grande, uma vez que muitos dos grupos que pertencem a este movimento tomam o Odin e suas práticas como baliza para a construção de projetos grupais. Neste caso os elementos de identidade coletiva e a realização de uma ação transformadora do sujeito humano através do teatro é central. Neste sentido, Carreira (2006) destaca como resultado mais perceptível da influência do Teatro Antropológico na década de 1980 no Brasil, a criação de uma rede permanente de trocas que promove a transmissão de modelos de trabalho técnico. O teatro de grupo tem uma estrutura de auto-gestão na qual mescla elementos de identificação afetiva e técnica, no desejo de resistir a um referente hegemônico comercial. Este teatro que prima pela liberdade de criação firma posição frente à indústria cultural e na maioria das vezes busca formas de se manter fora deste sistema comercial. É possível afirmar que o teatro de grupo se apresenta para o os grupos como uma forma de realizar uma reflexão constante, além de propiciar a construção de métodos de formação do ator.

Um exemplo disso é a experiência de um dos mais expressivos grupo de teatro do Brasil: o Grupo Galpão (MG). O estimulo para a criação de um grupo de teatro para o Galpão nasceu de uma oficina realizada pelos alemães Kurt Bildteins e George Froscher membros do Teatro Livre de Munique. Fora este exemplo, podemos destacar ainda que com o fim da ditadura militar os intercâmbios com a Europa aumentaram resultando uma maior circulação de grupos. 3

É certo dizer que o movimento de teatro de grupo faz nascer um compromisso de constante reflexão e discussão sobre os alicerces do fazer teatral. Despertando o anseio de arquitetar métodos de formação do ator fundamentados em uma ordem ética para o trabalho em grupo. Dezembro 2008 - N° 11

O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento Desta forma podemos dizer que os aspectos contemporâneos do teatro de grupo estão baseados na relação afetiva, social, política e econômica dos seus integrantes. Na maioria dos casos primando um treinamento contínuo do trabalho de ator através de um elenco estável e que mantêm uma relação de integração; projetos desenvolvidos em longo prazo; preocupação estética e ideológica; desenvolvimento de pesquisa, se tornando um espaço para a experimentação cênica; resistência frente à tendência do teatro comercial e/ ou de modelos hegemônicos. O conceito de teatro de grupo é mais do que a organização num coletivo. Ele está ligado às dinâmicas internas em torno de um mesmo ideal, o que terá como conseqüência direta a criação de uma linguagem que identifica o grupo. Os trabalhos dentro deste grupo são continuados, o coletivo busca a construção de uma identidade poética.

Rede Brasileira de Espaços e de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral, nasceu no ano de 2004 com o anseio de proporcionar discussões sobre pesquisa e criação teatral e se constitui em um meio de acessar os grupos de teatro de todo o país. 4

O Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo é um espaço para a reflexão e a prática do teatro, onde acontecem oficinas, debates, leituras dramáticas e relatos de experiência. Acontece há cinco anos e na edição de 2006 o destaque foi para a discussão do papel do teatro de grupo. 5

As dinâmicas e metodologias de cada grupo estão intrinsecamente ligadas aos seus objetivos e suas motivações grupais, estas motivações englobam os desejos individuais de seus integrantes. Quando o grupo delimita o que é o fazer teatral, ele traça os objetivos e metas a serem cumpridos, e são estes objetivos que darão forma ao grupo. Desta maneira quando o grupo de teatro define o que é teatro para ele, e o que vai motivar seu trabalho, é que este grupo cria seu espaço de atuação, estabelecendo seus referentes éticos, seus objetivos e seu plano de ação. No que se refere à busca por financiamento de seus projetos, este teatro de grupo parte a procura de sistemas alternativos, práticas que rompam à lógica do teatro comercial. Por isso ganha forma a idéia de teatro de grupo como uma alternativa de resistência. Entre estas alternativas de resistências estão as iniciativas de alguns grupos de destaque na cena nacional que trabalham de acordo com o modelo de teatro de grupo, tais como a criação de movimentos, cooperativas e fóruns de discussão. Entre estes podemos citar o Movimento dos grupos de Investigação Teatral de Porto Alegre, o Movimento Artes Contra a Barbárie de São Paulo, o Movimento de Teatro de Grupos de Minas Gerais, a formação de Cooperativas e de Centro de Pesquisas, entre outros. Iniciativas estas que primam o intercambio e a formação permanente. Vale destacar aqui a criação da Rede Redemoinho4 e o Próximo Ato5.

Pós-Modernidade e a Lógica de Mercado Considerando este ambiente de trabalho teatral – o do Teatro de Grupo - e concordando com Jameson quando ele diz que os fins se separaram dos meios, e que já não existe nada, nem ninguém fora do sistema capitalista, é O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento possível concluir que houve uma alteração fundamental no valor do artista em relação à sua obra. Para tudo no mundo existe uma pessoa que venda um valor de mercado e um ‘alguém’ que compra. Neste contexto, o artista passa de criador a mero trabalhador, e a própria cultura é transformada em produto dentro de um sistema de idéias da indústria cultural. O objeto artístico passa a ser, basicamente, um objeto de consumo, antes de qualquer outra coisa. Ou seja, resumindo em uma frase na atual industrial cultural temos os seguintes termos de equivalência: Para cultura - mercado; para artista - cliente; para trabalho - produto. E desta forma vão mercantilizando cada vez mais o fazer artístico. Na modernidade com o advento do esteticismo e a massiva difusão da reprodução da arte, artistas passaram a se relacionar com empresas gerando produtos que circulam como mercadorias. Ao mesmo tempo a cultura deixou de ser vivida como construção autônoma, e passou a ser representada como parte da fala capitalista. O que nos conduziu, na pós-modernidade, à espetacularização da própria vida, ou como afirmar Guy Debord, o capital transformou os sujeitos em átomos passíveis da mais completa dominação, a imagem se tornou a forma final da reificação. Imagem como mercadoria. E a cultura na pós-modernidade também é aceita como mercadoria e, portanto, acaba por se transformar em uma “vedete” do consumo na “sociedade espetacular”. Só que segundo o autor, nesta sociedade espetacularizada a mercadoria acaba por se transformar em uma fantasia, uma ilusão, e os indivíduos transformados em consumidores passam a consumir ilusões, a comprar fantasias. A cultura se transformou em um simulacro que fortifica a lógica do capitalismo. Simulacro aqui é entendido como algo exterior e enganador, um conceito que envolve igualdade e diferença, representação e criação, similaridade e contestação, onde tudo é superficial, efêmero e vazio. O termo simulacro pode ser definido por simulação, por um aglomerado de irrealidades onde o valor é igualado ao de realidades, mesmo que os meios de significação através do qual é reconhecido sejam aqueles que ditam seu valor. Têm-se como princípio na sociedade pós-moderna que a incerteza é a regra, a lógica do simulacro alastra-se por todos os campos da vida humana. As pessoas passam a ser espectadores passivos diante de suas próprias vidas, esta é a transformação advinda da lógica capitalista do lucro a qualquer preço. E uma vez vivendo na lógica do simulacro, onde todos os sujeitos são bombardeados por um exagero de imagens cheias de apelos consumistas, de informações que os exclui da formação de uma identidade própria, estes sujeitos – homens e mulheres – são desobrigados de pensar. Suponho que não há espaço para pensar em uma sociedade onde o efêmero e a espetacularização ditam as regras. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Na alienação das imagens televisivas ou nos anúncios publicitários em meio a toda poluição visual que somos submetidos diariamente está claro a intenção de proliferar uma cultura de vicio da imagem que significa mais para o momento social atual do que qualquer outro acontecimento ou conceito. Isso pede uma intensificação na reflexão sobre a relação dos artistas com o mercado capitalista, pois se estamos numa época da sociedade do espetáculo entendida como a mercantilização de todos os gestos humanos, o espaço de autonomia criativa da arte e sua postura de resistência ao status quo estaria questionado. Em uma sociedade onde os valores que predominam são a liberdade, diversidade e a tolerância, percebemos que esta liberdade diz respeito fundamentalmente à nossa livre opção de consumo. Zygmunt Bauman no seu livro Modernidade e Ambivalência coloca que ‘o remédio, como a doença, é totalmente privatizado. Doença é a escassez de consumo, a cura é um consumo ilimitado’, (BAUMAN, 1999), no entanto, o consumo não é capaz de suprir todas as necessidades do homem, pois, neste caso, a liberdade de escolha é limitada e excludente. Seria neste espaço que a arte, especialmente o teatro, trataria de atuar buscando formas de suprir as necessidades do ser humano que não são atendidas pelo mercado. Isso é ainda possível? Existe um espaço intersticial no qual as falas artísticas podem se infiltrar? Está claro que o mercado não aceita aquilo que ele não pode controlar. Por isso podemos pensar que as estratégias da lógica do mercado são de cooptação das mais diversas falas. Tudo que pode ser revertido para o pensamento do consumo é bem vindo do ponto de vista do mercado. Nossa experiência contemporânea demonstra a extrema habilidade do capitalismo em transformar tudo em mecanismo de consumo, por isso a busca de um gesto que se mantenha independente parece uma quimera, no entanto, isso pode ser considerado uma tarefa central para os criadores que resistem a assumir a inevitabilidade da servidão ao mercado.

O Produtor Teatral Escapar da teia do mercado é um problema central para aqueles que tratam de desempenhar a função de produtores teatrais, e isso é chave no contexto do teatro de grupo, uma vez que este ocupa um espaço de resistência. Atualmente, os grupos de teatro têm preocupações quase empresarias que ficam demonstradas quando lidam com termos tais como: competitividade, eficiência, formalização, lucratividade. Estes valores que antes não faziam parte do universo dos grupos de teatro, faz poucos anos já não são tão estranhos no ambiente teatral. Hoje em dia, os grupos de teatro estão envolvidos em O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento uma teia que engloba cultura, arte, econômica, políticas públicas, mercado e mercadoria. E é preciso saber lidar com cada um destes elementos, pois negar esse quadro é tentar fugir de forma ingênua. É neste contexto que emerge a necessidade de pensar a figura do produtor cultural criativo e não comercial. O dilema deste novo produtor está definido pelo fato de que ele sabe que ignorar as leis de mercado é levar sua produção criativa ao fracasso, mas vender seu processo criativo ao mercado é destruir sua arte. Como dar respostas a esse dilema? Cada grupo desenvolve uma dinâmica e uma metodologia própria para enfrentar esse problema, e isso está intrinsecamente ligado aos objetivos e motivações grupais que organizam os desejos individuais. Quando o grupo delimita o que é o fazer teatral ele traça os objetivos e metas a serem cumpridos, e são estes objetivos que darão forma ao grupo. Trazendo as características pós-modernas e a lógica da indústria cultural para a realidade do Brasil, ou seja, de um país que não conta com políticas públicas de cultura consistentes, que tem no seu discurso oficial um incentivo a profissionalização do produtor cultural para desta forma isentar o Estado de inescapáveis atributos, inclusive constitucionais em uma ausência quase completa de ação. O que resulta em dois víeis básicos: de um lado as fundações culturais distribuídas por todo o país dedicando verdadeiras fortunas a obras físicas ou a espetáculos e eventos com artistas de “renome” nacionais; e de outro lado às empresas que se utilizam do mecenato para humanizar a sua imagem, ou investir em cultura com o significado de estar presente em lugares de muito público, ou estar associado a momentos de emoção, em geral em um ambiente onde o mercado consumidor tem um grande poder aquisitivo. Ou seja, os principais motivos que levam tais empresas a investir em cultura com o dinheiro do Estado, uma vez que tal subsídio tem origem nas Leis de Incentivo Fiscais, são: o ganho de imagem institucional, a agregação de valor à marca da empresa, o reforço do papel social da empresa e claro os benefícios fiscais. Os últimos vinte anos nos mostram um Brasil neoliberal que não compreende como dever do Estado gerenciar a cultural, ou mesmo promover alternativas culturais para a população, delegando as Leis de Fomento a função de direcionar recursos públicos por meio de empresas para a classe cultural, tornando o mecenato como parte das estratégias de marketing das empresas. Como conseqüência há um deslocamento do valor da cultura, que desta forma, passa a estar no produto, o que importa é qual o resultado este ou aquele produto cultural pode alcançar para a imagem da empresa, o processo e a pesquisa ficam sempre em segundo plano. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento As manifestações artísticas ficam desta forma, reduzidas e até mesmo presas aos padrões impostos pelo mercado e a sua lógica de ação, que é a do consumo e do entretenimento. A reificação da cultura capitalista tornou a Indústria Cultural o principal aparelho ideológico da contemporaneidade, “Num mundo governado pela produção de mercadorias, o produto controla o produtor, os objetos têm mais força do que os homens” (FISCHER, 1987: 96), e este campo é sempre conduzido pela produção em série, ou por uma lógica onde o produto é sempre mais importante e valorizado do que o tipo de técnica ou conteúdo que ele tem embutido, assim como a irrelevância de outros fatores como, por exemplo, se este produto provoca algum tipo de transformação social ou não; ou se ele tem ou não algum mérito artístico. O que nos leva a triste conclusão que a proliferação de gestores de cultura com o seu discurso de livre-mercado são apenas mais artifícios para encobrir o vazio das políticas públicas de cultura. Os grupos de teatro frente estas políticas se vêem “obrigados” a entrar em um jogo de interesses e buscar patrocínios nas empresas. No entanto, para que estes patrocínios sejam acessíveis os grupos precisam criar um produto que se ajuste a imagem da empresa e isso implica na elaboração de uma imagem do grupo que seja atraente para o possível patrocinador. Fazendo isso se corre o risco do produtor teatral ou o grupo de teatro, serem obrigados a adotar uma imagem que preencha as expectativas destas empresas e isso pode gerar uma modificação ou adequação dos valores grupais. O produtor inserido no grupo teatral comunga com os objetivos e ideais do grupo. Já o produtor que “vem de fora” está descomprometido com o processo de criação artística, ele vê no grupo apenas as possibilidades técnicas e financeiras (utilização dos recursos financeiros, patrocínios, retorno financeiro), e não têm, necessariamente, uma relação orgânica com o trabalho artístico do grupo. Uma vez que os grupos de teatro possuem um projeto criativo que demanda uma lógica particular que difere das lógicas do mercado, eles precisam de uma pessoa para estabelecer relações entre eles e o mercado, por isso aparece à necessidade de um mediador que é representado pela figura do produtor. O produtor no grupo de teatro é aquele responsável não só por sua gestão, mais também é quem deve tomar a iniciativa de traçar alternativas para o grupo, planejando e delineando metas. Sua atividade contempla desde o financiamento até a organização de todo trabalho, bem com a realização do espetáculo. É ele que vai criar as condições materiais para a realização do projeto artístico do grupo. O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento É neste momento que o produtor que se vê diante do produto e dialogando com este produto vai buscar alternativas de sobrevivência. Vai procurar desenvolver estratégias de divulgação e comercialização que indiquem a negação dos modelos hegemônicos e a busca de sistemas alternativos. O produtor criativo e engajado com o trabalho artístico vai buscar alternativas para conviver com as leis de mercado, e não fazer dessas leis a baliza fundamental do trabalho criativo. O teatro de grupo busca um espaço de autonomia, o produtor não pode organizar suas iniciativas pautadas pelos elementos quantitativos, dado que a criação é basicamente instrumentalizada pelos processos qualitativos. Por isso, no teatro de grupo, um teatro de resistência, o produtor não pode se deixar transformar em uma reificação de si mesmo. Mesmo que nossa época se organize pelos processos de mercantilização, e a indústria cultural seja uma das balizas chaves da contemporaneidade, fazer da produção um modo de prospecção de zonas alternativas é um fazer de instituir procedimentos que criticam a lógica hegemônica. Procedimentos que vão além de uma lógica capitalista baseada, desde 1996, nas Leis de Incentivo Fiscais. O governo de Fernando Henrique Cardoso implanta uma “modernização” nas leis de incentivo à cultura fomentando uma política de parceria entre Estado, empresários e comunidade cultural a nível federal, estadual e municipal e com isso gera uma evolução no comportamento empresarial sobre investimento em cultural. Com esta “modernização” nas leis de incentivo à cultura surge uma nova modalidade do marketing, é a do Marketing Cultural que é definida pela American Marketing Association como toda ação de marketing que usa a cultura como veículo de comunicação para se difundir o nome, produto ou fixar imagem de uma empresa patrocinadora. Este segmento é muito usado por parte da classe artística como meio de financiar projetos, por outro lado, ele também é muito criticado por esta mesma classe que vê nele apenas um jogo de interesses e mais uma forma da empresa manipular o tipo de cultura financiada com o dinheiro de isenção fiscal. No entanto, não é apenas uma equação simples de aceitar ou rejeitar tal procedimento, o marketing é um terreno rico de possibilidades e deve ser visto e estudado em sua totalidade, ou seja, ele aborda o mercado e suas relações, tentando construir estratégias de ações para um produto ou serviço, não tem a ver unicamente com publicidade ou venda. E desta forma a cultura vai cada vez mais entrando no mundo da administração, e os próprios administradores vêem este campo como muito frutífero financeiramente. E tentam vender uma idéia de que gestão sirva para Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento tudo e que mesmo as organizações sem fins lucrativos devem se apropria de formar gerencias de empresas privadas para garantir seu sucesso. Com isso, inúmeros grupos de teatro que são, originalmente, organizações sem fins lucrativos, passam, com a demanda do mercado e a necessidade de sobrevivência, a adotar modelos de gestão característicos de empresas privadas, transformando assim sua lógica de atuação. A administração pode ser um forte aliado ao fazer teatral, se focarmos elementos conceituais que servem ao teatro, mesmo sendo um grande desafio aplicá-los. Se partirmos do princípio de que todo grupo de teatro profissional é uma organização com um produto a ser vendido e uma meta a ser alcançada, a utilização de técnicas administrativas nos parece um bom caminho. Segundo o administrador Idalberto Chiavenato, embora existam variados tipos de organizações, e em cada uma delas tem um objetivo específico, um ramo de atividade particular, dirigentes e pessoas diferentes, os seus problemas internos e externos, o seu mercado, a sua situação financeira, a sua tecnologia, os seus recursos básicos, a sua ideologia e política de negócios, entre outras especificidades, é o administrador que vai solucionar os problemas, dimensionar os recursos, planejar sua aplicação, desenvolver estratégias e efetuar diagnósticos de situações, únicos e exclusivos daquela organização e da sua realidade. “Os princípios gerais relacionados com a tarefa de administrar se aplicam a qualquer tipo ou tamanho de organização” (CHIAVENATO, 1936: 6). Sendo um grupo de teatro uma organização ele também precisa ser administrado adequadamente, para poder realizar seus objetivos com a maior eficácia e economia de ação e recursos. Chiavenato completa que a tarefa de administrar é a de garantir o seguimento da organização. Toda grande idéia ou projeto artístico pode não dar certo se não for planejado e principalmente administrado. Mais para tanto ele deve contar com um programa de gestão voltado aos interesses artísticos do mesmo, que sim: atinjam o mercado, mais não se vendam ao mercado, ou seja, a arte pode e deve ser uma fonte geradora e distribuidora de renda, por isso é necessário reiterar que os procedimentos do mercado deveriam atender à arte e não o contrário. Diante disto a presença de uma administração não implica em pensar o fazer teatral como pura mercadoria, mas sim como uma ferramenta. Com isso concluo que o produtor teatral deve ser um fomentador da cultura para os diferentes segmentos da sociedade, mostrando através de seu fazer artístico a importância que o teatro pode ter na vida individual e coletiva. Ele deve procurar abrir espaços para que arte penetre espaços permeáveis do mercado, buscando descobrir formas de convivência, ainda quando estas não sejam harmônicas. O Produtor e o Produto no Teatro de Grupo. Flávia Janiaski.

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U rdimento Ele precisa estar apto para articular a criação artística com o mercado, mantendo sua essência de produtor teatral no que diz respeito ao vinculo e respeito com o público, e com as particularidades estéticas, éticas e sociais de seu projeto artístico. Isso se dará criando rupturas, como sugere Debord, ou procurando fendas, como propõe Jameson. Mas para isso é preciso que o produtor teatral não se deixe transformar em um produto. É imprescindível que ele seja um agente criativo e comprometido com o trabalho artístico, e se coloque sempre a serviço, primeiramente da arte, para não ser um mero serviçal do mercado. O produtor inserido dentro de um grupo de teatro será capaz de mostrar com o desenvolvimento de seu trabalho a importância que o teatro pode ter na vida individual e coletiva, e o teatro desta forma será capaz de penetrar espaços do mercado, buscando descobrir formas de apropriação e coexistência entre eles.

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmi Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CARREIRA, André. O Teatro de grupo e a construção de modelos do ator no Brasil nos anos 80-90. In Anais do IV Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Rio de Janeiro, maio de 2006: Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – ABRACE, 2006. p. 75-76. DEBORD. Guy. La sociedad del espectáculo. Buenos Aires: Biblioteca de La Mirada, 1995. DELEUZE, G. Lógica do sentido. 4. ed. Trad. de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1998. CHIAVENATTO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. São Paulo: McGraw-Hill, 1936. FERREIRA. G. M. Teatro de Grupo: revelando e construindo a si mesmo. Trabalho de Conclusão de Curso. (monografia). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes. Florianópolis, 2001. FISCHER, E. A necessidade da arte. Trad.Leandro Konder. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo - A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000. OLIVEIRA, Valéria; CARREIRA, André. Teatro de grupo: modelo de organização e geração de poéticas. In O Teatro Transcende, ano 12, n. 11, 2003. pp. 95-98. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento

O ESPÍRITO TRAVESSO NA MÍMICA CORPORAL DRAMÁTICA DE ETIENNE DECROUX George Mascarenhas1

Resumo

Abstract

Este artigo tem como propósito abordar os princípios técnicos e estéticos da mímica corporal dramática com relação à utilização de procedimentos cômicos em sua criação artística. Através de uma análise histórica, o texto destaca as características principais da mímica corporal dramática de Etienne Decroux e da pantomima, para mostrar os diferentes percursos dos dois estilos com relação à comicidade. Utilizando como base os conceitos de Bergson de mecanicidade e inadaptabilidade, o artigo discute a presença da comédia na técnica e repertório da mímica corporal dramática decrouxiana.

The purpose of this article is to approach the technical and aesthetical principles of dramatic corporeal mime in relation to the comic procedures in its artistic creation. Through a historical analysis, the text highlights the main characteristics of Etienne Decroux’s corporeal mime and classical pantomime to show the distinct ways in which both styles deal with comedy. Based on Bergson’s principles of mechanical rigidity and inadaptability, the article discusses the presence of comic procedures in the technique and repertoire of corporeal mime.

Palavras-chave: mímica dramática, procedimentos mecanicidade, inadaptabilidade.

Keywords: dramatic corporeal mime, comic procedures, mechanical rigidity, inadaptability.

corporal cômicos,

Em muitas situações, ao me apresentar como mímico, escuto o comentário cheio de surpresa, seguido, freqüentemente, de uma solicitação: “Você é mímico? Oh, faça aí uma mímica!”. A solicitação do interlocutor se refere, em geral, a uma ação de natureza supostamente espetacular, surpreendente ou cômica, associada à manipulação de objetos invisíveis, típica da pantomima, como tomar chá em uma xícara “invisível” ou fazer algo que possa servir de jogo de adivinhação. Dezembro 2008 - N° 11

George Mascarenhas é ator e diretor teatral formado pela École de Mime Corporel Dramatique (Londres), Mestre em Artes, Doutorando em Artes Cênicas (PPGAC/ UFBa), professor do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social da Bahia. E-mail: georgemascarenhas @hotmail.com

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O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.

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U rdimento Para evitar uma longa explicação de natureza teórica que aborde a distinção entre a mímica corporal dramática de Etienne Decroux (MCD), técnica que pratico, e a pantomima, apenas dou um sorriso amarelo, na maioria das vezes... Outras vezes, digo sucintamente: “não, não é esse tipo de mímica...” Raramente, nessas circunstâncias, é possível explicar que, com a mímica corporal dramática, não posso retirar um coelho invisível de uma cartola invisível, porque o estilo, o direcionamento artístico e estético apontam para outro caminho, seguramente oposto àquele identificado com a pantomima.

Todas as citações em língua estrangeira têm tradução nossa. No original: "And this pantomime seemed to me to be systematically comic, even before one knew what the subject was. And there we have it. That said, I’ve let you see my tastes a bit, even before getting on to the stage" (DECROUX, 1978: 9) 2

Os termos drama e dramático são aqui utilizados como designação do gênero poético. As formas dramáticas históricas são indicadas neste artigo por adjetivação. Drama sério refere-se aqui à forma dramática que trata de temas sérios de modo sério. 3

"Il n’avait pas besoin de traiter un sujet comique, il était déjà comique."(DECROUX, 2003: 59)

A idéia deste tipo de número parece estar bem distante dos princípios da MCD, o que torna a reação do interlocutor, quase invariavelmente, uma expressão de frustração. Afinal, de que serve a mímica que não possa nos fazer rir entre um salgadinho e outro? E, de outro modo, como o caminho estético da mímica corporal dramática de Etienne Decroux dialoga com a perspectiva do cômico? Em primeiro lugar, é preciso notar que o desejo daquele interlocutor caracteriza uma das principais objeções de Etienne Decroux à pantomima, técnica que declaradamente abominava: E esta pantomima me parecia ser sistematicamente cômica, mesmo antes de se saber qual era o tema. E era assim que ela existia. Era como se ela dissesse ‘eu deixo vocês sentirem um pouco do meu sabor’, mesmo antes de entrar no palco. (DECROUX,1978: 9)2 Na concepção de Etienne Decroux, uma arte deve ser “séria” antes de ser divertida, ou seja, deve conter a possibilidade de tratar de temas graves, de atingir a emoção do espectador em diversos níveis, de abordar conteúdos humanos complexos como em um drama sério3 ou com um tratamento épico ou mesmo através da comédia, mas nunca a priori com procedimentos exclusiva ou predominantemente cômicos, como ele acredita ser o caso da pantomima. Para Decroux, a pantomima “não tinha necessidade de tratar de um assunto cômico; ela já era cômica por si só”. (DECROUX, 2003: 59)4 De fato, um olhar sobre a história da mímica, como gênero teatral, e especialmente da pantomima, como estilo, desde sua origem na antigüidade clássica, mostra o quanto esta arte é associada ao divertimento, ao jogo cômico ou ao alívio da tensão no entreato de um melodrama ou por outro lado, ao lirismo sentimental, mantendo, de todo modo, o espírito popular que a manteve presente, durante muito tempo, nas feiras e praças públicas.

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Em sua origem na antiga Roma, enquanto o termo mímica era utilizado para designar quase todos os tipos de drama diferentes dos gêneros clássicos (tragédias, comédias, dramas satíricos) e não necessariamente implicava em O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.

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U rdimento atuação silenciosa, a pantomima era um estilo voltado para a encenação de fábulas nas quais o pantomimus representava sem palavras as ações que eram narradas pelo coro, acompanhado por músicos, versando em geral sobre temas morais, como o adultério, ou ridicularizando situações políticas, sociais e religiosas (MASCARENHAS, 2007). Muitas vezes, os temas eram tratados com fortes cores obscenas e grotescas, o que contribuiu para o surgimento de grandes antagonismos de natureza moralista. Nos primeiros séculos da dominação cristã no império romano, Os cristãos tinham dificuldade em entender porque os mímicos satirizavam seus próprios deuses pagãos e se sentiram ultrajados quando o Cristianismo começou a ser atacado. Ouvimos, por exemplo, sobre uma peça de mímica que mimicava o batismo de um moribundo em pânico com a salvação. (WILES, 1997: 63)5 O contexto de obscenidade, explorado pelo viés cômico, ainda segundo Wiles, era um modo de manter uma certa liberdade no discurso, permitindo a expressão de idéias e sentimentos contrários ao regime instituído, já que essas peças centradas no ator, total ou parcialmente improvisadas, podiam escapar mais facilmente da censura do que as formas de teatro com texto escrito. Ao longo da história, o cômico manteve-se como o traço predominante do estilo, embora nem sempre com esse caráter de transgressão. A pantomima absorveu também características de um lirismo ingênuo sobretudo a partir do trabalho de Jean-Gaspard Deburau (1796-1846), mímico francês que se consagrou na figura do Pierrot e iniciou a tradição da pantomima branca moderna, com os artistas de rosto pintado. Deburau, imortalizado no filme “Les enfants du paradis” (O boulevard do crime), de Marcel Carné (1945), “mudou o Pierrot [originalmente Pedrolino, zanni da Commedia dell’Arte] de um velhaco cínico e grotesco em um camarada poético e trouxe uma expressão pessoal para a fantasia, acrobacia, melodrama e encenações espetaculares que caracterizavam as pantomimas do século XIX” (LUST, 2001)6. De acordo com Innes (1997), foi a imagem farsesca e macabra do Pierrot pálido de Deburau, interpretado por Jean-Louis Barrault no filme de Carné, que se tornou a base para a criação do Bip de Marcel Marceau, responsável pela popularização do estilo no mundo no século XX, com sua camiseta listrada e o rosto melancólico pintado de branco. Explorando a tradição lírica de Deburau e, mais freqüentemente, o caráter cômico despertado pelo ilusionismo a partir da manipulação de objetos “invisíveis”, encontramos no trabalho de Marceau poucas experiências com números que abordam temáticas mais densas ou de Dezembro 2008 - N° 11

"Christians found it hard to understand why mime actors made fun of their own pagan gods, and were outraged when Christianity came in for attack. We hear, for example, of a mime play which mimicked the baptism of a dying man panicked about salvation". (WILES, 1997: 63) 5

"He changed Pierrot from a cynical, grotesque rogue into a poetic fellow and brought a personal expression to the fantasy, acrobatics, melodrama, and spectacular staging that characterized nineteenth-century pantomimes" (LUST, 2001)

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U rdimento forma aproximada ao drama sério, dentre os quais se destaca Jeunesse, Maturité, Vieillesse et Mort (Juventude, Maturidade, Velhice e Morte), na qual o mímico representa as diferentes fases da vida em uma marche sur place (caminhada no mesmo lugar, sem deslocamento). Em oposição declarada e radical a essa tendência, muito em virtude da visão de mundo e arte e das aptidões e desejos do seu criador, bem como do momento histórico do seu surgimento, encontra-se a mímica corporal dramática de Etienne Decroux. O início da construção da mímica corporal dramática na primeira metade do século XX, acontece em um período marcado pelos grandes movimentos e manifestos modernistas e pela utilização de mímica e máscaras como suporte de preparação para o teatro dito de texto - centrado na literatura dramática -, a exemplo das experiências de Jacques Copeau na École du Vieux Colombier, onde Decroux estudou.

"Tranquille dans mon fauteuil, je vis un spectacle inouï. C’était du mime et des sons. Le tout sans une parole, sans un maquillage, sans un costume, sans un jeu de lumière, sans accessoires, sans meubles et sans décor."(DECROUX, 1994: 18) 7

"Le mime, pensaije, a mieux à faire que de compléter un autre art." (DECROUX, 1994 : 34) 8

Em 1923, o jovem anarquista que desejava se tornar orador político, começou a freqüentar a École du Vieux Colombier que oferecia cursos gratuitamente para quem se dispusesse a trabalhar como figurante nas peças realizadas no teatro de mesmo nome. Apesar de seu firme propósito políticoideológico, Decroux acabou seduzido por uma experiência determinante em sua trajetória: uma demonstração de máscara neutra, na qual descobriu o princípio gerador de sua mímica corporal. “Tranqüilo em minha poltrona, eu vi um espetá¬culo prodigioso. Era mímica e sons. Tudo sem uma palavra, sem maquiagem, sem um figurino, sem um jogo de luz, sem acessórios, sem móveis e sem cenário.” (DECROUX, 1994: 18)7 Cansado das formas de teatro convencionais do seu tempo, Etienne Decroux começou a dialogar com a proposição da supermarionete de Edward Gordon Craig e investigar uma forma de teatro centrada no trabalho corporal do ator: “A mímica, eu pensava, tem mais a fazer do que completar uma outra arte” (DECROUX, 1994: 34)8. A técnica decrouxiana nasce então com uma vocação anti-naturalista, um desejo de ser mais do que uma técnica de base para o teatro de texto e uma clara distinção de outros estilos de mímica, particularmente, da pantomima. Esses princípios de algum modo o levaram a radicalizar a lógica da arte séria, dedicando-se muito pouco à exploração do cômico em seu repertório. O conceito de arte séria, vale ressaltar, não é uma oposição ao gênero cômico - até porque Decroux era um grande apreciador da comédia e de nomes como Molière e Chaplin -, mas uma atitude contrária ao desejo exclusivo da provocação ou da expectativa do riso a priori, ou da ilustração característica do lirismo pantomímico. O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.

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U rdimento Segundo Corinne Soum, última assistente do mestre francês, ao lado de Steven Wasson, em conferência proferida no ECUM-2002, em Belo Horizonte, por esse traço distintivo em seu trabalho, Decroux tirou a mímica da rua para dar-lhe o tratamento de um drama sério ou com influência épica, eliminando sua natureza de comicidade a priori. O desejo de tratar do homem em sua essência prometeica, grandiosa, mítica é talvez a principal razão pela qual encontram-se poucas situações de exploração da comicidade no repertório de peças e figuras (exercícios cênicos de curtíssima duração) criadas por ele. Para Decroux (1978), um homem que se levanta é emblema da humanidade inteira, no que ela tem de luta, paixão e sofrimento – daí a imagem do caráter prometeico. Não à toa, encontramos em sua obra referências à mitologia e a atos heróicos ou de grande valor moral, a exemplo das peças Le combat antique (O Combate Antigo) e La vie primitive (A vida primitiva) e das figuras de estilo La caresse sur le dos de Venus (A Carícia nas Costas de Vênus) e Le fils prodigue (O Filho Pródigo). A busca de Decroux volta-se para o homem em essência, cuja luta, expressa corporalmente através da exposição do conflito com a gravidade terrestre, é resultado das diversas lutas internas do pensamento. Ao dirigir sua técnica para a fisicalização do pensamento, Decroux oferece à mímica um caráter fortemente abstrato, radicalizado em peças como La Meditation (A Meditação), Le Prophète (O Profeta) ou La Femme Oiseau (A Mulher Passarinho), afastando-se ainda mais da exploração da comicidade. Interessa, em primeiro lugar, a transposição cênica denominada por ele de “retrato do invisível”, a criação de imagens visíveis do pensamento, das lutas e aspirações humanas presentes no cotidiano mais prosaico ou nas molduras mais míticas, em oposição a uma perspectiva ilustrativa ou representativa. Do ponto de vista da técnica propriamente, Decroux brinca com a lógica aparente ou contraditória das linhas, do peso e do volume corporal, em uma estrutura muitas vezes fragmentada, afastando-se dos princípios neo-aristotélicos de construção dramatúrgica, para criar sequências de ação interrompida, e, poderíamos dizer, editada: ao escorregar em um pedaço de sabão, a Lavadeira (La Lessive, 1931), que acabou de estender suas roupas em um varal, desliza para o fim do seu dia e retira as roupas já secas. A preocupação com a fábula desaparece, permanecendo apenas como fonte de inspiração para a criação artística. A “historinha” contada em cena está em segundo plano, ofuscada pelo desejo de expressar o mundo invisível, imaterial, o pensamento e o sonho de um homem em luta, restando, em alguns casos, poucos pontos de referência identificáveis de fábula unívoca. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Na MCD, é a ação física que gera novas ações. Sai a causalidade da ação e reação psicológica ou factual para entrar em cena a causalidade corporal: assim como o “peso decisivo” faz a balança pender para um lado, o “peso decisivo” de um braço pode fazer todo o corpo inclinar-se naquela direção. De fato, esta ênfase sobre o corpo é determinante na construção artística na MCD, não importa o tratamento dado à ação ou o gênero escolhido. Assim, comédia ou drama sério se dão no corpo, não necessariamente em silêncio, pela causalidade física. Pode-se observar no entanto uma tendência não-cômica em sua origem, tanto no que se refere aos princípios fundamentais de natureza filosófica quanto no uso dos procedimentos técnicos propriamente ditos. Guy Benhaim (2003) fala da imobilidade presente na técnica como sendo o ponto de deslize da MCD em direção ao drama sério. A imobilidade, como procedimento artístico marcante do estilo da mímica corporal dramática reportase à expressão de uma reflexão, um pesar, uma luta interna do homem: no ato da meditação, da hesitação, da memória, do devaneio, há uma parada, uma suspensão interna. Essa parada mental é expressa corporalmente, na MCD, através da imobilidade, da interrupção da ação física, de uma parada literal no movimento.

"Les mauvaises nouvelles, les bonnes nouvelles provoquent dans le corps des manifestations différentes, ce sont des dynamo-rythmes. La passion c’est d’abord le dynamo-rythme. C’est un luxe qu’un animal puisse se déplacer et il y a des animaux qui ne se déplacent pas du tout. Comme seules manifestations ils ont la contraction et le relâchement: c’est du dynamo-rhytme. Oui, le dynamo-rythme, c’est ce qui exprime le plus inténsement la passion". (DECROUX, 2003: 129) 9

No entanto, embora o princípio da imobilidade seja inegável e de máxima importância na técnica, o próprio Decroux privilegia o dínamo-ritmo (conjunto de combinações específicas na MCD de força e velocidade da ação), como sendo a alma do movimento. As más notícias, as boas notícias provocam no corpo manifestações diferentes: são os dínamo-ritmos. A paixão é, antes de tudo, dínamo-ritmo. É um luxo que um animal possa se deslocar e há animais que não se deslocam de modo algum. Como manifestações únicas eles têm a contração e o relaxamento: isso é dínamo-ritmo. Sim, o dínamo-ritmo é o que exprime mais intensamente a paixão. (DECROUX, 2003: 129)9 Neste sentido, o tempo, o ritmo e a dinâmica em que uma ação acontece a empurram em direção ao drama sério ou à comédia. Assim, o movimento de um único dedo, através da causalidade corporal, pode levar o corpo inteiro ao chão, mas o efeito (cômico ou sério) dependerá em grande parte do dínamoritmo em que for realizada a queda. Não é, portanto, apenas a imobilidade o procedimento técnico que mais aproxima a MCD do drama sério, mas o dínamoritmo aplicado à situação. A própria imobilidade pode ser um procedimento cômico, na medida em que seja criada uma incongruência entre a situação e o tempo em que se permanece imóvel. O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.

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U rdimento Ao refletir sobre o cômico, Decroux entende que a comicidade se encontra na mecanização com a qual uma ação é desempenhada: “O homem é cômico quando é mecânico. O que caracteriza a mecanicidade, é que ela não se adapta e o homem é cômico quando é inadaptado” (DECROUX, 2003: 193)10. Esta reflexão tem um forte ponto de aproximação com o pensamento de Henri Bergson, para quem o riso advém, justamente, do automatismo e da inadaptabilidade, já que, nas situações cômicas, se tem “a impressão de estar, simultaneamente, diante de uma pessoa e de um mecanismo” (MENDES, 2006: 90). Em O Riso - Ensaio sobre a Significação do Cômico, texto publicado pela primeira vez em 1900, Bergson ilustra a noção de automatismo cômico utilizando-se de dois exemplos: a queda na rua e a “pegadinha” do escritório.

10 "L’homme est comique quand il est mécanique. Ce qui caractérise la mécanique, c’est qu’elle ne s’adapte pas et l’homme est comique quand il est inadapté." (DECROUX, 2003: 193).

No primeiro caso, um homem que corre na rua tropeça em uma pedra que estava no meio da calçada e cai, sendo objeto de riso de passantes. Segundo Bergson (2005), o riso acontece não porque houve uma mudança brusca de atitude, mas porque esta mudança aconteceu involuntariamente. É provável que ninguém risse se o sujeito tivesse a intenção de sentar-se na calçada. E para evitar a queda, bastaria que o corpo se desviasse, se adaptasse à situação drummondiana de que no meio do caminho havia uma pedra, havia uma pedra no meio do caminho. No segundo caso, um brincalhão altera os objetos de alguém que se dedica a suas ocupações com uma “regularidade matemática” e o faz colocar sua pena em um pote de lama, sentar-se no vazio e, portanto, cair no chão, porque a posição da cadeira foi alterada, etc. Bastaria uma interrupção por parte da vítima da “pegadinha”, um momento de imobilidade, uma parada, para que as ações fossem reorientadas para o percurso desejado originalmente. Todavia, a imobilidade que corrigiria o desvio poderia se tornar o próprio procedimento cômico, caso a personagem se mantivesse em seu trajeto matemático, sem os necessários ajustes, mesmo após o tempo de reflexão. E ainda assim, tudo dependeria do dínamoritmo com o qual a parada fosse realizada e a ação retomada. Nos dois casos, de acordo com Bergson, é a obstinação corporal, o automatismo, que faz com que o sujeito mantenha uma linha reta na corrida ou continue trabalhando com objetos truncados. “As atitudes, gestos e movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que este corpo nos faz pensar em uma simples mecânica.” (BERGSON, 2005: 28)11 Mesmo considerando a importância do aspecto do automatismo na construção cômica, encontramos no repertório da MCD um exemplo que parece contradizer o pensamento de Bergson e a própria reflexão de Decroux. Dezembro 2008 - N° 11

"Les attitudes, gestes et mouvements du corps humain sont risibles dans l’exacte mesure où ce corps nous fait penser à une simple mécanique". (BERGSON, 1924 : 28) 11

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U rdimento Em L’usine (A fábrica), peça decrouxiana de 1946, homens estão trabalhando. Ouvem-se o apito e sons mecânicos. As ações humanas são desempenhadas com o máximo de automatismo. O efeito estético é sempre mais impressionante quanto mais precisamente forem desempenhadas as ações pelo grupo. O mímico não representa uma máquina. O mímico é a imagem do homem que trabalha na fábrica e cujas ações repetitivas em série o fazem fundir-se com a máquina, pela natureza do seu trabalho. O automatismo de A Fábrica revela uma espécie de crítica - reflexo da ideologia política de Etienne Decroux - às longas jornadas de trabalho massacrante dos operários nas fábricas das décadas de 30/40. Apesar disso, diferentemente do tratamento dado ao tema, por exemplo, por Chaplin em Tempos Modernos (1936), o resultado estético de A Fábrica não tem um efeito cômico. Falta-lhe ainda o traço de inadaptabilidade, observado aqui como um aspecto distinto da mecanicidade. O homem de A Fábrica, embora concentrado no automatismo de suas ações, é integralmente adaptado a elas e as desempenha com uma precisão matemática. No único momento lírico da peça, alusão ao intervalo entre as jornadas, o homem descansa e devaneia, ao contrário da personagem chapliniana que continua apertando parafusos nos botões da saia de uma funcionária da fábrica, sem conseguir despregar-se do automatismo imposto pelo trabalho. Na peça decrouxiana, ao fim do tempo de descanso, o trabalho é retomado com as ações em série. O desvio em Chaplin é a continuidade do automatismo quando ele não seria mais necessário. Em A Fábrica, não há desvios e, portanto, mesmo na presença do automatismo mais absoluto, não há comédia. Mecanicidade e inadaptabilidade aparecem juntas, no entanto, em outra peça de mímica corporal dramática, L’esprit malin (O espírito travesso), criada em 1946 por Maximilien Decroux e Eliane Guyon, sob a orientação do mestre Decroux. Na peça, um homem é assombrado por um espírito. Sentado em sua cadeira, vê, com surpresa, que seus braços (são os do “espírito travesso”) fazem movimentos involuntários complexos. Pára, como se se perguntasse como ou porquê sua mão está fazendo isso, mas continua o seu trajeto de ações. Um terceiro braço surge e as situações construídas são acompanhadas com um ar de espanto investigativo, um olhar absoluto sobre a situação. O homem acende um cigarro e vê surgirem outros três e, ainda assim, busca uma explicação. Na lógica da cena, o “Esprit Malin” se esconde e se revela como e quando deseja e o “assombrado”, apesar de um pouco intrigado, continua agindo como se nada estivesse acontecendo. O tema, tantas vezes abordado pelo cinema, bem poderia ser tratado em O espírito travesso com uma atmosfera sombria, como uma peça de terror. Mas, no caso da peça decrouxiana, o dínamo-ritmo que determina a alma O espírito travesso na mímica corporal dramática... George Mascarenhas.

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U rdimento interpretativa do movimento confere à situação um sentido de jogo. O fantasma não está ali para acertar pesadas contas cármicas passadas, nem para aterrorizar o homem. Ele volta para brincar. O espírito travesso constitui-se, assim, em uma peça exemplar de comicidade na mímica corporal dramática de Etienne Decroux, na medida em que investe na combinação do automatismo e da inadaptabilidade, calcada na elaboração das ações e do dínamo-ritmo, oferecendo uma personagem que mantém uma relação continuada com seu “cotidiano”, mesmo diante de uma situação inusitada. Como procedimento cômico, O espírito travesso joga com uma “lógica trapaceira e auto-suficiente” (MENDES, 2006: 90), assim como um Chaplin que, disfarçado de abajur, consegue esconder-se do policial. O espectador é levado para o lugar de uma outra realidade na qual tudo parece ser possível, sendo o jogo corporal dos atores o elemento determinante para deflagração do riso. Qual riso? O riso que lembra um jogo infantil, na lógica do cômico inocente ou do “cômico absoluto” de Baudelaire, aquele das crianças que é “como um desmaio de flor. É a alegria de receber, a alegria de respirar, a alegria de se abrir, a alegria de contemplar, de viver, de crescer. É uma alegria de planta.” (BAUDELAIRE, 2005: 22) No estilo decrouxiano, a comédia está muito mais vinculada ao tipo de riso que acontece diante de situações que contrariam os padrões lógicos e o bom-senso (MENDES, 2005). Ao contrário do que sugere Bergson, o riso na MCD não é aquele implicado pela noção de superioridade daquele que ri, nem de degradação do objeto, mas é aquele que se traduz pelo inusitado – lembrando mais uma vez Chaplin e Molière – de um espírito travesso.

Referências bibliográficas BAUDELAIRE, Charles. Da essência do riso – e de modo geral do cômico nas artes plásticas. Repertório Teatro & Dança. Salvador : UFBa/PPGAC, ano 8, n° 8, p. 18-28, 2005.1 BERGSON, Henri. Le rire - Essai sur la signification du comique. 23ª. edição, 1924. França : Ebooks libres et gratuits. Publicação eletrônica, 2005. Disponível em acessado em 09.11.2007 BENHAIM, Guy. Le style dans le mime corporel. In: PEZIN, Patrick (dir.). Étienne Decroux, mime corporel – textes, études et témoignages. Saint-Jean-deVédas: L’Entretemps éditions, 2003, p. 309-366. DECROUX, Etienne. The origin of corporeal mime. Mime Journal. Allendale (MI), USA: The Performing Arts Center, Grand Valley States College, nos. 7&8. p. 8-23, 1978, entrevista concedida a Thomas Leabhart. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento _____________. Les dits d’Étienne Decroux. In: PEZIN, Patrick (dir.). Étienne Decroux, mime corporel – textes, études et témoignages. Saint-Jean-de-Védas: L’Entretemps éditions, 2003. p.57-209. INNES, Christopher. Theatre after two world wars. In: BROWN, John Russel (org.). The Oxford Illustrated History of Theatre. Oxford (U.K): Oxford University Press, 1997. p 380-444. LUST, Annette. “The Origins and Development of the Art of Mime”. In: The Buffalo film seminars, 2001. Disponível em: . Acessado em 19.09.2008. MASCARENHAS, George. A produção de sentido na mímica corporal dramatica de Etienne Decroux e na pantomima moderna. Salvador: FSBA. Diálogos possíveis. Ano 6, n° 1, 2007. pgs. 69 a 79 MENDES, Cleise. O cômico: crítica e vertigem. Repertório Teatro & Dança, Salvador: Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas, ano 8, n° 8 p. 6- 15, 2005. _____________. Como não falar a sério: a dança da linguagem na construção da comicidade. Revista da Bahia, Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, p. 89-96, 2006.1 WILES, David. Theatre in Roman and Christian Europe. In: BROWN, John Russel (org.). The Oxford Illustrated History of Theatre. Oxford (U.K): Oxford University Press, 1997. p. 49-92

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TRAGÉDIA GREGA E CENOGRAFIA: A ENCENAÇÃO DOS TEXTOS TRÁGICOS NA CENA BRASILEIRA PÓS-MODERNA Gilson Motta1

Resumo

Abstract

O texto aborda o movimento de revivificação da tragédia grega na cena brasileira, fazendo uma análise de diversas encenações contemporâneas. A análise privilegia o tema do espaço e da cenografia, de modo a refletir, de um lado, sobre a forma como ambos são determinantes para a criação do sentido do trágico e, de outro, sobre as características da cenografia brasileira no contexto do pós-modernismo.

The article approaches the movement of revival of Greek tragedy in Brazilian theatre and does an analysis of several contemporary theatrical productions. The analysis highlights the theme of space and stage design, to reflect on the one hand, on how both are essential to creating the sense of the tragic, and another on the characteristics of the Brazilian stage design in the post? modernism.

Palavras-chave: tragédia cenografia, encenação.

Keywords: greek tragedy, stage design, staging.

grega,

Gilson Motta é Doutor em Filosofia, Cenógrafo, Diretor teatral e professor de Cenografia e História do Teatro na Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente, está concluindo pesquisa de Pós-Doutorado com o tema espaço e tragédia, onde analisa a cenografia das encenações brasileiras contemporâneas de tragédias gregas. 1

Apresentação: Cenografia e tragédia grega O presente estudo vem apresentar os resultados parciais de minha pesquisa de Pós-Doutorado, realizada na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) com orientação do Prof. Dr. José Dias. O objetivo da pesquisa é discutir o modo como o espaço e a cenografia contribuem para a construção da tragédia e do trágico no momento de revivificação da tragédia grega. Este momento, ocorrido na cena mundial no final da década de 1960 e consolidado nos anos 80, constitui-se numa das principais tendências do teatro pós-moderno. Em Why Greek Tragedy in the Late Twentieth Century?, artigo que serve de Introdução à obra Dionysus Since 69, Edith Hall afirma que a encenação contemporânea retoma o texto grego a fim de questionar aspectos sociais, Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento políticos e estéticos da nossa sociedade. Partindo desta premissa, em minhas pesquisas venho buscando analisar esse processo de revivificação da tragédia grega na cena brasileira. Para os fins da pesquisa, estabeleci um recorte espacial que abarca apenas a produção apresentada nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, enquanto principais pólos de cultura teatral do Brasil, e um recorte temporal feito a partir do ano de 1999. Considerando a importância do tema do espaço na arte contemporânea, a pesquisa enfoca, sobretudo, a Cenografia dos espetáculos em sua relação com o conceito de trágico e em seu diálogo com as teorias poéticas do Pós-Modernismo.

A encenação da tragédia e a cenografia pós-moderna O surgimento da moderna encenação teatral insere a tragédia grega nos debates sobre o modernismo no teatro, levantando a questão da possibilidade de assimilação do texto antigo pelo espectador moderno. Embora a idéia de encenar os textos antigos pareça contradizer a disposição da arte moderna, a reinvenção da tragédia foi decisiva para a afirmação da arte da encenação e para a renovação do teatro, pois ao se lidar com o teatro em sua origem, a própria função do encenador se radicaliza, a saber, a função de interpretar a obra e criar um código teatral que a torne legível para o espectador atual. Talvez, devido a esta posição paradoxal e à polissemia do texto antigo, a tragédia tenha se afirmado como um teatro experimental, como observa Helene Foley em Modern Performance and Adaptation of Greek Tragedy. Essa atitude de experimentalismo estará presente em diversos espetáculos brasileiros, como veremos mais adiante. No que diz respeito à linguagem da encenação, tal experimentalismo envolve duas atitudes dominantes, como nota Patrícia Legangneux, em Les tragédies grecques sur la scène moderne. Une utopie théâtrale: a acentuação ou a redução da distância cultural e histórica entre o texto antigo e a sociedade atual. Importa-nos aqui observar que estas duas atitudes também se fazem presentes na abordagem espacial. A cena moderna será marcada pela consciência radical da diferença entre o seu espaço de representação e o espaço grego. Esta diferença mostra-se no caráter não-representativo do espaço grego que, como puro espaço de jogo, não contém referências a um universo trágico. A tragicidade da cena é dada pela existência de zonas de tensões e de conflitos entre as diferentes áreas do espaço. A recriação destas zonas na cena moderna está condicionada à evolução da cenografia. Se, por um lado, a cenografia arquitetônica não-representativa é a principal inovação da cena moderna, por outro, o questionamento do edifício teatral tradicional forma a outra face do modernismo, conduzindo à criação de novas formas de espaços cênicos. Desta forma, os encenadores atuais dispõem de uma multiplicidade de espaços para a tragédia: o palco tradicional, os novos espaços cênicos e os Tragédia grega e cenografica: a encenação dos textos trágicos... Gilson Motta.

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U rdimento espaços alternativos. Assim, numa vertente, a encenação da tragédia grega envolverá uma busca de novos lugares teatrais. Numa outra, com suas novas técnicas, tecnologias e materiais, a moderna estética cenográfica buscará criar um espaço trágico na caixa cênica tradicional. Em termos de linguagem cênica, a cenografia tanto pode indicar ou representar o mundo grego, quanto pode romper este referencial, criando um mundo cênico dotado de leis próprias. A cena pós-moderna irá fundir estas tendências. O conceito de Pós-modernismo relaciona-se às manifestações culturais que surgiram no interior de um determinado contexto histórico, apontando para uma mudança profunda nas formas de produção e de recepção dos objetos culturais e artísticos. No que tange à arte teatral, o anúncio de uma ruptura com os ideais modernistas se configura com maior radicalismo a partir do final dos anos 60. Esta ruptura implica uma maior abertura do teatro ocidental para outras formas culturais de compreensão do fenômeno teatral. Esta consciência implica necessariamente a absorção e apropriação de novas matrizes imagéticas e estilísticas. Assim, é neste processo de re-elaboração do próprio conceito de teatralidade que se forma também um teatro de caráter polimorfo, como é o teatro do século XX. Neste movimento, um conceito cardinal como o de representação é reformulado e superado. A crise deste conceito está na raiz do teatro e da cenografia pós-modernos. Assim, pensar a encenação do texto grego na atualidade é pensar na relação existente entre o passado, a tradição, as origens do teatro ocidental e todas as formas de ruptura estabelecidas pela própria cultura pós-moderna. Este pensar implica um mover-se num terreno de contradições e dicotomias: entre o passado e a sua negação, o primitivo e o novo, o texto-palavra e as novas tecnologias da imagem, a alta cultura e a cultura popular, a representação e a ruptura com as formas de representação, a arte e a antiarte, entre outros. Sendo o texto grego aquele mesmo que vem estabelecer uma referência de origem da cultura teatral ocidental, ele termina por ser também o texto que mais propicia uma acentuação destas contradições. Desta forma, pergunta-se aqui como esta poética tradicional da tragédia e os temas que lhe são peculiares se coadunam com os ideais e as práticas artísticas e culturais da pós-modernidade? Como isso se revela na Cenografia? Segundo autores como Teixeira Coelho e Steven Connor, as teorias de Antonin Artaud constituem a base para a afirmação de uma estética pós-moderna: elas anunciam uma valorização da obra-como-processo, em detrimento do fechamento e acabamento da obra; elas valorizam a idéia da presentação, em detrimento da representação; elas afirmam a multiplicidade de eventos visuais e auditivos, isto é, a proliferação e a superposição de signos em contradição; elas dissolvem a idéia da obra de arte unificada; elas rompem com Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento o princípio da identidade, tornando relativo o sentido da obra, o que implica uma valorização da singularidade dos receptores e o papel decisivo que estes exercem na construção do sentido da obra. Ora, segundo Arnold Aronson, a cenografia também parece repercutir tais teorias. Segundo o autor, durante as décadas de 70 e 80, desenvolveu-se um estilo cenográfico fundamentalmente diferente na abordagem e nos valores estéticos, estilo este que questiona as formas herdadas durante o período modernista. O princípio conceitual desta cenografia encontra-se na idéia da ruptura com a “unidade orgânica” da cena. “Uma espécie de visão pan-histórica e oniestilística passou a dominar a cenografia; o mundo é visto como uma multiplicidade de elementos e imagens díspares, muitas vezes incongruentes e conflitantes, e a cenografia reflete esta perspectiva” (ARONSON, 1992: 9). A partir deste princípio, o autor identifica alguns traços marcantes da cenografia pós-moderna: a) a ausência de um foco narrativo único: presença da descontinuidade, da ruptura; b) a ênfase na relação entre o espectador e o objeto; c) a ausência consciente de unidade entre os elementos visuais da produção, rompendo com a sinergia estética moderna; d) a sobreposição e mistura de estilos; d) a afirmação da presença do passado, com colagens de imitações estilísticas; e) a retomada da frontalidade da cena, a fim de assegurar a descontinuidade entre imagem e observador, provocando uma interrupção da percepção. A partir destes princípios relativos à cenografia, buscarei mostrar como as encenações de tragédias gregas contemporâneas dialogam com as teorias pós-modernas.

Algumas encenações contemporâneas A partir das décadas de 1980 e 1990, observa-se um crescente movimento de encenação dos textos antigos, Nestes espetáculos, nota-se uma diversidade de propostas espaciais, seja na caixa cênica, seja fora do espaço tradicional, em espaços alternativos, seja ainda na reconstrução do espaço teatral. No interior destas experiências espaciais, a cenografia aponta para uma série de questões relativas ao fazer artístico da atualidade: a participação do espectador, a identidade cultural, a atualização dos temas gregos em função das condições culturais da sociedade brasileira, as formas de organização do espaço, a reescritura e adaptação de temas trágicos, as materialidades, entre outros. No que diz respeito aos elementos cenográficos, em termos de procedimentos poéticos, nota-se, em primeiro lugar, a presença dos conceitos de citação e de comentário. Exemplar neste aspecto são as encenações de Antunes Filho. Em Fragmentos troianos (1999), por exemplo, um dos elementos fundamentais da cenografia é o telão pintado. Este telão não somente constitui uma citação à série Lilith, do pintor alemão Anselm Kiefer, como Tragédia grega e cenografica: a encenação dos textos trágicos... Gilson Motta.

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U rdimento também aparece como um comentário sobre a própria tradição cenográfica, na medida em que o painel pintado aparece também como um signo de uma idéia de teatro já superado, como um signo do passado. Ao mesmo tempo, a presença da pintura lembra também o gesto moderno de re-inserção da pintura na cena. A montagem de Antunes Filho traz de volta a pintura pela citação, assim, não é a pintura que se reinsere no espaço do teatro, mas a sua reprodução. A imagem passa assim a jogar com seu próprio sentido, ela é citação, pastiche, ela recusa a si mesma, num procedimento típico da poética pós-moderna. Ao mesmo tempo, esta imagem pintada contém diversos temas relacionados à tragédia: o conflito entre deuses e homens, a compreensão da tragédia enquanto fenômeno político, a ambigüidade da imagem, apontando para o fator trans-histórico do trágico. Além disso, toda a plasticidade do espetáculo é fundada na justaposição de imagens, o que implica a fusão de diversas referências culturais, enquanto tendência característica das poéticas pós-modernas.

Fragmentos troianos. Foto realizada a partir do vídeo do espetáculo.

Em Medéia (2001), Antunes Filho recorre aos mesmos processos de citação e de justaposição, sendo que agora o objeto de citação é o próprio espaço cênico, pois a cenografia do espetáculo faz referência a três matrizes espaciais: o Teatro Nô japonês, presente nos elementos cênicos e no próprio estilo minimalista; o Teatro Grego, que se faz presente a partir da dinâmica da porta central e do eixo vertical da cena; e, por fim, a Contemporaneidade, por intermédio, sobretudo, de alguns objetos cênicos, como serras elétricas, plásticos, trajes com referências à atualidade, entre outros. O espaço Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento trágico é criado na tensão entre essas três referências espaciais. Quer dizer, esta justaposição pode evocar uma incompatibilidade de ordem trágica, incompatibilidade esta que se constrói no jogo de oposições e de antagonismos, de identidade e distância. Ao confrontar estes espaços Medéia nos lança no seio de um conflito radical, mais precisamente, Antunes Filho aponta para uma cisão radical instauradora da historicidade do homem ocidental, cujas marcas principais são dadas pelo conflito entre natureza e civilização, pela separação entre o eu e a psique grupal, pela superação da sociedade matriarcal pela patriarcal, pela abordagem racional do mundo em confronto com a abordagem mítica, pela atitude agressora e desmedida em relação ao meio-ambiente. Deste modo, a cisão trágica, original é recuperada pela justaposição espacial presente na cenografia do espetáculo. Neste sentido, é nitidamente perceptível a continuidade das preocupações éticas de Antunes Filho, presentes em Fragmentos troianos: a crítica do modo de ação destrutiva do homem, a partir da razão instrumental, a qual leva a uma destruição da natureza.

Medéia. Foto realizada a partir do video do espetáculo.

Já em Antígona (2004), a cenografia parece dialogar com outros dois procedimentos poéticos: a auto-referência, a qual se desdobra na idéia da metalinguagem, do teatro dentro do teatro, e a justaposição de elementos incompatíveis, como é o caso da união do espaço interior (um museu ou uma galeria de arte) com o exterior (um cemitério vertical), passado e presente, vida e morte, num procedimento que instaura a ambigüidade espacial. A cenografia de J. C. Serroni parece dialogar com as teorias de Michel Foucault Tragédia grega e cenografica: a encenação dos textos trágicos... Gilson Motta.

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U rdimento acerca do espaço pós-moderno, mais precisamente, das heterotopias, visto que a cenografia parece reunir três heterotopias: o cemitério, o museu e o teatro. Neste jogo de ambigüidades dá-se uma acentuação na relação perceptiva entre o espectador e o objeto, enquanto elemento característico da cenografia pós-moderna.

Antígona. Foto realizada a partir do vídeo do espetáculo.

A citação de um espaço cênico também está presente em Medéia (2003), do Teatro do Pequeno Gesto, com direção de Antonio Guedes e cenografia de Doris Rollemberg, onde os criadores trabalharam com a idéia de uma referência ao espaço grego. Mas, além da citação, este espetáculo parece conter um comentário crítico e irônico a respeito da própria operação de encenar o texto antigo. As formas circulares e a possibilidade de rotação do dispositivo cenográfico tendem a reforçar o elemento temporal e, conseqüentemente, o elemento épico da encenação. Desta forma, a cenografia propicia a intensificação do olhar histórico sobre a tragédia, quer dizer, um olhar crítico acerca da própria idéia de teatralidade, tal como esta aparece nos textos fundadores do teatro ocidental. Outro elemento relevante na poética teatral pós-moderna é o próprio espaço. De um lado, o lugar teatral tenderá a ser cada vez mais diversificado, de outro, todo o ambiente em torno ao espetáculo será significativo para a leitura da obra e, de outro, o próprio edifício teatral, o suporte da obra, passará a ser elemento fundamental na construção dos signos cênicos. Dezembro 2008 - N° 11

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Medéia, Teatro do Pequeno Gesto. Foto de Luiz Henrique Sá e Jorge Etecheber.

Esta diversidade aparece, por exemplo, na profusão de espaços alternativos onde são realizadas as encenações de tragédias gregas. As fenícias, direção de Caco Coelho, foi realizada nos jardins do Museu da República, antigo Palácio do Catete, sede do Poder Executivo até 1960, no Rio de Janeiro. Pelo fato de esta montagem inserir elementos da linguagem circense, podemos especular sobre a possibilidade de uma contraposição simbólica e irônica entre o espaço destinado à elite, ao poder e ao exercício da razão política e o espaço destinado à fantasia, à irracionalidade, à poesia e às camadas populares. O pós-modernismo aproxima estes espaços. Um outro espetáculo de interesse no sentido em que joga com a diferença da recepção em função do espaço, é Electra, direção de Antonio Pedro. Este espetáculo foi criado e apresentado no Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, mas foi também exibido no Teatro Municipal desta mesma cidade. Assim, As fenícias e Electra apontam não somente para a integração de elementos da cultura popular ou de massa à cultura erudita, como revelam também que este nível de integração e de confronto se opera no nível espacial. No que diz respeito à valorização do edifício teatral enquanto signo cênico, dignos de nota são os espetáculos As troianas, direção de Luís Furnaleto e o espetáculo Medéia, com direção de Bia Lessa, pois em ambos, a poética cênica é construída a partir de um edifício teatral em escombros ou ruínas. As troianas foi apresentado pelos alunos da Casa de Artes de Laranjeiras nos escombros do Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, em 1998, um ano após o incêndio do teatro. Este contexto de destruição de uma importante casa de espetáculo parece ter servido de metáfora para se falar sobre a destruição, a guerra e, possivelmente, sobre a morte e o renascimento da tragédia grega. Tragédia grega e cenografica: a encenação dos textos trágicos... Gilson Motta.

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Electra na Mangueira. Foto realizada a partir do vídeo do espetáculo.

Apresentado no ano de 2004 no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, Medéia, de Bia Lessa refaz o mesmo percurso, aproveitando-se das ruínas do teatro para construir a encenação. A diretora e o cenógrafo Gringo Cardia se apropriaram de um espaço tradicional da cidade do Rio de Janeiro que se encontrava em reforma, e criaram um espetáculo de grande impacto visual. No espetáculo, a separação entre o público e a cena se desfaz, a ação cênica faz explodir o espaço, estendendo os limites da cena, a própria arquitetura do teatro é aproveitada como signo cênico. A montagem de Bia Lessa nos remete a elementos essenciais da estética contemporânea, como a busca da integração entre o espaço da obra e o espaço do público, a apropriação do espaço histórico como forma de construção de um discurso poético, a presença da metalinguagem a partir da própria utilização da arquitetura teatral como tema cenográfico. Deste modo, a encenação trabalha com diversas zonas de limites: entre edifício teatral e cenografia, construção e destruição, passado e atualidade, permanência e desaparecimento. Uma outra tendência que se mostra é a da busca da atualização por intermédio da presença de recursos tecnológicos. Um recurso como o vídeo, por exemplo, possibilita um discurso crítico acerca da mídia, assim como um discurso crítico acerca da política internacional. É o que se dá no espetáculo Antígona, do grupo Os Satyros, de São Paulo, espetáculo encenado em 2002. Em Antígona, o personagem Creonte aparece diversas vezes sob a forma de projeções de vídeo, além disso, sua voz também é registrada em áudio. O efeito resulta bastante eficaz, propiciando correlações entre o universo do texto e uma sociedade altamente policiada. Além disso, de modo paradoxal, o próprio poder – ou a imagem do poder – se torna mais familiar, na medida em que se revela distante, como uma transmissão de TV. Daí a associação entre o universo da peça e o da era George Bush. Dezembro 2008 - N° 11

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Medéia. Foto realizada a partir do vídeo do espetáculo.

O mesmo jogo com os meios de comunicação está presente no espetáculo Édipo Rei, direção de Diego Molina Mendes, realizado em 2007. Neste espetáculo todas as cenas se desenvolvem a partir de uma referência irônica a um programa de rádio ou televisão. É assim que a abertura do espetáculo se faz ao som da Voz do Brasil, com o personagem Édipo usando da palavra. É assim também que muitas cenas são tratadas como programas jornalísticos. A cenografia é um elemento fundamental para esta construção na medida em que nela são utilizados módulos que se deslocam e se recompõem, propiciando a criação de uma multiplicidade de espaços. Desta forma, o espetáculo possui um tratamento marcado pela ironia e pela distância, a qual é ressaltada pela referência à mídia.

Édipo Rei. Foto de Renato Marques. Tragédia grega e cenografica: a encenação dos textos trágicos... Gilson Motta.

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Conclusão A partir de uma forma teatral específica, no caso, a tragédia grega, é possível se formar um panorama dos recursos técnicos e estéticos utilizados na cenografia brasileira no contexto do pós-modernismo. Neste sentido, a pesquisa aponta para a presença de elementos como a citação, a paródia, a ironia, a auto-referência, a justaposição, a metalinguagem, a mistura de estilos, a interação com o espectador, a abertura dos signos, a busca de outras formas de organização do espaço cênico, a utilização de recursos tecnológicos de criação da imagem, como o vídeo, a fotografia, projeções, entre outros.

Referências bibliográficas ARONSON, Arnold. Cenografia pós-moderna. In: Cadernos de Teatro, nº 130. Rio de Janeiro: O Tablado, julho a setembro de 1992. COELHO, Teixeira. Um teatro, uma dança pós-modernos. In: Moderno Pós Moderno: modos e versões. São Paulo: Iluminuras, 2005. CONNOR, Steven. Performance pós-moderna. In: Cultura pós-moderna. Introdução às Teorias do Contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1996. FOLEN, Helen. Modern Performance and Adaptation of Greek Tragedy. Washington, DC, 1998. American Philological Association. Presidential Address. Disponível em: . FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. HALL, Edith. Why Greek Tragedy in the Late Twentieth Century?. In: Dionysus Since 69: Greek Tragedy at the Dawn of the Third Millennium, Oxford: Oxford University Press, 2004. LEGANGNEUX, Patrícia. Les tragédies grecques sur la scène moderne. Une utopie théâtrale. Louvain: Presses Universitaires Septentrion, 2004.

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A INVESTIGAÇÃO NA DANÇA: UMA POSSÍVEL ESTRATÉGIA DE APRENDIZADO Gladis Tridapalli1

Resumo

Abstract

Esse artigo apresenta a ideia de investigação/criação como uma possível estratégia de operação do corpo na produção de dança. A dança, entendida como processo de semiose, pode ser vista como ocorrências que resultam de negociações entre o corpo e o ambiente. A ideia de investigação que vem sendo delineada é resultado da aproximação com o entendimento de abdução e de investigação desenvolvido por Charles Peirce.

This article presents the idea of research/creation as a possible strategy of body's operation in the production of dance. Dance is understood as a process of semiosis, and it can be seen as occurrences resulting from negotiations between the body and the environment. The idea of research that has been outlined here is the result of an approximation of Charles Peirce's studies about abduction and investigation.

Palavras-chave: investigação, aprendizado, dança.

Keywords: investigation, learning, dance.

A investigação: o corpo que formula hipóteses “Posto que o mundo não está dado para nós inteiramente, temos que formular hipóteses em alguma medida”. Mário Bunge O ato de investigar como ação de formular hipóteses é inerente à experiência humana, porque o mundo não nos é “dado” como “algo” pronto e completo. As ocorrências, emergências de uma maneira geral, são observadas, lidas e elaboradas a partir das relações, das experiências. Como a ação de investigar é processual, uma vez que o corpo é fluxo no espaço-tempo de suas relações sempre circunstanciadas, surpreende-se inevitavelmente com a diferença, com o desconhecido ou o novo, o que provoca a inquietação e a necessidade de respostas. Dezembro 2008 - N° 11

Gladis Tridapalli é professora do Curso de Dança da FAP – Faculdade de Artes do Paraná em Curitiba, orientadora de pesquisa da Casa Hoffmann – CEM. Especialista em Dança Cênica pela UDESC - SC e mestre em Dança pelo PPGD da Universidade Federal da Bahia - UFBA, onde desenvolveu a pesquisa intitulada O processo educacional em dança é criação compartilhada, sob orientação da professora Dr. Adriana Bittencourt. E-mail: gpalli@uol. com.br. 1

A inverstigação na dança: uma possivel estratégia... Gladis Tridapalli.

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SANTAELLA, Lúcia. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e doutorado. São Paulo: Hacker Editores, 2001: 112. Lúcia Santaella é doutora em Teoria Literária pela PUC/SP, onde é professora titular no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica, e livre docência em Ciências da comunicação pela USP. Autora de muitos livros que se referem ao entendimento da semiótica Peirciana. 2

Toda investigação de qualquer espécie que seja, nasce da observação de algum fenômeno surpreendente, de alguma experiência que frustra uma expectativa ou rompe com hábito de expectativa (CP 6.469). Quando um hábito de pensamento ou crença é rompido, o objetivo é se chegar a um outro hábito ou crença que se prove estável, quer dizer que evite a surpresa e que estabeleça um novo hábito. Essa atividade que passa da dúvida à crença, de resolução de uma dúvida genuína e conseqüente estabelecimento de um hábito estável é o que Peirce chamou de investigação.2 A investigação envolve a busca pelo novo, pela compreensão do que não se tem entendimento a partir de e em relação com o que já compreendemos. Por isso, a investigação é trânsito, processo, passagem de um estado a outro, no qual a modificação e a transformação tornamse inevitáveis. A experiência investigativa, quando lida com o trânsito entre dúvida e o estabelecimento de novos hábitos, constitui-se de um processo transitório entre diferentes “realidades” intercomplementares: o aleatório e a regularidade, o instável e o estável, entre o código-estabilidade, sistematizado e a probabilidade-incerteza. O novo, o desconhecido, o que nos toma de surpresa, o que em nós e no mundo é percebido como estranheza, dúvida, problema, parecem ser os ingredientes dos quais a investigação se alimenta e a partir dos quais se inicia. A experiência investigativa como ato criativo não nasce de certezas e sim da dúvida. No entanto, não se permanece na dúvida por muito tempo, e se avança pelo desejo de conhecer ou pela impossibilidade de permanecer em dúvida. E se nutre da ação de adivinhar, de formular hipóteses para compreender as coisas, os fenômenos do mundo. A investigação, então, é da natureza do homem, já que incide na compreensão de suas relações e do ambiente no qual está inserido. Investigar é condição de sobrevivência e tem como pressuposto a dúvida. O corpo, então, duvida e realiza seus atos interrogativos no e pelo movimento.

A abdução será entendida nesse estudo através da semiótica de Charles PEIRCE e dos estudos de Lúcia SANTAELLA. 3

O corpo duvida, cria modos de responder as surpresas, aos inesperados para permanecer em relação: o corpo pela necessidade de continuar estabelecendo nexos de sentidos com o seu ambiente constantemente interroga, levanta hipóteses, muda, resolve, se transforma. O corpo, no ato de investigar em dança, é um corpo que experiência outras necessidades, outras possibilidades de movimentos como um exercício de especulação, resultado do seu relacionamento com o novo, o diferente, surpreendente, o desconhecido. E é esse exercício do corpo que pode se aproximar da idéia de abdução3. A investigação na dança: uma possível estratégia... Gladis Tridapalli.

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U rdimento “A abdução é o processo de formação de uma hipótese explanatória. É a única operação lógica que apresenta uma idéia nova, pois a indução nada faz além de determinar um valor, e a dedução meramente desenvolve as conseqüências necessárias de uma hipótese pura”4. Para Charles Peirce5, a abdução é o único tipo de raciocínio capaz de introduzir idéias novas e está relacionado à formulação de perguntas diante dos fatos do mundo. O novo só pode ser introduzido pelo raciocínio da abdução, pois é a abdução, no seu exercício especulativo de levantar hipóteses, que é capaz de lidar com a dúvida e gerar a descoberta. Diante da surpresa, criam-se hipóteses, inventam-se sugestões. Eis o possível exercício especulativo e “adivinhatório” do corpo: uma experiência em que o corpo testa suas hipóteses na forma de movimentos, negociando suas informações em permanentes relações. O exercício de levantar hipóteses no e pelo movimento constrói um tipo específico de pensamento do corpo. “No corpo, a dança também começa por abdução. Dessa ignição inicial brotam as hipóteses motoras que o corpo escolherá percorrer e que resultarão na dança-pensamento”6. Ao investigar, o corpo tece continuamente um tipo de procedimento que implica os modos como o corpo se organiza, ou seja, como ele se torna capaz de levantar questões, mover-se em condição de “adivinhação”, de possibilidades, problematizando, testando hipóteses e elaborando soluções provisórias como explicações/movimentos.

PEIRCE, Charles. Semiótica. Tradução José Texeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2005: 220. 4

Charles Sanders PEIRCE (1839-1914) é cientista, matemático, historiador, filósofo e lógico norte-americano, considerado o fundador da moderna Semiótica. Uma das marcas do pensamento peirceano é a ampliação da noção de signo e, conseqüentemente, da noção de linguagem. Peirce foi o enunciador da tese anticartesiana de que todo pensamento se dá em signos, na continuidade dos signos. 5

KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte Fid Editorial, 2005: 52. Helena Kattz é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/ SP (1994). É assistente doutor da PUC/ SP, onde coordena o Centro de Estudos em Dança-CED, grupo de estudos certificado pelo CNPq. É Professora Colaboradora no Programa em Pós-Graduação em Dança da UFBA. É também crítica de dança.

6

A ação do corpo em condição de questionamento: perceber é conhecer No exercício da experiência investigativa em dança, a elaboração de hipóteses requer um corpo em condição de questionamento. A condição de questionamento implica a abertura de um corpo para experiência reflexiva do movimento. O corpo, em estado de investigação, é um corpo capaz de questionar e questionar-se em ação – de refletir sua própria ação enquanto a ação acontece. O movimento produzido pelo corpo desenvolve a capacidade de pensar sobre o próprio movimento “em movimento”. O questionar de um corpo está interconectado na sua capacidade de perceber e de elaborar informação enquanto percebe; de um corpo que percebe agindo e age percebendo, que observa e modifica, é observado e é modificado. O corpo que possivelmente formula movimentos como hipóteses é um corpo que se dispõe, que se coloca em prontidão para o exercício de moverse pela e com a dúvida, sugerindo outras e novas possibilidades de movimentos como perguntas e também como possíveis resoluções. A condição de questionamento de um corpo é resultado da experiência perceptiva – de um estado de observação. E “perceber é estar diante de algo, no ato de estar enquanto acontece”7. O questionar de um corpo está interconectado Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento SANTAELLA, Lúcia. A percepção. Uma teoria Semiótica. São Paulo: Experimento, 1998: 22. 7

Ibid: 16.

8

Sujeito encarnado é um conceito desenvolvido por Denise Najmnovich no livro O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano (2001). Najmnovich é epistemóloga, professora doutora da universidade CAECE, Argentina. A proposta sugerida por NAJMNOVIC se fundamenta na idéia de sujeito que, "encarnado", participa de uma dinâmica criativa de si mesmo e do mundo com o qual ele está em permanente intercâmbio, que é construída, a partir da discussão comparativa entre a noção de sujeito, corpo e espaço, construídos na época moderna: o mundo chamado "objetivo" é um mundo muito afastado da experiência humana, inventado por um sujeito. O corpo da modernidade é um corpo físico mensurável e estereotipado dentro de um eixo de coordenadas, à imagem e semelhança do espaço que se torna mensurável. 9

na sua capacidade de perceber e de elaborar informação enquanto percebe; não se trata de um corpo observador separado do ambiente, que olha de fora para dentro, mas sim de um corpo que percebe agindo e age percebendo, que observa e modifica, é observado e é modificado. “Para Peirce, não há, nem pode haver separação entre percepção e conhecimento. Segundo ele, todo o pensamento lógico, toda cognição, entra na porta da percepção e sai pela ação deliberada. Além disso, toda cognição e, junto com ela, a percepção são inseparáveis das linguagens através das quais o homem pensa, sente, age, comunica”8. Perceber é um estado cognitivo que resulta da relação de co-dependência entre o corpo e o mundo. A percepção implica compreensão e elaboração de informações no diálogo entre dentro - fora, e isso ocorre durante o momento em que se percebe. A condição de investigação do corpo é uma experiência perceptiva em que o corpo está imerso no mundo, simultaneamente produzindo e sendo produto da experiência. É um corpo, portanto, que se torna sujeito. Um sujeito que, diferente de possuir um corpo que serve de “instrumento” para sua investigação, é sujeito em investigação, um sujeito encarnado9 de experiência. O “corpo vivencial” não alude a substância alguma, não tem um referente fixo fora das nossas experiências como sujeitos encarnados. Nosso “corpo vivencial” é antes de tudo um limite fundamental e trama constitutiva de um território autônomo e, por sua vez, ligado não extrinsecamente ao entorno, com o qual o sujeito vive em permanente intercâmbio. Dessa perspectiva, um sujeito encarnado é uma linguagem específica de transformações10.

Dança que move problemas: o jogo tenso entre restrições e não restrições O exercício de formular hipóteses, sugestivo, especulativo, em sua qualidade de experiência perceptiva e cognitiva, aponta para um corpo que é capaz de levantar e discutir problemas que resultam dessa percepção e experiência: das relações entre corpo e ambiente, experimentadas como um tenso jogo entre restrições e não restrições. Um dos possíveis modos como o exercício de problematizar pode aparecer no corpo diz respeito ao que nele já opera com certa regularidade – os seus padrões de movimentos, os seus lugares comuns e de certo modo habituais de operação em dança e as suas possibilidades/liberdade de elaborar outros modos de agir. O jogo da compreensão de restrições e não-restrições constantemente se faz presente. Onde está a liberdade de um corpo que carrega a história de todos os corpos, com todas as restrições e hábitos da história de quatro e meio bilhões de anos? As restrições, além de serem selecionadas por A investigação na dança: uma possível estratégia... Gladis Tridapalli.

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U rdimento trajetórias biológicas evolutivas, podem ser identificadas também nas trajetórias culturais. Basta atentarmos para os processos co-evolutivos para lembrarmos que as trocas entre um organismo e seu meio não estancam para percebermos o tanto de cultura que existe na natureza e vice-versa. Então, de que liberdade estamos falando? A liberdade da qual estamos falando é a de combinações entre restrições e não restrições11. A problematização, nesse caso, está atrelada a um exercício contínuo e conflituoso do corpo em lidar com as determinações e restrições que envolvem estruturas anatômicas, fisiológicas e gramaticais, de movimentos pré-estabelecidas, automatismos e, também, de condições determinadas pelo ambiente. “Existe, como vimos, uma certa dose de determinismo impresso em todos os corpos provindo de sua história evolutiva. Porém, é um determinismo que não fecha a possibilidade do diálogo com o nãodeterminado pela evolução, está presente em todos os corpos e tem aptidão de dialogar com a produção do novo”12. É o exercício de problematização do corpo, irrigado pelo constante levantamento de hipóteses, que permite ao corpo transitar entre regularidades e interrupções da regularidade, entre hábitos e mudanças de hábitos. O exercício de levantar hipóteses, selecionando problemas, permite o desestabilizar dos códigos de movimento existentes no corpo, mas é ele quem fornece a atualização e a produção de outros e possíveis arranjos de movimentos, como novas conexões de informações. Dessa forma, a investigação que se apresenta é trânsito, processo, no qual a modificação e a produção de outras conexões entre informações tornam-se inevitáveis. Problematizar promove a atualização de hábitos no corpo, não no sentido de renegá-los, mas sim de discutir e experimentar de outra maneira o modo como esses hábitos, gramáticas pré-elaboradas de movimentos, vocabulário pré-definidos, automatismos corporais, são comumente operados no corpo que aprende dança. A problematização pode se instaurar a partir das questões levantadas, como um re-olhar em ação para a lógica de raciocínio situada nesses hábitos. “A dança se atualiza em corpos, gerando complexidades”13. Quando materializado no corpo em movimento, o problematizar emerge como ação de selecionar questões que se tornam “problemas” justamente porque o corpo precisa resolvê-los; busca outros modos de agir para solucionar, atualizar informações e produzir outras trocas com o ambiente. “A percepção e a produção de ações-movimentos do corpo que dança não prescindem das informações que estão no mundo e num compromisso crítico-reflexivo, aproximam a dança daquilo que ela enuncia”14. O corpo em condição interrogativa e reflexiva movese problematizando o seu modo de estar no mundo. Dezembro 2008 - N° 11

NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado – questões para pesquisa no /do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001: 23. 10

NORA, Sigrid. Húmus II. Caxias do Sul: Lorigraf, 2007: 188. 11

Ibid.: 187.

12

BITTENCOURT, Adriana. A Natureza da Permanência: processos comunicativos complexos e a dança. Tese de doutoramento. São Paulo, 2007. PUC-SP, p. 45. Adriana Bittencourt é Professora Permanente do Programa de PósGraduação em Dança da Universidade Federal da Bahia e professora do Curso de Graduação em dança na mesma Instituição de Ensino Superior. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC/ SP (2007) e mestrado nesse mesmo programa e instituição (2001). 13

SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo. Dança e performatividade. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008, p. 12. Jussara Sobreira Setenta é Professora Permanente do Programa de PósGraduação em Dança da Universidade Federal da Bahia e professora do 14

A inverstigação na dança: uma possivel estratégia... Gladis Tridapalli.

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U rdimento (cont.) Curso de Graduação em dança na mesma Instituição de Ensino Superior. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC/ SP (2006) e mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2002). 14

BUNGE, Mário. La investigation Científica: su estratégia y su filosofia. Barcelona: Editorial Ariel, 1975: 12. 15

KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte - Fid Editorial, 2005: 39. 16

A investigação é experimentação contínua: o corpo produz soluções provisórias Quando o corpo problematiza e levanta interrogações no seu processo de investigação, trata rapidamente de construir possíveis respostas, já que “o problema é, pois, o primeiro escalão de uma cadeia: problemainvestigação-solução”15. O corpo para resolver seus problemas, experimenta, testando e “tentando” organizar informações/movimentos como soluções para viabilizar as suas hipóteses. E Muitas vezes, torna-se impossível responder aos problemas levantados pelo corpo com os mesmos e “velhos” padrões organizativos de movimento. Por isso, o teste de uma hipótese como verificação no corpo não ocorre uma só vez. Para uma hipótese ser reconhecida em sua viabilidade e coerência, o corpo experimenta inúmeras vezes, testando de diversas maneiras. O corpo descobre na experiência, no próprio ato de fazer, as estratégias que começam a se apresentar como relevantes para se tornarem possíveis como soluções investigadas. Nesse caminho, elabora informação e cria modos singulares de testar suas idéias – os experimentos. De experimento em experimento, os esforços dirigidos e o conjunto de experiências focadas para formular hipóteses/movimentos e resolver os problemas levantados resultam em um estado de cognição. Um estado de cognição que ocorre pela repetição e pelo aleatório: Quem observa o corpo, percebe que nele ocorrem tanto aprimoramentos graduais quanto emergências (...). A habilidade que se repete melhora gradualmente através do treinamento que burila o exercício. No entanto, eventualmente, irrompem novas circuitações, que surpreendem o controle (...). Isto ocorre muito provavelmente porque um processo de repetição não se dá sem minúsculas diferenças entre cada repetição. E a repetição com essas minúsculas diferenças, a certa altura, produz uma diferença que se nota16. Em seus atos de experimentar, adaptar-se e “inventar” soluções, o corpo torna-se apto para e adquire competências para resolver determinados problemas. O corpo se modifica, se transforma, altera seus hábitos estabelecendo outras relações, elaborando novas associações. Com o tempo de experimentação, o corpo gera outros padrões de organização que ganham certa regularidade e que, associados à outros elementos, se apresentam como resultados; mesmo que provisórios do processo investigativo. Tais resultados se apresentam como dança. Uma dança indissociável dos experimentos que a geram. A investigação na dança: uma possível estratégia... Gladis Tridapalli.

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U rdimento As soluções são resultados provisórios e interconectados com o processo porque emergem das tramas de informações experimentadas no processo (um corpo em condição de questionamento, formulando e testando hipóteses), no entanto, as soluções não podem ser diretamente obtidas no exercício de levantamento de hipóteses, nem na avaliação estanque dos experimentos que se mostram razoáveis para explicação do problema. As soluções, desse modo, são resultados de um exercício de articulação que precisa ser elaborado, construído e reconhecido pelo sujeito que investiga. Uma articulação como exercício que se aproxima do modo como o corpo organiza, sistematiza, em forma de uma resposta e avaliação dos percursos realizados em seus experimentos ao longo do processo investigativo. As soluções como um exercício de articulação e, portanto, seletivo, têm chance de não se apresentar como uma soma de movimentos/passos em dança, mas, sim, ocorrer como um exercício de relações, diálogos entre informações que se delineiam num formato de rede, teia de informações/ movimentos. É a teia que emerge e se demonstra como produto de uma particular lógica organizativa de um corpo em condição investigativa, ou seja, em ação processual. E a lógica demonstra o modo particular que o investigador é capaz de selecionar, aproximar, estabelecer diálogos entre movimentos e demais informações presentes no processo. O corpo que investiga em dança soluciona suas questões porque aprende como selecionar, analisar e conectar num conjunto possível de informações; o que se torna necessário e possível de ser feito para demonstrar sua resolução na forma de dança. Desse modo, os movimentos se articulam como resultado dos nexos de sentidos que estão sendo efetivados durante a experiência: percebidas no e pelo corpo. O corpo, para promover suas conexões de sentidos, muitas vezes opera por similaridade e se aproxima das informações que já tem para intensificar suas afinidades. O exercício de articulação que produz os resultados da investigação como dança se apresenta como um exercício de correlação entre uma gama diversa de movimentos e outras informações presentes na experiência investigativa em que o corpo elege suas afinidades. Uma eleição de afinidades que implica a existência de um tipo de dança e não outro. A dança é, portanto, um produto histórico da ação humana: cada corpo constrói uma dança própria que, no entanto, é relativa ao conjunto de conhecimentos disponibilizados em cada circunstancia histórica e aos padrões associativos que o corpo desenvolve para estabelecer as correlações com o mundo – outros Dezembro 2008 - N° 11

A inverstigação na dança: uma possivel estratégia... Gladis Tridapalli.

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BRITTO, Fabiana. Mecanismos de comuni cação entre o corpo e a dança: parâmetros para um a história contemporânea. Tese de Doutoramento. São Paulo, 2002. PUC-SP, pp. 13-14. Fabiana Britto é crítica de dança, professora Permanente e coordenadora do Programa de PósGraduação em Dança da Universidade Federal da Bahia e professora do Curso de Graduação em dança na mesma Instituição de Ensino Superior. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC/ SP (2002) e mestrado em Artes na USP (1993). 17

SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo. Dança e performatividade. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008: 41. 18

corpos, outras danças, outros conhecimentos. E a história da dança é uma narrativa das coerências instauradas através dessas suas correlações17.

Soluções provisórias: argumentos do corpo que dança O corpo que investiga, ao tecer continuamente uma particular organização de movimentos/informações, apresenta um enunciado ao elaborar redes de movimentos como discursos, soluções como argumentos. Para Jussara Setenta, os argumentos em dança se referem às falas do corpo e de uma dança que se constrói pelo fazer-dizer do corpo. A organização corporal da fala da dança faz das informações trocadas entre corpo e ambiente, o seu material do mundo. Registros, traços e vestígio de vida; histórias de vida. Do contato que se estabelece entre as informações que vêm de fora com as informações existentes em um corpo, ocorre um movimento de reorganização, que desencadeia a produção de outras informações. O movimento nascido dessas informações pode tomar a forma de falas construídas, estruturadas e organizadas como um discurso de dança, onde, a cada nova situação do estar no mundo, já outras informações se configuram18. Os argumentos construídos pelo corpo que investiga são associações de movimentos/explicações que estão interconectados com a problematização e levantamento de questões presentes na experimentação. Por isso, as soluções argumentativas não surgem como respostas brandas aos problemas levantados pelo corpo, mas se traduzem, muitas vezes, em lógicas de organização que revelam as contradições, os problemas mal resolvidos e os problemas ainda não resolvidos. As soluções são respostas que sinalizam também as fragilidades de como lidar com o processo. As soluções são respostas que muitas vezes se apresentam em formato de pergunta e instauram uma discussão permeada de dúvida e de novas interrogações. As soluções provisórias, porque são resultados de uma particular problematização, podem emergir como informações diferenciadas no ambiente. O diferente passa a ser observado por meio do modo singular como um corpo desenvolve seu padrão organizativo de movimentos para criar suas explicações como tentativas de resolução de seus problemas. O que implica uma permanente experiência: transformação dos padrões de movimentos e ressignificação dos movimentos. A diferença, a novidade que emerge da investigação na dança, nada tem a ver com “talento inato” ou com alguma “explicação sobrenatural, sobre-humana”. Imbuída de processo, a novidade em dança é resultado dos particulares modos como o corpo organiza e reorganiza os movimentos. A investigação na dança: uma possível estratégia... Gladis Tridapalli.

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U rdimento A diferença criativa emerge dos singulares e possíveis modos como os corpos organizam seus movimentos/pensamentos promovendo as explicações na forma de discursos. A dança que resulta do processo de investigação, indaga, questiona e transforma, uma vez que reformula continuamente e renova o olhar sobre si mesma e sobre discursos que são cristalizados. Discursos produzidos a partir de acordos não lineares apresentam resultados não previsíveis, um reinventar de outras redes de significação.

Ibid.: 42

19

No fazer da dança, operam-se diferentes maneiras de lidar com o corpo, daí a possibilidade de se discutir os distintos procedimentos e modos de enunciação. No processo de produção da fala da dança é possível observar os modos de fazer ressaltando a necessidade de reconhecer a existência de diferentes maneiras de organizar a fala no corpo19. Tratar a experiência de investigação em dança, dessa forma, como construção de discursos argumentativos, cogita outros olhares para algumas idéias que ainda norteiam práticas de dança – “aquelas” práticas que consideram a dança como um acontecimento de natureza exclusivamente intuitiva e instintiva, descolada dos acontecimentos do mundo e, por isso, não passível de ser construída como discurso. Resta para esse tipo de dança essa forma de pensamento: os adjetivos do inefável, indizível, fugaz. A dança que propõe um discurso que produz posicionamentos implicados na ação demonstrativa e problematizadora de um corpo, não passa despercebida no que tange as suas relações e nem se desfaz “fugazmente” de modo a não poder ser criticada, analisada. Ao contrário, em sua natureza discursiva, ela pode ser mais bem compreendida e acrescida de novos entendimentos para sua continuidade. A dança se configura como forma de comunicação, por isso, como um processo sígnico.

Semiose: o mover do processo e a partilha de informações Ao investigar, o corpo age percebendo, selecionando, organizando e sinalizando na ação, sua contaminação pelo movimento. Em suas relações com o ambiente, em suas condições de possibilidades e investigações, ele tece seu jeito de organizar a dança. Essa experiência investigativa pensada como geradora de aprendizados no corpo pode ser entendida como uma semiose, uma onda sígnica, pois o corpo, quando aprende através da ação investigativa, aprende produzindo semioses: o movimento desenha signos, produzindo infinitos e multiplicadores sentidos no corpo e no ambiente. A dança aparece como uma “dança que respira a polissemia de umambiente que é permanente produção de semiose: o corpo que dança. E que, tal como todas as criaturas que misturam chão com estrelas, precisa fabricar semânticas”20. Dezembro 2008 - N° 11

20 KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: Fid Editorial, 2005: 32.

A inverstigação na dança: uma possivel estratégia... Gladis Tridapalli.

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Ibid.:50.

21

Ibid.: 145.

22

Interpretação não se refere a juízo de valor. A interpretação em Peirce se resolve na ação triádica entre signo, objeto e interpretante. Sendo que o interpretante se apresenta na forma de outro signo e não se limita a ação humana. 23

KATZ, Helena. Op. Cit., p. 50. 24

É pela semiose que o corpo tem chance de continuar levantando outras possibilidades de movimentos, entendendo os seus raciocínios organizativos e suas traduções como resultados das relações com o ambiente. “Apenas a partir da compreensão da semiose como ação inteligente do signo poderemos chegar a compreender a dança com um raciocínio lógico, uma forma lógica do corpo”21. As trocas entre corpo e ambiente ganham forma de movimento de dança como mensagens comunicativas e o corpo tem chance de multiplicar sentidos e se alterar pelos sentidos produzidos também no ambiente externo. Cada mensagem passa por uma operação transdutiva e se externaliza adequando-se ao canal que emprega. Transformar uma energia em outra: codificar quando o destinatário extrai a mensagem codificada do canal, inicia outras transformações. Para se interpretar algo, enfrenta-se antes sua decodificação. Quem decodifica, decodifica a mensagem (sinal enquanto fisicalidade) e seu contexto. Na dança, ambas aparecem no corpo. O corpo é o contexto onde o movimento ganha forma – a forma do corpo. Nele o contexto é da mesma forma que a ordem da mensagem: ambos ganham forma no mesmo canal: o da fisicalidade22. A experiência de investigação como geradora da dança enquanto semiose é uma ocorrência implicada no surgimento de zonas comuns de produção de sentidos e interpretações23 partilhadas pelos corpos/sujeitos que estão operando com investigação. O processo permanente e contínuo de investigar constrói um contexto de aprendizado no qual o corpo aprende por contaminação e partilha de informações. E isso, em grande parte, se dá graças à produção do movimento como signo. Entender a dança como semiose implica em aceitar que a objetivação, a produção de sentido e a interpretação se interrelacionam e se explicam segundo a tríade signo-objeto-interpretante enunciada por Charles Sanders Peirce. O que importa é compreender que tanto um sujeito quanto um organismo interpretante apresentam uma capacidade orientada para um fim (geneticamente formada e realizada em acordo com o ambiente). E que a interpretação sígnica se dá no contexto onde o signo age24. O corpo que aprende investigando é propositor, produtor de discursos/ sínteses provisórios como forma de dança. E isso promove um aprendizado distante da transferência linear de informações. A experiência da investigação, como emergência de negociações entre o corpo e o ambiente na produção contínua e infinita de semioses, promove aprendizados implicados de trocas, contaminações e compartilhamentos. A investigação na dança: uma possível estratégia... Gladis Tridapalli.

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Referências bibliográficas BITTENCOURT, Adriana. A Natureza da Permanência: processos comunicativos complexos e a dança. Tese de doutoramento. São Paulo, 2007. PUC-SP. BUNGE, Mário. La investigation Científica: su estratégia y su filosofia. Barcelona: Editorial Ariel, 1975. BRITTO, Fabiana. Mecanismos de comunicação entre o corpo e a dança: parâmetros para um a história contemporânea. Tese de Doutoramento. São Paulo, 2002. PUC-SP. GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: Fid Editorial, 2005. MARTINS, Cleide. Improvisação Dança Cognição. Os processos de comunicação do corpo. Tese de doutoramento. São Paulo, 2002. PUC – SP. NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado – questões para pesquisa no /do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. PEIRCE, Charles. Semiótica. Tradução José Teixeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2005. SANTAELLA, Lúcia. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e doutorado. São Paulo: Acker Editores, 2001. _______. A percepção. uma teoria semiótica. São Paulo: Experimento, 1998. SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo. Dança e performatividade. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008.

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A inverstigação na dança: uma possivel estratégia... Gladis Tridapalli.

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O AUTO DA COMPADECIDA E UM PERSONAGEM EXTRAORDINÁRIO Irley Machado1

Resumo

Abstract

O presente artigo faz uma análise do personagem João Grilo dentro da obra de Ariano Suassuna O Auto da Compadecida e explora igualmente a forma como os personagens são construídos pelo autor. João Grilo, que a princípio pode ser considerado um personagem tipo, revela na verdade características complexas e extremamente ricas: ardiloso, trapaceiro, vingativo, é também corajoso e humano. Retratando uma camada social oprimida e ao mesmo tempo inventiva e ousada, é ele o personagem que se destaca nesta obra.

The aim of the present article is to analyze the character João Grilo in Ariano Suassuna’s play O Auto da Compadecida and also to explore the form as the characters are created by the writer. João Grilo could be considered in a first view as a type character and he reveals complex and rich characteristics: cunning, deceitful, revengeful, he is at the same time brave and human. He represents a social stratum oppressed but also inventive and audacious. He is the outstanding character of this masterpiece.

Palavras-chave: Ariano Suassuna, personagem, teatro.

Keywords: Ariano characters, theater.

Suassuna,

Para a construção do Auto da Compadecida, Ariano Suassuna recorreu a uma tradição cômica bastante viva que ele domina admiravelmente. O autor possui o mérito de transformar a literatura oral e popular do nordeste e dar-lhe formas novas, que lhe preservam a autenticidade. Usamos a palavra tradição, pois é-nos difícil precisar e diferenciar com exatidão a origem das histórias que o autor insere em sua obra e as histórias que ele mesmo cria. A história do “testamento do cachorro”2, que serve ao desenvolvimento do primeiro episódio do Auto da Compadecida, encontra sua origem numa lenda oriental do século V, mas ela está presente também no romanceiro da região e Suassuna deu-lhe cores bem originais. Nesta obra, os atos não são delimitados rigorosamente, entretanto, a cada vez que a ação muda, a entrada em cena do palhaço delimita um ato. O autor dá indicações sobre as mudanças de cena para que os encenadores possam criar a partir delas. Dezembro 2008 - N° 11

1 Irley Machado é professora doutora em Études Ibériques et Latino-Americaines pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle, Paris, França. Desde 1995 é professora do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia e professora permanente do Mestrado em Teoria Literária do Instituto de Letras da mesma universidade. Em 2004 cria e, desde então, coordena um grupo de pesquisa sobre a dramaturgia de Federico García Lorca.

Os testamentos de animais são freqüentes na literatura medieval. O testamento do cachorro se encontra no conto de nº 96 de Les cent nouvelles nouvelles. J. Bedier, em seus estudos sobre as fábulas, assinala uma versão da lenda oriental publicada por Herbelot, Bibliothèque Orientale – 2

O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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U rdimento (cont.) article Chadi. Encontra-se também esta história contada por Lesage em Gil Blas de Santillane, Livro V, Canto I, Paris, G. F. Flammarion, 1977: 271. Em Fabliaux et contes du Moyen Age, há uma versão chamada Le testamente de l’âne, de Rutebeuf, prefácio e Jean Joubert, traduction, commentaires et notes de Jean Claude Aubailly, Paris, Le livre de Poche, 1987: 30. A este propósito pode-se ver ainda o artigo Le testament cynique de l’Auto da Compadecida de Jean Girodon, Lisboa, Colóquio, Letras, 9, Juin, 1960. 2

Todas as citações do texto que se referem à obra O Auto da Compadecida aparecerão com a sigla AC acompanhadas do número da página correspondente. 3

Na criação dos preceitos para uma arte armorial, Suassuna defendeu a importância de um movimento de circulação cultural e do reconhecimento de uma identidade que faz parte do inconsciente coletivo, justificando assim o encontro de elementos de diferentes tradições que compõem uma mesma cultura. No Auto da Compadecida Suassuna confia ao personagem João Grilo a tarefa de explorar os efeitos cômicos das cenas. A presença de Chicó, personagem secundário cujo papel equivale ao de segundo zanni, o bobo, não é, entretanto, menos importante do ponto de vista dramático: ele é o mentor das histórias sem pé nem cabeça que divertem o público e participam da criação de comicidade. O público ri do contraste entre os personagens: João Grilo, dotado de uma verdadeira consciência de sua posição social e Chicó, personagem simplório, Don Juan camponês, que ousa envolver-se com alguém acima de seu meio e que conta com toda inocência sua (des)aventura com a mulher do padeiro e seu conseqüente sofrimento. Veja-se o diálogo: Chicó: [...] É mesmo ele já me deixou por outro. Uma vez, João, e não posso me esquecer dela. Mas não quer mais nada comigo. João Grilo: Nem pode querer, Chicó. Você é um miserável que não tem nada e a fraqueza dela é dinheiro e bicho. (AC, 38)3 Mas Chicó é um personagem que provoca o riso por diversas razões, sobretudo quando decide tecer considerações filosóficas sobre a morte do cachorro, considerações que parecem, até certo ponto, deslocadas no contexto da obra. A peça é, ao mesmo tempo, o desfile de um balé de trapalhadas e artimanhas, numa sucessão infindável de golpes de teatro. Mas é sempre João Grilo que domina as cenas e provoca as acelerações no ritmo dramático. O personagem privilegia o jogo de palavras e revela pleno poder sobre o desenrolar dos acontecimentos. No primeiro episódio, intitulado O enterro do cachorro, é com a entrada em cena do personagem do Padre que a ação dramática se inicia, para ser inteiramente conduzida pelo incomparável João Grilo. Sua primeira trampolinada ocupa a segunda cena do primeiro ato. Ela introduz as múltiplas fases da ação e dura até quase o final da primeira cena do segundo ato. Ela pode ser resumida pelo seguinte esquema: Entrada do Padre: primeira trapaça de João Grilo. Este diz ao Padre que ele precisa benzer o cão do Major que está doente (o cão pertence, na verdade, à mulher do Padeiro). O Padre aceita. Entrada do Major: segunda trapaça de João Grilo, que quer vingar-se do Padre. Ele diz ao Major que o sacerdote está louco e que está chamando todo mundo de cachorro. O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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U rdimento Neste momento tem-se na cena um qüiproquó extraordinário: o Padre encontra o Major. O Major veio pedir-lhe para benzer o filho que está doente. O sacerdote acredita que o Major se refere ao cachorro e a confusão se estabelece. O diálogo é de um cômico delicioso e, no final, o Major, ofendido, decide ir queixar-se ao Bispo. Terceira trapaça de João Grilo: ele promete resolver o problema do Padre com o Bispo, caso ele aceite benzer o cachorro da mulher do padeiro. O Padre hesita. A seguir há a entrada do Padeiro, de sua mulher e do cachorro. O Padre, temeroso, se recusa definitivamente a benzer o animal. Um novo qüiproquó acontece. O diálogo muitíssimo divertido transforma-se numa verdadeira disputa. Enquanto os personagens discutem o cachorro morre. A mulher exige então um enterro cristão e preces em latim. É o momento em que João Grilo aplica seu golpe de mestre: através de um novo embuste – a história do testamento – ele assegura o enterro do cachorro. O segundo ato inicia com o retorno do Major acompanhado do Bispo, que exige uma retratação do Padre ante sua atitude desrespeitosa para com o Major. O Padre não entende nada, pois nada sabe. O Bispo revela a velhacaria de João Grilo. É a vez de o embusteiro sofrer a cólera do Padre. Pressionado, o malandro é obrigado a continuar seu jogo e conta a história do enterro do cachorro diante do Bispo, o que cria uma situação perigosa para o Padre e o Sacristão. Conhecendo a simonia do Bispo, João Grilo fala do “testamento” e o Bispo acaba por aceitar a “heresia”. João Grilo controla a vontade dos outros personagens como um hábil manipulador e, ao mesmo tempo, semeia a confusão, mas com seu inesgotável jogo de tramóias ele próprio desembaraça os personagens que enreda. Ainda neste ato João Grilo prepara uma segunda fase de ações, cujos alvos são o Padeiro e a Mulher. Ele apresenta à Mulher um gato que descome dinheiro4. Este infatigável e incomparável malandro apenas acabou de lesar seus patrões e já lhes prepara um novo golpe. Ele diz a Chico: Vou entrar no testamento do cão [...] Eu não lhe disse que a fraqueza da mulher do patrão era bicho e dinheiro? pois eu vou vender a ele, para tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso que descome dinheiro! (AC, 88) Ele arma sua vingança contra os patrões. Este novo movimento da ação não tem nenhuma relação com o dado inicial, e não apresenta um caráter de necessidade. É um ato de prazer gratuito. Ele confessa ao amigo Chicó: “Você pensa que eu tenho medo? Só assim é que posso me divertir. Sou louco por uma embrulhada” (AC, 39). Como Scapin! É o personagem de Molière que afirma: “Eu me divirto a tentar estas situações arriscadas. [...] Este tipo de risco nunca me parou.”5 Como um verdadeiro Scapin, João Grilo, dir-se-ia, é um personagem digno de Molière. Dezembro 2008 - N° 11

Esta história, segundo o autor, é inspirada num folheto de cordel "A história do cavalo que defecava dinheiro", que faz parte da obra Violeiros do Norte, 1ª. ed. São Paulo: Cia. Gráfica Monteiro Lobato, 1925. Para mais detalhes, ver Ariano Suassuna, Seleta em prosa e verso, Estudo comentários e notas de Silviano Santiago, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1974. Ela está presente também em Don Quixote de la Mancha de Cervantes e no Asno de Ouro de Apuleio. Se encontra ainda nas histórias infantis de Perrault sob o título de Peau d’âne ou Pele de Asno. 4

5 Molière, "les Fourberies de Scapin" in Oeuvres complètes, t.2, Bibliothèque de la Pléiade, Paris, Editions Gallimard, 1956: 703/704. "Je me plais à tenter des entreprises hasardeuses.(...) Ces sortes de périls ne m’ont jamais arrêté" Nossa tradução).

O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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U rdimento João Grilo vende o prodigioso gato à mulher do Padeiro por uma quantia exorbitante. Logo o Padeiro descobre o dolo, o que indica um crescendo de perigos para nosso herói. Perigos que vão se acumulando até a chegada dos cangaceiros, o que constitui o verdadeiro risco para o personagem. Mas João Grilo pensa rápido: surpreso pela chegada do cangaceiro, ele vai servir-se de dois objetos cênicos: a bexiga do cachorro, cheia de sangue, que ele havia preparado para aplicar o golpe final em seus patrões, e uma harmônica, segundo ele, mágica e abençoada por seu padrinho Padre Cícero. A harmônica teria o poder de ressuscitar os mortos. O cangaceiro Severino de início desconfia das artimanhas de João, mas, seduzido pelo objeto milagroso e movido pelo desejo de ver seu padrinho Padre Cícero, se deixa enganar, presta-se ao jogo, e acaba morrendo. Mas a última velhacaria de João volta-se contra ele, já que o capanga de Severino, embora ferido à morte, atira e o mata. A obra dá a impressão de ser composta em função do movimento cômico, criado pelas inúmeras estratégias do personagem João Grilo, para ludibriar seus patrões. Como se o autor a tivesse construído ao redor de um único personagem.

Duarte MimosoRuiz, "Le personnage populaire du malandro dans le théâtre lusobrésilien" in Figures théâtrales du peuple, études réunies par Elie Konigson, Paris, CNRS, 1985: 136. "João Grilo se présente aussi comme une figure populaire contestatoire, investi du rôle de justicier virtuel" (Nossa tradução). 6

É importante observar que, nesta obra, Suassuna, uma vez mais, não se preocupou em seguir as regras da escrita dramática. No primeiro e segundo atos há uma unidade de tempo que é apenas exigência da ação. A unidade de lugar – tudo se passa na praça diante da igreja – é uma simples convenção teatral que facilita o desenvolvimento da cena como um todo. A obra repousa, pois, sobre uma unidade de personagem. No primeiro ato, quando a temática avança por um caminho inesperado, o que interessa em definitivo são as estratégias de João Grilo e sua habilidade em desembaraçar-se de seus adversários. No terceiro ato, em que tudo se passa no além, ele se encarregará de tomar para si a sorte dos companheiros mortos com ele. De início medroso e covarde, ele se mostra corajoso diante do diabo: penetrando no território de seu oponente, ele exige um tribunal. Duarte M. Ruiz afirma a propósito do papel de João Grilo neste momento crucial para o personagem: “João Grilo se apresenta como uma figura popular contestatória, investido do papel de justiceiro virtual.”6 Nesta peça não é apenas o encadeamento das trapaças do personagem que nos seduz, mas a forma como elas são colocadas sobre o tablado. João Grilo improvisa suas ações seguindo uma lógica mental fácil de reconstituir, e a abundância verbal traduz seu dinamismo interior e a agilidade de seu espírito. Este personagem é, pois, dotado de uma imaginação fértil, de um caráter resoluto e de auto-suficiência. O Auto da Compadecida possui elementos que pertencem grandemente à farsa, embora incorpore igualmente elementos da comédia, como a intriga e o caráter de alguns personagens. Mas não são os únicos elementos: o diálogo revela certa leveza, variedade e uma grande fantasia, enquanto o lado O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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U rdimento do rebaixamento grotesco encontra-se grandemente reduzido. João Grilo dá provas de uma irreverência moderada em relação à ordem hierárquica estabelecida: os representantes da igreja, os patrões e os ricos. As armadilhas são bem construídas e toda a atenção é concentrada sobre a figura e as ações de João Grilo, em uma sucessão de cenas em que não há descanso, até a última artimanha do herói: voltar da morte. Os outros personagens recorrem sempre à sua engenhosidade e se deixam cegamente enganar. Podemos lembrar do próprio Severino, o cangaceiro, que mesmo sendo um assassino esperto, foi por João Grilo enganado. É sempre João Grilo que prolonga e conduz a ação, e o perdão que ele consegue de Cristo para ele mesmo e para os companheiros, no último episódio, constitui o verdadeiro desenrolar da peça. Nesta obra, Suassuna mistura intimamente as bufonarias e a pintura de caracteres sem esquecer uma discussão filosófica.

Sobre o personagem O personagem cômico é aquele que mais se aproxima da caricatura. Ele pode ser apresentado como um ser esquematizado cujos traços bastam para desenhar seus aspectos físicos e morais, embora não se possa reduzir todo personagem cômico a um tipo. Os personagens se definem sempre por suas ações: assim, sua caracterização dependerá do papel que eles interpretam. As descrições que o autor dá sobre seus personagens através dos diálogos, monólogos e apartes definem suas características e os revelam ao público. O personagem Severino diz a propósito de João Grilo: “Aponte o rifle para esse amarelo, que é desse povo que eu tenho medo” (AC, 122). Severino teme o esperto e trapaceiro João Grilo. Ele sabe que suas trapaças podem ser perigosas e que ele pode tornar-se uma vítima do “amarelo”. Na construção de sua obra, Suassuna inspirou-se naturalmente na comédia tradicional italiana no que concerne a certos personagens. Os personagens como João Grilo e Chicó emprestam de múltiplas fontes seus traços os mais divertidos. São os personagens “heróis”, os condutores da ação, os criados, os zanni dos Italianos. Mas revestem igualmente características próprias aos pícaros espanhóis, aos tricksters ingleses, ao renard do fabulário francês medieval e ao Pedro Malasartes da literatura popular luso-brasileira. Os bufões são quase sempre os servidores falastrões, plenos de insolência e indiscrição. Em suas relações com os outros são mais livres e desrespeitosos, em particular em relação às autoridades e aos velhos. Para atingir seus objetivos não hesitam em mentir, enganar, trapacear e até mesmo a roubar. Dezembro 2008 - N° 11

O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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U rdimento Em Suassuna, os personagens são seres transbordantes de vitalidade, dotados de uma imensa energia na afirmação de suas inclinações e de suas idéias. Na concepção da personalidade de suas criaturas, o poeta revela toda a força de sua imaginação. Mas demonstra também uma certa empatia com os personagens que coloca em cena. Ao revelá-los ao público, ele dá, desde o primeiro instante, uma visão substancial de cada um dos personagens imaginados. Na cena, seus traços serão aprofundados, enriquecidos e nuançados de forma orgânica para dar o sentimento da complexidade e do conflito natural dos seres, mas sempre a partir de uma indicação inicial. Ele cria para cada personagem uma linguagem própria a sua condição social, idade, sexo e paixão. É assim que, nas palavras e na maneira de expressar-se de cada personagem, pode-se determinar aquilo que pertence ao caráter de cada um. Pense-se no personagem do Major quando este se dirige ao Padre com palavras duras e um certo desprezo pela religião, ele apenas reproduz – mesmo se não se pode generalizar – o comportamento dos poderosos oligarcas da região que se acreditam superiores a todos os outros. Mas Suassuna alia, com freqüência, ao realismo de algumas figuras exageros bufonescos. Alguns personagens de sua obra se encontram várias vezes em situações de extremo ridículo. Assim, o autor transforma o Bispo numa caricatura, ele desmaia diante da ameaça de morte dos cangaceiros. Suassuna sabe: quanto mais exagerados os gestos, maior credibilidade cômica eles dão ao personagem. É preciso considerar igualmente o efeito de rebaixamento provocado pelo gestual a que o autor recorre: o Bispo, ao desmaiar diante do cangaceiro, anula o respeito que se deve à hierarquia religiosa. No segundo ato do Auto da Compadecida, ele demonstra que nenhum personagem controla verdadeiramente o jogo. Todos os personagens, mesmo se dão a impressão ou se têm a ilusão de controlar a situação que eles mesmos provocam, são arrastados pelo cômico que se instala. Ao lado dos personagens principais, Suassuna coloca os “comparsas”, donos de uma alegre bufonaria. É o caso do personagem Chicó. São personagens secundários destinados a fornecer um sólido apoio cômico. Às vezes os personagens secundários ilustram a perversidade dos protagonistas. O autor sublinha algumas extravagâncias em seus caracteres e demonstra que as paixões humanas provocam ações inconseqüentes, das quais os seres não se apercebem. Engajados, os personagens se deixam levar por propósitos ridículos e fogem ao limite da verossimilhança e da conveniência. É como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana num todo. João Grilo fanfarrão deleita-se sobre seu talento de conduzir bem suas intrigas. Mas João Grilo é o “marginal” inventivo que busca uma revanche pelas afrontas que seus patrões o fazem sofrer. No Auto da Compadecida, as diversas articulações entre os personagens no emaranhado das ações podem ser vistas como um sistema de imagens universais, reveladoras da angústia fundamental do homem: o medo da morte. O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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U rdimento O personagem João Grilo, no terceiro ato, está numa posição ambígua: está morto? Sonha? O personagem parece estar regido pela lógica do sonho. Segue-se uma série de elementos imprevisíveis e estranhos em que predomina a mistura do real e do imaginário, e mesmo se o real sofre uma desfiguração, ele sai enriquecido pela beleza do mistério. A proposição mais séria que Suassuna nos faz é rir. É preciso rir desta natureza humana cuja credulidade e ingenuidade a fazem perder a consciência dos próprios defeitos. Pelo riso o homem toma consciência dele mesmo, liberando-se de suas angustias existenciais. Mas como poeta cômico, Suassuna também quer fazer refletir. Se o riso pode ser determinante nas reações, é o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade humana que se oculta atrás do riso. O riso denuncia o real, o suaviza, para enfim exorcizá-lo. Apesar de um certo ar de marionetes que ele imprime aos seus personagens, a estética cômica de Suassuna é carregada de humanismo e de alegria. Uma profunda liberdade criadora exala de sua obra. A partir da humanidade que o cerca, ele imagina sem cessar personagens potentemente caracterizados e marcados por uma certa verdade. O personagem João Grilo nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia: é preciso enfrentar as dificuldades. No momento em que tudo parece perdido, em que a condenação ao inferno parece inevitável, ele revela uma fé inalterável em si mesmo e se permite um novo desafio. Ele diz: E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê? Vocês são uns pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê que tiveram tudo na terra? Se tivessem tido que agüentar o rojão de João Grilo, passando fome e comendo macambira na seca, garanto que tinham mais coragem. Quer ver eu dar um jeito nisso, Padre João? (AC, 167) Aqui, mais uma vez podem-se abrir parênteses para associar a resposta de João Grilo a uma frase do incomparável Scapin: “Pra dizer a verdade, há poucas coisas que me são impossíveis quando eu decido!”7. Mas o autor também sabe que é preciso aceitar o que se é, e repudiar toda veleidade de impostura. Apesar de sua “ambição de moralista”, se assim podemos nos expressar, Suassuna trata com leveza a estupidez da condição humana. Seu humanismo permanece fundamentalmente respeitoso e alegre.

Molière, op.cit. p. 671 "A vous dire la verité, il y a peu de choses qui me soient impossibles quand je m’en veux mêler!" (Nossa tradução). 7

Ele soube aproveitar os recursos da cultura popular para colocar em cena personagens que pertencem a esta camada da população que ele chama de quarto estado. Este “estado” que representa um Brasil real, um Brasil que sofre e que acredita, mas, sobretudo, um Brasil que ri. É este Brasil que o público Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento ama encontrar no teatro. João Grilo representa em certa medida o personagem do ingênuo espirituoso das farsas medievais, ele também representante deste quarto estado e, como afirma Michel Rousse: Michel Rousse. "Fonction du dispositif théâtral dans la genese dela farce" in Atti del IV Colloquio della Société Internationale pour l’Étude du Théâtre Médiéval. Viterbo 10-15, luglio – 1983. Centro Studi sul teatro Medioevale e Rinascimentale, p. 379-395: "(...) il (le badin) ne se révolte pas, il n’a pas l’âme d’un héros, mais il croît viscéralement à tous les bonheurs, si petits soient-ils, qui peuvent sóffrir à lui dans son infortune, et il a la confiance que le temps et les avatars d’une histoire dont l’emblème est la roue de la Fortune, lui donneront un jour ou l’autre sa revanche" (Nossa tradução). 8

[...] ele (o ingênuo) não se revolta, ele não tem a alma de um herói, mas ele acredita visceralmente nos acasos felizes, por menores que eles sejam, que possam oferecer-se a ele em seu infortúnio, e ele tem a confiança que o tempo e as transformações de uma história cujo emblema é a roda da Fortuna, lhe dará um dia ou outro sua revanche.8 Suassuna constrói seus personagens dando-lhes características morais que acabam por enriquecê-los. Chicó é um mentiroso, mas é, acima de tudo, um amigo leal e sincero; João Grilo é um trapaceiro incorrigível que ama situações perigosas, mas é corajoso. A mulher do Padeiro vive um adultério desprezível, mas ama sinceramente os animais e acaba por revelar-se mais corajosa que o marido. Severino, embora assassino, sonha com a paz e com seu pedaço de terra para viver em paz. Sabedor do proveito da ação simoníaca cometida pelo Padre, ele diz: [...] o Bispo demitia o sacristão e me nomeava no lugar dele. Com mais uns cinqüenta cachorros que se enterrassem, eu me aposentava. Podia comprar uma terrinha e ia criar meus bodes. (AC, 110) Dotado de um espírito gozador, onde se entrevê uma crítica leve, o autor pinta toda a sociedade. Uma sociedade que não é saudável, e na qual as relações entre as classes estritamente hierarquizadas são tensas, da mesma forma que entre os ricos e pobres, e entre os próprios pobres. O autor aceita o mundo como ele é, e a estrutura social como ela se apresenta: em sua obra, os malvados são punidos, mas a pena é leve, os bons são recompensados, mas não são poupados, e os passionais são ridicularizados. Em sua obra há uma espécie de contaminação de formas diversas habilmente homogeneizadas. Ele mistura elementos da farsa e da comédia de intriga, cuja previsibilidade e complexidade são características, e usa temas, incidentes e caracteres unindo os tons e os gêneros. Mas em suas peças não há incoerências nem falta de clareza em seu propósito. No centro da intriga ele coloca o personagem farsesco e obtém uma unidade formal. Seu estilo é vigoroso e marcado por uma corrente burlesca em que as bufonarias são tonais. Encontramos inúmeros exemplos de um realismo tão social quanto moral. Para Suassuna o teatro é um lugar de imagens concretas instaladas na cena em forma de quadros, quadros em movimento, quadros vivos. Ao lado destas imagens concretas, ele instala imagens metafóricas que incorpora à realidade cênica. O mundo encontra-se com o teatro, mas é este mundo às avessas que o teatro mostra que pode dar à realidade uma chance de impor-se. O Auto da Compadecida e um personagem extraordinário. Irley Machado.

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Referências bibliográficas CERVANTES. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Edimat Libros, S.A.,1999. DUBUIS, Roger. Les Cent Nouvelles Nouvelles. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1991. GIRONDON, Jean. Le testament cynique de l’Auto da Compadecida. Colóquio, Letras. Lisboa, 9, Juin, 1960. LESAGE, Histoire de Gil Blas de Santillane. Paris: Garnier-Flammarion, 1977. MACHADO, Irley. Entre la Croix et la plume : Eléments médiévaux et vicentins dans le théâtre de Ariano Suassuna. Thèse de doctorat, Université Paris III – Sorbonne Nouvelle, UFR D’Études Iberiques et Latino-Americaines: Paris, 2003. MIMOSO-RUIZ, Duarte “Le personnage populaire du malandro dans le théâtre luso-brésilien”. In: Figures théâtrales du peuple, études réunies par Elie Konigson. Paris: CNRS, 1985. MOLIERE, “Les Fourberies de Scapin”. In: Oeuvres complètes, t.2, Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Editions Gallimard, 1956 . SUASSUNA, Ariano. Seleta em prosa e verso, Estudo comentários e notas de Silviano Santiago, Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. SUASSUNA, Ariano. O Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1982. ROUSSE, Michel. “Fonction du dispositif théâtral dans la genese dela farce”, in Atti del IV Colloquio della Société Internationale pour l’Étude du Théâtre Médiéval. Viterbo 10-15, luglio – 1983. Centro Studi sul teatro Medioevale e Rinascimentale. RUTEBEUF. “Le testament de l’âne in Fabliaux et contes du Moyen Age. Prefácio de Jean Joubert, traduction, commentaires et notes de Jean Claude Aubailly. Paris : Le livre de Poche, 1987.

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A SUBPARTITURA CORPORAL NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO BATATA! Leonardo Sebiani1

Resumo

Abstract

A presente pesquisa propõe uma reflexão sobre a subpartitura corporal nos intérpretes-criadores do grupo baiano DIMENTI, durante o processo de criação do espetáculo “Batata!”. O conceito de subpartitura foi elaborado por Patrice Pavis propõe a utilização das informações que servem como “bagagem” do intérprete. O objetivo da pesquisa é a apropriação do conceito de Pavis transportado para o corpo cênico utilizando como referencial teórico a Critica Genética de Cecília Salles. A analise corporal pretende reconhecer a importância da subpartitura dentro das Artes Cênicas.

The aim of this study proposes a reflection on the bodily subscore of the performers of DIMENTI (a group of Salvador, BA, Brazil), during their creation process of “Batata!”. The concept of subscore was presented by Patrice Pavis proposes the use of information that serves as the support for the performers. The objective of the research is to take Pavis’s concept and transport it to the performing body. It will be used as a theoretical reference the Genetic Criticism of Cecilia Salles. The bodily analysis seeks to recognize the importance of subscore within the Performing Arts.

Palavras-chave:subpartitura,processos de criação, corpo, artes cênicas.

Keywords: subscore, creation process, body, performing arts.

A subpartitura Dentro das artes cênicas contemporâneas a análise das informações dos intérpretes-criadores, tem oferecido um valor maior às possibilidades e à bagagem das informações provenientes dos corpos cênicos dentro dos processos criativos. Um dos aportes maiores são as informações que têm os corpos dos intérpretes, esse leque denominado por Bonfitto, de várias situações preestabelecidas, as quais ajudam a uma desestruturação e estruturação constante desses corpos estéticos sociais na cena contemporânea; para vários estudiosos essas informações são imprescindíveis. Pavis (2005: 89), chama-as de subpartitura: Dezembro 2008 - N° 11

Leonardo Sebiani possui graduação em Atuação pela UNA (Costa Rica, 2003), Licenciatura em Docência pela UNED (CR, 2006), Mestrado em Ciências do Movimento Humano pela UCR (CR, 2007), atualmente é Doutorando do PPGAC/UFBA. Tem experiência em Teatro, Dança, Pedagogia e Ciência. Acadêmico da Escuela de Artes Escénicas, Universidad Nacional (Costa Rica) Doutorando PPGAC/ UFBA. 1

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U rdimento “Ela é essa sólida massa branca imersa sobre a qual se apóia o ator para parecer e permanecer em cena, tudo aquilo sobre o que ele baseia sua atuação. Trata-se do conjunto dos fatores situacionais (situação de enunciação) e das competências técnicas e artísticas sobre as quais o ator/a atriz se apóia quando realiza sua partitura”. Desde os mestres Stanislavski, Dalcroze e Duncan, a expressão de um gesto deve ser orgânico, único, verdadeiro. Esse apoio interno explorado pelos grandes mestres parece dar um suporte ao aparelho expressivo – ou seja, ao corpo. Para Pavis (2005: 91), “o ator toma referência e se apóia em uma série de pontos que formam a configuração e a estrutura de sua atuação”. Tais pontos de apoio sustentam sua memória emocional e sinestésica, seu corpo pensante. Para Martha Graham o corpo deve estar treinado tecnicamente para vir a expressar-se. Ela procurava, assim como as técnicas de Ballet Clássico, treinar o músculo de tal maneira que, conhecendo o caminho, o corpo reagisse sem ter que pensar nisso – talvez esse fosse um “corpo pensante”. Em teatro, o treinamento prepara o ator, o ensaio prepara a obra e a representação. O treinamento é, no processo de codificação de uma técnica, fundamental, pois é nele que o ator trabalha a si e à arte em si. O fato do treino não ter vínculo imediato com o resultado, permite um trabalho de elaboração e aprimoramento de instrumentos concretos e objetivos da arte do ator. Dentro de um estilo de atuação adquirido ao longo dos anos de treino e de aculturação, importa observar como o tempo, a cultura e as técnicas corporais sedimentam-se no corpo do ator antes mesmo que ele entre em cena. “A subpartitura busca, é claro, o que está oculto na preparação do ator, o que existe antes de sua expressão visível e fixada na partitura da atuação, mas ela também já se encontra infiltrada e formada pela cultura ambiente” (PAVIS, 2005: 91-92). Vislumbra-se, nessas informações, que a subpartitura é um elemento importante nos processos criativos e que é parte intrínseca na individualidade do sujeito e de sua cultura. A subpartitura possibilita discernir a importância de pesquisar essas informações e sua influência dentro da encenação, e ver assim o poder potencializador que adquire uma peça e seus processos dentro da análise das subpartituras de seus intérpretes. No desenvolvimento das Artes Cênicas nos últimos tempos, o corpo teve uma participação crescente dentro das pesquisas e, como nos processos criativos, os pesquisadores procuraram não somente um corpo técnico, mas igualmente expressivo. Essa expressividade e capacidade de estruturação e desestruturação aumenta, quanto maior for a quantidade de informações possuídas pelo intérprete dentro de si (experiências de vida, técnicas, etc.) A cultura influencia o corpo e suas informações, ou A Subpartitura Corporal no Processo de Criação... Leonardo Sebiani.

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U rdimento seja, a subpartitura – a massa de conceitos acumulados e expostos nos corpos dos intérpretes, a qual está diretamente relacionada à sua cultura ou à cultura em que se desenvolve. Poderíamos dizer que existe uma constante troca entre a cultura e o corpo, e que suas modificações vão-se dando com as modificações da sociedade num tempo e espaço determinado. Claro está que essa cultura e esse corpo tem uma história, já que existe uma memória, uma memória coletiva para eventos sociais e uma memória corporal pessoal e intransferível; segundo Fernandes (2004: 59), “a memória e história se recolocam também no corpo. Seja nos gestos miméticos que nos inscrevem numa tradição, seja nas marcas pessoais e intransferíveis que carregamos em nossos corpos”. Isto é relatado também por Sant´Anna, (2004: 3), que pensa o corpo como “um território, um território tanto biológico quanto simbólico, processador de virtualidades infindáveis, campo de forças que não cessa de inquietar e conformar, o corpo talvez seja o mais belo traço da memória da vida”. Verdadeiro arquivo vivo, inesgotável fonte de desassossego e de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua filosofia mas, ao mesmo tempo, escondê-los. Pesquisar seus secretos é perceber o quanto é vão separar a obra da natureza daquela realizada pelos homens: na verdade, um corpo é sempre biocultural, tanto em seu nível genético, quanto em sua expressão oral e gestual. “Nosso objeto de estudo não é somente o corpo físico-biológico, nem apenas o corpo psicológico ou sócio-antropológico, mas o corpo do homem como um ser de culturas – um corpo moldado pela ação conjunta de todos os outros corpos que a cultura oferece. O corpo como um sítio arqueológico que permite inúmeras leituras semióticas, um corpo portador do biológico e dos textos da cultura” (BELLINI, 2001: 211). Esse sitio arqueológico que é o corpo tem tantas cores e matizes maravilhosas que permitem aos artistas as mais variadas experiências dentro de seus processos criativos. Para Ostrower (1987: 5) “a natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural”. Todo individuo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores de vida. No indivíduo confrontam-se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura. Assim como num processo coletivo em dança é importante pensar também nos diálogos intercorporais e como eles podem acontecer de maneira não verbal, imagens são transmitidas de um corpo para o outro através do movimento da cabeça, do tronco e dos membros. Mesmo a linguagem verbal, com seus signos e significados, provoca imagens no corpo receptor. A palavra é imagética. “Nos Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento processos coletivos de criação artística os corpos utilizam múltiplos artifícios em sua interação dialógica e para isso os sentidos do corpo – buracos do corpo vazado - são fundamentais” (SANCHES, 2006: 44). O diálogo das imagens, e da informação cultural impregnada em nossos corpos, assim como a influência dos processos criativos coletivos é um cúmulo de tantas noções, deste modo a utilização de uma ou varias técnicas corporais afetam o contaminam os corpos. Nosso corpo tem muitas informações adquiridas pelas técnicas corporais, já que foram criadas num momento determinado e com um objetivo determinado. Portanto, elas também refletem uma realidade do momento sociocultural. Por isso os corpos que passam pelas academias carregam várias informações, somandose àquela do cotidiano, ou seja, no uso social do corpo. “E assim que, com nosso uso social do corpo, é necessariamente um produto de uma cultura: o corpo foi aculturado e colonizado. Ele conhece somente os usos e as perceptivas para os quais foi educado” (BARBA e SAVARESE, 1995: 245). Essa educação designada por Barba e Savarese leva o corpo a comportar-se de um jeito determinado com base em suas informações. Numa sociedade desconhecida, leva o estrangeiro a procurar determinados signos comuns, e assim compreender e interpretar as informações e signos socioculturais, para não sofrer um estranhamento distanciador e subjetivo dessa determinada cultura. Dentro da pesquisa cênica, devemos localizar o contexto do objeto a investigar; é assim, como dentro das informações predominantes a estudar, nas subpartituras dos intérpretes num processo de criação. É sua cultura imediata, como exemplifica Sanches (2006: 54), que realizou pesquisa sobre um corpo determinado – seu próprio corpo. Dispõe ele, que: “A cena contemporânea é criada, apresentada e refletida nos corpos contemporâneos. Num processo criativo como este, realizado numa perspectiva multidisciplinar, envolvendo diferentes coreógrafos com suas múltiplas estéticas, entendo os corpos como complexos construídos num ambiente regido pela diversidade sociopolítica e cultural absorvendo os múltiplos valores deste ambiente. Os corpos nesta pesquisa são identificados nas manifestações e costumes da cultura baiana, o que resulta em criações artísticas onde é possível perceber aspectos claros de uma cultura formada por diferentes etnias”. Tendo minha pesquisa como proposta à análise do espetáculo Batata! (2008) do grupo Dimenti, criada e feita por um corpo baiano com múltiplas informações, e influenciado diretamente por uma cultura plural e mestiçada como é a cultura baiana, fato de vital importância na leitura destes corpos solteropolitanos. Levando me a estabelecer uma questão, será que essa A Subpartitura Corporal no Processo de Criação... Leonardo Sebiani.

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U rdimento subpartitura sente-se afetada por determinada cultura? Segundo o mesmo Pavis (2005: 91), a subpartitura não é simplesmente uma estrutura controlada pelo ator em busca de sua partitura, ela é feita de normas culturais e de modelos de conduta dos atores e dá testemunho da marca da cultura sobre ele. Apos tanto tempo esquecido, o corpo nas Artes Cênicas é finalmente colocado num lugar importante, contextualizado a partir dos conceitos de modernidade, pósmodernidade e contemporaneidade. Além disso, o corpo está inserido na discussão cientifica que trata de sociedade e cultura. Cada corpo possui suas historias, modificado e enriquecido pela cultura e sociedade, que, levado à cena, firma-se único e expressivo na sua subpartitura. Daqui que quero abranger com um olhar amplo esses corpos, múltiplos corpos cênicos, corpos das artes cênicas contemporâneas, como assegura Bonfitto (1999: 42): “agora, no contexto teatral, sabe-se que este não mais compõe-se de um teatro, mas de muitos teatros”. Conseqüentemente, não existe uma concepção a respeito do corpo do interprete, mas sim diferentes concepções de corpo - muitos corpos.

Dimenti O Dimenti tem desenvolvido uma pesquisa de linguagem desde a sua formação, em 1998. Isso implica um conjunto de interesses, princípios poéticos e modos de operação reconhecíveis e compartilhados pelo conjunto. “O conjunto nada tem de fixo, já que está em constante processo de desenvolvimento, sendo reconfigurado a todo instante, pois as proposições do grupo buscam ser bastante dinâmicas. Como se trata de uma pesquisa continuada, muitas questões são retomadas e complexificadas ao longo dos anos de trabalho; isto causa modificações – de ordem conceitual e estrutural – em todas as obras cênicas do grupo que, desde o espetáculo de estréia O Alienista, está em atividade. Não trabalhamos preocupados com o surgimento de novidades a cada criação, mas sim em repensar constantemente alguns dos nossos focos de pesquisa artística, para formular diferentes questões criativas, muitas vezes, para os mesmos objetos” (ALENCAR, 2007: 78). Desde a montagem de O Alienista, espetáculo inspirado no conto homônimo de Machado de Assis, o grupo Dimenti vem consolidando o desenvolvimento de uma linguagem baseada na pesquisa e no formato dos clichês estéticos e da corporeidade do Cartum2. O grupo pesquisa, sobretudo, “produtos da indústria cultural - telenovela, programa de auditório, propaganda, musical da Broadway, cinema, produtos de entretenimento infantil-” (ALENCAR, 2007: 79), partindo desta conversão, nasce um olhar critico destes produtos da indústria cultural e, apoiando-se em estereotipias presentes neles e no inconsciente coletivo brasileiro. Dezembro 2008 - N° 11

2 Cartum (do inglês cartoon) diz respeito a desenho animado e não a história em quadrinhos (HQ). Apesar de guardarem relações formais entre si, a investigação do Dimenti se debruça no corpo em movimento apresentado pelo desenho animado. Desde as primeiras obras criadas – O Alienista e Chá de Cogumelo – o Dimenti, além de investigar a construção narrativa e a corporalidade do desenho animado, faz citações no palco de títulos conhecidos como A Caverna do Dragão, Tazmania e Pink e O Cérebro. (ALENCAR, 2007: 79).

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U rdimento Os processos de criação em Dimenti compõem um caldo de múltiplos “ingredientes”, como eles mesmos se identificam. Trata-se de um agregado de percepções e apropriações; estas apropriações partem sempre do referencial de cada participante do grupo, numa atitude colaborativa, aproveitando a diversidade de experiências e informações geradas pelos intérpretes-criadores em conexão com os elementos compositivos do trabalho, utilizando a pluralidade como ferramenta e baseando-se nos critérios teórico-práticos do grupo.

O corpo em Dimenti No Dimenti os corpos dos intérpretes-criadores estudam a composição dos desenhos animados para chegar na conceição de um outro corpo, um corpo cartunesco com um risco físico constante, que é transformador de fronteiras corporais. O corpo cartunesco tem vários aspetos, um deles utilizado recorrentemente são as variações abruptas de estado corpóreo, realizadas por corte seco. Não existe uma fluidez entre ações elas são um constante collage de mutações esporádicas. O corpo em Dimenti é movido por interrupções/ modificações bruscas, as quais requerem uma urgência no atendimento das intenções e objetivos cênicos, em um ambiente que está em permanente processo de descontinuidades e estranhamentos. Na cena se observam corpos realizando ações simultâneas, as vezes incoerentes, discrepantes, contraditórias o desconectadas, que ajudam a clarear essa idéia de borrar fronteiras. E justo nesta procura de borrar fronteiras que nasce o conceito de “Corpo Borrado”, o qual surgiu recentemente para dar nome ao o trabalho do grupo, como expõe Alencar (2007: 104): “A expressão “corpo borrado”, surgida recentemente na tentativa de nomear, numa metáfora-síntese, a organização criativa, ética e operacional do grupo ao longo dos anos de trabalho. Esse termo não procurar abarcar ou fixar a pesquisa artística do grupo, mas atende a uma demanda momentânea do grupo, podendo ser revisto posteriormente. De modo contíguo a esse estudo, um corpo borrado não reivindica uma identidade unificada num “eu” coerente, mas se transforma continuamente. Na busca de entender melhor o que eu mesmo venho produzindo, num processo de realizar e de se ver realizar, esse “corpo borrado” corresponde: 1) a um conjunto de procedimentos compositivos presentes na pesquisa artística do grupo; 2) a um tipo de corporalidade investigada nas minhas criações em dança; 3) aos acordos éticos presentes na configuração da equipe de trabalho do Dimenti – metodologia de criação e de produção – e suas implicações afetivas”. A Subpartitura Corporal no Processo de Criação... Leonardo Sebiani.

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U rdimento Este corpo borrado, não é fixo, ele é dinâmico, permeável e ultrapassa os conceitos de território e de fronteira: “A idéia de borrar demarcações traz à tona a sólida idéia de território, mas não para reforçá-la e sim para dinamizar um processo de identificações que problematizam tradicionais oposições binárias [...] A criação desse espaço fronteiriço, intersticial se irmana à discussão sobre identidade cultural e hibridismo, procurando justamente descartar certas perspectivas essencializadoras sobre identidade enquanto um constructo fixo”. (ALENCAR, 2007: 105) A idéia de borrão vem se desenvolvendo a traves dos trabalhos do grupo, mas foi a partir do IV Ateliê de Coreógrafos Brasileiros (2005), com a criação da A Lupa, que Alencar explora movimentações que criam uma tensão e correspondem à identificação cartunesca nos corpos dos interpretes. Esses corpos transitam entre “o acidente e a construção, a impostação e o relaxamento, entre o ‘estado de cena’ e o ‘estado de coxia’” (ALENCAR, 2007: 107). A atitude destes corpos é de uma displicência construída e gerando uma simultaneidade de ações desconexas no corpo. Um corpo cheio de torções em situações desconexas obrigam a os corpos na cena a uma manipulação e articulação, a idéia seria gerar um “nó” com eles e neles, dando como resultado formas grotescas do corpo em uma situação pouco habitual. Dentro de essa simultaneidade, constantes variações nos estados corporais, eles não tem uma conexão fluida, esta passagem é repentina, em um nexo-causal, o que Dimenti chama de jogo de “interruptor”. Assim o corpo é utilizado em Dimenti como um corpo borrado, que demarca as estratégias do grupo, como assegura Alencar (2007: 110): “A idéia de um corpo borrado ainda encerra um pressuposto ético que diz respeito ao modo como organizo os meus processos pedagógicos de criação e ao trabalho colaborativo no Dimenti. No grupo, não existe um único programa de preparação artística para as criações. São realizadas leituras, conversas, coleta de referenciais imagéticos (vídeos, músicas, fotos e outros), produções literárias que possam atender a cada questão específica com a qual nos deparamos. Muitas vezes os encontros e ensaios se resumem a longas conversas e avaliações sobre alguma questão do grupo ou sobre nosso entorno cultural.” Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento A análise do Processo Criativo Como base para o estudo do grupo, utilizou-se o trabalho Batata! (2008), que possui como matéria-prima textos de autores baianos inspirados no universo de Nelson Rodrigues; como metodologia de análise, foi utilizada a observação e a avaliação dos corpos e de suas informações; para a análise do processo criativo, utilizaram-se as anotações das impressões durante os ensaios e entrevistas com o diretor do grupo sobre o caminho que se pretendia seguir. Neste percurso de acompanhar o trabalho com um olhar externo e estrangeiro foi bastante gratificante, pois vários conceitos e paradigmas foram reestruturados – o trabalho de apropriação dos textos por Dimenti, tem como primazia a corporeidade Cartum e o clichê, os quais encaixaram-se muito bem com as propostas dos autores. O Dimenti é um grupo consolidado e a maioria de seus integrantes participa desde sua fundação no ano de 1998. Sendo um trabalho totalmente colaborativo, o diretor Jorge Alencar, conhece e reconhece a heterogeneidade dos corpos e, por sua vez, as possibilidades de cada um deles, ou seja, reconhece o conceito de Pavis, com relação à bagagem que cada corpo possui e sabe como cada um pode desempenhar e aproveitar a proposta individual dentro da coletividade dimentiana. No processo criativo o grupo faz seções de leituras de textos - tanto daqueles que têm a ver com o tema diretamente, quanto de outros que não atendem necessariamente à proposta, mas que funcionam como base de discussões das quais saem múltiplos jogos cênicos. Cada um aponta a possível leitura de um texto, frase, gesto ou movimento e cada um indica algo e apóia o outro no desempenho da proposta. No processo descrito por Salles (2008: 91) com a Companhia 2 do Ballet da Cidade de São Paulo durante o 2005, “Os limites ou restrições são enfrentadas com dificuldade e permanentemente transformados em desafios”; para o Dimenti, os limites sãouma fronteira pela qual eles transitam, porém limites ou restrições são dadas como regras de jogos, acompanhadas por um humor característico dimentiano, onde o desafio não é a partir da restrição, e sim, à partir do jogo. Por exemplo: no espetáculo utilizavam-se copos de plástico no palco e era uma regra não tirar os copos; esse ponto era visto como parte de um jogo e não como uma restrição; aqui compartilho com Salles que reconhece no discurso de Klaus a importância “de estar aberto a” (VIANNA apud SALLES, 2008: 91). Para mim, o Dimenti possui abertura a coisas novas e, sobretudo, ao jogo cênico corporal de onde partem as propostas criativas. Dentro da proposta de Dimenti, todo é um território de câmbios, nada é fixo, pois dentro dos ensaios existe a possibilidade de criar-se A Subpartitura Corporal no Processo de Criação... Leonardo Sebiani.

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U rdimento inúmeros espetáculos. No processo de “Batata” trabalhou-se sob a proposta de ingredientes, ou seja, de jogos criativos, os quais foram identificados através das leituras dos textos de Nelson Rodrigues, da apropriação dos mesmos, de utilização das rubricas do autor, da imersão no universo do autor onde, por exemplo, num momento era trabalhado o ingrediente o “Abraço a Deus”, que era a proposta de ver no outro a Deus e abraçá-lo tanto, que nunca quisesse soltá-lo e o resto dos colegas insistissem em soltá-lo, com força, até conseguir a separação. Nos textos de Nelson, assim como o exemplo colocado se expõe as paixões desenfreadas que levam em algumas ocasiões, a situações surreais. Em concordância com a proposta analisada por Salles para a Companhia 2, os elementos externos tiveram uma importância conforme o corpo do intérprete tinha mais contato com ele e com sua criatividade. No caso de Batata! copos de plástico; flores de pelúcia para crianças; louças verdes de escola, de diferentes tamanhos e giz, foram incorporadas às propostas durante a criação e na proposta final. Dentro da proposta de acompanhamento do processo criativo pude apreciar e reconhecer momentos desse gesto inacabado, onde para mim foi importante “compreender o ato criador nos leva, certamente, à constatação de que uma possível morfologia do gesto criador precisa da beleza da precariedade de formas inacabadas e da complexidade de sua metamorfose” (SALLES, 2004: 60), a partir das individualidades e dos universos de cada um desses corpos dos intérpretes-criadores de Dimenti; do universo sensível do processo de criação e, de como o diretor do grupo consegue aproveitar as subpartituras de cada um deles; seus aportes num caminho de construção de ingredientes e regras a partir de uma corporeidade cartunesca; e a releitura dos clichês e estereotipias dos mecanismos de consumo social e da apropriação de textos e universo comunicacional. Neste processo, meu olhar como ente externo foi proveitoso ao conhecimento da tendência do grupo e dos estudos anteriores ao trabalho de Batata! e da quantidade de material que foi excluída, pois no momento do recorte do diretor, ele se baseia em que “Tudo vale, depois conta uma boa orientação e uma boa edição” (ALENCAR apud MOLINA, 2006: 63). Essa edição parte do reconhecimento desse corpo descrito por Bellini, em que um universo de informações impregnadas por uma cultura é o que nos oferece os intérpretes-criadores de Dimenti, numa heterogeneidade implícita em nossa contemporaneidade, e assim como reconheço na proposta do grupo, um borrar fronteiras nas artes cênicas contemporâneas, dando um novo significado ao corpo e aos processos criativos em contínuo acabamento ad infinitum. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Referências bibliográficas ALENCAR, Jorge Luiz. Do cisne-barbie ao cisne asmático: comicidade e subversão performativa de identidade em chuá – releitura cênica do balé O lago dos cisnes feita pelo grupo Dimenti. Dissertação de Mestrado, PPGAC, UFBA: Salvador, BA, Brasil: 2007. BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Editora da Unicamp, 1995. BELLINI, Magda. Dança e diferença: duas visões, Corpo, dança e deficiência: a emergência de novos padrões. Rio de Janeiro: UniverCidade, s/d: Lições de dança, nº. 3, p. 211. 2001. BONFITTO, Mateo. O corpo no trabalho do Ator. Salvador, BA: UFBA: Revista Repertório: Ano 2, nº 3, 1999.2 FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro: Repetição e transformação. Editora Hucitec: São Paulo, 2000. MOLINA, Alexandre José. Caleidoscópio de um processo colaborativo em dança. Diálogos Possíveis. Salvador: FSBA, n° 10, p. 57-68, jan./jun. 2007. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes. 1987. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2005. SALLES, Cecilia. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 2º ed. São Paulo: Annablume, 2004. SALLES, Cecilia. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3º ed. São Paulo: EDUC, 2008. SANCHES, Antrifo. Lá ele, devaneios, memórias e estados de corpo em três processos coreográficos. Dissertação de mestrado PPGAC, UFBA: 2006. SANT`ANNA, Denise. É possível realizar uma historia do corpo? Corpo e historia. Carmen Lúcia Soares (org.). Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004.

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U rdimento

RAINHAS, SUTIÃS QUEIMADOS E BRUXAS CONTEMPORÂNEAS - REFLEXÕES A PARTIR DA MONTAGEM VINEGAR TOM Maria Brígida de Miranda1

Resumo

Abstract

Este artigo está inserido no contexto da primeira montagem de Vinegar Tom no Brasil, produzida em 2007 e 2008 pela Universidade do Estado de Santa Catarina, nas disciplinas Montagem Teatral I e II, e das comemorações na Inglaterra do aniversário da dramaturga Caryl Churchill. Nesse âmbito, o artigo busca dar visibilidade a três assuntos correlatos por meio de: a) um panorama do ‘teatro feminista’ e contextualização da produção de Churchill; b) uma análise da obra de Churchill, em particular do texto Vinegar Tom, apontando estratégias e estéticas dos teatros feministas, e c) uma discussão sobre a montagem que dirigi de Vinegar Tom, defendendo a necessidade de inserção do estudo do teatro feminista nos âmbitos acadêmico e artístico brasileiros.

During the English colebrations of the birthday of playwright Caryl Churchill, this article presents itself as a text celebrating the first staging of Vinegar Tom in Brazil, produced in 2007 and 2008 by the University of the State of Santa Catarina, in the subjects Theatre Production I and II. The article seeks to give visibility to three correlating topics: a) the text presents a panorama of “feminist theatre” and contextualizes the work of Caryl Churchill; b) it highlights elements of Churchill’s output, in particular from the work Vinegar Tom, which bring together and exemplify strategies and aesthetics of feminist theatres; c) the article focuses on the Brazilian production of Vinegar Tom, looking to the necessity of bringing the study of feminist theatre into the Brazilian academic and artistic spheres.

Palavras-chave: teatro feminista, Vinegar Tom, montagem, Caryl Churchill.

Keywords: feminist theatre, Vinegar Tom, Caryl Churchill, theatre production.

A rainha do teatro feminista Celebrada pelo jornal inglês The Guardian como a dramaturga que “nos últimos 35 anos, criou os momentos mais importantes do teatro Britânico contemporâneo”2, Caryl Churchill completou vigorosos e produtivos 70 anos, no dia 3 de setembro de 2008, com celebrações públicas e artigos especiais sobre Dezembro 2008 - N° 11

1 Professora do Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Exceto a citação do texto de Sueli Gomes Costa, todas as citações deste artigo são originalmente em inglês, com tradução da autora. Ravenhill, Mark. "She Made us Raise Our Game". The Guardian. Disponível em http:// www.guardian.co.uk/ stage/2008/sep/03/ carylchurchill.theatre Acesso em 07/09/08. 2

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U rdimento "The queen of alternative and feminist theatre turns 70 today". Disponível em http://www. guardian.co.uk/ stage/gallery/ 2008/sep/02/ carylchurchill? picure=337204484 Acesso em 07/09/2008. 2

a sua vasta produção teatral. Em um país que mantém monarcas, a chamada do jornal “a rainha do teatro feminista e alternativo completa 70 hoje” pareceu ser uma coroação simbólica da polêmica Ms. Churchill3. O teatro Royal Court, parceiro de Churchill há décadas na montagem de suas peças, comemorou o aniversário da escritora promovendo um ciclo de leituras dramáticas, o Caryl Churchill Readings, no qual dramaturgos e dramaturgas selecionaram da vasta obra de Churchill sua peça favorita. Dentre as dez peças apresentadas estava Vinegar Tom (1976), texto feminista-socialista escrito por Churchill em colaboração com o grupo de teatro Monstrous Regiment. Tais celebrações, podemos supor, marcaram pela ‘festa’ o ato de dar visibilidade na esfera pública -- com deferência -- às obras de teatro feminista e alternativo de Churchill.

Teatro feminista, um termo singular? O termo ‘teatro feminista’ já indica o embricamento entre duas práticas específicas. O teatro feminista seria uma prática teatral informada pelos discursos e causas feministas. Contudo, essa definição simples, complicase à medida que se percebe as multiplicidades de práticas teatrais e de práticas feministas. Se são inúmeras as possibilidades de ‘fazer teatro’, o feminismo não é um movimento único e homogêneo, mas um fenômeno com diferentes ideologias e demandas ao longo da história, moldadas por contextos políticosociais específicos. Se a premissa do feminismo é de que existe ao longo da história, e em diferentes culturas, a subordinação da mulher ao homem, as lutas do movimento feminista desde o século XIX são divididas em ‘ondas’ -- categorizando assim diferentes momentos históricos, portanto diferentes feminismos. Além disso, proliferam tanto os discursos filosóficos e teóricos que investigam as causas da subordinação feminina quanto os inúmeros caminhos e ações propostas por diferentes correntes feministas para combater a subordinação das mulheres na sociedade patriarcal. Esta heterogeneidade aplica-se na escolha do plural ‘Feminismos’ no lugar de ´Feminismo’4. Ver COSTA (set-dez/2004). 4

Similarmente, para abarcar várias práticas teatrais feministas, autoras inglesas e americanas buscaram um termo plural: teatros feministas. Sue-Ellen Case (1990), Peggy Phelan, Lynda Hart (1993) e Michelene Wandor (1986) são algumas das autoras que já na década de 1980 e início de 1990 abordaram o aparecimento de grupos de teatro feminista nos anos 1960 e 1970, nos Estados Unidos da América e Inglaterra. Elas indicam as práticas de teatro feminista resultando de um entrecruzamento entre o teatro experimental e a segunda onda movimento feminista nestes países. Wandor (1986) situa o surgimento dos teatros feministas na Inglaterra a partir de 1968 e explica que a noção de ‘diferença de gênero’ ainda não era discutida pelo teatro alternativo, nem mesmo pelo teatro político. Tanto as peças teatrais como as encenações mantinham uma perspectiva e uma abordagem masculina sobre problemas sociais, econômicos e Rainhas, sutiãs queimados e bruxas... Maria Brígida de Miranda.

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U rdimento políticos, tendo sido, afirma Wandor, a “Revolução Teatral pós-1968” (1986:32) que trouxe assuntos relacionados à mulher e à orientação sexual para a agenda do teatro alternativo. Lizbeth Goodman (1993) concorda com Wandor sobre esta data para o surgimento dos teatros feministas na Inglaterra, fazendo, contudo, uma ressalva ao situar esse fenômeno como pós-1968, Goodman o demarca como a “segunda onda” do teatros feministas. A autora ainda alerta para a existência de práticas teatrais feministas na Inglaterra já no início do século XX. De fato, pesquisas históricas pioneiras como a de Julie Hollegde (1981) descrevem como mulheres de teatro do final do século XIX trouxeram as causas da primeira onda do movimento feminista para a prática teatral e a autora apresenta vários momentos dessas práticas. Dentre os mais significativos estão a formação de organizações de mulheres de teatro como a Actresses Franchise League e os grupos de teatro de mulheres como Pioneer Players dirigido por Edy Craig, irmã de Gordon Craig. A pletora de textos deste “novo teatro de mulheres” abordou “tabus como sexo, divórcio, doenças venéreas, prostituição” além de inovações na forma e romper com o espaço do edifício teatral, como o lugar do teatro, sendo as peças apresentadas em “ruas, salões de igrejas, teatros do West End, pistas de patinação no gelo -- em qualquer lugar” (HOLLEDGE, 1981: página de rosto). Esta ‘primeira onda’ de teatro feminista teria sido abruptamente rompida pela I Guerra Mundial. A ‘segunda onda’ dos teatros feministas ganhou intensidade tanto nos eventos específicos do teatro como do movimento feminista. Goodman aponta alguns dos eventos que podem ter contribuído para esse florescimento, como o Ato do Parlamento Britânico em 1968 que aboliu a censura ao teatro, e a Primeira Conferência Nacional Britânica para a Liberação das Mulheres em 1969. Goodman amplia o contexto de influências ao abordar os incidentes nos Estados Unidos da América, como as grandes manifestações públicas de movimentos de mulheres, de 1969 até 1971, contra os concursos de Miss Mundo e Miss América. Para ela, estas manifestações podem ser vistas como teatralizações do repúdio contra as representações da mulher enquanto objeto sexual (GOODMAN, 1993: 24). Na prática artística, a desestabilização de representações masculinas sobre as mulheres foi alvo já na década de 1960, de inúmeras artistas tanto em trabalhos solo como os de Carolee Schneemann como em coletivos, como o Female Fluxus. Rebecca Schneider (1997) destaca como essas artistas buscaram desestabilizar as representações da mulher na arte, por meio da performance e de suas obras de arte. Neste contexto, várias artistas usaram estratégias de auto-representação, mostrando-se como ‘artistas’ e não apenas como ‘musas’ ou ‘objetos de arte’. As obras de arte de Schneemann e do Female Fluxus criam perspectivas feministas sobre o significado da arte, do próprio corpo e de como elas, como artistas, usam os próprios corpos na elaboração de representações do corpo feminino como um Dezembro 2008 - N° 11

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Ver MIRANDA (2003). 5

Embora seja um termo utilizado na língua inglesa, acho importante destacar o sentido forte que lhe deu Paulo Freire, ao realçar a tomada de consciência e de atitude daquele que decide sobre seus atos e por ele se responsabiliza. Sobre o uso do termo, ver LAVOURA, Leira Paulo Freire. O educador brasileiro autor do termo empoderamento em seu sentido inovador. Disponível em http:// www.fatorbrasis. org/arquivos/Paulo_ Freire Acesso em 22/10/2008. 6

Ver DERRIDA; NASCIMENTO (2005). 8

corpo ativo e produtor de arte. Especificamente na esfera teatral, se até 1968, na Inglaterra e EUA, a prática era ainda dominada por homens em cargos de poder (cargos de criação e decisão: autores, diretores, cenógrafos, produtores) e os produtos como o texto e a encenação, resultados desse universo masculino, a partir daquele momento as mulheres de teatro buscavam espaços próprios para exercerem tais funções. O direito a ‘ter voz’ nos processos de criação foi uma das principais motivações para que várias artistas deixassem seus grupos de teatro e se reunissem em grupos de teatro exclusivamente de mulheres. Vários desses grupos de teatro de mulheres nas décadas de 1960 e 1970 podem ser vistos como “espaços ginocêntricos”5, espaços de proteção e empoderamento6, onde as mulheres envolvidas assumiram responsabilidades por processos de criação e produção teatral. Pode-se afirmar que uma das principais características de grupos de teatro feministas é as mulheres participantes assumirem tarefas de criação e produção, abrindo-se espaço para a construção de representações de mulheres, de papéis e relações sociais a partir de olhares e vozes femininas. Os resultados vão desde os textos escritos por mulheres, passando por mulheres como foco da peça, até o direcionamento do discurso para outras mulheres. Pode-se dizer que em várias das práticas de teatros feministas a produção de textos levou a transformação das próprias formas de produção e a questionamentos sobre hierarquias e relações de poder. Seguindo a tendência do teatro alternativo, funções como a do dramaturgo foram reformuladas ou diluídas em processos de criação coletiva. Tornou-se comum, por exemplo, a produção de textos a partir de improvisações e de temas ou experiências pessoais. A escrita de Vinegar Tom pode ser tomada como exemplo de uma prática comum ao teatro feminista destas décadas: o processo colaborativo. Embora o processo colaborativo e a criação coletiva não sejam uma exclusividade dos teatros feministas, estes espaços ampliaram as possibilidades de trabalho coletivo e colaborativo. Autoras com Alison Oddey (1998) e Elaine Aston (1999), além de defendem esse argumento, mapearam várias das estratégias para a criação de textos e espetáculos próprios, desenvolvidas em grupos de teatro feministas. Muitos dos textos e espetáculos feministas produzidos nas décadas de 1960-70 revelam estruturas que desconstroem narrativas tradicionais (seguindo a vertente do pós-modernismo e do vocabulário de Derridá8) e quebram os limites entre teatro ‘de texto’ e o teatro físico, o teatro visual e o circo. Peta Tait, ao analisar as práticas teatrais feitas por mulheres na Austrália, observa que estas práticas “ampliam o espectro das formas teatrais existentes” (TAIT, 1994: 2). Como afirma Tait, a prática teatral feminista significa uma “construção de diferentes realidades teatrais”(idem). Portanto, pode-se concluir que, mesmo optando por numa perspectiva mais conservadora, a relevância de se estudar ‘teatros feministas’ nas universidades é a de que essas práticas Rainhas, sutiãs queimados e bruxas... Maria Brígida de Miranda.

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U rdimento significaram uma transformação da prática teatral, tanto no conteúdo e estética da peças teatrais e espetáculos quanto nas estratégias de criação e trabalho.

Vinegar Tom - contexto e texto Qualquer texto de um grupo de teatro feminista reflete um teatro político com conteúdo relacionado às experiências e problemáticas de mulheres em contextos culturais particulares. A partir da década de 1960, estas problemáticas relacionam-se principalmente as demandas da ‘segunda onda’ do movimento feminista. Este é o ponto crucial que Goodman usa para contextualizar o debate anterior sobre os usos dos termos ‘teatro de mulheres’ e ‘teatro feminista’. Enquanto o ‘teatro de mulheres’ é visto como um termo geral o ‘teatro feminista’ significa um comprometimento com o ativismo feminista. Goodman cita Susan Bassnett para explicitar essa relação entre ‘teatro feminista’ e ativismo’: [...] O ‘Teatro Feminista’ logicamente baseia-se nas preocupações estabelecidas pela organização do Movimento de Mulheres, sobre as sete demandas: igualdade de salários; igualdade de oportunidades de educação e de trabalho; creches gratuitas de 24 horas; contracepção e abortos gratuitos sob solicitação; independência legal e financeira; um fim a discriminação contra lésbicas e o direito a mulheres de definirem suas próprias sexualidades; luta contra a violência e a coerção sexual. Estas sete demandas, das quais quatro foram estabelecidas em 1970, e as restantes em 1975 e 1978 mostra, uma mudança em direção a um conceito mais radical de feminismo que afirma a homossexualidade feminina e percebe a violência partindo dos homens. (BASSNETT apud GOODMAN, 1993:30-1) Neste âmbito, o texto Vinegar Tom pode ser visto como exemplo de uma produção de um grupo específico de mulheres, no contexto da Inglaterra dos anos 1970, que aborda diretamente várias das demandas do movimento feminista. O ativismo feminista de Churchill e das integrantes do Monstrous Regiment pode ser percebido não apenas pela inserção da discussão sobre o aborto na peça Vinegar Tom, mas por vários outros temas apresentados na peça: a violência contra a mulher, tanto na esfera doméstica quanto pública; o estupro; a gravidez indesejada; a histeria; o casamento; o desejo sexual; o controle de natalidade, e a menopausa. O texto, estruturado de maneira brechtiana, em episódios (ao todo 21), aborda em cada quadro pelo menos um desses temas. As sete canções que entremeiam as cenas não se limitam a comentar a ação das personagens do século XVII, mas relacionam os problemas vividos por elas aos problemas vividos pelas mulheres na década de 1970. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Os assuntos que faziam parte problemática dos movimentos feministas da ‘segunda onda’ ganharam na escrita de Churchill/Monstrous Regiment uma historização. Há uma associação entre a falta de agência das mulheres na década de 1970 com uma subordinação histórica do corpo feminino ao olhar e controle da sociedade patriarcal em séculos anteriores. Churchill explica que quando foi convidada a escrever sobre a bruxaria ela tinha uma visão a partir da imagem das “fogueiras da inquisição, histeria e bacanais” que eram as representações mais freqüentes da ‘caça as bruxas’ em “filmes e ficção” (CHURCHILL apud REINELT 1990:156). No entanto, a partir da pesquisa que ela e o Monstrous Regiment realizaram nos arquivos de Essex sobre a ‘caça as bruxas’ elas perceberam como as acusações de bruxaria eram na verdade contra “ofensas corriqueiras e banais como a morte de uma vaca ou a manteiga que não vinha” (ibid.). Para Churchill, a bruxaria relacionavam-se à “pobreza, humilhação e preconceito e a auto-imagem das mulheres acusadas de bruxaria” (ibid.). Ou seja, eram principalmente a dependência econômica e a marginalidade que favoreciam a acusação de bruxaria imputada a certas mulheres, embora não fosse apenas isso.

Uma primeira versão desta parte do trabalho foi apresentada na I Jornada Latino-Americana de Estudos Teatrais (Experimentalismos e Identidades), coordenada pelo Prof. Dr. André Carreira, atividade ligada ao Festival de Teatro Universitário de Blumenau, em julho de 2008. Agradeço aos participantes os comentários que me fizeram repensar determinadas questões apresentadas naquela ocasião. 10

Neste contexto, Vinegar Tom gira em torno da falta de possibilidade das mulheres (de várias idades, estados civis e poder aquisitivo) decidirem sobre os próprios destinos, o que em última instância significa tomar decisões sobre o corpo. O texto teatral explora a falta de poder sobre o próprio corpo a partir de uma contextualização social da problemática individual. Talvez, seja sintomático que Vinegar Tom tenha sido escolhida em 2008 para o Churchill Readings por Winsome Pinnock, dramaturgia com reconhecida produção de peças e textos sobre a situação mulher negra na Inglaterra. Pode-se especular se a peça continua ‘atual’ apenas por sua estrutura, ou se o conteúdo ainda seria pertinente no contexto inglês para as mulheres afro-descendentes e imigrantes, motivação da escolha de Pinnock para a leitura.

Vinegar Tom: da queima de sutiãs às fogueiras da inquisição10 Como coordenadora de um projeto de pesquisa acadêmico intitulado Poéticas do Feminino e Masculino: A prática teatral na perspectiva das teorias de gênero, propôs, desde sua implementação, em 2006, não apenas a investigação sobre as práticas de teatros feministas, mas também a abertura de um espaço escolar no qual discussões sobre representações do feminino e masculino no teatro pudessem ser iniciadas. A atividade envolvia o grupo de estudos Teatro e Gênero, aberto tanto para estudantes como para a comunidade em geral (mulheres e homens). Sintomático que nos três semestres de encontros o grupo fosse freqüentado unicamente por mulheres, em sua maioria alunas do curso de artes cênicas. Como sugestão, a primeira tarefa que propus ao grupo de estudos foi a de questionar as próprias ‘representações’ que cada participante trazia sobre os movimentos feministas, e a figura da ‘feminista’. Rainhas, sutiãs queimados e bruxas... Maria Brígida de Miranda.

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U rdimento A principal representação revelada pelas participantes coincidia com a representação perpetuada em vários veículos de comunicação (incluindo inúmeros sites e blogs consultados na internet) relativas às manifestações do movimento feminista -- mulheres que queimaram sutiãs em praças públicas. Esta representação seria uma alusão a performance do Women’s Liberation Group, em sua manifestação durante os desfiles de Miss America 1968, quando mulheres levaram vários objetos como vidros de laquê, sapatos de salto alto e sutiãs e os jogaram em uma lata de lixo. Se a performance teve o objetivo de simbolizar o repúdio dessas mulheres a uma única alternativa de ‘ser mulher’, ou seja de um universo feminino construído pela indústria e sociedade de consumo, a manchete do jornal do dia seguinte nomeava o ato como Bra-burning11 (queima do sutiã). Quarenta anos depois, celebrados também em setembro de 2008, uma das organizadoras do protesto, Carol Hanish ainda precisava explicar a ‘distorção’ do ato feita pelo jornal New York Post, repetida posteriormente por inúmeras mídias. Sintomático, talvez, a perpetuação dessa imagem – um fragmento de notícia que erotiza uma performance feita contra a objetificação do corpo feminino, restabelecendo, perversamente, a representação das mulheres como objetos sexuais. Ao recontar/recriar a performance, a mídia criou outra representação da mulher: a da fêmea indomável, feminista que num strip-tease arranca o objeto de fetiche para queimá-lo em praça pública. Paralelamente à reavaliação desse tipo de representação, foram feitas, em nosso grupo, leituras introdutórias sobre a história do movimento feminista, e a partir de alguns conceitos trazidos pela teoria crítica feminista e estudos de gênero, iniciamos os debates sobre a desnaturalização da categoria ‘mulher’ e da noção de identidade fixa de gênero12. O estudo desse processo de ‘desnaturalização’ do ‘feminino’ e ‘masculino’ serviu como base para discussão do fazer artístico, especificamente da prática teatral. Como o teatro constrói representações de mulheres e homens a partir da repetição era uma das questões que Judith Butler discutira em Gender Trouble (1999), propondo a idéia de sexo como algo performativo. A partir daí nos perguntávamos: de que maneira autores teatrais constroem personagens femininas e masculinas? Há alguma diferença na escrita de autoras e autores teatrais? As autoras são necessariamente feministas, ou escrevem necessariamente de forma diferenciada dos homens? Para refletirmos sobre estas questões fizemos leituras de peças teatrais escritas por mulheres, dentre as quais Vinegar Tom (1976), a partir da tradução feita por uma das integrantes do grupo, a acadêmica Cláudia Mussi. Após observar a receptividade no grupo de estudos, resolvi propor o texto Vinegar Tom para as disciplinas obrigatórias do curso de Artes Cênicas do Centro de Artes da UDESC, Montagem Teatral I e II, que ministraria, respectivamente, no segundo semestre de 2007 e no primeiro de 2008. O principal objetivo era introduzir na graduação em artes cênicas uma peça Dezembro 2008 - N° 11

Greenfieldboyce, Nell. Pagent Protest Sparked Braburning Myth. Echos of 1968. NPR. Disponível em http://www.npr.org/ templates/story/ story. php? storyId=94240375 Acesso em 19/08/2008. 11

12 Sabemos que este é um debate complexo que envolve problemas filosóficos ligados aos conceitos de natureza. Sobre o tema, veja, por exemplo, ASSMANN, Selvino José. Condição humana contra "natureza": diálogo entre Adriana Cavarero e Judith Butler. Revista Estudos Feministas, v. 7, p. 647-649, 2008.

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Lembro que os nomes se referem às personagens históricas Heinrich Kramer e Jacob Sprenger, autores do manual de caça as bruxas Malleus Maleficarum, publicado em 1486. 13

representativa de um tipo de teatro feminista, um texto onde o conteúdo e o formato enfatizam o engajamento com as causas do movimento feminista da ‘segunda onda’. Considerando o número maior de mulheres cursando artes, um dos objetivos específicos foi o de oferecer melhores oportunidades de atuação, por meio de um texto com maior número de personagens femininas; e no qual as personagens femininas não são periféricas na trama. A escolha do texto Vinegar Tom me pareceu adequada, após uma estimativa do número de alunos e alunas previsto para a disciplina naquele semestre, a divisão de papéis por gênero seria possível necessitando pequenos ajustes, pois a peça tem 14 (quatorze) personagens e uma ‘banda’ musical. São 7 (sete) personagens femininos e 7 (sete) masculinos, sendo que 2 (dois) dos papéis masculinos, o dos inquisidores Kramer e Sprenger13, segundo sugestão da autora em nota de rodapé, devem ser feitos por mulheres. Na apresentação da proposta para o colegiado do curso de artes cênicas e para o grupo de alunos/as a serem matriculados/as foi esclarecido que o trabalho sobre o texto de Churchill na graduação encontraria limitações como exercício da prática feminista. Não é novidade que quando atividades artísticas são realizadas em espaços complexamente hierarquizados e normatizados, como as universidades, há dilemas cruciais decorrentes da proposta de criticar e mesmo romper hierarquias. Neste sentido, uma típica prática feminista, que busca a verticalização das relações, estaria excluída do espaço da sala de aula, considerando todas as limitações que o/a professor/a e alunos/as estão submetidos quando neste contexto específico. Por outro lado, esta problemática pode ser de igual teor ao buscar-se encenar peças do teatro político ou alternativo, objetivando resgatar certas estratégias de construção e encenação no contexto de origem. O objetivo da proposta para a disciplina previa esta limitação e centrava-se na introdução de um texto de teatro feminista-socialista como ‘objeto de estudo’, neste caso um estudo por meio da leitura, discussão e da experiência da produção teatral, para alunos de graduação de uma universidade pública. Esta proposta encontrava precedentes em várias universidades americanas, inglesas e australianas onde o peça foi encenada e divulgada nos sites oficiais destas instituições. Cientes da escolha de Vinegar Tom e de seu conteúdo e formato feminista, dezessete estudantes matricularam-se em minha turma, sabendo que, sob minha direção, executariam dois exercícios específicos da prática teatral: o trabalho de ator/atriz e o trabalho de realização do espetáculo. Em agosto de 2007 a turma, pela primeira vez, fez uma leitura dramática de Vinegar Tom. Durante esse mês repetimos esse procedimento, e essas leituras funcionaram tanto como momento dos/as alunos/as conhecerem o texto completo como de experimentarem a leitura de diferentes personagens – deixei claro que as leituras dramáticas contribuíam também para a definição do elenco. Durante e após a leitura, pedi Rainhas, sutiãs queimados e bruxas... Maria Brígida de Miranda.

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U rdimento que fizessem desenhos/escritas de imagens sugeridas pela leitura14. Essa foi uma estratégia para acessar o que cada um achava do texto, dos personagens, de como gostaria de ver o elenco formado. Tomei as decisões sobre elenco considerando não apenas a minha concepção do espetáculo, mas as sugestões que os/as alunos/ as deram por escrito, sobre o próprio papel e o dos/as colegas. Mesmo que minhas escolhas refletissem as escolhas que os/as alunos/ as já haviam feito por escrito, havia ainda a manutenção do poder centrado no diretor, nesse caso uma mulher. A solução para amenizar a hierarquia nas relações entre diretora-atores/atrizes foi a de que as/os participantes fossem também responsáveis pela criação da encenação. Reunidas/os em equipes de trabalho, de acordo com suas escolhas, poderiam desenvolver a criação de figurinos, luz, cenário e objetos de cena; além da banda, que desfrutava um espaço privilegiado de criação. A equipe de preparação corporal foi conduzida no primeiro semestre pela mestranda Paula Rojas, na prática de Tai-Chi-Chuan, e os/as acadêmicos/as Elisza Schmidt, na condução de exercícios de Yoga, e Fabiano Lodi e Letícia Martins, na aplicação dos exercícios de View-Points15. Bárbara Biscaro atuou como voluntária na preparação vocal da banda, o que significava também um momento em que a liderança era passada da professora/ diretora para outros membros da equipe. Essa circulação de papéis de liderança é uma característica que pode ser vista como um exercício de empoderamento e agência. Outra solução para amenizar a hierarquia foi o de manter determinados horários ou mesmo dias, ao longo da disciplina, para a realização de discussões sobre o processo da montagem, nos quais decisões foram tomadas a partir de votações e acordos entre os/as acadêmicos/as e professora/diretora. A importância da distribuição dos papéis, no primeiro no mês de aula, significou a definição de tarefas para cada aluno/a como ator/atriz. Com a personagem definida o/a aluno/a poderia concentrar-se na leitura de suas cenas e na construção da personagem a partir do entendimento do texto e das tentativas de construção da partitura de ações físicas que a personagem precisaria realizar na cena. Enquanto eu trabalhava na construção de uma determinada cena com um grupo de atores, Rojas e Lia Motta (monitora), como assistentes de direção, trabalhavam com outros grupos de atores na leitura do texto e na identificação e construção de verbos de ação, de intenções que moveriam as personagens na cena. Assim, os personagens foram sendo construídos a partir de leituras do texto e durante o processo de construção da cena. No final do segundo mês o espetáculo já tinha 8 (oito) das 21 (vinte e uma) cenas esboçadas. Ao final do semestre de Montagem Teatral I, o espetáculo completo já estava estruturado. Vinegar Tom foi apresentado com suas 21 cenas tipo ‘episódios’ interpretadas por 12 atores. As cenas eram intercaladas pelas Dezembro 2008 - N° 11

O suporte teórico para a interpretação foi também enriquecido com o Simpósio e Mostra de Vídeo Corpo Feminino, cuja primeira edição coordenado pela Profa. Dra. Silvana Macedo e por mim, em outubro de 2007, abordou o tema "Bruxaria e Histeria". O objetivo foi o de discutir as representações da imagem feminina por meio de textos, filmes e práticas sociais históricas e míticas. Foram abordadas questões relacionadas à representação de "corpos sexuados", especificamente a demarcação binária do "masculino" e do ‘feminino", com a finalidade de compreender certas figurações do feminino no teatro. Foram os seguintes os filmes exibidos e os debatedores convidados: Bruxa viva (L. Bastos, 1998) com Lena Bastos (cineasta) e eu; As Bruxas/Le Streghe (L.Visconti, M. Bolognini, P.P. Pasolini, F. Rossi, V. de Sica, 1967), com a Profa. Dra Fátima S. G Lisboa (Historiadora da Universidade Federal de Santa Catarina); Gritos de Mujer/ Kravgi gynaikon (J. Dassin, 1977) com a Profa. Dra. 14

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U rdimento (cont.) Maria Cecília de M.N. Coelho (filósofa da COGEAE/ PUCSP), bem como as palestras intituladas "Gênero, corpo feminino, história", da Profa. Dra Joana Maria Pedro (historiadora da Universidade Federal de Santa Catarina); "Sobre as Bruxas de Franklin Cascaes de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina", da Profa. Dra. Maria Isabel R. Orofino (UDESC) e "Histeria", da psicanalista Magdalena Souto da Silva. 14

Bolsistas da pesquisa desenvolvida pela Profa. Dra. Sandra Meyer Nunes, no CEART/UDESC, sobre as técnicas de Viewpoints de Anne Bogart. 15

Cláudia Mussi; Luana Garcia; Lívia Sudare e Fernanda Macedo. A banda foi nomeada pelas integrantes na época do espetáculo 'Aquela banda da montagem', após o fim da disciplina, elas adotaram Vinegar Tom como nome da banda. 16

Renata Swoboda, que realizou também juntamente com o aluno Felipe Queriquelle as paisagens sonoras da peça. 17

canções como sugerido no texto de Churchill. As 7 (sete) canções originais em inglês foram traduzidas e adaptadas totalizando 8 músicas (letras e melodias) criadas e tocadas ao vivo pela banda composta por quatro alunas16 da disciplina e uma aluna17 do curso de Música do CEART. O espetáculo tentou manter pelo figurino e objetos de cena o aspecto de peça histórica; ao passo que a banda ‘comentava’ e ‘criticava’ a situação vivida pelos personagens na cena, estabelecendo para a platéia um paralelo com assuntos contemporâneos, mantendo, assim, a proposta do texto de Churchill e da primeira encenação do Monstrous Regiment. O rompimento com a atuação realista era criado também pelo cenário, onde spots em backlight, projetavam em vários momentos do espetáculo luzes com sombras de galhos na parte superior dos painéis e a criação de sombras móveis e distorcidas a medida que os atores e as atrizes passavam por traz dos painéis. O objetivo destas sombras era provocar na platéia várias possibilidades de entendimento da cena; e ao mesmo tempo colocar o espectador na perspectiva daquelas personagens que viviam em um universo onde o ‘mundano’ e o ‘real’ conviviam com o fantasmagórico e assombrado. As sombras tinham a intenção de provocar a seguinte pergunta no espectador: essa pequena vila é um local sombrio e bruxólico, ou isso não passa de um grande engano coletivo? A disposição das instrumentistas em relação as cenas no espaço teatral (Espaço 2, da UDESC) realçava nessas apresentações a posição privilegiada da banda (mulheres atuais) em relação a cena (história das mulheres). A banda tocava no mezanino atrás e superior ao espaço da cena. Deste espaço a banda poderia acompanhar a cena; e ser vista pela platéia, mas também ficava claro para a platéia que a banda também poderia observar os espectadores. Jill Dolan (1991) mostra como uma das preocupações das teorias feministas dizem respeito ao ‘olhar’ e a posição privilegiada do espectador. Nesse sentido o poder da banda de rock em ‘olhar de volta’ para a platéia pode sugerir que a relação de poder entre o espectador/a e o/a ator/atriz torna-se mais equilibrada. Este ‘olhar de volta’ para a platéia é explorado também nas cenas de duas ‘mulheres velhas’, as personagens Goody18, caçadora de bruxas, e Joan Noahs19, uma viúva que é acusada de bruxaria pela vizinhança. Assim, o espetáculo tentava criar momentos onde a teoria feminista encontrava espaços de aplicação. O segundo semestre de trabalho, em Montagem II, constituiu o momento de circular o espetáculo por espaços fora do campus universitário. A possibilidade de apresentar em teatros de palco italiano e para públicos maiores com espectadores menos familiarizados às montagens do CEART implicou em algumas mudanças. A primeira dificuldade foi adaptar o cenário dos 9 painéis de tecido que eram suspensos por nylon; outro grande problema era a necessidade de re-posicionar banda de rock em relação as cenas. Se no Espaço 2 ela pôde ser estrategicamente colocada ao fundo e Rainhas, sutiãs queimados e bruxas... Maria Brígida de Miranda.

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U rdimento acima dos painéis, em outros teatros a banda teria de ocupar o mesmo nível da cena, sendo colocada na lateral esquerda de teatros como o teatro do Centro Integrado de Cultura (CIC), e também divida nas duas laterais do palco, como no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC) e Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina, todos em Florianópolis. Enquanto as adaptações do cenário geraram um momentum para o refinamento das cenas de sombras, as mudanças do local da banda geram dificuldades não apenas acústicas e de entrosamento entre os instrumentos, mas também dificultou as transições entre cenas e canções, alterando o tempo de deslocamento do foco de atenção da banda para os atores e atrizes. Uma das principais mudanças nesta etapa foi o uso do tempo para refinamento do espetáculo que já havia sido apresentado completo no semestre anterior. Este refinamento consistiu em ensaios que melhoraram as transições entre as cenas. Além disso, houve uma melhora do ritmo e a conseqüente diminuição da duração do espetáculo (de 120 minutos nas primeiras apresentações de novembro de 2007 para 100 minutos na última apresentação, realizada no Teatro da UFSC em junho de 2008). Esses ensaios permitiram também que os atores e as atrizes como Kamila Bortolli (Margery), Fabiano Lodi (Jack), Fernanda Jacobo (Joan Noaks) e Maiara Barros (Beth) aprofundassem ainda mais suas caracterizações iniciais dessas personagens. Outros atores e atrizes passaram por transformações na maneira de perceber suas personagens, propondo mudanças no ritmo, postura corporal, motivações e ações das personagens, foram os casos de Tama Ribeiro (Helen), Daniel da Luz (Packer), Denise Krieger (Alice), Elisza Schmidt (Susan), e Felipe Queriquelli (Sprenger). Outros como Gilbas Piva, Aldo Godoy e Mariana Cândido construíram suas personagens e de diferentes maneiras tiveram de vivenciar o processo de, em um curto prazo, passar o trabalho que tinham desenvolvido para outros atores que os substituíram em apresentações especificas.

(cont.) A orientação deste trabalho foi do Prof. Mst. Frederico Macedo, do Departamento de Música da UDESC.

17

Interpretada por Mariana Cândido. Este papel foi interpretado pela Profa. Doutoranda Fátima Lima no espetáculo apresentado no Festival de Teatro Isnard Azevedo em 17 de abril de 2008. 18

Interpretada por Maria Fernanda Jacobo.

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O momento de circulação do espetáculo Vinegar Tom gerou vários estímulos e oportunidades para todos os envolvidos no processo de repetirem a apresentação do trabalho, mas sempre com grandes desafios. Além da vivência de montar, apresentar e desmontar o espetáculo em diferentes espaços físicos, havia a necessidade de melhorar a projeção vocal e movimentação, ou alterar o ritmo da cena em função do tamanho do palco e configuração da platéia. A oportunidade de apresentar-se no Teatro como o do CIC, selecionado oficial do Festival Isnard Azevedo de 2008, constituiu um momento que todos/as atores/atrizes assumiram o desafio de sair do Espaço 2, com uma platéia de 70 espectadores para palco bem maior com uma platéia de 940 espectadores. Segundo o relato de todos os alunos envolvidos, na aula posterior a apresentação de abril de 2008, essa experiência foi a mais marcante. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento É preciso considerar que essas relações entre prática e teoria não são construídas necessariamente ao longo do processo de ensaio e aulas. Enquanto algumas reflexões são feitas em debates em sala de aula sobre o significado da cena, ou a relação entre cena e espaço teatral; outras reflexões acontecem a partir de leituras individuais ou de debates no grupo de estudos Teatro e Gênero. O que me parece ser uma realização importante com a produção de Vinegar Tom no curso de Artes Cênicas da UDESC é que reflexões sobre o espetáculo Vinegar Tom -- com sua estética e conteúdo de teatro feminista -podem continuar ocorrendo por bastante tempo, principalmente por aqueles/ as que vivenciaram o processo da Montagem Teatral I e II, como atores/ atrizes ou como professores/as e bolsistas de outros departamentos que colaboraram nesse processo. Além do impacto dessas experiências para os participantes das disciplinas, há também as experiências dos/as espectadores/as que assistiram, alguns/as deles/delas mais de uma vez, o desenrolar desses episódios onde mulheres são acusadas de bruxaria, torturadas e levadas a forca por razões insólitas, e o medo do desconhecido, do marginalizado, faz dele ou dela uma visão assombrada de um futuro incerto. Se o projeto da disciplina não pretendeu discutir a recepção desta peça feminista-socialista, permaneceram as perguntas: Como os espectadores de Florianópolis, espaço historicamente povoado por casos bruxólicos, viram as ‘não-bruxas’ de Churchill? Teriam os espectadores associado em algum momento, a caça às bruxas da era moderna à caça aos terroristas da pós-modernidade? Será que os espectadores associaram as acusações da peça às acusações reais e atuais de bruxaria como as que recentemente condenaram Fawza Falih, na Arábia Saudita, à morte?

Disponível em http://brasil. notiemail.com/ noticia. asp?nt= 12030387&cty=2 Acesso em 14/02/2008. 20

Fawza Falih foi detida pela Polícia religiosa (“Motawa”) depois que várias pessoas a acusaram de praticar bruxaria contra si. Ela foi condenada à morte em 2006 por um tribunal da região de Quraiat, no norte do país. O comunicado indica que Falih não recebeu “garantias de um julgamento justo”, já que não teve acesso a um advogado de defesa durante os interrogatórios nem durante o processo. Além disso, afirma que os juízes ignoraram as afirmações da acusada de que suas confissões durante o interrogatório foram arrancadas sob “pressão”. Falih disse durante o processo que foi “torturada” e espancada durante os 35 dias nos quais ficou detida sob custódia da Polícia religiosa, onde foi obrigada a assinar um documento com confissões de que praticava bruxaria, sem saber seu conteúdo. A HRW lembra que na Arábia Saudita não há um Código Penal escrito, o que torna impossível encontrar uma definição para “bruxaria”20 Rainhas, sutiãs queimados e bruxas... Maria Brígida de Miranda.

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U rdimento Considerando essa notícia, resta-nos concluir que mesmo sem as respostas do público de Florianópolis, peças dos teatros feministas precisarão, parece-me, continuar sendo lidas e encenadas, tanto por seu valor estético como histórico, e, também por seu escopo político, talvez ainda por muito tempo, infelizmente, tantas outras precisarão ser escritas.

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U rdimento

A CRIAÇÃO DE ROBERT LEPAGE E O MODELO PÓS-DRAMÁTICO Marta Isaacsson1

Resumo

Abstract

Lepage é um dos criadores de maior sucesso da cena contemporânea. Artista polivalente, ele tem sua obra marcada pela interdisciplinaridade e interculturalismo. O estudo aqui realizado aborda o espetáculo Vinci de Lepage, a partir de aspectos de organização da forma pós-dramática identificados por H.-T. Lehmann, bem como destaca os princípios fundamentais adotados pelo criador canadense na gênese da sua obra.

Lepage is one of the most successful directors of the contemporary scene. Versatile artist, he has his work marked by interdisciplinarity and interculturalism. The study conducted here addresses Lepage’s spectacle Vinci from aspects of the organization of the post-dramatic form as identified by H.-T. Lehmann, and highlights the fundamental principles adopted by the Canadian director in the genesis of his work.

Palavras-chave: Roberto Lepage, encenação, pós-dramatico.

Keywords: Robert Lepage, direction, post-dramatic.

Desde a publicação de O Teatro Pós-Dramático na Alemanha, em 1999, a tese de Hans-Thies Lehmann, professor de Estudos Teatrais da Universidade de Frankfurt, tem despertado interesse por parte dos mais renomados estudiosos do teatro. A relevância de seu estudo explica a tradução imediata da obra em diversas línguas e a publicação em vários países. Fato que testemunha também a carência, até então, de referencial teórico capaz de abordar a diversidade posta pela cena contemporânea. Dentro do esforço da crítica em atender a defasagem da teoria face à complexidade posta pela cena contemporânea internacional é que Lehmann traz sua contribuição. Ao servir-se como exemplo das mais diversas experiências cênicas, ele pretende colocar sua tese acima dos limites de uma manifestação espetacular específica. Seu recorte de referências de práticas artísticas é amplo, porque seu olhar se volta para a estrutura de organização que perpassa diferentes poéticas. Assim, o termo pós-dramático precisa se entendido não como particularidade de um movimento artístico, como foi Dezembro 2008 - N° 11

Doutora em Estudos Teatrais pela Université de Paris III. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este estudo pode ser realizado graças à coleta de documentos realizada junto aos arquivos da Companhia Ex-Machine de Robert Lepage, tendo recebido apoio do Programa de bolsas de especialização do Governo Canadense. 1

A criação de Robert Lapage e o modelo pós-dramático. Marta Isaacsson.

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U rdimento o Romantismo, o Realismo, etc, mas um novo modo de organização dos elementos significantes através do qual a construção das obras cênicas vem, segundo Lehmann, se fazendo. Grande parte do interesse despertado pela tese do pós-dramático reside no fato desta colocar a “ação”, aspecto fundador do teatro ocidental, denominado “drama”, no coração mesmo da teoria teatral. Ela coloca a teoria crítica ao lado das pesquisas da prática cênica que, há muitos anos, põem o acento sobre a “ação”, desde as “ações físicas” stanislavskianas, posteriormente retomadas por J. Grotowski e E. Barba. Assim, a forma pós-dramática aparece como expressão de recusa da “ação” enquanto “drama”, de ruptura com a estrutura de conflito e desfecho, de ruptura com o princípio da interdependência e continuidade entre seus elementos de composição. A tensão entre teatro e vida, que fomentou o movimento das diferentes vanguardas do início do século XX, encontra-se na atualidade substituída por uma nova tensão, a do teatro consigo mesmo, com aquilo que sempre foi sua essência. Assim, o teatro parece, paradoxalmente, estar deixando de ser teatro para existir. O estudo de Lehmann não se limita à proposição de um novo termo capaz de acolher a pluralidade dos fazeres espetaculares do contemporâneo e à afirmação de que a forma pós-dramática revela uma ruptura com os princípios canônicos da ação / drama. Ele vai além disto, procura identificar aquilo que substitui a ação dramática no contexto de manifestações que, ainda hoje, reconhecemos como teatral. Oferece indícios que caracterizam a dinâmica deste novo modelo dentro do qual se estabelece a organização dos elementos significantes do fazer cênico, onde o teatral deixou de ser sinônimo do dramático. Assim, o estudo fornece instrumentos referenciais à abordagem da produção cênica contemporânea. Como a teoria crítica só pode suceder às manifestações artísticas, uma vez, posta a teoria, cabe cotejá-la com a prática cênica. É neste novo contexto da reflexão da crítica que nos aproximamos da produção de Robert Lepage, artista canadense de maior reconhecimento internacional no âmbito das artes cênicas. Encenador, autor, ator de teatro, cineasta, diretor de ópera, Lepage revela vasta cultura e surpreendente imaginação criativa. Em suas obras, questiona os valores da sociedade contemporânea aliando sofisticação e humor, realizando interessantes cruzamentos culturais e renovando o dispositivo cênico com novos meios de produção de imagem e som. É preciso considerar que a obra de Lepage, reunindo representação, vídeo, arte do objeto, evocando por vezes uma dimensão cinematográfica, por outras um sentido ritual, nos leva para longe do teatro tradicional e oferece, assim como tantas outras produções contemporâneas, desafios à análise. A criação de Robert Lapage e o modelo pós-dramático. Marta Isaacsson.

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U rdimento Entende-se porque sua produção artística tenha sido considerada, por parte da crítica especializada, como Teatro Lúdico, enquanto outra parte da crítica tenha preferido denominá-la como Teatro de Imagem. Fugindo da discussão de fundo que as duas denominações despertam, é preciso reconhecer que as duas posições da crítica, elegendo aspectos distintos de ênfase, dão conta de forma parcial da complexidade que caracteriza as obras do encenador canadense. Assim, afirma-se oportuno examinar a produção de Lepage dentro dos aspectos que configuram, segundo Lehmann, a forma pós-dramática, sem a pretensão de afirmar que as obras do criador canadenses constituam o padrão do modelo pós-dramático. Entre a vasta produção de Lepage, o espetáculo Vinci se impôs imediatamente como objeto de interesse particular à presente análise. Isto porque, neste primeiro espetáculo solo de Lepage, a arte fala da própria arte. Estreado em 1986 e apresentado por vários anos, Vinci promove um debate acerca dos desejos e inquietações do artista. Impressionado pelo croqui de Leonardo da Vinci, A Virgem e a Criança com Santa Anne, Lepage aborda neste espetáculo a estreita e difícil relação da arte com a realidade, colocando em cena questões, tais como, a definição de uma identidade artística, a ética em arte, o embate entre pensamento e impulso criativo, entre falso e verdadeiro, as possibilidades efetivas da arte na sociedade e, mesmo, a relação da arte com a morte, pois “a diferença entre arte e morte é só uma questão de rapidez”, diz um dos personagens de Vinci. Segundo Lehmann, o modelo “pós-dramático” se caracteriza, em primeira instância, pela ruptura com a lei da síntese na organização da obra. Desta forma, ele rompe com a relação do teatro com o drama e, conseqüentemente, abandona o compromisso de totalidade narrativa acerca de uma intriga. Neste sentido, o filósofo alemão reconhece o papel determinante da herança do teatro épico de Bertold Brecht, fundado na autonomia narrativa das cenas. Dividida em nove momentos numerados e intitulados2, o espetáculo Vinci não revela efetivamente uma intriga, no sentido de uma evolução de acontecimentos, de peripécias. Sua fábula pode ser resumida de forma muito simples, como uma viagem à Europa realizada por um jovem fotógrafo quebequense. Ali, o principal acontecimento constitui fato antecedente ao presente da peça: o suicídio de um cineasta, que prefere a morte a ser infiel a sua arte. Vinci nada mais é do que a trajetória de interrogações de Philipe, o amigo do cineasta morto, que parte à Europa em busca de resposta ao desafio da integridade artística em uma sociedade movida por conveniências. Liberado do compromisso da síntese, a cena pós-dramática compõe uma textura similar ao sonho, ressalta Lehmann. Ela substitui o encadeamento de acontecimentos próprios da intriga pela colagem de fragmentos. Na obra de Lepage, o contexto da viagem justifica as alterações espaciais do protagonista. Entretanto, não se Dezembro 2008 - N° 11

2 Decolagem; Big Ben, Londres; A Virgem e a Criança; Galeria Nacional de Londres; Burger King; Boulervard Saint-Germain; Mona Lisa; Óleo, 77X53 cm; O Louvre em Paris; Camping em Cannes; Domo, Florença; Sala de Banho; Florença; Vinci.

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U rdimento evidencia uma lógica de causalidade na passagem entre cenas. Vinci parece fruto de um pensamento criativo livre, construído em movimento de analogia. Assim, pode-se compreender que, em Vinci, o conflito inicial não tenha mesmo um desfecho como no drama tradicional: “Eu vim a Vinci e vi”, diz Philippe, “mas tenho ainda que vencer”. Depois, ele voa, desta vez não mais em avião, mas com auxílio de uma máquina volante imaginada por Leonardo da Vinci. Lehmann esclarece que o abandono da síntese, da fábula, conduz a cena contemporânea a investir na transformação, no jogo de metamorfoses. De certa forma, pode-se dizer que no estilo pós-dramático a dinâmica do drama se vê substituída pela dinâmica da cena. É através da transformação da cadeira do psicanalista em assento de avião, por um simples jogo de corpo de Lepage, que a viagem de Philippe tem início aos olhos do público. A considerar que Vinci não é um espetáculo de um personagem só, mas um espetáculo solo, onde um ator representa vários personagens, o princípio da transformação tornase fundamento primeiro da obra. Ali, todos os personagens surgem diante dos olhos do espectador por simples transformações no comportamento gestual e uma variedade de inflexões e sotaques construídos por Lepage. Entre as diferentes personagens que o protagonista encontra, temos um “guia” italiano contraditoriamente cego que anuncia a peça como a história de uma artista visual; um guia inglês que maltrata a sangue frio os complexos dos canadenses francófonos; Mona Lisa em pessoa e, finalmente, o grande artista Leonardo da Vinci. Representadas por um mesmo ator, a encarnação dos diversos personagens, ganha significado particular no contexto da cena, como fenômeno de metamorfose. Todos os personagens podem ser compreendidos como produto da imaginação do protagonista Philippe, e sua viagem a diferentes cidades, seus encontros com pessoas e obras, assume então um caráter de viagem interior, através da qual seu pensamento evolui, sua sensibilidade se afina. Dentro de um sentido metafórico, a encarnação dos personagens aparece como possibilidade de multiplicidade de seres, desejos e inquietações que nos habitam. A síntese do drama tradicional cede lugar a um universo de sonho, conforme Lehmann. E no sonho se realiza novo modo de emprego dos significantes. Assim, na escrita da cena contemporânea, os meios significantes não se reforçam de forma evidente uns aos outros e, mais, são agenciados em uma simultaneidade perturbadora. A cena pós-dramática oferece uma pluralidade de sinais em um único momento que desestabiliza o aparelho sensorial do espectador. O texto cênico de Vinci revela justamente uma organização complexa, onde se observa muitas vezes sobreposição de elementos significantes. A imbricação de sinais começa no título mesmo da obra, lembrando que para Lepage “Vinci” evoca o artista renascentista, sua cidade natal e, ainda, uma declinação do verbo “vencer” em italiano. No início do espetáculo, o narrador italiano se A criação de Robert Lapage e o modelo pós-dramático. Marta Isaacsson.

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U rdimento vangloria de “ser interpretado por um ator de grande talento”, estabelecendo assim uma sobreposição de máscaras. O ator, enquanto personagem, se refere a si próprio como sendo um outro; já a personagem confessa ser uma figura “fictícia”, assumindo sua teatralidade e afastando efeito ilusório. A sobreposição de sinais pode ainda ser percebida neste quadro, quando ao mesmo tempo em que o guia profere seu monólogo, um pequeno trem elétrico se movimenta e uma legenda encontra-se projetada. Ou seja, rompe-se o princípio do foco da cena tradicional. Da mesma forma, no quadro denominado “Big Ben, Londres”, diferentes imagens fixas (manuscritos de Leonardo da Vinci, desenhos extraídos do Tratado de Anatomia) são mescladas a sombras chinesas animadas. A sobreposição de sinais no pós-dramático sustenta o esfacelamento da narrativa, pois promove a desarticulação entre tempo, espaço e pessoas, aponta Lehmann. É dentro do princípio de total permissibilidade temporal e espacial que Vinci promove o diálogo de um Fotógrafo canadense do século XX com uma italiana do século XV em plena Paris contemporânea. A fragmentação da personagem, tão própria da cena pós-dramática, se faz ainda de forma mais magistral em Vinci na cena do encontro entre o velho mestre Leonardo e o jovem aprendiz Philippe. Em um banheiro público, diante do espelho, o personagem Philippe cobre seu rosto com espuma de barbear e parte de seus cabelos. Após raspar a barba de uma de suas faces, olha-se de perfil no espelho. Vendo a face ainda coberta com espuma, descobre um velho de barba branca: é Leonardo. Desta forma, o espectador presencia um mesmo ator, quase simultaneamente, representar dois personagens a partir de um simples jogo corporal e de ilusão ótica. E é, neste contexto de ambivalência visual, que Philippe escuta a tão esperada resposta às suas inquietações: Tu já te olhaste como se deve em um espelho, Philippe? Vai, te olha! Se tu não pegas eu vou pegar para ti. Pronto. O que tu estás vendo? De um lado, há um jovem intelectual quebequense que incomoda todo mundo com seu discurso sobre a arte e a integralidade e que tem o sentimento de ter uma missão sobre a alma. De outro lado, há um velho porco em ti que ama aproveitar a facilidade. Por vezes, é este jovem intelectual que assume o lugar, por vezes é o velho porco. (...) A arte é um conflito. Se não há conflito, não há arte, Philippe, não há artistas. A arte é um paradoxo, uma contradição3. Na criação de signos paradoxais, de formas híbridas de significado, Lepage combina dados culturais bastante diversos e cruza referências históricas temporalmente diversas, tal qual Joconda que encarna uma jovem francesa contemporânea. Dentro desta proposta, Lepage faz apelo a sotaques diferentes e emprega mesmo múltiplas línguas, das quais algumas não serão compreendidas pelo público. Mas na poética do hibridismo, o importante é Dezembro 2008 - N° 11

3 De acordo com registro em DVD do espetáculo. Material cedido para fins de pesquisa por Ex-Machine.

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U rdimento incitar o espectador a encontrar novos padrões de aproximação do espetáculo. E isto passa pelo reconhecimento de que a palavra não está no centro da obra, mas é um entre tantos de seus componentes. O texto é apresentado ao espectador, explica Lepage, “como um fundo sonoro. O texto será cenário; os objetos ou a música se tornarão palavra” (FRÉCHETTE, 1987: 112). É por isto que o manuscrito de Vinci, como de outras produções de Lepage, não consegue dar conta de tudo o que intervém ao longo do espetáculo. O desaparecimento da síntese, a criação de uma realidade regida por uma nova lógica, a pluralidade de sinais, a fragmentação decorrente convivem na cena pós-dramática com a recusa à ilusão, própria da cena “pós-dramática”. A ruptura com a ilusão encontra-se claramente explicita nos primeiros minutos de Vinci, quando o cego guia italiano, anuncia: O espetáculo que vocês assistirão em seguida se inscreve em uma forma muito precisa de arte, chamada teatro. E tem como trama dramática, a caminhada criativa de um artista visual. Todavia, a fim de assegurar uma melhor leitura do espetáculo, os criadores me convidaram a lhe esclarecer alguns aspectos relativos às artes visuais. Porém, eu não sou um artista (...) eu sou somente um personagem fictício4.

Idem.

4

Ao longo do espetáculo, a forma lúdica pela qual se realiza a transformação do espaço e a representação dos diferentes personagens denuncia a teatralidade da cena. A tão esperada aparição de Leonardo da Vinci, uma vez concretizada por meio de um jogo de ilusão ótica de um espelho de banheiro lembra ao espectador que tudo não passa de ilusão, inclusive a própria realidade. A permissibilidade na organização de significantes cênicos desperta estranhamento, pelo deslocamento temporal ou espacial de referências culturais extremamente conhecidas. Isto promove um processo complexo de recepção. Como compreender que uma jovem parisiense do século XX possa ao mesmo tempo ser Joconda? Como aceitar que uma modelo italiana do século XV esteja bebendo coca-cola em um Burger King do Boulevard Saint-Germain de Paris? Somente compactuando com uma rede de conexões diferente da qual se está habituado. Enquanto afasta o espectador do pensamento cartesiano, Vinci provoca sua lógica dos sentidos. Desprovido de um conteúdo evidente e único, os signos da cena pós-dramática exigem do espectador, conforme Lehmann, um “processo associativo labiríntico” (2002: 155). Não é por acaso que Lepage se refere à representação como um “canteiro de construção permanente”. É somente aceitando percorrer um sistema complexo de articulação de significantes que o espectador poderá compor um diálogo entre os diferentes elementos de Vinci e então re-construir o mergulho de seu criador. Somente A criação de Robert Lapage e o modelo pós-dramático. Marta Isaacsson.

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U rdimento assim reconhecerá na hibridação dos signos a estreita relação entre estrutura e tema da obra. Ao compor signos deslocando tempo, espaço e dados culturais, Lepage nos faz pensar que Vinci não é só a simples viagem de Philippe, mas uma nova forma de perceber o passado e o presente, a realidade e a arte. Leonardo da Vinci não é só um gênio capaz de conjugar com excelência arte e ciência, mas uma personalidade marcada por fortes paradoxos, assim como o modelo de signos em Vinci. À semelhança do sorriso de Mona Lisa, Vinci constitui uma provocação ao espectador no desvendamento de enigmas. Afinal, a “arte é um veículo” como o pequeno trem de brinquedo que percorre sua cena. E para desvendar “o que motiva o artista? O que o locomotiva?” é preciso se deixar levar pelos diferentes vagões... Na medida em que a forma pós-dramática rompe, entre outros, com os princípios do drama, os referenciais do “onde”, “quem”, “o quê” e a “linha de ação contínua” da herança stanislavskiana encontram-se deslocados. Diante da assertiva de uma organização não logocentrista, impossível de não se perguntar sobre o modo operatório do processo de criação que conduz a tal tipo de produção cênica. As questões metodológicas da gênese da obra de caráter pós-dramático estão ainda postas e merecedoras de um longo percurso de investigação. Sem maiores pretensões neste sentido, pode-se, todavia, reconhecer na prática de Lepage alguns indícios importantes para o estudo dos processos criativos. Observa-se inicialmente que a prática de Lepage, tanto nos espetáculos solos quanto nos coletivos, encontra-se bastante contaminada dos princípios que nortearam suas primeiras experiências como ator. O início da carreira profissional de Lepage se deu junto ao Théâtre de Repère, fundado em 1980, sob a direção de Jacques Lessard que, à época, transpõe para a produção cênica os ciclos de criação do arquiteto Laurence Halprin, RSVP Cycles. O princípio básico dos então denominados Ciclos do Repére (REsource/ Partition / Evaluation / REpresentation), define que a criação deva se fazer a partir de um objeto concreto. Neste processo, a seleção do objeto se dá sem nenhuma reflexão temática a priori. O objeto traz o peso da realidade e precisa ser aproximado de forma sensível durante o exercício de improvisação. Ele pode ser tomado por aquilo que é ou por aquilo que evoca ao indivíduo. Desta forma, o gesto do ator pode fazer seu deslocamento, oferecendo-lhe uma renominação. Como assinala a pesquisadora canadense, Irene Roy, ocorre aqui uma alteração do vetor da criação: de sujeito-verbo-objeto para objeto-verbosujeito, ou seja, é o objeto que desperta a ação e esta caracteriza o sujeito. Mesmo se Lepage não siga mais exatamente os procedimentos próprios à técnica do Théâtre de Repère, na origem do seu processo de criação há sempre um estímulo de caráter concreto. É através de improvisações de exploração deste estímulo que inicia a composição de sua obra cênica, um Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento quadro de Mona Lisa para Vinci, uma fita de curso de inglês e um mapa de estradas para Circulações, uma cadeira de barbeiro e sapatos para Trilogia dos Dragões. As improvisações, fecundadas por um elemento concreto e sensível, passam a constituir peças de um grande quebra-cabeça, cuja seleção e interrelação constitui um trabalho intuitivo e associativo. São elas que fazem surgir personagens, lugares e situações. Desta forma, o processo da criação de Lepage não se define como um processo somatório que avança do mais simples em direção ao complexo, tal qual se opera tradicionalmente a produção cênica. O processo assume direção contrária. “Não se pode começar por ser simples. Começa-se por ser complexo (...) Eu começo por milhares de coisas” (LEPAGE, FÉRAL: 143). E para criar a partir da complexidade faz-se necessário o abandono de todo tipo de préjulgamento. “É preciso começar por desculpar suas imperfeições” (Ibidem). Se na forma pós-dramática, os signos não oferecem mais síntese, os significantes se articulam sem uma lógica evidente e cada imagem ganha autonomia, no tempo da criação o aleatório e a inexistência de pré-julgamentos ganham espaço fundamental. “A chave”, diz Lepage, “é de não saber a onde se vai, de mergulhar, depois nadar. A um momento dado, terminaremos por chegar a algum lugar”. (Idem: 144) Afinal, considera Legape, “para que o teatro sobreviva, é preciso que ele permaneça aleatório” (Idem: 142). A criação, iniciada no investimento da complexidade, prossegue em processo de depuração, ela se simplifica: “coloco muitas coisas (...). Mas, pouco a pouco, renuncio a elas”. (Idem: 143). Este processo de depuração não está sujeito a uma organização hierárquica, se instaurando como um circuito de interações e retroações entre as diferentes unidades postas na fase de composição de múltiplas peças. O espetáculo “se depura todo tempo e, a um momento dado, tem-se confiança na sua escrita e se termina por dizer: eis verdadeiramente o que o espetáculo quer dizer. Então, se desloca alguma coisa, se desfaz de outra” (Idem: 145). Neste processo de criação, a questão do significado não é, assim, colocada a priori, e as múltiplas possibilidades de significação das inúmeras peças compostas vão pouco a pouco se desvendando. As impressionantes imagens que oferece Lepage ao espectador surgem necessariamente do interior da cena. “Não se procura a imagem mais forte. Se adotar esta atitude, então se estará decorando a cena (...) todas as imagens importantes, imponentes vem da improvisação, de uma consciência de estar no centro das coisas” (Ibidem). Finalmente, o mais importante princípio do processo criativo de Lepage talvez seja a instauração contínua de contato, de interação entre todos e entre tudo. “Eu sou um artesão, não da não escrita, mas do encontro. A criação de Robert Lapage e o modelo pós-dramático. Marta Isaacsson.

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U rdimento O teatro é um lugar de encontro, um lugar onde os diferentes artesãos literatos e escritores compreendidos – se encontram”. (Idem: 140). Nas mais recentes produções de Lepage, o emprego de novas tecnologias de produção de imagem nasce deste mesmo desejo de estabelecer permutas, agora entre o teatro e o cinema. “Tecnicamente, são dois mundos, mas se decidiu de estabelecer encontros em todos os níveis: sobre o plano estético, técnico...” (LEPAGE, FOUQUET, 1998: 332). Ao recusar, em 1993, a palavra teatro para designar sua equipe de trabalho, doravante denominada Ex Machina, Lepage demonstrava já sua intenção de romper com o modelo através do qual se fazem tradicionalmente as relações entre os diferentes criadores do espetáculo teatral, por não favorecer este uma verdadeira interação criativa. A arquitetura interna do centro de criação de Ex Machina retrata a importância das influências, das ações e retroações entre criadores em todo o processo criativo e na articulação dos diferentes elementos de composição. Instaurado em uma antiga caserna de bombeiros, em Québec, o centro de criação tem todos seus escritórios e ateliês de criação circundando e com alguma abertura para o mesmo e único espaço de criação, um espaço híbrido, teatro e também cinema, cena e também set de filmagem.

Referências bibliográficas BOVET, Jeanne. Le symbolisme de la parole dans Vinci de Robert Lepage et Daniel Toussaint. L’Annuaire théâtral, nº 8, p. 95-103. CHAREST, Remy. Robert Lepage. Quelques zones de liberté. Québec : L’Instant même / Ex-Machina, 1995. LEPAGE, Robert. Entrevista realizada por FERAL, Josette. Mise en scène et Jeu de l’acteur Montréal : Editions Jeu/Editions Lansman, 1998. pp. 133-156. LEPAGE, Robert. Entrevista realizada por FOUQUET, Ludovic. Les Écrans sur la Scène. (org. Béatrice Piccon-Vallin) Lausanne : Editions L’Age d’Homme, 1998. pp. 325-332. FRECHETTE, Carole. L’arte è un veicolo. Entrevista com Robert Lepage. Cahiers de théâtre Jeu : « Vinci ». Robert Lepage, nº 42, 1987, p. 109-126. HEBERT, Chantal, PERELLI-CONTOS, Irène. La face cachée du théâtre d’image. Québec : Les Presses de l’Université de Laval, 2003. LEHMANN, Hans-Thies. Le Théâtre postdramatique. Paris : L’Arche, 1999. ROY Irène. Le Théâtre Repère. Du ludique au poétique dans le théâtre de recherche. Québec : Nuit blanche éditeur, 1993.

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PIRANDELLO ENCENA SEI PERSONAGGI IN CERCA D’AUTORE Martha Ribeiro1

Resumo

Abstract

A influência da cena sobre a dramaturgia pirandelliana se revela contundente com as profundas mudanças operadas pelo autor na tessitura da peça Seis Personagens à Procura do Autor. Nesta obra, ícone de sua dramaturgia, Pirandello realiza seu próprio experimento cênico. Trata-se de duas versões da mesma peça: o texto original de 1921 e a versão revista e corrigida da edição de 1925, um híbrido entre cena e escritura.

There are ultimately two versions of Pirandello’s Six Characters in Search of an Author, the original text of 1921 and a revised and corrected edition of 1925, which is seen here as a hybrid of text and production. In this iconic work, Pirandello’s production was experimental and the influence of production over Pirandellian dramaturgy was decisive as profound changes were made in the structure of the play.

Palavras-chave: Luigi Pirandello, Seis Personagens à Procura do Autor, dramaturgia, cena.

Keywords: Luigi Pirandello, Six Characters in Seach of an Author, dramaturgy, production.

“Eu me transformei na marionete da minha paixão: o teatro.” Luigi Pirandello2 A idéia de fundar uma Companhia estável em Roma não foi propriamente de Pirandello, mas de seu filho Stefano Landi, Orio Vergani e de outros jovens intelectuais; entre os quais Massimo Bontempelli e Corrado Alvaro. O projeto teatro d’eccezione (como foi chamado inicialmente), idealizado em outubro de 1923, objetivava ser um celeiro para jovens autores e diretores teatrais. Era uma nova tipologia de companhia teatral que se firmava na época: guiadas por um dramaturgo-encenador, estas companhias contrastavam com o tipo dominante no panorama teatral italiano: companhias teatrais nômades e centralizadas na figura do ator. Convocado a aderir ao projeto, Pirandello não só irá patrociná-lo, como também se empenhará pessoalmente na fundação e na direção artística do novíssimo Teatro de Arte. Em 1925 declara: Dezembro 2008 - N° 11

1 Martha Ribeiro é Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP/IEL, com período sanduíche na Università di Torino/ Itália, é Mestre em Ciência da Arte pela UFF, diretora e pesquisadora teatral.

En confidence, in Les Temps, Paris, 20 de julho de 1925. 2

Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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Luigi Piradello, En confidence, in Le Temps, Paris, 20 de julho de 1925. Reportado por Alessandro D’Amico e Alessandro Tinterri, Pirandello capocomico: La compagnia del Teatro d’Arte di Roma, 1925-1928, Palermo, Sellerio, 1987: 5. 3

Cf Alessandro D’Amico e Alessandro Tinterri, Pirandello capocomico: La compagnia del Teatro d’Arte di Roma, 1925-1928, Palermo, Sellerio, 1987: 5. 4

Cf Leonardo Bragaglia, Carteggio PirandelloRuggeri, Fano, Biblioteca Comunale Federiciana, 1987:51. As cartas selecionadas correspondem aos anos de 1932 a 1936 (a última parte do texto entre aspas é uma citação de Pirandello). A declaração de Pirandello do teatro como "ato de vida" aparece na sua introdução ao La storia del teatro italiano de Silvio D’Amico (Milano, Bompiano, 1936: 26). 5

Para mim não foi suficiente escrever peças de teatro, fazendo-as serem representadas. Hoje sou diretor e encenador de uma Companhia dramática. Os senhores devem acreditar, ainda que seja absurdo3. Por que absurdo? Precisamente porque Pirandello sempre sustentou em seus argumentos teóricos que o teatro não seria nada mais do que uma ilustração do texto dramático, e que o ator, por sua vez, seria um terceiro elemento incômodo, infelizmente indispensável, entre o poeta e o público. Então, porque se envolver tão de perto com o fenômeno cênico, fundando uma companhia teatral? Talvez para dar às suas obras uma “concepção” cênica mais próxima possível da autoral, já que o autor sempre deixou muito claro o seu descontentamento em relação ao teatro de sua época. Em uma entrevista ao jornal L’Impero no dia 11 de abril de 1925, Pirandello declara que ele mesmo pretende encenar com sua companhia boa parte de suas peças, inclusive àquelas que ainda não tinham sido montadas, para que finalmente entendessem como ele desejaria que elas fossem representadas4. Mas, muito mais do que se “rebelar” contra a má interpretação de suas obras, suas atividades no Teatro de Arte foram uma escola para o dramaturgo. O diaa-dia do palco, o convívio diário com cenógrafos, eletricistas, técnicos e atores, deram ao escritor uma maior consciência cênica. Sobre este ponto escreve Leonardo Bragaglia: Além de se rebelar contra os arbítrios de algumas encenações das próprias peças, pelas quais Luigi Pirandello, com o “Teatro de Arte de Roma”, se inventou “teatrólogo militante”, encenador, dramaturgo e Poeta de Companhia, ele adquiriu consciência – noite após noite – da absoluta autonomia do Teatro, da Obra de Arte no Teatro, “que não é mais o trabalho de um escritor, que se pode sempre salvaguardar do resto, mas um ato de vida a se criar, instante por instante, com a adesão do público que se deve alegrar”5. O primeiro trabalho do Maestro apresentado fora da Itália foi a obra-prima Sei personaggi in cerca d’autore; nada mais coerente com a alma pirandelliana se pensarmos que a última conseqüência da peça é uma declaração de falimento do teatro dramático. Apresentada em 18 de maio de 1925 no teatro Odescalchi, a peça seguiu em uma longa temporada de apresentações ao exterior (ao todo foram 13 cidades), com Marta Abba no papel da Enteada e Lamberto Picasso no papel do Pai, transformando-se no espetáculo-símbolo da companhia. A peça Sei personaggi se caracteriza por um produto concebido em etapas, e foi no Teatro Odescalchi, em 18 de maio de 1925, que a versão definitiva de Sei personaggi se concretizou. Conforme demonstrado pelos novos estudos pirandellianos, houve uma influência decisiva da cena sobre Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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U rdimento a escritura final. A partir do contato com os atores, das interferências da realidade cênica e da influência de outras encenações, Pirandello “editou” a nova versão do próprio texto. E não foram simples ajustes de melhoria nos diálogos, foram mudanças significativas, de ordem estrutural, isto é, foram mudanças relacionadas aos elementos e aos procedimentos de concepção do próprio texto: houve um considerável aumento das didascálias, que se enriqueceram com novas indicações sobre a movimentação, e mudanças na caracterização dos seis personagens, que assumem uma maquiagem mais acentuada, um pouco expressionista, com figurinos estilizados6. Tinterri e D’Amico no livro Pirandello capocomico observam pelo menos três significativas mudanças para esta nova montagem de Sei personaggi, que contrastam com as famosas edições anteriores (os espetáculos de Berlim, Paris e Nova York; respectivamente Reinhardt, Pitoëff e Pemberton na direção): os seis personagens não surgem mais dos camarins, eles se apresentam pelas costas do público, e sobem no palco depois de atravessar toda a platéia. Sobre a escada que liga o palco e a platéia, se desenvolve um novo e agitado vaivém do Diretor. Ao final do espetáculo, a Enteada-Marta Abba sai de cena por este mesmo caminho, enquanto os outros personagens são reduzidos a silhuetas por trás do fundo transparente do palco. A versão final da peça se parece com um “caderno de direção”, onde se podem reconhecer traços da encenação conduzida por Pirandello para o Odescalchi, analisa Tinterri, como a indicação das duas escadinhas que o dramaturgo mandou construir para a reforma do teatro e toda esta nova movimentação dos seis personagens e do Diretor7. A sensação de potencialidade provocada pela aparição singular dos seis personagens, como personagens “vivas” abandonadas pelo autor, justifica a aprovação do autor. Mas para sua própria encenação, Pirandello preferiu substituir o elevador por uma solução mais simples, pois, segundo ele, numa entrevista a Léopold Lacour para a revista Comoedia de Paris, o cenário nunca deve chamar mais a atenção do espectador do que a obra em si. Fazê-los entrar pelo fundo da platéia e depois, aos olhos do público, fazê-los subir ao palco, proporciona uma maior aproximação entre a realidade e a ilusão teatral: rompendo com a fronteira palco/platéia não só se subverte a noção de quarta parede, como se cria um mecanismo de intensificação da “realidade” destes seis personagens, que, na concepção do autor, já nascem como personagens vivos. Não é que o autor desejasse, com este recurso, fazer dos seis personagens “pessoas humanas”, muito pelo contrário, ele queria impor estes personagens como personagens vivos, signo de uma outra realidade, muito diferente da realidade humana e por isso mais verdadeiros. Os seis personagens não são um prolongamento da vida humana, como queria a estética naturalista, eles são um prolongamento do teatro, do teatro como vida; como categoricamente nos sugere a didascália de sua apresentação: Dezembro 2008 - N° 11

Tinterri e D’Amico no livro Pirandello capocomico observam que o texto usado por Pitoëff, traduzido por Crémieux da primeira edição, era muito diferente do que foi usado na encenação de Pirandello em 1925. E quanto a Reinhardt, diz os estudiosos, o encenador se serviu do texto como um copião, usando-o com plena liberdade. Sobre o uso do texto em Reinhardt consultar: Michael Rössner, La fortuna di Pirandello in Germania e le missinscene di Max Reinhardt in Quaderni di teatro, n. 34, anno IX, Firenze, Vallecchi, novembre 1986: 40-53. 6

Cf Alessandro Tinterri, Pirandello regista del suo teatro: 1925-1928, in Quaderni di teatro, n. 34, op. cit., pp. 54-64. 7

Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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Luigi Pirandello, Seis personagens à procura do autor, in Pirandello do Teatro no Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999: 188. 8

Para uma análise completa das mudanças operadas em Sei personaggi consultar Claudio Vicentini, Pirandello riscreve i Sei personaggi in cerca d’autore, in Pirandello, il disagio del teatro, Venezia, Marsilio editori, 1993: 73-117. 9

L. Gillet, Deux pièces étrangères à Paris, in Revue des Deus Mondes, 01 mai 1923, p. 226. Reportado em Roberto Alonge, Le messinscene dei Sei personaggi in cerca d’autore, in Testo e messa in scena in Pirandello, Roma, La Nuova Italia Cientifica, 1986: 65. 10

Roberto Alonge, Le messinscene dei Sei personaggi in cerca d’autore, in Testo e messa in scena in Pirandello, op. cit., p. 65-66. 11

As Personagens não deverão, com efeito, aparecer como fantasmas, mas como realidades criadas, elaborações imutáveis da fantasia e, portanto, mais reais e consistentes, do que a volúvel naturalidade dos Atores. As máscaras ajudarão a dar a impressão da figura construída por arte e imutavelmente fixada cada uma na expressão de seu próprio sentimento fundamental, que é o remorso para o Pai, a vingança para a Enteada, o desdém para o Filho, a dor para a Mãe, que terá lágrimas fixas de cera na lividez das olheiras e ao longo das faces, como as que se vêem nas imagens esculpidas e pintadas da Mater Dolorosa das igrejas. Os vestuários também deverão ser de tecidos e modelos especiais, sem extravagância, com pregas rígidas e volume quase estatuário8. As mudanças no texto de Sei personaggi, cunhadas a partir das mediações oferecidas pelas encenações de Pitoëf e Reinhardt, e de sua própria experiência como encenador, são tão contundentes (ao ponto de Alessandro D’Amico afirmar que o texto original de 1921 e a versão revista e corrigida da edição de 1925 são na verdade duas versões da mesma peça) que não deixam dúvidas quanto à decisiva influência da cena sobre a escritura pirandelliana9. Tomando o texto como exemplo desta mútua influência entre cena e escritura na obra pirandelliana, examinemos, com um pouco mais de atenção, a encenação de Pitoëf de 10 de abril de 1923. Nesse espetáculo, como se sabe, os seis personagens chegam ao palco por um elevador, no monta carga de serviço do teatro, envolvidos por uma luz esverdeada. O impacto dramático desta aparição misteriosa sobre os espectadores foi enorme, e causou um grande frisson na crítica especializada. Esta aparição inusitada, revelando “figuras de outro mundo, pálidas, vestidas de negro, suspeitas, agitadas” – como observou maravilhado um crítico francês da época10 -, foi uma genial intuição de Pitoëf que, por meio de uma ousada marcação cênica, soube dar a estas figuras, que se auto-apresentavam como personagens saídas da imaginação do autor, declarando-se entidades superiores, a força necessária para convencer o público de que realmente estavam diante de algo extraordinário: Segundo o texto de 1921 os seis entram por uma “passagem do palco”, a mesma pela qual chegam os atores da companhia. Pitoëf separa com um relevante símbolo os seus destinos; os personaggi, enquanto realidade extraterrestre, descem do alto, lentamente, como em um rito mágico de encarnação. Os veste completamente de preto para reforçar a contraposição, radicalizando até mesmo onde não foi previsto pelo autor (para Pirandello o Pai usa “calça clara e paletó escuro”; para Pitoëf está todo de preto). Há um grande esforço, da parte de Pitoëf, para tornar evidente o contraste entre estes dois universos diferentes e separados11. Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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U rdimento Se inicialmente Pirandello se incomodou com a solução do elevador (observa-se que o dramaturgo ao demonstrar sua contrariedade ainda não tinha assistido ao espetáculo, do projeto artístico de Pitoëf só havia recebido notícias), em Paris, ao assistir a encenação, foi tomado imediatamente por um sentimento de fascínio: “Pitoëf havia atingido o núcleo da obra Pirandelliana e o havia desenvolvido em todas as suas articulações. Havia dado força e densidade ao encontro-desencontro entre o mundo da arte e o mundo dos homens”12. Fazer os seis personagens entrarem pela mesma porta dos atores não lhes dava a força necessária para se impor como uma realidade “superior”, totalmente estranha àquela que se estabelece no plano ordinário do palco. No entanto, a solução encontrada por Pitoëf criou uma atmosfera de irrealidade em torno aos seis personagens que absolutamente desagradava o dramaturgo, pois seu maior objetivo era provocar um efeito de desorientação pelo qual o espectador não conseguisse mais distinguir as circunstâncias reais do acontecimento fantástico. Como visto, a própria estrutura dramatúrgica utilizada, a fórmula do teatro no teatro, possibilita a criação de “coincidências” entre a circunstância material da representação e a situação imaginária descrita na obra, e o elemento permanente que oferece esta base, para a fusão do plano real e do plano fantástico, é justamente o palco real. A possibilidade de fusão entre o universo da realidade cotidiana do teatro e o mundo da criação fantástica se reforçaria se os seis personagens chegassem ao palco através da platéia, como criaturas “reais”, absolutamente “vivos”, mas “irrepresentáveis”, já que feitos de uma outra matéria, inegavelmente superior13. Como escreve Vicentini, não é de se espantar que boa parte do público na ocasião da estréia italiana tenha gritado “manicomio! manicomio!”14: A própria configuração do trabalho, onde a construção dramatúrgica se move em direção contrária ao conteúdo explícito do texto, o esforço constante de ocultar, de confundir sobre o palco a distinção entre o plano da realidade material e o da criação fantástica, faziam da peça uma obra de difícil compreensão. [...] (a fórmula do teatro no teatro) produzia pontos de contato reais, onde a realidade fantástica da obra tende a coincidir com as condições materiais da encenação. [...] (o palco) se revela inesperadamente como o lugar privilegiado do encontro entre o reino da arte e o mundo da realidade material. O que na perspectiva teórica de Pirandello era uma heresia, mas também uma tentação irresistível15. Como dissemos, a entrada dos seis personagens pelo fundo da platéia possui como conseqüência profunda a quebra da barreira entre palco e platéia, o que coloca Pirandello em sintonia com as experiências de vanguarda, na busca do transbordamento dos limites entre realidade e ficção. Lembramos Dezembro 2008 - N° 11

Ibidem: 67.

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13 O tema da autonomia dos personagens já se observa muito antes na narrativa pirandelliana, basta consultarmos a novela Personaggi, de 1906; La tragedia di un personaggio, de 1911 e Colloqui coi personaggi, de 1915.

A expressão italiana manicomio acusa uma situação absurda, inverossímel 14

15 Claudio Vicentini, Pirandello, il disagio del teatro, op. cit., p. 80-81.

Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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U rdimento que a imposição feroz e implacável de separação entre palco e platéia como dois mundos distintos, se desenvolve somente a partir do final do século XIX, mais precisamente com Wagner, na idéia de que sobre o palco deve se manifestar o mundo ideal do mito, contraposto ao mundo real representado pela platéia. E que nada deve perturbar o espaço reservado à evocação fantástica. Para Zola e seus discípulos é também indispensável o rigor na separação entre palco e platéia, obviamente por motivos opostos ao de Wagner. Para Zola, o palco deve prolongar a vida, isto é, deve reproduzir exatamente a realidade cotidiana. Esta separação absoluta entre palco e platéia é também um instrumento de proteção à criação teatral, utilizada por encenadores como Stanislavski. Mas o recurso se mostra limitado no confronto com obras de épocas passadas, ou de outras formas de teatro que não o ocidental, que explicitamente sugerem uma ligação entre o público e a cena. Um passo para se perceber que a rígida divisão entre palco/platéia representava muito mais um problema do que uma solução, já que impedia o desenvolvimento de efeitos cênicos, de exploração de novos espaços e de novas espacialidades, impedindo principalmente a concreta introdução do espectador na ação desenvolvida sobre o palco. A explosão do espaço cênico, sua dissolução, se faz imediata, solicitando, em diferentes modos, com diferentes propostas, uma relação mais estreita entre o público e os atores. Contemporaneamente aos reformadores teatrais, Pirandello tinha consciência da problemática da relação personagem-ator para a cena teatral e da necessidade de se estabelecer uma nítida separação entre as identidades; ponto nevrálgico de muitas das teorias cênicas ao início do século XX. No ensaio Illustratori, attori e traduttori de 1907 se verifica o engajamento do escritor na direção de uma separação total entre as partes, mas a linha de comunicação pretendida por Pirandello se dá entre o personagem e o espectador, sendo o ator nada além de um terceiro elemento incômodo na fruição da obra de arte. Embora a autonomia do personagem em relação ao ator seja reivindicada tanto teoricamente quanto poeticamente, isto é, no texto Sei personaggi in cerca d’autore é possível reconhecer os pressupostos do ensaio Illustratori, attori e traduttori, se constata em Pirandello uma nostalgia em relação ao mito da transparência. O uso da fórmula do teatro no teatro estabelece coincidências entre o mundo ficcional e o mundo real: o espaço descrito pelo drama é o mesmo espaço do palco real e os atores se duplicam em cena, representando eles mesmos: ou seja, atores. Se existe a consciência da separação entre ator e personagem, para se atingir a autonomia da arte (que para Pirandello significava o personagem autônomo e vivo), na prática se verifica uma espécie de tentação em atingir com o teatro, a partir do personagem, aquela autenticidade profunda que a experiência cotidiana nos nega; inspiração que se pode catalogar como romântico-idealista. Aqui se verifica um duplo efeito provocador de uma tensão entre a forma dramática e o conteúdo do texto, pois enquanto o discurso dos Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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U rdimento seis personagens desenvolve o argumento de uma irremediável distância entre a cena (realidade material) e o texto (realidade fantástica), na forma utilizada, o teatro no teatro, se observa uma tentativa de recuperação daquela transparência perdida. Na realidade, Pirandello não construiu uma nova forma dramática, alternativa ao drama burguês, ele na verdade tencionou esta tipologia dramatúrgica reconhecendo a diferença inconciliável entre drama e teatro, entre ator e personagem, sem, no entanto, abandonar a nostalgia utópica do mito da transparência, mas fazendo do corpo do ator não uma marionete, e sim um fantasma; mito que permeia não só Sei personaggi, mas, implicitamente ou explicitamente, toda sua obra posterior. Se é possível falar de uma teoria atorial pirandelliana diremos que, ao inverso do naturalismo, mas de efeito semelhante, sua dramaturgia propõe a possessão do intérprete pelo personagem dramático. Não será o ator a entrar no personagem, mas o personagem a entrar no ator. O teatro como local privilegiado do encontro e do desencontro entre uma realidade superior – o personagem dramático – e o mundo material da cena, o ator. Palco onde se verifica ao mesmo tempo uma distância e uma ilusão de identificação, onde a cena oscila entre a ficção, a tentativa de representação, e a instalação do real, no momento da possessão – utópica - do ator pelo personagem. A recuperação da fórmula do teatro no teatro significou para Pirandello a possibilidade de restaurar a arte no mundo físico do teatro, e isto é o que o afasta das propostas destrutivas da vanguarda. Como analisa Vicentini, o dramaturgo secretamente produzia sobre o palco as condições para que o mundo fantástico da arte pudesse efetivamente se unir com a realidade da vida material. Quando o espetáculo termina, os personagens estão sozinhos em cena, projetados em “grandes e destacadas sombras”, o que Pirandello está insinuando (e afirmando) é que estes seis personagens, vivos, pertencem ao teatro. Foi neste sentimento de pertencimento ao teatro que Pirandello soube ouvir a lição de Pitoëf. Escreve Alonge: o elevador usado pelo encenador parisiense é um elemento de serviço da cena, ele pertence ao teatro, não é um adereço, ou um elemento cenográfico, ele é real. Os personagens em Pitoëff descem sim para a terra, para o palco, mas o céu deles é também o teto do teatro: “Os personagens chegam (e partem) por meio de um percurso típico da maquinaria cênica; de qualquer modo pertencem ao teatro”16. E o teatro destes seis personagens não deve ser de forma alguma um teatro fechado nos limites da convenção mimética-representativa, não deve ser apenas a reprodução ou o reflexo da realidade cotidiana, ele é sobretudo produção. Em outras palavras, não é a vida cotidiana que fornece o modelo para o teatro reproduzir, ao contrário, é o teatro que produz os modelos para a vida. Como dito tantas vezes por Pirandello: “a arte pode antecipar a vida”. Dezembro 2008 - N° 11

Roberto Alonge, Le messinscene dei Sei personaggi in cerca d’autore, in Testo e messa in scena in Pirandello, op. cit. p. 71.

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Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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PAVIS, Patrice. Le théâtre contemporain. Paris: Nathan, 2002. 15

O desenvolvimento do conceito de virtualidade cênica na escritura dramática pode ser consultado no meu artigo A dramaturgia (en) cena: a escritura de uma teatralidade, Scripta, Curitiba: UNIANDRADE, n˚ 4, 2006: 161-167. 18

A versão definitiva de Sei personaggi é o exemplo mais contundente de que a escritura textual é o produto de uma acumulação entre texto e cena. Como disse Patrice Pavis, a dramaturgia é a arte da composição de peças que levam em consideração a prática cênica e, completamos, ela só se realiza com e na presença de uma teatralidade anterior17. A cena influenciou a nova versão do texto Sei personaggi, mas a via inversa também existe: como dito por Alonge, a intuição de Pitoëf sobre o texto de Pirandello fez com que o encenador tocasse o núcleo de sua poética; ora, só podemos falar de intuição quando existe alguma coisa em estado latente para ser descoberta. Sendo assim, podemos dizer que a dramaturgia opera uma conjunção de elementos e de códigos cênicos que, operacionalizados em forma de escritura pelo dramaturgo propõe em si uma forma cênica virtual, ou seja, pré-existiria ao texto dramático uma idéia de representação. Compreendendo a dramaturgia enquanto a escritura de uma forma cênica virtual e, ao mesmo tempo, como um produto mediado por experiências cênicas anteriores, concluímos que o espetáculo Sei personaggi de Pirandello é, ao mesmo tempo, resposta a uma teatralidade anterior e a concretização em parte de uma forma cênica virtual latente no texto18. Da forma cênica virtual à forma cênica concreta, um longo caminho se deve percorrer; e Pirandello, como encenador de si-mesmo, provavelmente não conseguiu realizar a risca aquilo que ele pensava do texto. Ainda que ele tenha escrito o texto ficcional, no momento em que ele o leva para o palco, este se abre para uma nova realidade. Diferentes elementos passam a interferir, como a luz, o espaço, a interpretação dos atores, e as próprias referências cênicas do encenador. Uma conjunção de fatores que inevitavelmente produzem novas direções e significados ao texto concebido e idealizado pelo escritor. A passagem da forma cênica virtual à forma cênica concreta é um curto-circuito entre vários mundos que se auto-influenciam: o mundo ficcional escrito pelo autor, o mundo de referência cênico e humano do encenador, o mundo dos atores e o mundo do palco. Não é nenhum absurdo constatar que diversos achados de Pitoëf foram absorvidos e adaptados por Pirandello para sua trupe. Como por exemplo, o uso de um piano, que não existia na edição original de 1921; o movimento de dança dos atores ao início do espetáculo, marcando o clima descompromissado e vivaz dos atores sem a presença do diretor; o grito que anuncia a chegada do diretor, como um sinal para o retorno da disciplina. Claro que mesmo absorvendo muitos aspectos da encenação de Pitoëf, Pirandello criou um espetáculo seu, a partir de suas próprias referências e experiências cênicas: Pirandello metteur en scène define um modelo de espetáculo em difícil e frágil equilíbrio entre a tradição nórdica (de Pitoëf e de Reinhardt) e a tradição mediterrânea (essencialmente dos diretores Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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U rdimento italianos do segundo pós-guerra), entre a interpretação filosófica dos Sei personaggi e a sua releitura em chave realística. Desaparecido Pirandello, se perde a hereditariedade do Teatro de Arte, aquele admirável e problemático ponto de equilíbrio se rompe19. O que Alonge observa não está muito longe do que Gramsci intuiu anos atrás: que sendo o teatro o terreno mais próprio de Pirandello, a expressão mais completa de sua personalidade, muito se perde separando Pirandello encenador de sua obra escrita. Recordemos as palavras do próprio Gramsci: Quando Pirandello escreve um drama, não expressa “literariamente” (isto é, com palavras) senão um aspecto parcial de sua personalidade artística. Ele “deve” integrar “a redação literária” com sua obra de ensaiador e de diretor. O drama de Pirandello adquire toda a sua expressividade somente na medida em que a montagem for dirigida por Pirandello ensaiador, isto é, na medida em que Pirandello suscitar nos atores em questão uma determinada expressão teatral e na medida em que Pirandello diretor criar uma determinada relação estética entre o complexo humano que representará e o aparato material do palco. Ou seja, o teatro pirandelliano é estreitamente ligado à personalidade física do escritor e não apenas aos valores artístico-literários “escritos”20. A interferência mediterrânea se observa na crítica de Gabriel Bouissy ao espetáculo Sei personaggi: “Novamente, a companhia de M. Pirandello desprezando os efeitos complicados ou fantasmagóricos, procura pela expressão do homem, somente a pessoa humana, o aspecto, o rosto e a voz. Método essencialmente mediterrâneo”21. O equilíbrio alcançado por Pirandello encenador se encontra em sua preferência pela simplicidade da forma cênica e na busca pelo realismo na interpretação dos atores. É no contraste entre a atmosfera surreal do texto e a forma cênica realista que reside a riqueza de Pirandello: a história extraordinária de Sei personaggi se torna aos nossos olhos realmente possível. Sim, ela pertence ao sonho, à fantasia, mas, com a intervenção de seu método de trabalho, e na qualidade interpretativa dos atores envolvidos, aqueles fantásticos seis personagens (intrigantemente) ganham plausibilidade. Enquanto as montagens de Pitoëf e de Reinhardt se comprazem em dar aos seis personagens um vôo quimérico, reforçando a atmosfera de sonho, a montagem de Pirandello faz com que estes seis personagens se equilibrem entre o fantástico e o real. Os atores da companhia Teatro de Arte, especialmente Lamberto Picasso (o Pai) e Marta Abba (a Enteada), e aqui nos serviremos mais uma vez das observações de Gabriel Bouissy, dão aos personagens fictícios uma grande vida interior transformando-os em verdadeiros seres vivos “sombras que Dezembro 2008 - N° 11

Roberto Alonge, Le messinscene dei Sei personaggi in cerca d’autore, in Testo e messa in scena in Pirandello, op. cit., p. 73.

19

Antonio Gramsci, O teatro de Pirandello, in Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978: 59.

20

Gabriel Bouissy, La Troupe italienne joue "Six personnages en quête d’un auteur", in Comoedia, 10 juillet 1925; reportado in Alessandro D’Amico e Tinterri in Pirandello Capocomico, op. cit: 143. 21

Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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Ibidem: 144

22

Roberto Alonge, Le messinscene dei Sei personaggi in cerca d’autore, in Testo e messa in scena in Pirandello, op. cit.: 72. 23

Luigi Pirandello, Seis personagens a procura do autor, in Pirandello do teatro no teatro, op. cit.: 238. 24

Como observado por Alonge, as encenações do segundo pós-guerra, embora com todas as limitações, recuperaram em parte aquilo que Pirandello imaginou para o seu teatro. 25

se transformam em homens pelo mistério da arte” e fazem com que os personagens reais (o Diretor e sua trupe) se revelem “nada mais do que marionetes, por sua deformação profissional”22. Por este princípio Pirandello não poderia deixar de estranhar a solução de Marx Reinhardt proposta para o espetáculo de 30 de dezembro de 1924 na cidade de Berlim; escreve Alonge: “encenada sobre um fundo escuro para suscitar uma aura de mistério, foi capaz de fazer dos seis personagens fantasmas de um pesadelo, sombras evanescentes”23. Nada mais contrário aos desígnios do dramaturgo que, em sua encenação, acentuou nos seis personagens o aspecto concreto, realístico. Sem contar que para a Enteada, personagem de Marta Abba, delineou um perfil bem mais sensual do que aquele proposto na versão de 1921. A atriz, entre todas aquelas que até o momento tinham interpretado o papel, Vera Vergani, Ludmilla Pito’f, Franziska Kinz, foi a única que se apresentou com os braços nus e com uma saia que lhe deixava uma parte das pernas descoberta. É no contraste entre o argumento textual e a forma cênica que Pirandello se afasta tanto de Reinhardt quanto de Pitoëf. Acreditando no grito do Pai ao final do terceiro ato, “Que ficção qual nada! Realidade! Realidade, senhores! Realidade!24”, Pirandello faz da fantasia uma realidade mais viva, mais “real” do que a realidade falsa e artificial do mundo cotidiano. Observa-se que o modelo de espetáculo proposto por Pirandello, em chave realística, só foi realmente absorvido no segundo pós-guerra, primeiramente com as encenações de Orazio Costa (entre 1946 e 1949), que se esforçou para libertar Sei personaggi do estigma cerebral, sofístico. E depois, seguindo nesta mesma direção, o espetáculo de Strehler, diretor do Piccolo Teatro di Milano, de 195325. Pirandello não pôde assistir a estes espetáculos, e a insatisfação em ver sua obra-prima interpretada de forma filosófica, cerebral, em ver os seis personagens interpretados sem a devida humanidade, o acompanhou até o fim de sua vida. Mas uma carta escrita para Ruggero Ruggeri em setembro de 1936 (três meses antes de sua morte) coloca a questão em outros termos: Gostaria que esta nova edição atualizasse inteiramente, ou pelo menos do melhor modo possível, a visão que tive do trabalho quando o escrevi. Precisa se evitar o erro que sempre se comete: fazer os Personagens parecerem sombras ou fantasmas, em vez de fazê-los como entidades superiores e com grande força, porque “realidade criada”, forma de arte fixa e imutável para sempre, quase estátuas, se comparados à mobilidade natural mutável e quase fluida dos atores. Para obter isto, é suficiente dar ao Diretor-ensaiador e aos cômicos (corifeo e coro) o máximo de movimento, uma vivacidade ora divertida ora assustada, com roupas leves e quase esvoaçantes; aos Personagens, em vez disto, uma poderosa imobilidade e uma expressão fixa, que certamente se conseguiria Pirandello encena Sei Personaggi in Cerca D’Autore. Martha Ribeiro.

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U rdimento melhor com uma máscara ao estilo da tragédia grega. Máscaras novas, obviamente feitas por escultores, que expressassem o comportamento mais característico: o “remorso” para o Pai, a “vingança” para a Enteada, a “dor” para a Mãe, o “desprezo” para o Filho26. A carta demonstra um Pirandello sempre insatisfeito, sempre em busca de novas iluminações para sua obra-prima. E demonstra também que sua própria encenação, acentuadamente concreta e realista, não se guiou por estas idéias que sem dúvida nenhuma afastam os seis personagens de todo e qualquer aspecto humano vivo e verdadeiro. Sei personaggi é uma obra que atravessa o próprio tempo do autor, ela está presente em todas as diferentes fases do artista, cada mudança de perspectiva do dramaturgo em relação ao significado da arte em confronto com a vida, faz com que estas seis personagens adquiriram uma nova face, um novo modus. Sei personaggi é sempre o ponto de partida de Pirandello e seu eterno retorno. Na carta, o frágil equilíbrio entre o metafísico e o mediterrâneo, observado por Alonge, se rompe completamente em favor do aspecto metafísico. O seis personagens, explica o dramaturgo, são personagens trágicos, máscaras fixas que sofrem dores elementares, que mais parecem esculpidas em mármore (o uso das máscaras propõe a “desumanização” dos personagens, transformando-os em criaturas metafísicas). Já o coro que os assiste possui toda a fluidez, a leveza e a plasticidade das coisas que por natureza são mutáveis: são artistas do mundo, cheios de vida e feitos de carne. Uma declaração que revela a lição apreendida pelo dramaturgo em seus dez anos de convívio com o teatro e com a atriz Marta Abba: a obra de arte, ainda que perfeita, é privada de vida, enquanto o corpo do ator (da atriz) é vida, é movimento. É com os seis personagens que tudo termina e que tudo recomeça. Eles são a jornada de sua própria vida dentro do mundo da arte.

Reportado em Leonardo Bragaglia, Carteggio Pirandello – Ruggeri, op. cit.: 55 (carta de 21 de setembro de 1936). 26

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AÇÃO DRAMÁTICA, MOVIMENTO FUNCIONAL E TEORIA DO ESFORÇO: ORIGENS DO PENSAMENTO TEATRAL NA OBRA DE RUDOLF LABAN1 Milton de Andrade2

Resumo

Abstract

Este artigo revisa alguns conceitos da teoria teatral de Rudolf Laban: a composição de esforços interiores em termos de ações dinâmicas; a ação intencional como tendência de organizar impulsos interiores em forma de movimentos funcionais e expressivos; a “veracidade” das ações cênicas como relações orgânicas entre esforços interiores e aspectos visíveis do movimento. Conceitos de Laban, como esforço interno e composição eucinética são usados para elucidar princípios rítmicos e orgânicos aplicados na composição cênica.

This paper reviews some concepts of Rudolf Laban´s theater theory: the composition of inner efforts in terms of dynamic actions; intentional actions as tendency to organize inner impulses in form of functional and expressive movements; the “veracity” of scenic actions as organic links between inner efforts and visible aspects of movement. Laban´s concepts, such as inner effort and eukinetics composition, are useful to clear rhythmical and organic principles applied to scenic composition.

Palavras-chave: movimento, ação, Laban.

Keywords: movement, action, Laban.

Apesar de ser mais conhecida no âmbito da dança, a obra de Rudolf Laban (1879-1958) apresenta, desde suas origens, um fecundo pensamento sobre a arte dramática. Para Laban a relação entre arte dramática, dança e mímica está na base de uma reformulação ética de princípios pedagógicos aplicados à formação e ao treinamento do ator-dançarino. Laban vê o teatro como “arte do movimento”: é através da estrutura rítmica, dinâmica e espacial do movimento que a linguagem teatral encontra sua articulação, sendo a arquitetura do movimento também uma arquitetura de interioridades. A arquitetura formal da linguagem dramática emerge da arquitetura dos esforços interiores da mímesis corporal: “Quando a mímica e com ela o significado do movimento são totalmente esquecidos ou deixados de lado, o teatro morre” (LABAN, 1999:95). Dezembro 2008 - N° 11

Texto original em italiano como parte de Affetto e azione espressiva nell´arte dell´attore: studio sul rapporto corpoanima nelle teorie di Johann Jakob Engel, François Delsarte e Rudolf Laban. Tese de Doutorado. Bolonha: Università degli Studi di Bologna. 274p, 2002. Todas as citações foram traduzidas tal como se encontravam no texto da tese em italiano (N.T.). 1

Milton de Andrade, docente do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC, formado em Psicologia pela Universidade de São Paulo, com Mestrado e Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de Bolonha (Itália). 2

Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço... Milton de Andrade.

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U rdimento Já em seu primeiro livro de 1920 Die Welt des Tänzers (O Mundo do Dançarino), em especial no capítulo Sensation und Symbol in Pantomime und Tanz (Sensação e Símbolo na Pantomima e na Dança), Laban afirma o poder da mímica como um modo de representação simbólica que, na sua plasticidade e arquitetura interior, pode ser “um meio essencial de expressão da alma” e de valores humanos essenciais à arte dramática (1920: 213). Conforme Laban, já que o curso da vida nem sempre permite que observemos as origens e o valor de todos os nossos atos, temos necessidade da arte dramática e da arte do movimento para realizar e contemplar a articulação entre os eventos externos, os valores espirituais, a ação funcional, o pensamento e o sentimento humano. Na introdução de Modern Educational Dance, publicado pela primeira vez em 1948, Laban cita o francês Jean Georges Noverre (1727-1810), autor das Lettres sur les arts imitateurs en général et sur la Danse en particulier, como o primeiro mestre-estudioso de balé que se refere ao movimento e à ação humana como elementos de vivificação da arte e da dança: Por um motivo ou outro, Noverre foi o primeiro a descobrir que tanto as antigas danças campesinas quanto as diversões da realeza eram inadequadas ao homem dos centros industriais nascentes. [...] Criou o ballet d’action, no qual encontram expressão não tanto as reverências cerimoniosas e a delicadeza, mas a variedade das paixões humanas. Creio, porém, que sua maior contribuição tenha sido mandar seus alunos às ruas, aos mercados e às oficinas para estudar os movimentos de seus contemporâneos, ao invés de copiar o comportamento polido dos príncipes e cortesãos. (LABAN, 1975: 3-4) Segundo Laban, é a força da ação e do movimento funcional que dá ênfase a determinados elementos objetivos da consciência artística. Os movimentos funcionais são fundamentais para a pesquisa sobre o sentido da forma expressiva, pois revelam a coerência entre o que se faz e o que se deseja fazer, entre o que se manifesta como força de transformação do mundo externo e o que se pensa de querer transformar na existência. O uso do movimento para um objetivo preciso, seja como meio para um trabalho externo que como um espelho de certos estados ou comportamentos mentais, deriva de um poder, cuja natureza ainda não foi explicada. Mas não se pode dizer que essa faculdade seja desconhecida, pois ela pode ser observada em vários graus de completude, onde quer que haja vida. (LABAN, 1999: 26) O movimento humano foi sempre usado para dois objetivos distintos e complementares: a obtenção de um resultado concreto no Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço... Milton de Andrade.

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U rdimento trabalho, que garante nosso desenvolvimento material, e a aproximação a significados intangíveis nos cultos religiosos e na oração, que nos leva ao crescimento espiritual. Em ambos, no trabalho e no culto religioso, são presentes os mesmo movimentos, mas com significados diferentes. Para alcançar um resultado concreto no trabalho, esticar um braço, recolhê-lo e manipular um objeto devem ser feitos movimentos seguindo uma ordem lógica. Isto não acontece no rito. Neste caso, os movimentos seguem uma seqüência totalmente irracional, embora cada movimento usado no culto possa fazer parte de uma ação de trabalho. O alongamento de um braço no ar pode exprimir a tensão em direção a algo que não pode ser atingido. Já a oscilação dos braços e do corpo, que poderia lembrar a manipulação de um objeto, pode significar uma luta interior e tornar-se a expressão de uma oração pela libertação de um tormento profundo. (LABAN, 1999: 10) A coerência funcional é o caráter inteligível da ação e a interação entre mundo interno e externo se dá ao operar hábitos conscientes. Os movimentos funcionais e os hábitos gerados pela relação funcional e dialética interno-externo constituem as disposições para agir de certo modo, em dadas circunstâncias e por um dado motivo. As ações funcionais refletem as sensações produzidas pelos hábitos de trabalho, da mesma forma com que as ações instintivas provêm da natureza orgânica. Fundamental para a pesquisa sobre a origem do movimento funcional é a distinção e a estreita relação entre “esforço muscular”, que modifica o mundo externo (o mundo do que é percebido) e “esforço não-muscular”, que modifica o mundo interno (o mundo das imagens interiores). Durante a Segunda Guerra Mundial, na Inglaterra, Laban se une ao consultor industrial F. C. Lawrence para desenvolver um método de análise do esforço nas ações de trabalho, “um método de instrução e treinamento com o objetivo de aumentar o prazer no trabalho através da consciência e da prática de seu caráter rítmico” (LABAN, 1947:2). A observação dos movimentos de trabalho nas indústrias leva Laban a elaborar um sistema de análise da energia muscular empregada na ação funcional, com o objetivo de revelar o aspecto qualitativo do movimento, ou seja, seus elementos intencionais e caracteriológicos, integrando os dois aspectos fundamentais do movimento: a motivação e a execução. Nesse sentido, uma das grandes contribuições de Laban é o delineamento do conceito de esforço (effort). O esforço interno (inner effort) é visivelmente expresso através do ritmo do movimento, e será na ação do trabalho humano que os esforços poderão ser Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento conhecidos com mais clareza. “O esforço do indivíduo é visivelmente expresso nos ritmos de seus movimentos. Por isso, é preciso estudar esses ritmos e extrair deles os elementos com os quais podemos compor um panorama sistemático das formas do esforço presentes na ação humana.” (LABAN, 1947:2) A palavra effort não se refere somente a “formas de gasto de energia”, mas ao “emprego da energia como um fato em si”, não importando se este emprego é físico ou mental. Cada movimento, voluntário ou involuntário, implica num esforço. Os comportamentos, os hábitos e os movimentos não são somente produtos da ação muscular, mas dos esforços internos e dos atos imaginativos que os acompanham. Laban define esforço como o conjunto de impulsos interiores do qual o movimento se origina. O esforço humano varia em sua manifestação e é um conjunto de vários elementos compostos num número infinito de combinações. Para identificar os mecanismos motores presentes num movimento orgânico, no qual age o controle intencional dos eventos físicos, é útil atribuir um nome à função interna que origina esse movimento. A palavra usada nesse sentido é esforço [effort]. Todo movimento humano está indissoluvelmente ligado a um esforço que é, portanto, sua origem e seu aspecto interior. (LABAN, 1999:26) Como comportamento interno (inner attitude), o esforço se manifesta na elucidação da intenção e se destaca na nitidez das dinâmicas da ação composta pelos fatores do movimento (motion factors): peso, tempo, espaço e fluxo. O senso da proporção entre os graus e as variações desses fatores determina o grau da visibilidade e a lógica do esforço empregado. Laban tenta dar “visibilidade” e discernimento ao aspecto intangível do movimento através da arquitetura dos esforços internos, da ação dinâmica e dos comportamentos internos habituais (habitual inner attitudes), que determinam o caráter do movimento: É da máxima importância que o ator-dançarino reconheça que esses comportamentos internos habituais constituem os indícios básicos daquilo que chamamos caráter e temperamento. […] O esforço pode ser visto no movimento de um operário ou de um dançarino e ouvido no canto ou num discurso. (LABAN, 1999:26) O esforço deixa as próprias marcas nas expressões humanas. No capítulo “As raízes da mímica” de The Mastery of Movement (1950, primeira edição), em busca dos aspectos intangíveis do movimento, Laban descreve as fases do esforço mental que antecedem as ações práticas: atenção, intenção, decisão e Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço... Milton de Andrade.

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U rdimento precisão. Segundo Laban, todas as ações práticas são precedidas de quatro fases de esforço mental, que se manifestam por pequenos movimentos expressivos do corpo: (1) a fase de atenção, na qual são identificados e considerados o objeto da ação e a situação de sua execução, que pode acontecer com uma concentração direcionada ou indireta e flexível; (2) a fase da intenção, que pode variar de forte a leve, em que o tipo de tensão muscular produzida em áreas mínimas do corpo dá informações sobre a determinação de uma pessoa para agir; (3) a fase sucessiva de decisão, que é indicada pela manifestação repentina dos impulsos voltados para a ação; (4) e, antes que a ação propriamente dita inicie, pode ser identificada uma outra fase, que Laban chama de precisão. “Trata-se daquele breve momento que antecipa a execução da ação, em que ela é fortemente controlada por um fluxo contido de esforço, especialmente se não é familiar ou, no caso oposto, é espontânea e de fluxo livre” (LABAN, 1999: 105). Estas quatro fases constituem a preparação subjetiva da operação objetiva: são geralmente muito concentradas e podem ser transferidas, em parte ou totalmente, à ação determinante. “É possível, porém, que aconteçam simultaneamente ou que sua seqüência seja invertida, mudada ou complicada, ou até que uma fase ou outra seja omitida.” (1999: 105) É através da força da atenção, da intenção, da decisão e da precisão, faculdades preparatórias da ação, que se dá ênfase aos elementos objetivos do ato consciente. Assim, os atributos que formam a consciência, de qualidade e intensidade amplamente variáveis, derivam da interação entre mundo interno e externo. A interação desses dois mundos consiste numa ação direta do mundo externo no interno e numa ação indireta (portanto, analisável e discernível) do mundo interno no externo, pela atuação dos esforços. A ação indireta, analítica e consciente exerce uma função real no autocontrole. Quando se trata de atenção, por exemplo, trata-se de objetivar um senso de continuidade: orientar-se e encontrar uma relação com o objeto de interesse. A atenção tem o poder de evocar a passagem e a sucessão lógica entre pensamentos e ações3. Esse é um ponto crucial para o trabalho do ator que, de acordo com Laban, não deve representar a forma geral do esforço mas, iniciando a ação nas fases preparatórias do esforço mental, deve ser capaz de representar o desenvolvimento e as mudanças dos comportamentos internos presentes no contexto e nas situações de representação. As mudanças de esforço não são sempre fruto das situações, mas são esquemas que determinam novas situações. Portanto, o estudo das situações dramáticas deve compreender os três aspectos fundamentais do esforço: motivação, execução e transição entre as ações dinâmicas. O exercício prático derivado desse estudo analítico é chamado por Laban de “effort-training” e pressupõe o conhecimento das regras Dezembro 2008 - N° 11

Sobre a importância da atenção e do ato consciente na configuração lógica do pensamento e da ação, veja também o texto de Peirce, Some Consequences of Four Incapacities, de 1868: "(…) Achamos que a atenção produz um enorme efeito sobre o pensamento posterior. Em primeiro lugar, a atenção toca fortemente a memória, pois um pensamento é lembrado por tanto tempo quanto maior é a atenção dedicada a ele em sua origem. Em segundo lugar, quanto maior a atenção, mais próxima é a conexão e mais precisa a seqüência lógica do pensamento. Em terceiro lugar, por meio da atenção pode-se recuperar um pensamento que foi esquecido. Destes fatos concluímos que a atenção é a faculdade pela qual o pensamento em ato num dado tempo é ligado e religado ao pensamento em ato num outro tempo; ou, para aplicar a concepção do pensamento como sinal, concluímos que a atenção é a aplicação demonstrativa pura de um pensamento-sinal." (PEIRCE, 1980: 72) 3

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U rdimento que governam as transições entre os esforços. Os exercícios devem acontecer em situações nas quais dois ou mais esforços estão inter-relacionados por transições entre si. Toda ação de transição tem, no mínimo, duas partes. A primeira parte é uma dissolução do esforço essencial anterior, enquanto a segunda é a preparação para o próximo movimento. As situações dramáticas nascem de uma espécie de “química do esforço”. Para Laban, trata-se, na prática, de ajudar tanto o ator quanto o operário a controlar corretamente o esforço e, até em condições externas mais difíceis, obter a economia racional do esforço humano: A tarefa do operário é trabalhar com objetos materiais, a do ator é trabalhar com seu corpo e sua voz, usando-os de modo a caracterizar com eficácia, de acordo com a situação, a personalidade humana e seus comportamentos mutáveis. Ambas as tarefas, a do operário e do ator, podem ser realizadas habilmente por meio de uma agradável e profícua economia de esforço. (LABAN, 1999:12) A mudança gradual e lógica de uma configuração do esforço habitual é o meio essencial pelo qual o ator constrói sua caracterização e situação dramática. A mudança do esforço é a modificação da tendência do ator em direção à ação, tendência que vem de outras experiências, de esforços anteriores ou de atos voluntários. Além da construção de um caráter ou de uma personagem, o ator deve procurar a oposição ou a harmonia entre diversos esquemas de esforço. É a transição entre os esforços que revela o conflito dramático: “No teatro, muitas nuanças das qualidades do esforço aparecem nos movimentos de transição. Elas geralmente mostram uma interação incoerente entre ritmos e formas, que indica um conflito entre o comportamento interno do personagem e seu comportamento externo” (LABAN, 1999:108). A luta e a contraposição dos impulsos de esforço no corpo do ator configuram e fazem parte da ação dramática, que será sempre o resultado dessa batalha interna. “Para dar a resposta certa às expectativas mais secretas do espectador, o ator deve dominar a química do esforço humano e estabelecer uma relação íntima entre aquela química e a luta pelos valores que constituem a vida” (1999:110). A destreza do ator-dançarino ou do mímico, segundo Laban, está na capacidade de transformar a qualidade do esforço, isto é, o modo em que certa quantia de energia é liberada, variando a composição e a ordem dos elementos que o constituem, criando várias combinações e seqüências diversas de expressão do esforço. A passagem entre um esforço essencial e outro, através de trajetórias dinâmicas, torna visível a oscilação rítmica do corpo. A qualidade Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço... Milton de Andrade.

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U rdimento rítmica do trabalho do ator depende da relação entre o esforço interno e a forma do movimento no espaço. A localização de esforços nas várias partes do corpo é, por exemplo, uma referência clara à direção na qual o corpo se move. Os movimentos realizados numa direção espacial definida estão sempre associados a uma combinação definida dos esforços internos. A arquitetura espacial pode revelar uma arquitetura mental. “As ações fundamentais do esforço estão também presentes em qualquer forma de expressão mental ou intelectual e a projeção externa de um esforço pode revelar um estado mental” (LABAN, 1975:53). O uso do movimento para um objetivo preciso revela o corpomente como potência operativa: oferece a dialética vital corpo-mundo mediante a qual a ação se carrega de intenções. Nesse sentido, em termos fenomenológicos, o corpo do ator é sempre intenção. A intenção do corpo “é, em seu ser, destinada a um mundo em direção ao qual não pára de apontar e se projetar” (GALIMBERTI, 1996: 65). Para concluir, em síntese, podemos afirmar que o estudo analítico da ação funcional nas teorias de Laban e sua aplicabilidade na formação do ator revelam princípios que podem ser definidos como: 1. O movimento intencional do ator nasce do modo com o qual o corpo se relaciona com os objetos e o espaço; ou seja, ele não é uma reação a um estímulo isolado, mas é a ação de um organismo num ambiente qualificado; 2. O espaço corpóreo na cena não é posicional, mas sempre situacional, pois se define a partir da situação funcional em que se encontra diante das tarefas às quais se propõem e das possibilidades existentes; 3. O movimento funcional, o uso do movimento para um objetivo preciso, revela o corpo do ator como potência operativa, oferece a dialética vital “corpo-mundo”, através da qual a ação se carrega de intenções. E o ator não tem acesso ao mundo da ação funcional, se não percorrendo o espaço que se desdobra a partir de si e ao redor de si; 4. O espaço homogêneo e objetivo ganha sentido somente a partir do espaço orientado do corpo volitivo, que é a fonte de todas as possíveis direções, centro de todas as perspectivas da geometria espacial; 5. A consciência volitiva do corpo origina-se na experiência do movimento sem uma interferência hermenêutica a priori; 6. O contato vital do nosso corpo com o mundo coincide com o campo dinâmico e é o esforço humano, transformado em ação, que faz do espaço corpóreo e do espaço externo um sistema único. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento 7. Estar no mundo da ação significa para o ator “estar-no-mundo-parafazer” - não só para representar -, pois este mundo não é povoado somente de sinais, mas sobretudo de tarefas. E para concluir com Laban: A atividade mediadora do ator exige um alto grau de verdade. O ator, o mímico ou o dançarino competente torna possível a expressão da verdade e de todas suas complicações através da ação corpórea. [...] O mímico e o teatro introduzem o espectador na realidade da vida interior e no mundo invisível dos valores. [...] Embora o espectador possa não ter algum outro motivo para ir ao teatro, se não a diversão, permanecerá sempre desiludido se não puder observar as realidades do mundo dos valores, e esse mundo pode ser efetivamente apresentado somente através de uma dinâmica interna e externa. (LABAN, 1999:239)

Referências bibliográficas GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. Milão: Feltrinelli,1996. LABAN, Rudolf. Die Welt des Tänzers. Stuttgart: Chr. Belserschen Buchdruckerei, 1920. LABAN, Rudolf. Modern Educational Dance. Londres: Macdonald & Evans, 1975. LABAN, Rudolf e LAWRENCE, F.C. Effort: economy of human movement. Londres: Macdonald & Evans, 1947. LABAN, Rudolf. L´arte del movimento. Macerata: Ephemeria, 1999. PEIRCE, Charles Sanders. Semiotica. Turim: Einaudi, 1980.

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O CORPO INVISÍVEL: TEATRO E TECNOLOGIAS DA IMAGEM1 Óscar Cornago Bernal2

Resumo

Abstract

O texto aborda a relação do teatro com as novas tecnologias e realiza uma aproximação entre o espetáculo teatral e os modelos de representação tais como cinema, televisão, vídeo e Internet. Discutindo ainda um pensamento essencialista que perceberia uma identidade fixa, uma essência característica de cada linguagem, o texto propõe analisar das zonas de intercâmbio entre as linguagens abordadas diferenciando dois grandes níveis de influência entre os novos meios e o teatro: um nível mais profundo culturalmente e menos explícito, e outro mais visível com uma vontade artística expressa, que costuma traduzir-se na utilização de aparatos midiáticos na cena.

This paper addresses the relationship between Theatre and New Technologies, suggesting a potential integration between Theatre and Media such as Cinema, Television, Video and Internet. The study discusses the ways in which electronic media became an integral part of numerous performances, stressing underlying strategies common both to Media and Art. Suggests that there are at least two levels of influence between media technologies and Theatre: a deeper and less explicit stage, where prospective interaction is very restrained, and a broaden evident stage, where new media is converted into an integral feature of a theater performance.

Palavras-chave: teatro e tecnologias, mídia e encenação, imagem.

Keywords: theater and technologies, media and performance, image.

A relação do teatro com as novas tecnologias é um tema que se presta com facilidade a enfoques apocalípticos em torno ao futuro do teatro e sua sempre questionada sobrevivência na sociedade dos meios. Uma aproximação distanciada e menos catastrófica nos mostra, no entanto, que o teatro, como técnica da representação, esteve sempre aberto aos avanços que têm permitido ampliar suas possibilidades de expressão. Desde o começo introduziu engenhos técnicos para fazer aparições desde as alturas, vôos na cena, desaparecimentos pelo solo ou estranhas mutações que assombraram ao público. Tão pouco deixou de adaptar-se com rapidez às diferentes técnicas de iluminação, nem às crescentes formas de se conseguir maior mobilidade na cena. Assim chegamos ao século XX, quando se fez possível a gravação da voz e de imagens, o que deu lugar ao Dezembro 2008 - N° 11

Tradução de André Carreira.

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Óscar Cornago Bernal é pesquisador do Instituto de la Lengua Española do Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Madri Espanha). Entres seus livros encontram-se La Vanguardia teatral en España (1965-1975); Del ritual al juego; Discriso teórico y puesta en escena en los años sesenta: la encrucijada de los realismos e Pensar la teatralidad: Migual Romero Esteo y las estéticas de la modernidad. 2

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U rdimento rádio, à fotografia e ao cinema, instrumentos que as vanguardas não tardaram em incorporar. A partir deste enfoque, as tecnologias da imagem representam um capítulo a mais, o último grande capítulo, na história do teatro.

Modelos de representação dominantes: cinema, televisão, vídeo, internet? Muito se tem falado da influência e das relações do cinema com outros gêneros; sem dúvida, sua rápida conquista de uma prestigiada condição artística, e não meramente documental, o situou na frente do horizonte estético do século XX. A história da televisão tem sido muito diferente; sua estreita relação com a realidade tem negado-lhe uma entrada no parnaso das artes, e esta teve que esperar o invento do gravador no final dos anos sessenta e o correspondente desenvolvimento da técnica do vídeo. Posteriormente, a televisão digital e as infinitas janelas abertas pela Internet não fizeram mais que levar ao extremo uns comportamentos culturais antecipados de algum modo no funcionamento da televisão. Neste sentido, uma menor repercussão explícita destes meios nas artes leva a pensar que sua influência mediática pudesse ficar reduzida ao mundo cultural não especificamente estético, enquanto que se seguiu falando do cinema como a linguagem paradigmática do século XX.

A relação televisãoteatro não foi sempre imposta desde o meio televisivo; no começo a televisão, como fez antes o cinema, teve que recorrer aos produtos teatrais como ponto de partida para sua programação (AA. VV. 1979). Esslin (1970) afirma que quase todos os dramaturgos ingleses dos anos cinqüenta e sessenta fizeram trabalhos para a televisão, quando esta ainda não tinha desenvolvido uma linguagem tão específica. 3

No entanto, a influência do cinema como meio dominante, a linguagem modeladora primaria - utilizando a terminologia de Lotman -, teve seu apogeu nos anos cinquenta e começou a mudar de signo na década seguinte, o que não quer dizer que deixasse de ser um referente artístico de primeira ordem. Isto nos permite dar um giro à equação e começar a pensar, por exemplo, na crescente influência do paradigma televisivo na tela grande. A influência estrutural do cinema na dramaturgia se faz visível nos anos cinqüenta e sessenta, por exemplo, no teatro realista norte americano de Tennessee Williams ou Arthur Miller, cujo marcado acento narrativo facilitou o acesso ao cinema; mas a partir dos anos sessenta se impõe de maneira cabal, com a eficácia que somente têm os meios que em algum momento passaram por transparentes - naturais -, outro modelo de comunicação diverso que é a televisão, o grau zero da “midialidade”, que através das séries e outros programas de pequeno formato, seus produtos mais famosos, proporá um esquema de construção dramática a numerosos autores dos anos oitenta e noventa, familiarizados por outro lado com este meio pelo seu trabalho profissional, como antes haviam estado, ainda que em menor medida, com o cinema3. Diferentemente do tempo narrativo e distante no que nos submerge o cinema, a televisão propõe um ritmo rápido e entre cortado, uma sensação de proximidade e quase de intimidade (para o que contribui o novo espaço de recepção: a sala de estar ou o quarto de dormir) e o aparente protagonismo do O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem. Óscar Cornago Bernal.

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U rdimento espectador, no sentido de que este pode decidir a interrupção ou a mudança de emissão e inclusive a participação nela através da Internet e do telefone. Esta e outras características, levadas ao extremo pelo desenvolvimento posterior da tecnologia digital e, finalmente, ainda que já com novas implicações, da internet, vão constituir um paradigma profundamente teatral e performativo por sua sensação de imediatez, o aqui e agora do estúdio televisivo (o “ao vivo”), a presença explícita do público e seu aparente caráter coletivo; um modelo que será exportado a outras práticas estéticas (GÖTTLICH, NIELAND y SCHATZ, 1998; BREA, 2002; CORNAGO BERNAL, 2002). A pergunta que vai guiar este ensaio é a reação da própria cena, espaço da representação por excelência, ante uma série de tecnologias capazes de criar a ilusão de um novo teatro, o teatro mediático, mais crível, imediato e real, mais interativo e emocionante em muitos casos do que a cena real; um teatro mais real que a realidade, diria Baudrillard. Por outro lado, o desenvolvimento dos meios não pode ser visto de forma desconexa, nem tão pouco acidental. Comumente, não é difícil perceber o nascimento de um meio como continuação, ou resposta a uma série de proposições que já estavam formulados previamente. Deste modo, a fotografia e o cinema vieram a preencher o desejo extremo de realismo e verossimilhança antecipado no romance ou no teatro. Dentro do espaço orgânico de uma cultura cada linguagem ocupa um lugar, e o nascimento, transformação ou desaparecimento de uma obriga a uma redistribuição do espaço em função das restantes. O fato é que cada movimento - ou melhor dito: esse movimento constante no qual estão inscritas todas as linguagens dentro de uma cultura - nos descreve forças de transformação e linhas de evolução que definem um período da história. Desde esta perspectiva, devemos nos perguntar também sobre os princípios estéticos que explicam o aparecimento e desenvolvimento extremo deste modelo de comunicação, de caráter imediato, fragmentário e interativo, que caracterizou a segunda metade do século XX, e dando um passo além - como dissemos anteriormente -, analisar em que medida o teatro previu e como respondeu as proposições e necessidades estéticas comparáveis. A explosão midiática explicitou a importância de cada instrumento, de cada meio, dentro de uma cultura, dando lugar a uma perspectiva de análise conhecida como a teoria e história dos meios. Este enfoque fez que proliferassem as análises comparadas entre distintos gêneros já nos oitenta, o que introduziu um giro fascinante no estudo das artes, que até então tinham buscado entender-se desde seus traços essenciais, para analisá-las agora não na determinação essencialista de cada linguagem, senão na análise das zonas de intercâmbio entre cada uma delas; se trataria, portanto, de chegar a um conhecimento de cada linguagem, mas não desde seus centros e fundamentos, senão desde sua periferia, desde seus limites exteriores e espaços de indefinição, esse espaço onde a poesia se cruza com a pintura ou o teatro com a televisão. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Sob esta aproximação os diferentes gêneros deixam de ser entendidos por um prisma belicista como eternos rivais, dado que o interessante seria agora iluminar os espaços de contato e diálogo de uns com outros (PAVIS, 2003: 61ss.). Este recorte tem caracterizado igualmente as práticas artísticas nas últimas décadas, com a intensificação das relações entre campos diversos, normalizando uma atitude própria das vanguardas. Tal contato cada vez mais fluído permitiu a cada arte entender seus recursos específicos desde as outras e desenvolvê-los graças ao diálogo com outras formas de expressão; o teatro sonhando com ser cinema, o cinema com ser teatro, a televisão cada vez mais teatral ou a cena cada vez mais televisiva são fenômenos que enriqueceram cada um destes meios desde um olhar externo, ou em outras palavras: entender o teatro desde o que não é teatro, desde o cinema, a televisão, o vídeo ou Internet, se reverteu em um enriquecimento da maneira de fazer e conceber o processo cênico, sendo em muitos casos este tipo de práticas limiares, abertas a seu questionamento desde um olhar não especificamente cênico, as que têm dado lugar às peças de maior interesse. Respondendo a esta nova situação midiática, a cena moderna se revela como um espaço de contrastes e choques, caracterizado pela diversidade de olhares e formas de construção. Neste ponto, podemos adiantar que o tipo de relações que vamos analisar a continuação não se reduz à utilização em cena de uma tela ou umas quantas projeções com os fins mais diversos. O tema das influências entre umas e outras linguagens é sempre complicado, porque somente algumas dessas influências se desenvolvem de modo explícito e consciente, enquanto que as repercussões mais profundas têm lugar em um plano menos visível. Neste sentido, a tese da qual partimos é que cada meio de expressão supõe algo mais que uma linguagem artística, na realidade implica um modo diferente de (nos) representar a realidade, de ter acesso ao mundo e perceberlo; consiste, em uma palavra, em um novo enfoque epistemológico, outra forma de conhecimento (representação) do mundo, e, portanto, um tipo de relação diferente do sujeito com o outro (POSTMAN, 1987; MCLUHAN y POWERS, 1996; FISCHER-LICHTE, 2001). Considerando isto se pode diferenciar dois grandes níveis de influência entre os novos meios e o teatro: a) um nível mais profundo culturalmente e menos explícito, e b) outro mais visível com uma vontade artística expressa, que costuma traduzir-se na utilização de aparatos midiáticos. Dentro deste último nível é possível, por sua vez, distinguir uma utilização mais casual ou tangencial, que não afeta a proposta estrutural da peça, e outro emprego profundo que sim determina a proposta dramatúrgica, que propõe uma reflexão sobre os diferentes modos de comunicação. Esta classificação não define compartimentos estanques, senão que se trata de uma proposta metodológica que nos permite mover-nos por este intrincado mundo de relações, diferenciando diálogos situados em níveis distintos. Nos tópicos O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem. Óscar Cornago Bernal.

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U rdimento III e IV deste texto se darão alguns exemplos de ambos enfoques, mas antes disso, devemos começar estabelecendo o eixo central desde o qual a cena se aproxima aos outros meios, sem deixar por isso de ser teatro: a presença do corpo frente a sua ausência midiática.

O corpo invisível Este eixo (presença-ausência) não somente delimita um traço essencial da relação da cena com a imagem midiatizada, senão que ao mesmo tempo aponta a diferença que faz com que o teatro siga sendo teatro: a relação ator-espectador em um espaço e um tempo compartilhados por ambos. Como adiantamos acima, o aparecimento de novos meios vem comumente ligado a certos debates estéticos presen,tes já no ambiente cultural prévio. Do ponto de vista teatral, a discussão em torno ao corpo do ator, a reivindicação de seu caráter físico, sensorial e performativo, suas possibilidades expressivas e (modos de) comunicação imediata com o espectador têm sido alguns dos motores da renovação cênica desde as vanguardas históricas. Nos anos sessenta se recuperam e se assimilam estas posições, que serão iluminadas e contrastadas uma década depois graças à crescente utilização de equipamentos midiáticos. Com o barateamento dos equipamentos áudio visuais a possibilidade de introduzi-los na cena se incrementou até formar parte, a partir dos anos setenta, do repertório de linguagens cênicas.

O olhar delega aos aparelhos e ao corpo se desmaterializa A percepção do espectador e a disposição na qual este é situado é radicalmente distinta quando se vê frente a realidades, como corpos e objetos, ou frente a imagens que representam essas realidades. A imagem projetada carece de realidade para além de um jogo de luzes e sombras e do aparelho que as projeta; ainda que seja necessário distinguir entre imagens cinematográficas e imagens de vídeo, assim como é diferente se sua projeção se faz sobre uma tela plana dissimulada na cena ou em um monitor de televisão a vista do público (ZUNZUNEGUI, 1995; ALCÁZAR, 1998; GONZÁLEZ REQUENA, 1999). As primeiras, as projeções cinematográficas, têm uma capacidade maior de evocar ilusões fictícias e reconstruir um tempo diferido, são mais perfeitas; as segundas, as imagens de vídeo, e conseqüentemente, a maior parte das televisadas, apontam para um maior grau de realidade e imediatez, fazem visível sua materialidade e talvez por isso também sua imperfeição, inclusive qualitativa (ainda que isto tenha mudado com a técnica digital); seriam, em uma palavra, mais teatrais. Não obstante, em um e outro caso uma imagem é sempre algo fechado e perfeito em si mesmo, uma totalidade situada em um tempo distinto ao do espectador (que se encontra, portanto, desligado delas e sem responsabilidade direta); não esconde nada detrás e nada o incomoda, Dezembro 2008 - N° 11

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Certamente há retransmissões de televisão chatas, e não poucas, mas inclusive nestes casos parece que a monotonia seja mais leve frente a uma tela; nada chateia tanto como uma realidade tratando de passar por ficção quando o efeito não é alcançado, e isto não é fácil de se conseguir com atores de carne e osso em uma sociedade hiper-especializada na produção de ficções. 4

Não é de se estranhar que alguns dos grandes criadores, como Gordon Craig ou Tadeusz Kantor, ante as dificuldades de transformar tal excesso em uma realidade estética controlada, tenham protestado contra este componente que da ao teatro sua única especificidade. Já Diderot reconheceu o paradoxo de que o ator, somente como uma máquina fria, era capaz de significar o vivo. 5

tudo está preparado para sua exibição e não há nada mais além do que se vê na tela, mas tão pouco deve aspirar a descobrir algo mais; está em si mesma acabada (LEHMANN, 1999: 401-448). O espectador se sente psiquicamente relaxado e comprazido ante uma realidade projetada, isto é, liberada de sua contingência imediata, de presente e futuro, e portanto desligada de seu eu como sujeito moral. As imagens, como as ilusões, não decepcionam, ao menos enquanto não se queira convertê-las em realidade, mas tão pouco dão mais do que mostram, somente têm a cara que vemos, detrás não há nada, tão pouco nada que possa oferecer resistência à percepção. Os objetos materiais da cena e sobre tudo o corpo do ator despertam no público emoções menos ilusórias, pois se trata de realidades em um tempo presente compartilhado com o espectador, mais intransitivas em seu poder de evocação, por isso também menos tranqüilizadoras, e talvez em alguns casos mais monótonas ao ter menos capacidade de engano. É mais difícil manter a atenção do público na cena; ante uma peça medíocre sua atenção subirá quando se encontre surpreendido - deveríamos dizer: gratamente surpreendido? por umas atraentes imagens que o façam mergulhar, ainda que somente seja por uns minutos, em um mundo de ficção, mas realmente verossímil, e sua atenção se verá novamente traída quando a projeção acabe e deva voltar à tosca realidade da cena4. No lado positivo da balança, temos uma presença material e física da que carece o signo virtual. O signo cênico remete também a uma ausência (o ator faz como se fosse Hamlet, que na verdade não está ali), mas conta com uma importante presença: o significante sim está ali, de forma física, na atitude performativa, e não apenas como projeção de luzes. Na cultura das imagens, com uma forma de ver e entender conformada pela epistemologia televisiva, essa presença imediata do signo supõe um excesso de realidade que pode ser inclusive incomodo ou até mesmo grosseiro. O corpo do ator, sua presença viva, implica um plus com o que o criador, já seja o diretor ou o próprio ator, deve trabalhar para chegar a incomodá-lo5, mas também supõe um excesso para o espectador por desentoar radicalmente com a estética midiática perfeitamente recortada segundo as necessidades. O corpo se levanta como um elemento excessivo, estratégia de resistência a uma realidade pré-fabricada; não se trata de uma imagem acabada e perfeita, senão que está fazendo-se em cada instante, sempre no processo de seu presente contínuo. Esse excesso supõe um constante perigo de traição à obra de arte ou às expectativas culturais do público com relação ao perfeito e acabado, mas também uma abertura para a única verdade, ao imprevisto e efêmero, ao excessivo, uma emoção imediata e incerta causada pelo que está ai a diante, a inquietação ante uma realidade que por ser artística não deixa de ser real, ou inclusive mais real que a realidade - como também quis Artaud -, mas que mantém a percepção em um constante caminho de busca. O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem. Óscar Cornago Bernal.

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U rdimento As tecnologias da imagem aplicadas à cena tem contribuído para fazer mais visíveis estas diferenças, denunciando de maneira quase incômoda esse excesso de presença sobre o qual se coloca o teatro, sua possibilidade de construir um tempo real compartilhado com o espectador. As atitudes dos distintos meios têm sido diversas: as linguagens televisivas, o vídeo a Internet, têm tratado de emular essa imediatez aparentemente espontânea, essa presença além do fingimento, enquanto que o cinema, pelo menos no seu período clássico, não deixou de gozar com a perfeição da ficção bem acabada, opção que tem sido contestada por correntes mais experimentais6. Desde o teatro, as posturas se estendem igualmente em um amplo leque, entre a aceitação da ficção, por outro lado inevitável, aproximando-se a modelos cinematográficos ou televisivos (re)construídos agora desde a realidade cênica, até a negação de tudo que é ficcional a favor das presenças imediatas, igualmente inevitáveis, não somente dos atores, senão também de telas, monitores e aparelhos de gravação. Ambas posturas não são, no entanto, contrárias, senão que se conjugam dando lugar a algumas das propostas mais interessantes das últimas três décadas.

A cena ante os modelos culturais midiáticos Inclusive sem a utilização destes meios, a cena da segunda metade do século XX teve que reagir ante uns modos dominantes de percepção da realidade determinados pelas novas tecnologias. Por muito à margem que se quisesse estar destas (as novas tecnologias), é inevitável que todo criador pense no público que deve receber sua obra, e esse público, como ele mesmo, está fortemente influído por uma linguagem cultural desenvolvido pela televisão e posteriormente o mundo da Internet. O dramaturgo e diretor alemão René Pollesch realizou uma das propostas mais criativas de assimilação da estética televisiva. Pollesch converte suas cenografias em amplos espaços rodeados com cômodos que lembram partes de um apartamento de uma grande cidade habitada por jovens: dinâmicos? Criativos? Alternativos? Os espectadores se acomodam nos estofados e colchões distribuídos entre o cenário. As peças se estruturam com base de diálogos que revisam de forma crítica e com frescor temas de atualidade, sem excluir o intranscendente e inclusive trivial. Os diálogos, que às vezes são lidos à vista do público, se precipitam em um ritmo enlouquecedor, acentuado por um elevado tom de voz, que termina conduzindo a uma espécie de hilariante caos estranhamente familiar ao espectador. Os atores se movem com rapidez de um lugar a outro dentro de uma sala iluminada por uma luz branca que coloca a atores e espectadores em um mesmo espaço e tempo. Tudo da a impressão de ser cotidiano e cálido, imediato e fragmentário, pois a peça vai saltando sem ordem de uns temas a outros, em um tom de espontaneidade e improvisação. A cultura urbana, estreitamente ligada aos meios, é levada ao seu extremo ao mesmo tempo em Dezembro 2008 - N° 11

O cinema surrealista e as vanguardas russas iniciaram uma poética que tornava visível o processo de montagem que constitui a atividade cinematográfica, atitude amplamente difundida a partir dos anos 70 por movimentos como a Nouvelle Vague, o Cinema Verdade, o Cinema Direto e, mais recentemente, por filmes como Dogma e toda a obra de Lars von Trier, sem contar cineastas que mantém uma estreita relação com o fenômeno da teatralidade e com a plástica cenográfica, como o galês Peter Greenaway (Picon-Vallin, 1997; Cornago Bernal, 2001). 6

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U rdimento que se rentabiliza criativamente, denunciando seus excessos. A partir deste modelo, o autor e diretor argentino Rafael Spegelburd desenvolveu uma série de peças com a forma de episódios de séries de televisão, Bizarra. Na Espanha, depois do realismo social e das dramaturgias de corte popular, tem sido numerosos os autores (das últimas décadas) que desenvolveram formas dramáticas que seguem de perto os padrões televisivos, diálogos de intervenções curtas e cenas que se sucedem com rapidez, uma espécie de realismo urbano que trata igualmente de temas cotidianos, ainda que sua tradução teatral e expressividade dramática não se tenha traduzido em níveis altos de criatividade cênica. Nestes casos, a influência televisiva, que além da dramaturgia se estende também às linguagens atoriais e padrões de recepção do público, têm um caráter mais implícito, o que o faz menos visível. Desde pré-supostos dramáticos não realistas, é importante destacar a estética violenta e fragmentária de Rodrigo García ou Roger Bernat já nos anos noventa, na linha de outros criadores europeus como Jan Fabre. Uma crítica violenta à sociedade de consumo é acompanhada normalmente com projeções de imagens sobrepostas que denunciam suas estratégias midiáticas. A este plano é oposta a presença dos atores, aparentemente privada de artifícios, e suas ações com um forte caráter performativo que trata de superar o nível da ficção, ações imediatas e ilógicas que contrastam com o mundo midiatizado, convenientemente ordenado para sua projeção a partir de uns interesses prévios. Desde uma poética comparável, Sara Molina desenvolve uma dramaturgia na qual se acentua o processual e fragmentário, a ação no seu transcurso sobre uma poética de restos que se opõe à imagem como resultado perfeito e acabado. Em todos estes casos a recorrência à performance supõe uma reação contra as realidades e os tempos diferidos, o corpo como resistência contra imagens construídas que se pretendem reais, um excesso não rentabilizado que denuncia realidades pré-fabricadas e uniformizadoras portadoras de uma adequada explicação do mundo. Este teatro pós-dramático denuncia o próprio conceito tradicional do texto dramático como uma mediação ficcional a mais, potenciando a presença imediata do ator em contraste com as tramas construídas ou sua própria imagem projetada. Assim, por exemplo, Carlos Marqueríe, em 120 pensamientos por minuto (2002), utiliza um circuito fechado de vídeo para projetar sobre o fundo da sala a imagem dos atores, com o qual o espectador percebe ao mesmo tempo ambas realidades, o que no ambiente escuro da montagem, oferece um aspecto fantasmagórico. Em um nível superior de ficção, La Fura dels Baus, já desde o início dos anos oitenta, recorreu a projeções e música eletrônica para recriar o ritmo violento e o tom primitivo característico de certa cultura midiática. Mais recentemente este grupo se serviu de circuitos fechados de vídeo para mesclar de forma confusa imagens ampliadas do que ocorria na cena com outras previamente gravadas que O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem. Óscar Cornago Bernal.

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U rdimento fingiam estar ocorrendo, pondo ao serviço da cena a capacidade de manipulação dos meios. Em muitos destes casos, o vídeo fez possível uma visão de perto, produzindo uma impressão de tato, característica dos novos meios (MCLUHAN y POWERS, 1996), e inicialmente alheia ao olhar teatral clássico, incapaz de perceber pela distância os pequenos detalhes. Com uma postura muito distinta, Robert Wilson representa uma das opções mais brilhantes de análise de um olhar amplo e totalitário, mas ao mesmo tempo capaz de reparar nos mínimos detalhes; unitária, mas ao mesmo tempo táctil e fragmentaria. Este olhar responde a um tipo de percepção que fez possível, pelas novas tecnologias, um ritmo lento e estranho que Wilson define como o ritmo autêntico da natureza (RICHTERICH, 1998; QUADRI, 1997). O corpo do ator parece dissolver-se na plasticidade bi-dimensional, e a unidade temporal se suspende na lentidão das ações cíclicas; no entanto, ainda que tudo pareça detido e irreal não deixa de estar em contínuo movimento. Wilson faz consciente o espectador de um tipo de percepção que de outro modo passaria inadvertido. Através de uma cena altamente estilizada, construída sobre movimentos precisos e uma partitura rítmica minuciosamente medida, ergue um mundo irreal, que graças a um complexo componente performativo não deixa de ter uma enorme teatralidade, que faz o difuso da cena ganhar uma maior presença imediata, tornando tangível este modo distinto de percepção.

Diálogos explícitos com os meios Como vemos, a multiplicação das imagens na cultura midiática fez que uma grande parte da cena internacional, a partir dos anos setenta, tenha centrado-se na reflexão sobre os distintos tipos de imagens e suas formas de percepção; para isto os criadores da vanguarda destes anos, como Robert Lepage, Wooster Group, Squat Theater, John Jesurun, na América do Norte; na Itália, Societas Raffaello Sanzio, Falso Movimento ou Giorgio Barberio Corsetti, representantes do que se conheceu como a nuova spettacolarita, ou Ritsaert ten Cate, fundador em 1965 do Mickery Theatre de Amsterdam, só para citar alguns exemplos de um panorama muito mais amplo, converteram a cena em um laboratório de análise das tecnologias da imagem (LEHMANN, 1999). Comumente, imagem, som e movimento estão dissociadas, fazendo visível a construção que sustenta cada imagem e seus diferentes modos de percepção, como explica Jesurun, a partir de seu trabalho com os códigos das séries televisivas e a retórica do cinema: “Não se trata de compreender uma história, senão de como se compreendem as histórias” (apud SÁNCHEZ 1999: 179)7. Em uma linha paralela, Els Joglars não deixou de refletir sobre os diferentes tipos de teatralidade social e entre elas sobressaíram - como não podia ser de ser — os protagonizados pelos meios de comunicação (BOADELLA, 2000). Por isso não é uma contradição que um grupo que tem reivindicado uma teatralidade artesanal Dezembro 2008 - N° 11

Junto a estes nomes, mas já plenamente no campo da performance e da vídeo-instalação, é necessário citar artistas que conseguiram um reconhecimento internacional, como Nam June Paik ou Laurie Anderson (Birringer 1998), e na Espanha Marceli Antúnez, o corpo reduzido a uma prolongação dos meios, capaz de transformar-se em um aparelho a mais da paisagem midiática, que controla com seus movimentos. 7

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U rdimento baseada no trabalho de interpretação do ator no espaço vazio, tenha chegado a utilizar complexos meios áudio visuais, assim por exemplo como a enorme tela que funcionou como protagonista de algumas de suas últimas montagens, como se tratasse de um novo personagem. Em todos casos, o contraste entre a imagem midiática e a cena teatral tem servido para acentuar ambos pólos, isto é, a irrealidade pré-fabricada de uma e a realidade imediata da outra. Já em Teledeum (1983) se abordou o âmbito televisivo como espaço teatral; Ainda que o objeto final era a denúncia das religiões, a simulação do meio televisivo serviu para acentuar a teatralidade da proposta ao mesmo tempo que se fazia explícito o paralelismo entre estratégias midiáticas e doutrinais. Em sua última encenação, El retablo de las maravillas (2004), o grupo se volta para a televisão para convertê-la em um genuíno retábulo das maravilhas que mostra aos “cristãos velhos” do século XVII as maravilhas que haverá no futuro, expressadas convenientemente em atraentes imagens que aparecem neste tipo de retábulo tecnológico. Em um momento da fantástica visão uma espetacular modelo, expoente de uma das maravilhas das que haverá no futuro, escapa da tela para continuar sua passagem pela cena real, ante o olhar extasiado do comediante que vê com surpresa seu sonho feito realidade. O contraste entre o movimento estudado e a imagem impassível da atraente jovem com os gestos toscos e exagerados do bufão nos da indicação da conformação da realidade atual pelos meios e a aura com a que estes revestem o mundo. A transição das cenas se faz com uma progressiva debilitação dos atores como se fossem imagens manchadas que desaparecem do monitor quando se perde o sinal.

Em uma proposta comparável, ainda que de estética diversa, Adolfo Marsillach apresentou Antes que todo es mi dama, de Calderón de la Barca, como si se tratasse da filmagem de um filme antigo, o que serviu talvez para distrair o público de um modelo de encenação dos clássicos que por si só não parece muito atraente. 7

Com um olhar mais complacente La Cubana não deixou de utilizar tão pouco os códigos dos diferentes gêneros artísticos como estratégia de teatralização (DELGADO 2003: 225-274; MORALES ASTOLA, 2003). Assim, junto à linguagem da revista ou do teatro clássico, chegou a vez do cinema kitsch de Hollywood dos cinqüenta em Cegada de amor (1994). Estreada com honras de premier cinematográfica, está construída a partir do contraste frontal entre os códigos da tela e do mundo do teatro. A aparência distanciada, ficcional e fechada do filme acentua por oposição a dimensão teatral, seu caráter imediato em contato direto com o espectador, que fica convertido, como costuma acontecer em suas peças, em protagonista ativo da montagem midiático. O real e o fingido se confundem, como diz o estribilho da peça: “Neste mundo traidor nada é verdade nem é mentira”, denunciando a codificação que subjaz a toda realidade.7 O diretor de cinema Juanma Bajo Ulloa fez uma interessante incursão no mundo teatral com a estréia em 1999 no cinema Lope de Vega de Madrid Pop Corn, sobre o texto de Ben Elton. Com a ajuda de um circuito fechado de vídeo o diretor faz visível os interesses que movem a televisão, fazendo o espectador responsável direto disso. Alternando cenas representadas com seqüências filmadas, e um fundo de música eletrônica e luzes de discoteca que davam as boas vindas ao público, a encenação conta a história de um seqüestro, O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem. Óscar Cornago Bernal.

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U rdimento cuja vítima, um famoso diretor de cinema que acaba de ganhar o Óscar, é ameaçado de morte se os índices de audiência neste preciso instante não caem. O “tele-espectador”, sentado confortavelmente em sua casa, deve decidir entre salvar a vida da vítima, com o risco de perder o espetáculo, ou assistir ao vivo um assassinato real, deixando-se levar por esse desejo de ver que impulsiona a indústria midiática. A cara dos espectadores é refletida na enorme tela do fundo enquanto que o seqüestrador, que desceu até a platéia discute com o público gravando-os em vídeo: e o senhor, desligaria o televisor? Deste modo, a responsabilidade do espectador fictício é transpassada ao espectador teatral, convertido em responsável – culpado -, agora tornado visível, da montagem dos meios.8 Também Guillermo Heras em Rottweiler (2004), dirigida por Luis Miguel González Cruz, representa a realização de um programa de televisão no qual será entrevistado um perigoso jovem de extrema direita que, a partir das provocadoras perguntas do entrevistador para incendiar o ambiente, terminará com a vida do câmera depois de uma perseguição pelo estúdio/ palco. O público, incluído na encenação como espectadores do estúdio, pode seguir morbidamente a caçada humana através das câmeras que se supõe situadas nos corredores do estúdio. O homicídio, retransmitido ao vivo, será convenientemente rentabilizado pelo programa de televisão, que verá como aumentam seus índices de audiência convidando umas semanas mais tarde à noiva do jovem câmera para honrar sua memória.

Conclusão: a encenação do olhar midiático As novas tecnologias formam parte já do milenário carro de Téspis e os exemplos seriam intermináveis. A inevitável distância de teatralidade que a cena aplica a tudo o que contém, nos fala de uma realidade cada vez mais construída através das imagens, e da duvidosa capacidade dos modos de percepção - igualmente construídos - para captar essa realidade. Finalmente, o que se está levando à cena não é uma imagem midiatizada, mas sim o olhar do espectador que corresponde a dito suporte midiático, o olhar cinematográfico, televisivo, fragmentada ou interativo construído por cada meio. O espectador se vê a si mesmo no ato performativo de olhar e fica surpreendido pelo modo tão distinto que impõe cada meio. A encenação da imagem cinematográfica, a montagem televisiva ou a velocidade dos links na Internet, ilumina um olhar e um comportamento cada vez mais midiatizado, essencialmente estético, isto é, mais subordinado a esses meios (de percepção). Tudo que ocupa um lugar na cena se reveste com seu manto de ilusão e engano, jogo e encenação, mas também assume a carga de realidade e ação imediatas, devolvendo ao sujeito sua responsabilidade política ao situar novamente a imagem no tempo e no espaço de sua produção, o que está oculto atrás de sua aparência acabada e perfeita. Deste modo, essas imagens, que fora da cena resultam verossímeis, agora, em contraste com a realidade imediata do corpo do ator, se revelam Dezembro 2008 - N° 11

8 Com freqüência se utilizou o vídeo para conseguir um contato mais interativo com os espectadores, que se fazem presentes na cena por meio da imagem, especialmente no campo da performance e das instalações, como por exemplo, nos últimos trabalhos de Olga Mesa e sua dramaturgia de presenças e ausências, à que contribuem os jogos com o vídeo e as imagens detidas.

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U rdimento como resultado de um processo químico ou eletrônico, recebido por um olhar treinado para percebê-lo como realidade, resultado de uma montagem movida por uns interesses econômicos e políticos. Finalmente, o mito por excelência da Modernidade, a chamada autenticidade, aparece como uma categoria questionável, quando não altamente suspeita: os meios como a encenação dessa autenticidade (FISCHER-LICHTE, 2000; AUSLANDER, 1999; KEMAL y GASKELL, 1999). O caráter sempre excessivo da cena, sua dimensão material e performativa, põe de manifesto a manipulação a que está submetido olhar midiática, limpa, recortada e atraente, quando termina percebendo as imagens projetadas como mais reais que aquilo que vê na cena. A forma de cada meio se converte em uma parte da mensagem teatral, e o teatro termina questionando não já a percepção característica de cada um, mas sim a percepção da percepção, os bastidores que sustentam cada modo de olhar. Como uma arte política e capaz de fazer uma crítica imanente a partir de suas próprias formas, o teatro segue falandonos das substâncias que articulam as realidades, de seus ritmos e formas de representação. O espaço teatral e seu olhar de descrédito nos descobrem também o teatro midiático que se esconde detrás de cada meio e a encenação do olhar cúmplice que o sustenta.

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PROCEDIMENTOS ESTRATÉGICOS OPERADOS PELO ERRO GRUPO NAS INTEVENÇÕES URBANAS DESVIO E ENFIM UM LÍDER Pedro Diniz Bennaton1

Resumo

Abstract

O artigo tem como foco principal descreveralgunsprocedimentosestratégicos de invasão, ocupação e deslocamento, utilizados em duas intervenções de teatro de rua do ERRO Grupo. Através de relatos do grupo sobre duas experiências práticas, Desvio (2006) e Enfim um Líder (2007), das teorias de Richard Schechner e dos relatos de experiências situacionistas no espaço urbano, esta análise contribui para a compreensão de procedimentos operacionais e de processos criativos de ação urbana.

The main focus of this article is to describe some estrategical procedures of invasion, ocupation and displacement, used in two of the ERRO Grupo’s street theater interventions. Through reports of the two group’s practical experiences, Desvio (2006) and Enfim um Líder (2007), of the Richard Schechner’s theories and of the situacionists’ descriptions of experiences on the urban space, this analysis contributes to compreehend operational procedures and creative processes of urban actions.

Palavras-chave: estratégias, performance, intervenção urbana

Keywords: estrategies, performance, urban intervention

Na concepção dos situacionistas2 e de seus procedimentos estratégicos de ação, como a interferência mútua entre dois ambientes de experiência, por gestos e palavras que adquirem outros significados, pela criação de linguagens secretas, com senhas, pela inclinação ao jogo, pela união de expressões independentes, a deriva e a psicogeografia, o movimento transforma as relações e cria elementos transviados, justapostos e livres, que constroem uma esfera dinâmica no cotidiano do espaço urbano. Portanto, quando constroem situações, ou quando propõem estratégias para a criação dessas, os situacionistas abrem uma gama de possibilidades para modificar as condições determinantes dos fluxos urbanos e criar ambientações em plena rua, assim como propõe o Environmental Theater, de Richard Schechner, teórico da performance da New York University. Dezembro 2008 - N° 11

Pedro Diniz Bennaton é diretor teatral, dramaturgo, integrante fundador do ERRO Grupo e mestre em teatro pelo PPGT-UDESC, com a dissertação Deslocamento e Invasão: Estratégias de intervenção para a construção de situações urbanas de interferência nas relações cotidianas, sob orientação do prof. André Carreira. Como diretor teatral participou de projetos e festivais nacionais e internacionais. 1

A Internacional Situacionista formada em 1957 pela junção entre a Internacional Letrista de Guy Debord e o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista, e a Sociedade Psicogeográfica de Londres (dito ter participado à época, mas inventado para ajudar os objetivos 2

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U rdimento (cont.) internacionalistas do grupo) realizou trabalhos artísticos e teóricos, políticos e agitadores, é oriunda de uma tradição de anti-arte utópica que recria as vanguardas artísticas com reputação de escândalos, crimes e subversão. Aproximadamente 70 integrantes fizeram parte do grupo, mas esse número oscilou entre 05 a 15 membros ao mesmo tempo, devido a constantes expulsões, com Guy Debord sendo o único a permanecer até o fim em 1972. (Internacional Situacionista, Antologia, 1997). 2

O ERRO Grupo, fundado no dia 13 de março de 2001 em Florianópolis/ SC, pesquisa a união das linguagens artísticas e a intervenção da arte no cotidiano das pessoas. Atualmente, integram o ERRO, Pedro Bennaton, Luana Raiter, Michel Marques, Luiz Henrique Martins, Júlia Amaral, Ana Paula Cardozo e Priscila Zaccaron, aprofundando a pesquisa coletiva na invasão urbana, desenvolvendo suas práticas de teatro de rua, instalações, performances e intervenções. A página eletrônica do grupo pode servir como referência para mais informações, www. errogrupo.com.br. 3

Os situacionistas clamam por procedimentos estratégicos em constante movimento entre a experimentação e a práxis que possam abranger a grande variedade de possíveis áreas de manifestações no espaço urbano, demonstrando que a arte situacionista em si não existe, mas, sim, uma aproximação situacionista, ou seja, estratégias situacionistas de se lidar com a arte. Schechner ressalta que o potencial das performances urbanas permite “que as pessoas se encontrem” nas ruas para “flertar com a possibilidade da improvisação – de que o inesperado possa acontecer” (1976:197). Em texto de 1955, Introdução a uma crítica da geografia urbana, os situacionistas afirmam que “a troca repentina de ambientes em uma mesma rua na distância de alguns metros” deve ser a lógica dos passeios sem razão para a experiência de uma série de ambientações, “a partir de condições de vivência”, a partir da deriva. A deriva foi concebida para revolucionar o cotidiano. As ações para a realização da deriva seriam uma espécie de perambular ao acaso pelas ruas de uma cidade, como “um nomadismo urbano visionário”, a experimentar “a intensidade da percepção”. O praticante da deriva deveria aceitar as imprevisibilidades, deslocando-se para sinais, coincidências ou escolhas aleatórias que possam guiá-lo ao rumar de lugar a lugar, consciente “do itinerário como significado” e simbologia. (1997: 118) Através de uma invasão no espaço com o uso do deslocamento através de outros espaços, o potencial do inesperado, do improvável, acontecer fica mais latente. A transformação eminente pela movimentação, ocupação e abrangência da ação em diferentes níveis espaciais, e relacionais, evidencia que o acaso é inerente à intervenção urbana. Esta deve articular o presente em suas estratégias para ir além na comunicação com as pessoas, na ruptura do cotidiano, para construir vínculos de aproximação entre a ação urbana e a rede social e espacial da cidade. Os trabalhos do ERRO Grupo3 possuem rastros das práticas situacionistas e das teorias de Schechner. Integram o repertório do grupo sete peças de rua, Adelaide Fontana (2001), Carga Viva (2002), Buzkashi (2004), Desvio (2006), Enfim um Líder (2007) e Escaparate (2008), assim como diversas performances e intervenções urbanas. Neste artigo sobre os procedimentos estratégicos de invasão, ocupação e deslocamento pesquisados pelo ERRO, o foco se restringe às suas operações em duas obras: Desvio4 e Enfim Um Líder5. Em abril de 2006, o ERRO Grupo foi contemplado com o Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz, com o patrocínio da Petrobras, para a montagem de Desvio, o qual o grupo estava pesquisando e ensaiando havia um ano e quatro meses. Este prêmio, em forma de recurso financeiro não só viabilizou a construção do espetáculo, como a realização de uma temporada de estréia em novembro do mesmo ano e ainda oportunidade de ensaiarmos durante três meses nas ruas da cidade no período noturno e nos finais de semana. Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo... Pedro Bennaton.

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U rdimento Desvio é uma intervenção urbana que busca o limite da dúvida, que suas ações e cenas se desloquem entre a realidade e a ficção, em percurso no cenário concreto do centro das cidades, no qual o público é convidado a experimentar a preparação da representação de um assassinato que poderá ser interpretado por diferentes vias ao longo de sua trajetória, de seu deslocamento. Como uma ação artística nas ruas, re-significa as estruturas físicas e simbólicas deste espaço, questionando-as, expondo-as. Nas suas ações, quando o ator lê as vitrines das lojas nas ruas ridicularizando os meios mercadológicos ou quando a atriz faz sinais para as câmeras de vigilância instaladas nas ruas durante o percurso das cenas, o público é inserido no universo vivenciado no enredo da peça, e não mais como algo externo ao seu ambiente. A todo o momento a ação se instaura nos lugares e logo depois se dissipa. A cada cena um novo espaço e este novo processo, os espaços são conquistados pelos atores junto ao público que se mobiliza em deslocar-se com a ação, a invadir e ocupar cada novo território. Entretanto, em Desvio, o que move essa situação é a preparação da representação de um assassinato que cria um ambiente desconfortável, e ao mesmo tempo onírico, onde a experiência da morte sempre anunciada não se dá vias de fato, mas vias de experiência. Como Schechner expõe, em seu livro Performance Theory, o enredo da intervenção urbana é importante para adquirir seu potencial de ritual, mesmo que esta seja oriunda apenas de uma imagem, de uma situação. É necessário frisar que apesar de Desvio estar aberto a situações imprevisíveis, existe um roteiro planejado e ensaiado em seus mínimos detalhes, mesmo que a qualquer momento o elenco possa sair do planejamento estipulado, deve retornar em algum ponto para seguir adiante. Tanto nos casos de intervenções radicais, como a que tivemos em Curitiba, no dia 28 de março de 2007, quando, em uma cena do espetáculo na qual uma atriz gritava “Pega, pega!” à outra atriz, que está perseguindo um ator a uns vinte metros do público, foi capturada e imobilizada pelo pescoço por um transeunte sendo necessário que o público gritasse de longe que se tratava de uma peça, pois, o elenco não saiu do jogo proposto pelo espetáculo. Como em participações como a de um homem em uma apresentação em Florianópolis, no dia 15 de novembro de 2006, que ergueu o ator, que gritava “É maravilhoso!”, fez coreografias, desferiu socos e chutes em direção ao elenco e agrediu verbalmente um dos atores, que dorme em praticamente todas as cenas de Desvio, após sussurrar no ouvido deste ator, repetitivamente, a seguinte frase: “É mentira”. Como uma experiência de presença, mais do que intelectual, o percurso, o deslocamento, possibilita à intervenção estar sempre em movimento, não só o óbvio movimento físico, mas também em movimento de experiência. A invasão repetitiva faz com que Desvio esteja sempre entre a acessão e a queda. O Dezembro 2008 - N° 11

Desvio (2006) apresenta a representação de um assassinato em um percurso pelas vias públicas. Em 2006 ganhou o Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz com o patrocínio da Petrobras. Em 2007, participou do Festival de Teatro de Curitiba, Mostra Myriam Muniz FECATE, Temporada SESC Campinas de Teatro e Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto 2007. A concepção e direção geral são de Pedro Bennaton.

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Enfim um Líder (2007) intervenção urbana de três dias que traz para os centros urbanos a expectativa da chegada de um líder, mais informações no site: www.enfimumlider.com. br. Estreou nos dias 19, 20 e 21 de dezembro de 2007 no Centro de Florianópolis e realizou 09 apresentações nas cidades de Palhoça, Biguaçu, São José e Florianópolis, durante o ano de 2008. Foi contemplado em outubro de 2007 pelo Prêmio FUNARTE de Teatro Myriam Muniz com o patrocínio da Petrobras. Seu roteiro de ações se norteia pela pesquisa realizada nos ensaios em sala, nos ensaios de longas observações no espaço urbano, assim como se inspira em diversas obras da dramaturgia como Esperando Godot de Samuel Beckett, 5

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U rdimento (cont.)The Speakers de Heathcote Williams, As Cadeiras e O Líder de Eugéne Ionesco, e também por panfletos religiosos e livros como A Arte da Guerra de Sun Tzu e Manifestos Neoístas de Stewart Home. Participam do elenco os atores João Garcia, Luana Raiter, Luiz Henrique Martins, Sarah Ferreira, Rodrigo Sember e Tama Ribeiro. Os autores são Luana Raiter e Pedro Bennaton, a direção de arte e o design gráfico são de Júlia Amaral e Luana Raiter e a direção de Pedro Bennaton. 5

deslocamento, sua ocupação de cada novo espaço, de cada novo elemento urbano, faz com que o público e o elenco e suas relações estejam em uma restauração repetitiva. Através deste jogo repetitivo, tanto na invasão de cada espaço, quanto na repetição das cenas de ensaio da representação do assassinato, a intervenção está em reconstrução e rearranjo constante das ações e relações dos atores e também das pessoas que participam do percurso. Desta forma, propõe ao público uma situação de comportamento restaurado, que é identificado por Schechner, como seqüências de comportamento “organizadas de acontecimentos, roteiro de ações, textos conhecidos, movimentos codificados” (1995:36). A repetição das cenas faz com que o público reorganize sua participação e experiência, para assim, confiante, restaurar seu comportamento, modificando seu ângulo de visão e, ou, interferindo nos acontecimentos, pois os vínculos do elenco e do público se aprofundam e são vivenciados propositalmente pelo jogo espacial e inesperado da intervenção urbana. O treinamento do elenco realizado pelo grupo busca apropriar-se do ambiente urbano, absorvendo-o, permitindo e valorizando o acaso como constituinte importante para uma cena aberta a intervenções. Este exercício está relacionado também a um tipo de presença almejada pelo ERRO para estabelecer vínculos de participação do público durante suas ações. Schechner elabora uma série de exercícios para criar confiança entre os atores, para adentrar ambientes de risco eminente e produzir o que ele chama de presença: ...Essa presença está relacionada com a noção de eventualidade. Em outras palavras, quando o espectador percebe que o ator pode não só mudar o que está fazendo, mas que pode também ser o dono dessa mudança, que não tem que mudar, mas pode eventualmente fazê-lo, nesse momento o ator tem presença. Em compensação, se o espectador sente que toda e qualquer mudança apavora o ator e corre o risco de destruir a representação, não há presença. Na verdade, o ator brinca com o perigo, e o perigo por ele gerado é que cria a presença (2001:12). Esse perigo pode ocorrer no momento de invasão em um espaço urbano em razão de imprevistos que o ator está sujeito. Portanto, seu desempenho está ligado à sua confiança de acordo com Schechner, que ao refletir sobre a confiança no trabalho do ator nos direciona para alguns exercícios, como o guia cego, onde os olhos de algumas pessoas são vendados e elas começam a dirigir as outras. Os exercícios de confiança são um treinamento, segundo Schechner, para o ator estar disponível a interferências, interações e integrações, que possam ocorrer durante os instantes da ação. Podem existir variações dentro das necessidades de cada situação a ser construída que permitem ao ator estar em desconforto, habitar o desconhecido, que o possibilita a extrair diferentes níveis Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo... Pedro Bennaton.

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U rdimento de confiança como, por exemplo, permanecer sem o sentido da visão e treinar diversas ações, como correr, pular, etc, nessa condição. Através dessa consciência corporal e espacial adquirida, ao lidarem com estratégias de intervenção no espaço urbano, os atores podem experimentar, nas palavras de Schechner, que “nada aproxima um grupo tão rapidamente ou com tanto entusiasmo do que uma ação tomada coletivamente em uma atmosfera de risco” (1997:312). Em Florianópolis, Desvio realizou quatro percursos diferentes no centro. Foram percorridas no total 22 ruas e 2 praças, possibilitando ao grupo experimentar a ocupação das ações em diversos cenários arquitetônicos. As ações guiam seu público em um lúdico crime que poderá ser interpretado por diferentes caminhos ao longo de seu deslocamento em jogo. Ao buscarmos diferentes experiências com o público, também passamos por situações inesperadas, algumas antes mesmo de sua primeira apresentação. Se para alguns a Desvio começa na rua, no momento da apresentação, para outros essa experiência tem início dentro de casa, por meio de uma carta enviada por uma personagem. A carta representa uma cena e traz um desabafo da personagem, que convida o destinatário a encontrá-la em um ponto do centro, com local e hora marcados. Na temporada de estréia com 12 apresentações foram enviadas 1.500 cartas nominais a destinatários residentes em Florianópolis que tiveram seus endereços escolhidos aleatoriamente. As interpretações do conteúdo da carta foram distintas, inclusive 56 pessoas entraram em contato com a polícia, de acordo com os oficiais da 5ª delegacia de polícia da cidade. Antes da estréia, a atriz que interpreta a personagem, Ana Contra-atriz, escreveu e mandou a carta, com seu próprio endereço como remetente, recebeu a visita de policiais civis em sua casa, que averiguavam se a pessoa chamada Ana Contra-Atriz era uma criminosa. A polícia militar também marcou presença nas primeiras apresentações de Desvio. Na primeira apresentação a atriz que recebe o público convidado pela carta foi surpreendida por um policial à paisana que agressivamente a imobilizou e levou-a para o meio da rua, onde, segundo testemunhas presentes no local, teria apontado um revólver nas suas costas. O policial gritava coisas como, “Cadê os outros?”, “A quadrilha foi destruída!”, “Já era para vocês!”. Enquanto ele levou a atriz até o meio da rua, uma viatura policial, com suas luzes e sirene ligadas, chegou com dois policiais fardados. A atriz percebeu que o contra-regra que a acompanhava nessa ação estava entrando em contato com a produção e direção via rádio comunicador, e continuou no jogo dizendo que quem havia escrito a carta era sua irmã (a personagem Ana Contraatriz) que estava confusa, pois, o que de fato aconteceria era a representação Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento de um assassinato. Os policiais queriam levar a atriz para a delegacia para interrogá-la, mas desistiram quando algumas pessoas chegaram com a carta em mãos para o início de Desvio. Outra imprevisível intervenção partiu de uma menina de 9 anos, filha de catadores de papel que trabalham à noite no centro de Florianópolis, que assistiu aos ensaios gerais do grupo no espaço urbano, e resolveu atuar no dia da primeira apresentação. A garota teve seu primeiro contato com o teatro por meio desses ensaios realizados nas ruas no decorrer do processo de criação. Brincando com o elenco nos jogos na rua de criação para Desvio, ela se identificou com uma das personagens, decorou suas falas durante os ensaios, passando a atuar em algumas noites durante a temporada. Ela ainda passou a integrar o grupo nos momentos de confraternização antes e após as apresentações, porém em nenhum momento se estabeleceu como ela deveria atuar ou o que ela poderia fazer. A menina fazia o que bem entendia, carregava o assassino para o elenco durante as apresentações, falava textos que havia decorado, e saía de cena para brincar ou conversar com familiares e amigos enquanto a ação se desenrolava. Ao trabalharmos com intervenções que se propõem a ocupar, invadir e deslocar as ações no espaço urbano, os elementos surpresa são absorvidos pelas ações do elenco e para isso estabelecemos a noção de que toda a cidade participa da história, em uma espécie de reenacment. O reenactment é uma reconstrução cênica para reviver algum momento específico, o que possibilita ao grupo buscar o que um ambiente propício para interferências. Como se estivessem no roteiro, ou como se estivessem agindo fora de algo planejado, alguns exercícios realizados nos ensaios foram utilizados na peça sob forma de releituras, mas sempre instaurando em cada rua, um ambiente provocado pelo reenactment, fazendo das intervenções e os elementos novos que apareciam no percurso urbano material para potencializar as ações de Desvio nas ruas. Nas apresentações, apenas noturnas, a cidade quase vazia, sem o fluxo intenso de pessoas e veículos, o comércio fechado e as ruas calmas propiciam uma atmosfera onírica, aumentando o potencial de interatividade do espaço urbano, deixando-o mais penetrável, mais claro no sentido de visível, mais vulnerável a diálogos e encontros. A situação proposta pelo roteiro de ações interdita o encontro entre inalcançáveis lembranças passadas e fatais enredos que se adiam. Uma série de vínculos se estabelece entre aqueles que seguem o cortejo até a praça, partilhando com concentrada devoção a curiosidade coletiva. Nesse ambiente construído a partir das estratégias de ação no espaço urbano, invasão, deslocamento e ocupação, o elenco movimenta-se e fala de modo familiar com o espaço. Talvez por isso muitos transeuntes embarcam na experiência e mesmo sem serem convidados acrescentam falas e interagem como parte do roteiro. Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo... Pedro Bennaton.

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U rdimento É importante frisar que a invasão aqui não pode ser considerada como tal, apenas, quando carrega um fator ilegal. Seja este espaço o corpo de um transeunte surpreendido por um abraço, ou mesmo pela invasão da ficção por meio de cartas em casas de desconhecidos, tanto a invasão quanto a ocupação se constroem pelo nível de afrontamento, estranhamento e invasão física dos atores em territórios que não são pré-estabelecidos ou delimitados para a representação. As diversas formas de se ocupar ou invadir um espaço derivam do reconhecimento e do enfrentamento, tanto com sua arquitetura, suas vias de fluxo e controle, assim como de suas leis. No desenrolar da performance a tentativa é que os prédios, as esquinas, as quadras, os elementos do espaço podem se compor inteiramente como cenário re-significado enquanto intermediário da relação ator-platéia em que todos, atores, arquitetura e público, estão imersos. Conseqüentemente, diferentemente do conceito de espectadores que apenas acompanham, ou esperam passivamente sentados, impõe-se a noção dos expectadores, como cúmplices ou testemunhas que possuem expectativas, interessados em como é ou será um crime, de um assassinato, no caso específico da situação de Desvio, como participantes, ou vivenciadores no termo dos situacionistas. Quanto a essas questões entre cenário urbano e ficção cênica, ou da experiência entre atores e público, não é possível considerar o trajeto em que a intervenção percorre ligado à experiência do flâneur de Baudelaire, analisado por Walter Benjamin, pois neste ponto crucial a ação não pretende perambular na heterogênea massa urbana como no conforto de suas casas, mas sim a um deslocamento coletivo guiado através do estranhamento de observar a ilusão, o espetáculo, como a parte principal de nossas interpretações e relações. Em janeiro de 2007, almejando explorar os procedimentos de invasão, ocupação e deslocamento de forma diluída e dilatada, o ERRO definiu como seu mais novo projeto uma intervenção urbana de três dias, Enfim um Líder. Esta intervenção ocorre ao redor de uma única situação: a expectativa da chegada de um líder, onde a situação dilatada ao longo do tempo é minimamente influenciada pela dramaturgia, conflito, cenografia, narrativa e personagens, ou seja, menos contaminada possível por elementos teatrais. Através de procedimentos oriundos da noção da performance, como a presentificação dos atores e o distanciamento das convenções que amarram a linguagem artística e seus formalismos, o grupo constrói o texto e as ações em diálogo direto com as pessoas e o espaço. Partindo do pressuposto situacionista de que o imaginário de uns pode se tornar real para outros, Enfim um Líder aborda a utópica imagem ou não de um líder, virtualmente real, criando um percurso midiático de espera Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento para atingir diversas esferas da sociedade que acreditam no líder oculto, o marketing. A dilatação do tempo aumenta a possibilidade de algo inesperado acontecer abrindo as ações dos atores à interação do público, pela busca por uma maior abrangência de uma obra de arte na cidade. O acontecimento se apropria de meios de marketing, como carros de som, pichações, lambelambes, adesivos e programas de tv e rádio, para ampliar o alcance da situação e divulgarem a chegada do líder, não uma apresentação teatral. Enfim um Líder não trata somente da figura de liderança, mas trata sobre como se constrói um discurso atualmente e de quais meios são necessários para se criar, fabricar, um discurso verdadeiro em uma sociedade do espetáculo, segundo Debord, regido pelas estruturas do biopoder, que, de acordo com Foucault, constroem nossos discursos e nosso cotidiano. Com a ação na rua por um longo período de tempo e a utilização de ferramentas de marketing que invadem nosso cotidiano, cria-se uma dramaturgia situacional que consiste na espera, na divulgação e na organização de uma recepção a um líder que chegará, ambicionando construir um ambiente de espera geral na cidade. Se nada existe fora de sua espetacularização, como aponta Debord, o anúncio da chegada do líder faz com ele exista antes mesmo de sua aparição. O público, os fiéis, os espectadores, que esperam e sonham com sua chegada, também ajudam a construir esse ídolo atemporal. Neste ponto o grupo teve uma tangência em sua pesquisa, ao invés de operar com as estratégias de deslocamento e invasão em matrizes de ações cerradas, a princípio, e estruturadas em diálogos, o ERRO experimentou com Enfim um Líder algo mais relacionado aos happenings de Allan Kaprow e, até, do Teatro Invisível de Augusto Boal, operando as estratégias com uma matriz totalmente aberta à intervenção do público. A ação acontece na intervenção do público, sem diálogos pré-estabelecidos, com somente ações originadas, apenas, de uma matriz geral da situação de expectativa no espaço urbano. Os atores limpam o espaço, decoram e transformam o espaço, atraindo o público, não apenas para a expectativa da chegada do líder, mas especialmente para a transformação do ambiente urbano, realizando ações que jogam com as estruturas de poder da cidade aos moldes do Environmental Theater de Schechner, que consiste em criar e recriar ambientes durante a ação performática. Os atores lidaram com uma espécie de improvisação a longo prazo, pois, as interações aconteciam durante os dias de ações com as mesmas pessoas que também trabalhavam no espaço. Dessa forma foi provocada uma espécie de ebulição ao redor da situação proposta pela intervenção urbana, o que elevou as possibilidades de transformação, de abertura para o imprevisível. Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo... Pedro Bennaton.

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U rdimento O roteiro aberto é uma linha de ações de recepção, organização e propagação da própria situação da intervenção urbana e todos os seus diálogos, com exceção do discurso, são criados instantaneamente. As ações acontecem organizadas por uma logística e por uma narrativa nos meios de comunicação e na rua, mas é a interação e a reação integrada à ação cênica que geram seu texto propriamente oral. Por uma longa duração, se sucedem inúmeras ações, cada ação é um fragmento de um todo, mas, através de uma única ação: esperar o líder. Em Desvio, por exemplo, os procedimentos estratégicos de intervenção urbana, deslocamento e invasão, foram utilizados através de ações que acontecem freneticamente a todo instante em um longo espaço percorrido em diversos locais e, em Enfim um Líder, foram modificados para operarem com uma longa duração através de ações que acontecem com intervalos, porém em um espaço comprimido. As estratégias de invasão e deslocamento estão presentes em Enfim um Líder não apenas, nas ações de decoração, limpeza e organização do espaço que são realizadas para deixar adequado o espaço de chegada do líder, mas nas apropriações dos meios de marketing. Seja pelo anúncio da chegada do líder, realizado por carro de som durante até dez horas por apresentação nas ruas da cidade ou pelos cartazes em off-set colados nos muros dos bairros, panfletos, faixas, e outros, onde a frase Enfim um Líder, o alívio e a expectativa da possibilidade de transformação, está sempre presente. A escolha da relação entre a figura anônima do líder com a situação proposta pela ação de espera não foi aleatória. O grupo enfrentou diversos obstáculos em utilização do espaço urbano e nas interações com o público. Durante sua estréia, nos dias 19, 20 e 21 de dezembro de 2007, uma manifestante evangélica e, ou, com problemas psicológicos como nos foi informado pela polícia, que no terceiro dia ficou cerca de seis horas no espaço de apresentação, violentamente destruiu quase todo o cenário e a decoração colocada durante as cenas de Enfim um Líder. Aos berros clamava por outra pessoa que não era o líder. Como ela tentou agredir os atores que não pararam a ação cênica, mas tentaram acalmá-la, pessoas do público acharam que era tudo ficção. Isso dificultou o processo de trabalho em grupo, uma das integrantes indicou que não desejaria mais participar das apresentações, pois achava que poderíamos estar sob eminente risco de vida em nossas ações na rua, especificamente pela sua abertura, pela exploração do inconsciente coletivo ao questionar lideranças estabelecidas pela massa social e pelas suas ações completamente permeáveis pela realidade. Outra dificuldade foi a de nós mesmos convencionarmos a pesquisa do grupo, pois, ao provocarmos imprevisibilidades no espaço urbano também objetivávamos que o público tivesse a noção de que o espaço estava aberto ao Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento imprevisível. No caso da intervenção da manifestante evangélica o público estava dividido entre se aquilo estava, ou não, no roteiro de ação. O que era de fato real ficava manchado pela ficção próxima à realidade. Ou seja, estivemos a ponto de espetacularizar nossa própria produção de ruptura, nossa interação presencial. Nossa construção teatral no instante da ação foi compreendida por alguns como ensaiada, planejada, estruturada. Nossos cenários estavam sendo destruídos e os atores desorganizados, porém, as pessoas do público riam e elogiavam o naturalismo da cena. Em uma apresentação do espetáculo na cidade de Palhoça (SC), um dos atores foi levado à delegacia, interrogado e pressionado a dizer ao major da PM da cidade quem era o líder, mesmo após inúmeras tentativas em dizermos para os oficiais que se tratava de teatro. O clima do interrogatório e do diálogo que acontecia no lado externo da delegacia teve ares de censura, os policiais argumentaram que a detenção se justificava, pois, havia um criminoso, de nome Papagaio, assaltante de bancos, foragido da penitenciária estadual, que estaria planejando um assalto, e esse poderia ser nosso líder já que no espaço de ação da peça estavam localizados todos os bancos do município. Após insistências em falarmos sobre o que estávamos fazendo na rua, que se tratava de uma situação construída para as pessoas participarem, jogarem, os policiais permitiram que voltássemos às ações no local específico e acompanharam o grupo até o espaço onde, criando uma cena à parte, cordialmente se apresentaram e se despediram do grupo e do público. A diluição entre arte e vida é criada pelo acontecimento. Essa diluição se constrói, por exemplo, através de subversões realizadas pelo grupo de ações de divulgação da chegada do líder, como pichações, no estilo situacionista de arte criminosa, caracterizadas de acordo com o Código Penal como vandalismo e destruição de patrimônio, ou através das participações do público que criam o roteiro aberto em todas as apresentações. Em razão disso, Enfim um Líder possibilita ao ERRO uma experiência diferente de outras intervenções realizadas até então, pois, busca ultrapassar totalmente a fronteira ficcional para se transformar em um acontecimento real na cidade. A população é chamada a participar dos preparativos para a recepção e para auxiliar na elaboração do discurso de recepção ao líder, ou seja, na construção de quem seria este líder. As ações se estruturam no espaço urbano colocando em discussão a razão pela qual todos nós buscamos um modelo em quem se inspirar e de nos guiar em nossas ações. É a crença e a dúvida que estão em jogo neste espetáculo, pois, se vivemos em uma sociedade espetacular pretendemos criar um deslocamento da propagação de informação para a criação de uma situação que envolva as pessoas, que talvez possam não acreditar mais no poder do teatro, mas ainda acreditam nos líderes ocultos: o marketing e o mercado. Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo... Pedro Bennaton.

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U rdimento É possível através de procedimentos estratégicos interferir na rede de relações do espaço urbano, em seu ambiente e nas pessoas que ali transitam. O deslocamento, a ocupação e a invasão propiciam a reorganização e, ou, a desorganização de regras sociais e de formas de se vivenciar o espaço e especialmente a arte. Porém, quando o ambiente que se cria, a partir desses procedimentos, permite situações incontroláveis, desconhecidas, ou que poderiam ser perigosas para a integridade física do espaço, das pessoas e dos atores, cabe à práxis, em seu percurso, buscar dados mais precisos sobre técnicas de atuação na invasão e no deslocamento nas ruas, com o fim de construir laços de confiança e a capacidade “de ser dois em um, de se manter ao lado de si mesmo e de ver a si próprio” (SCHECHNER, 2001:12). Ao utilizarem os procedimentos de invasão, deslocamento e ocupação, os atores são desafiados a selecionar uma série de posicionamentos diante das imprevisíveis integrações, interações e interferências das pessoas em suas ações, de forma que esse jogo de mão dupla pactue laços diretos entre os atores e o público. Ao proporcionar situações onde o público possa agir por vontade própria por meio de diferentes níveis de participação, as participações nas ações urbanas, como as integrações, interações e interferências, que possuem suas particularidades e modos de reação, constroem uma ação coletiva no espaço urbano.

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Tradução Sérgio P. Rouanet. In: Obras Escolhidas, v.1, São Paulo: Brasiliense, 1985. COHEN-CRUZ, Jan. Playing Boal: Theatre, therapy, activism. London: Routledge. 1994. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Lisboa: Afrodite, 1972. KAPROW, Allan. Some recent happenings. New York: A Great Bear Pamphlet, 1966. SCHECHNER, Richard. Ritual, play and performance. New York: Seabury, 1976. _______. Performance Theory. New York: Routledge, 1988. _______. Environmental Theater. New York: Applause Books, 1994. _______. The Future of Ritual – writings on culture and performance. London and New York: Routledge, 1995. _______. A emoção que se quer despertar não é a do ator e sim a do espectador. Paris: Seabury, 2001. SITUACIONISTA, Internacional. Antologia. Tradução Júlio Henrique. Lisboa: Ed. Antígona, 1997. Dezembro 2008 - N° 11

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HAMLET EM SUA ÉPOCA E ENSAIO.HAMLET, DA CIA DOS ATORES: MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE TEATRAL Tania Alice Feix1

Resumo

Abstract

A partir de uma análise comparativa das representações teatrais na era elisabetana e na Contemporaneidade, o artigo pretende refletir sobre a Modernidade e a Pós-Modernidade teatral. Sendo que Hamlet, de Shakespeare, é considerada como uma peça emblemática da Modernidade, é proposta aqui uma leitura da encenação Ensaio.Hamlet de Enrique Diaz (Cia dos Atores), de maneira a estabelecer uma abordagem teórica da estética teatral pós-moderna a partir da noções de performance, de rizoma e de releitura dos clássicos.

Based on a comparative analysis of theatrical representations in the Elizabethan era and in modern times, the article reflects on Modernity and Postmodernity in the theatrical world. While Shakespeare’s Hamlet is considered an emblematic piece of Modernity, this article suggests reading the production Ensaio.Hamlet (Probe. Hamlet) by Enrique Diaz (member of Cia. dos Atores) for a theoretical analysis of postmodern theatrical aesthetics based on the concepts of performance, origin and re-reading the classics.

Palavras-chave: pós-modernidade, estética teatral contemporânea, Hamlet.

Keywords: post-modernity, contemporary theatrical aesthetics, Hamlet.

Originalmente, Hamlet, peça mítica de Shakespeare, foi escrita no contexto do Teatro Elisabetano, onde o homem era um prêmio disputado entre instancias alegóricas, esquartejado entre a esperança de uma salvação e o fogo do Inferno, no “diálogo com Deus e o Diabo” (BERTHOLD, 2005: 185). O Teatro Elisabetano era um teatro da escassez, no qual a linguagem compensava a falta de recursos técnicos, oferecendo ao mesmo tempo ao homem uma nova visão de mundo. Nesse contexto, a peça mais montada, pesquisada e comentada do mundo constitui uma tragédia política, que, de política, se torna existencial, sendo que o homem é optativamente bom ou mal. O clássico emerge desse questionamento atemporal. Ao mesmo tempo, a visão da liberdade de escolha, desenvolvida na tragédia, corresponde igualmente a uma concepção que marca a transição entre Dezembro 2008 - N° 11

Tania Alice Caplain Feix é Doutora em Letras e Artes pela Universidade de Aix-Marseille I (França). Performer, escritora, encenadora e pesquisadora, é atualmente Professora Adjunta de Dramaturgiada UNIRIO. 1

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Hamlet vai montar uma peça de teatro para que o tio, que casou com a Rainha, sua mãe, se reconheça e fique apavorado, o que é uma característica desse espírito de investigação. As características do espírito cientifico de Hamlet são analisadas com mais precisão por Rodrigo Lacerda na Palestra "Hamlet e a criação do sujeito moderno", disponível em DVD na Série Mitos Literários do Ocidente e da Modernidade, Espaço Cultural CPFL, Curadoria de Manuel da Costa Pinto. 2

o realismo conceitual da Idade Média e o nominalismo renascentista, conforme o observa Anatol Rosenfeld. Assim como na Pós-Modernidade, no Renascimento não existem mais verdades absolutas e a perspectiva humana – metaforicamente inventada nessa época – determina a visão do homem e do universo. Da mesma forma que a perda da crença nas Meta-Narrativas marca a transição entre Modernidade e Pós-Modernidade, a concepção de uma ordem teocentrista para uma perspectiva antropocentrista é um dos marcos da transição entre a Idade Média e o Renascimento. Outra transição entre essas épocas reside no fato de Hamlet encarnar o espírito cientifico de investigação, novo no Renascimento e que virá a constituir uma das grandes Meta-Narrativas que, segundo Lyotard, constituem a essência da Modernidade2. Dessa forma, Hamlet marca a transição entre a Era Medieval e a Era Moderna. Como o clássico chegou a assumir essa dupla transição de Idade Média para a Modernidade, antes de constituir, na encenação ensaística e experimental de Enrique Diaz com a Companhia dos Atores – cuja análise constitui o foco deste artigo - um marco da PósModernidade teatral? De que forma o clássico permite uma reinvenção perpétua e sempre reafirmada de seu tempo? De uma forma geral, Hamlet se apresenta como um marco fundamental na conceituação da Modernidade em sua fase inicial, encarnando justamente a transição entre Idade Média e Renascimento. Estão presentes, de forma embrionária, as características renascentistas. Se Deus era considerado como o criador do homem, e se essa concepção começou a ser questionada no inicio da Modernidade, com Shakespeare, este humano é criado e inventado novamente, mas, desta vez, por um espírito humano e não divino. Em Shakespeare ou A Invenção do Humano, Harold Bloom escreve: “A obra de Shakespeare já foi chamada de Escritura secular, em outras palavras, o centro estável do cânone ocidental. (...) Se existe um autor que se tornou um Deus mortal, esse Deus é Shakespeare” (BLOOM, 2001: 27-28). Contrariamente à visão de totalidade presente na Idade Média – simbolizada pelo palco simultâneo característico da apresentação dos Mistérios medievais -, no Renascimento, o homem é colocado no centro da criação. Começa-se então a valorizar a multiplicidade dos pontos de vista, os fenômenos sensíveis, as crenças e os mitos não mais coletivos, mas individuais. Com as descobertas astronômicas que relativizam a situação do planeta Terra no espaço, com a descoberta e a colonização de novos territórios, vão se abolindo as distinções entre inferior e superior, ilimitado e limitado, sensível e inteligível. Segundo Rosenfeld, por um lado, as peças de Shakespeare, através da mistura de estilos, classes sociais, temporalidades, remetem à visão hierárquica medieval e teocentrista. Porém, por outro lado, com Hamlet, tragédia situada no meio terrestre e humano, a visão renascentista começa a existir. Não há mais valores absolutos; o relativismo moral começa a emergir, o que constitui uma das questões centrais da peça. Da mesma forma, o ceticismo vem sacudir as verdades prontas dos séculos Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores... Tania Alice Feix.

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U rdimento passados, conforme o diz o próprio Hamlet, dentro de uma perspectiva que remete quase ao meta-teatro: “The time is out of joint”. Em outras palavras, os tempos mudaram: nasce uma nova era, a do homem solitário, da falência dos valores, da conscientização da fugacidade da vida. Sendo assim, a própria estrutura cênica do teatro elisabetano – o “wooden O” (“O” de madeira, como escreve Shakespeare no prólogo de Henrique V ) corresponde a essa nova visão de mundo. Embora o “O”, conforme muitas crenças, simbolize a unidade divina, a perfeição, a unidade entre macrocosmo e microcosmo, o espaço elisabetano, com suas características de abertura de 230 graus em volta do palco, com sua platéia enorme e diversificada, suas cenas acontecendo em vários níveis, com seu diálogo áspero com as instâncias da censura, encarna a visão de um tempo novo, onde simultaneidade e visão única já não constituem mais valores absolutos. O próprio nome dos teatros ainda continha uma nostalgia de totalidade: The Theatre, construído por John Burbage ou ainda The Globe, que existe hoje ainda em sua versão restaurada. Mesmo dentro de uma perspectiva nostálgica, o espaço cênico reflete uma visão nova de mundo, composta pela junção de vários olhares. Esse espaço é tanto cênico, como interior. Jean-Jacques Roubine observa que “Shakespeare consegue oferecer uma representação totalizante, e por isso, verídica, do homem” (ROUBINE, 2003: 102). A representação totalizante é devida à representação da condição humana como um todo, através dos mais diversos personagens, movidos por motivações nobres ou profundamente amorais. Nesse sentido, Hamlet se coloca como um questionamento sobre a condição humana como um todo, sobre a própria natureza da condição humana. A contradição dessa posição de Shakespeare entre uma teologia medieval e o espírito científico é analisada por John Gassner: “Shakespeare criou personagens altamente individualizadas com mais abundância do que qualquer dramaturgo, e os conflitos em suas peças são invariavelmente produzidos pela vontade humana. O homem luta contra o homem e não contra o Destino, Deus, a hereditariedade ou os distúrbios glandulares. O drama shakespeareano é o drama da vontade individual” (GASSNER, 1973: 250-251). A afirmação de Gassner explicita essa divisão de Shakespeare entre dois mundos, evidenciando de tal forma o impacto de Shakespeare na invenção da era Moderna. Nesse contexto, as peças não obedeciam a um código específico, visto que o espaço cênico era extremamente codificado, com espaços separados para as cenas de interior e de exterior. A fronteira entre palco e platéia era fina: somente a bandeira erguida na frente do teatro indicava a especificidade da atividade representativa. O conceito de verossimilhança visual, que marcou o Teatro Moderno, não existia no teatro elisabetano: após vigorar vários séculos, esses códigos de verossimilhança serão desconstruídos justamente na PósModernidade. O código de interpretação intitulado “play with your fancies” (“jogue Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento com sua imaginação, vontade, inspiração...”), evocado no início de Henrique V, encontra o seu equivalente com as estruturas performáticas contemporâneas, propostas por Enrique Diaz. Dessa forma, muitas das características atribuídas à Pós-Modernidade teatral (proximidade com a platéia, meta-teatro, destruição da ilusão representativa, entre outros) já eram características do teatro elisabetano. Cenários reais não existiam, tratava-se principalmente de cenários falados: ou seja, a palavra fazia existir a realidade no imaginário do espectador, o que constitui um paralelo muito próximo com os cenários pós-modernos, que não trabalham a partir da convenção da representatividade, mas a partir da sugestão representativa. Como escreve Anne Surgers: “No teatro elisabetano, é uma imagem mental, espiritual, que o espectador constrói a partir do texto proferido no contexto da cenografia e da arquitetura” (SURGERS, 2000: 95). De que maneira a encenação de Enrique Diaz dialoga com a forma elisabetana a partir da encenação de Ensaio.Hamlet? Como essa junção de temporalidades constitui uma característica das encenações pós-modernas? A encenação de contemporânea, constituída a partir de ensaios, tentativas de se dizer Hamlet corresponde a essa transição entre o mundo das crenças coletivas da Modernidade – embora essas tenham se subjetivizado desde a Idade Média – para o mundo das crenças individualizadas, o mundo dos conceitos e das verdades dissolvidas, sejam elas o Historicismo, o Catolicismo, o Racionalismo, a Arte, a Crítica. Essa dissolução implica a morte desses conceitos absolutos, como o sugerem os questionamentos a respeito do fim ou da morte da arte, desenvolvido por Danto ou Hans Belting. Em Ensaio.Hamlet, o espaço teatral fica constantemente envolvido numa semi-penumbra, com atores iluminados por velas e candeeiros, que eles mesmo carregam; as cenas acontecem em lugares diferentes e os objetos são deslocados aleatoriamente em função das necessidades cênicas; nada é claro, definitivo, fixo. A história de Hamlet se confunde com a história da troupe que monta Hamlet, com a história da Cia dos Atores que investiga os caminhos de se montar Hamlet hoje. As situações, assim como a iluminação e o cenário, não se fixam, mas evoluem, flutuantes. No artigo “Criticar... é entrar em crise”, a pesquisadora Maria José Justino questiona se a Pós-Modernidade significaria a morte ou a crise da crítica. Para ela, como a obra de arte contemporânea não se reconhece mais como tal, o crítico tem dificuldade a encontrar um lugar fixo e definitivo para definir a arte pós-moderna. Não há mais certezas. São esses questionamentos que constituem o cerne do espetáculo Ensaio.Hamlet. Em mais palavras: A Modernidade interpretou o mundo (não há fato, mas uma infinidade de interpretações, dizia Nietzsche): a Pós-Modernidade busca apenas apresentar o mundo sem crítica, por meio de signos. (...) As fronteiras das artes se diluem. (...) Ao invés da construção e do estilo Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores... Tania Alice Feix.

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U rdimento (ocupar-se com estilo passa a ser acadêmico), a desconstrução e a citação. Na Pós-Modernidade, a arte é cindida: possibilita a permissividade de um lado (convivência tranqüila entre estilos diferentes) e o autoritarismo de outro (a arte reduzida a informação). (JUSTINO, 2008: 38) Essa convivência estilística e a diluição das fronteiras são características da adaptação de Enrique Diaz, que apresenta uma pesquisa de linguagem shakespeareana na Contemporaneidade. Não é a forma acadêmica da montagem que importa, mas a elaboração resultante da busca de estruturas novas. Essa situação da Arte Pós-Moderna é analisada por Mário Pedrosa, quando ele aborda, por exemplo, o trabalho de Helio Oiticica: “Agora, nessa fase de arte na situação, de arte anti-arte, de arte pós-moderna, os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais” (PEDROSA, 1998: 335). É o que acontece em Ensaio.Hamlet. A estrutura rizomática do espetáculo, a modificação das convenções na relação palco/platéia, a evidenciação da busca, e não do resultado, se apresentam como o objeto da pesquisa, sempre em fuga. A escrita do famoso “Ser ou não ser” acontece em três mesas diferentes com três atores diferentes; a leitura é alternada, simultânea, fragmentada, deixando emergir a dúvida. Ao mesmo tempo, pela estrutura performática, o limite entre ator e personagem se apaga, tornando a relação arte/vida um jogo, um vai-e-vem constante, sem dissociação: três atores são Hamlet, três atores são Ofélia também. As fronteiras se dissolvem. Da mesma forma, a cenografia é mutável. Composta somente por objetos manipulados pelos atores tal como cadeiras, mesas, luminárias, televisões, o famoso crânio, bonecos de borracha, bolas de pingue-pongue; estes objetos compõem, decompõem e recompõem o espaço na medida em que o espetáculo acontece. A criação é coletiva e acontece por parte do ator, da platéia, do performer e do eco da palavra de Shakespeare na Contemporaneidade. Surge assim a poesia da vaquinha voando em cima da cabeça de Ofélia, dando asas à sua imaginação; em seguida, Ofélia derrama um balde em cima de sua própria cabeça, cantando Cry me a River. Esse ato metafórico representa o suicídio de Ofélia e, com ele, o suicídio de todas as formas modernas do fazer teatral. É radicalmente outra época, longe da busca da autonomia do teatro ou da importância fundamental do diretor como organizador da apresentação teatral, para citar algumas características do teatro moderno. No texto “Du happening à la performance”, Giovanni Lista escreve: Na segunda metade do Século XX, observa-se uma abertura das fronteiras artísticas, bem como uma coletivização do ato criativo - isso permite uma circulação e uma sinergia, que conduzem a uma afirmação nova do lugar da arte dentro da sociedade moderna (LISTA, 1997: 331). Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Esse novo lugar seria ainda o lugar do teatro como tal? Ou a experimentação performática, a busca de uma linguagem seria mais condizente com o tempo atual? O crítico Macksen Luiz afirma que Ensaio.Hamlet se opõe a toda solenidade dramática: A encenação desarticula aparentemente a narrativa, mas na verdade procura quebrar a ilusão da representação com recursos a um jogo teatral lúdico, tentando fazer com que alguma coisa de real aconteça em cena (2004). Algo acontece e não algo é representado. Essa questão, que remete às origens do teatro helenístico como “lugar onde se vê”, constitui uma das principais questões do teatro pós-moderno. Não representar, mas ser – o que se observa, por exemplo, no título do livro relatando as pesquisas do Lume e que deram origem ao livro A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. O espetáculo de Enrique Diaz – que recompõe um espaço circular de cena, com uma platéia que cerca o palco, conforme era praticado no teatro elisabetano – oferece uma congruência de linguagens, uma junção entre passado e presente, dentro de uma perspectiva iconoclasta. Trata-se de um diálogo com o passado, dentro de uma perspectiva de reiteração permanente do momento presente. A interlocução com o passado se dá através de um procedimento irônico. O distanciamento elisabetano causado pelo diálogo e pela atuação épica - todos os atores interpretam todos os personagens provoca o cômico: Rosenkrantz e Gildenstern são heróis de seriado japonês primeiramente representados por bonequinhos de plástico (isso antes que os atores tirem as roupas e fiquem nus em cena), Hamlet, no início da peça, não quer vestir seu pijama, Ofélia é transformada num hambúrguer que é disputado por Laertes e Hamlet e, em seguida, é “grelhado” com um ferro elétrico, Hamlet canta marchinhas, a Rainha aparece bêbada para a sua primeira apresentação à Corte – o que resulta em uma “engenhosa desconstrução do clássico shakespeareano” (GOMES: 2004,5). Mais do que uma montagem de Hamlet, o espetáculo se apresenta como um estudo em cima de Hamlet, uma abordagem lúdica do texto clássico. Conforme o escreve Enrique Diaz:

DIAZ, Enrique. Texto do Programa da peça Ensaio.Hamlet. 3

Há uma narrativa conhecida nesta peça. Mas a carne atual dessa tragédia é nossa, por isso, tentamos descobrir o que está atrás dela, ou seja, za relação deste texto com o presente.3 Esse diálogo lúdico entre presente e passado, entre Modernidade e Pós-Modernidade, entre platéia e espectador, constitui um dos focos da encenação, o que causou o desentendimento da crítica Bárbara Heliodora, cuja visão não é estruturada em função de paradigmas pós-modernos. Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores... Tania Alice Feix.

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U rdimento É interessante observar a divisão de opiniões no dossiê critico da peça, publicado no Jornal O Globo. Essa divisão evidencia dois posicionamentos adversos a respeito da peça. Em seu artigo “Brincadeira não contribui para compreensão da peça”, Bárbara Heliodora observa: O tipo de brincadeira feito neste ensaio pode ser realizado junto a qualquer texto, sem fazer maior ou menor contribuição para uma nova ou melhor compreensão dos mesmos. Esse tipo de ensaio pode não levar a nada (2005: 4). Já para Jefferson Lessa em “Leitura iconoclasta resgata os ideais antropofágicos”, Ensaio.Hamlet é “uma das encenações mais inteligentes, inventivas, originais e iconoclastas a marcar presença no palco carioca dos últimos tempos” (LESSA, 2005: 4). Lessa observa o prazer de reencontrar a antropofagia de Oswald de Andrade de forma lúdica: “Sem querer ser Hamlet, Enrique Diaz discute questões sobre o ato de encenar a partir de Hamlet (...). Ele ousa atualizar o texto de um clássico da tragédia através de uma leitura dinâmica” (LESSA, 2005: 4). A pluralidade de recepções ilustra o propósito da peça, que consiste na experimentação, na junção de épocas, na transitoriedade, na estrutura rizomatica. Em sua estrutura pós-dramática, Ensaio.Hamlet representa o próprio questionamento, característico da Pós-Modernidade. No artigo “O Teatro Pós-Moderno”, Edélcio Mostaço reflete sobre o Pós-Modernismo Teatral, partindo do pensamento de Alfonso de Toro, que tenta listar os traços estéticos do teatro pós-moderno. Para De Toro, o Teatro Pós-moderno: a) denota uma pluralidade radical, muito mais explícita e implementada do que aquela moderna, quanto à produção e, com ênfase, quanto à recepção do fenômeno estético; b) enseja o direito de desenvolvimento de formas de conhecimento, vida e comportamento altamente diferenciados; c) é anti-totalitário, combatendo a hegemonia e defendendo a diversidade, marcando-se pela não-limitação; d) efetiva uma congruência entre as dimensões sociais, culturais, industriais, artísticas, arquitetônicas, técnicas, filosóficas e científicas, conformando uma teoria; e) é o modernismo plenamente desenvolvido, um renascimento recodificado que recorre à cultura universal em sua totalidade; f) seu “pós” refere-se à era moderna típica do século XIX, ou seja, até os anos de 1950 do século XX. g) embora tenha sido acusado de alienante, regressivo, conservador ou nostálgico, pode-se afirmar que é progressista, revolucionário e iluminante; Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento h) trabalha com a colagem, a intertextualidade, a pluralidade de discursos, elementos e materiais, operando um jogo discursivo por meio da metalinguagem ou de discursos sobre os discursos, sobre a reflexão, empregando a ironia, a paródia, o humor, o entretenimento; i) efetiva a desconstrução de discursos e sistemas anteriores; j) despede-se de utopias totalizantes tidas como mathesis universalis provenientes do século XIX e reinstala uma unitary sensibility, como abertura, congruência nas estruturas profundas, na unidade da diferença; k) como pluralismo, implica numa nova sensibilidade para com os problemas atuais (TORO, 1990: 42). Da mesma forma que Hamlet questiona as certezas medievalistas, dando início ao pensamento renascentista, Ensaio.Hamlet deixa de lado as certezas modernistas para tentar uma aproximação com uma linguagem nova, através da pluralidade dos discursos, das épocas, dentro da perspectiva da paródia. Enrique Diaz descreve da seguinte maneira essa busca, esse ensaio de Hamlet: Uma aproximação. É mais uma série de perguntas e experiências do que uma montagem da peça quimera, da peça-desafio. É um jeito de começar, de se perguntar o que aquilo provoca, de entrar ali e buscar em si as razões do bardo e as nossas, ao invés de mitificar, ter razão, se apossar. É gastar a carne no processo de feitura, procurar no jogo, na experiência pessoal, na contemporaneidade e na ancestralidade os pontos vitais de uma peça que deve existir hoje.4

Ibid.

4

A feitura do espetáculo não é linear, nem cronológica, mas rizomática. “O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica binária, para fenômenos de natureza inteiramente diferentes”, escrevem Deleuze e Guattari no capitulo “Introdução: Rizoma” de Mil Platôs (DELEUZE e GUATTARI, 2008: 20), propondo o conceito de rizoma para uma nova organização do pensamento e das relações. Nesse sentido, é interessante realizar uma comparação com os ensaios de Georges Didi-Huberman sobre dança. Em Le danseur de solitudes, o ensaísta analisa a dança do bailarino Israel Galván a partir de uma série de movimentos que quebram com o tradicionalismo da dança, propondo uma estrutura nova. Essa estrutura da dança ilustra poeticamente o pensamento de Deleuze. É interessante observar como os movimentos do bailarino encarnam o pensamento deleuzeano, como estabelecem um diálogo profundo e profundamente pós-moderno. Talvez no ensaio de Didi-Huberman estamos no coração do que é a dança/o teatro pós-modernos, pois a condição pós-moderna ressalta, emerge do movimento das mãos, do tronco, ela está toda contida no corpo e se revela através do movimento. Ele descreve o bailarino da maneira seguinte: Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da Cia dos Atores... Tania Alice Feix.

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U rdimento Israel Galván submete suas capacidades de bailarino a um método do tipo rizomático. Primeiro, ele instaura uma equivalência paradoxal entre rupturas e conexões: “Um rizoma não pode ser rompido, cortado em algum lugar, ele retoma seguindo ou outra linha, seguindo outras linhas.” É por isso que Galván transmite, quando dança, essa sensação de ser fragmentado, enquanto que a lei rítmica do compás flamenco nunca deixa de se tornar presente, conectando virtualmente cada parcela a todas as outras, mesmo no silêncio. Depois, ele pratica uma descentração sistemática, próxima do que Deleuze e Guattari chamaram de “principio de heterogeneidade”. A questão é sempre de romper com a simetria das figuras e dos movimentos. A impressão de falta de sentido que aflora (...) é devida àaum terceiro princípio essencial no método do rizoma, que Deleuze e Guattari chamaram de “princípio da ruptura asignificante”, acusando os fragmentos, renunciando aos enredos e ignorando as deduções lógicas de um gesto para o outro. Enfim, e sobretudo, o que ressalta mais em sua dança é que ele nunca pára de se multiplicar a ele mesmo, de multiplicar sua solidão, mas agindo – eis a especificidade – por subtração (DIDI-HUBERMAN, 2006: 32-33). É o que acontece no espetáculo de Enrique Diaz. Numa apresentação do trabalho da Cia como um todo – desde a criação da Cia até os trabalhos posteriores - Enrique Diaz ressalta que foi a experimentação conjunta e diversificada que deu origem aos trabalhos, às peças e não um pensamento comum. As rupturas e conexões, ligadas às diferentes formações e experiências artísticas, conduziram aos trabalhos, e não o contrário5. Essa experimentação se reflete no espetáculo, como o analisa do diretor: Ensaio.Hamlet, desconstrução da obra-prima de Shakespeare, busca rasgar o plano do espetáculo como representação, criar espaços que desrespeitem a ficção, na procura de uma relação simultânea do ator que age, do espectador que presencia ou contracena e da memória do clássico, chamado a se expressar através da presença viva daqueles atores e espectadores. As questões do texto passam a ser nossas, ou viceversa, de modo à que o espetáculo se torna mais uma rede de indagações (sobre o homem, o ator, a carnalidade) provocada pelo autor do que exatamente uma montagem do texto mais estudado da dramaturgia ocidental. Alguns pólos (...) formavam nossos marcos iniciais: a fábula shakespeareana, a relação ator-público, o ator como memória, a carnalidade do ator, o eixo da tradição para a contemporaneidade. Em Ensaio.Hamlet, o espetáculo, como o homem, se anuncia como processo, se denuncia como processo, buscando desmontar o compromisso do acerto e focando na idéia de ensaio não em relação à uma possível Dezembro 2008 - N° 11

Cf. entrevista de DIAZ, Enrique. "A Cia dos Atores", in Revista Sete Palcos, número 3. Coimbra: setembro de 1998: 50. 5

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U rdimento estréia (ou seja, conferindo-lhe uma conotação de inferioridade ou negativa incompletude), mas de ensaio como coisa viva, desejosa, metamórfica. O espetáculo então, como que se buscando, se ensaiando e se questionando, cria um espaço onde o ator se torna espelho do homem em processo e, portanto, do público (DIAZ, 2006: 33-34). O espetáculo vivo, em processo, em perpétua transformação permite uma nova leitura do Hamlet que já marcara a transição da Idade Média para a Modernidade. Essa busca de estruturas abertas performáticas, resolutamente pós-modernas, permite uma nova escrita da peça: não uma reescrita do texto de forma adaptada, mas uma escrita cênica, realizada a partir dos anseios e dúvidas do homem pós-moderno, um mundo de furor e de barulho, que não significa nada – como já dizia Macbeth -, senão a busca desesperada do homem de encontrar na arte algum sentido, ou, senão, alguma materialização dessa falta de sentido; uma modalidade que estabeleça uma ligação com o Outro, uma forma que esteja abolindo a distância do abismo entre os homens, a distância do abismo que vem, como a caveira de Hamlet, se cavando dentro das solidões pós-modernas.

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ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR-ARTISTA Tânia Cristina dos Santos Boy1

Resumo

Abstract

O trabalho relaciona processo colaborativo, pedagogia do teatro e formação do professor-artista buscando compreender o fazer teatral no modelo educacional da sociedade moderna. Aponta para uma estética da existência com uma subjetivação coletiva, pois o modelo educacional concebido como espaço de subjetivação pela sujeição, só poderá se transformar através de práticas desviantes.

The work related collaborative process, the theater education and training of teacher-artist trying to understand how the theater in the educational model of modern society. Points to an aesthetics of existence of a collective subjectivity, as the educational model designed as an area of subjectivity by the subject, can only be transformed through practices deviant.

Palavras-chave: processo colaborativo, pedagogia do teatro, cuidado de si.

Keywords: collaborative process, the theater education, care of yourself.

A experiência da montagem “O educador precisa emancipar-se a si mesmo, para que sua atividade docente possa ser um ato de emancipação e não de embrutecimento” Jacque Ranciere Durante o ano letivo de 2007, a convite da professora Ingrid Koudela acompanhei o processo de montagem do espetáculo “Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos” na Universidade de Sorocaba. A experiência de trabalhar ao lado da pesquisadora trouxe um renovado olhar sobre os processos educacionais desenvolvidos em nossas instituições. O processo vivido foi enriquecedor e provocativo, pois a generosidade da Senhora IDK, como brincávamos respeitosamente, trouxe a companhia de muitas outras pessoas que se somaram ao projeto. Dentre elas, a agradável Dezembro 2008 - N° 11

1 Mestre em Educação, professora efetiva da Rede Pública do Estado de São Paulo e pesquisadora do Teatro na Educação. Doutoranda em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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U rdimento e instigante companhia de Joaquim Gama, pesquisador, professor e colega no trabalho, do misterioso Mário Pérsico e do intenso Hamilton Sbrana, atores convidados da montagem. No confronto com “outros”, novas amizades, histórias e vidas se entrecruzaram e teceram uma existência diversa. Éramos todos peixes desbravando um mar de interrogações e os alunos se perguntavam “Sobre o que será a peça? Cadê as personagens? Como assim peixes? Seremos peixes? Como Brueghel se encontra com Brecht? Além de Brueghel e Brecht ainda tem Guimarães Rosa? E a Árvore Grande o que tem a ver? Ainda tem Heiner Muller?” Iniciado o processo de montagem numa proposta de processo colaborativo, as primeiras dúvidas só foram substituídas por outras, pois o processo todo foi marcado pela instabilidade. Tudo pode, tudo é possível, criem, sabemos o ponto de partida, mas não o de chegada, era esse o caminho apontado pela Srª IDK. O processo vivido na criação do espetáculo trouxe perfumes, cores e sabores para a vida de todos. Trouxe o cheiro de mato que envolvia a Casa Sede, um dos lugares escolhidos para abrigar o espetáculo processional, sentido desde a primeira caminhada de reconhecimento pelo pasto da fazenda em que ficava, passando pelas cenas experimentadas nos recantos dos jardins, até enfim, o perfume de toda a flora local aguçando o olfato dos nossos narizes urbanos. Trouxe também o sabor do lanche compartilhado todas as manhãs entre os colegas dos grupos. E o sabor reconfortante do café bem quentinho, principalmente nos dias frios em que o vento teimava em nos atormentar na varanda da Casa, mas que não conseguia esfriar o carinho dos amigos que compartilhavam momentos estimulantes. Durante o lanche, as conversas continuavam, em parte, as discussões levantadas pelas cenas experimentadas, e nesse compartilhar outras idéias e propostas surgiam para serem experimentadas depois da rica “paradinha”. O contato humano da experiência do criar coletivo trouxe a força dos sentidos estimulados pelo ambiente de trocas e compartilhamentos. E trouxe ainda, as cores das misturas multicoloridas das maquiagens que determinaram a presença cênica extraordinária das espécies de peixes-personagens do espetáculo. A vivência experimentada no processo colaborativo desenvolvido na montagem teatral trouxe reflexões que guiadas pelo pensador Michael Foucault no estudo da constituição dos sujeitos na sociedade moderna desvelou a importância dessas experiências proporcionadas à formação dos futuros educadores. Então, busquei refletir sobre a formação do professor-artísta no Cuidado de Si e do Outro na prática do processo colaborativo. Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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U rdimento Em seus estudos Foucault nos revela a constituição dos indivíduos através do assujeitamento em nossa sociedade. A experiência do trabalho colaborativo na montagem teatral do espetáculo “Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos” descortinou uma possibilidade de vivenciar uma forma desviante de constituição. Então, para iniciarmos esta reflexão é necessário, primeiramente, compreendermos a análise foucaultiana da formação dos sujeitos em nossa sociedade e em especial na instituição escolar.

A Formação do Sujeito O próprio Michel Foucault (2004) afirmou que a questão central do seu pensamento sempre foi o sujeito e a suas relações com o poder, o saber e os seus processos de subjetivação. Sendo que esses processos são entendidos como mecanismos pelos quais nos tornamos sujeitos e ao mesmo tempo assujeitados a nós mesmos e aos outros. Para o pensador francês não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal que poderíamos encontrar em todos os lugares. Para ele, o indivíduo se constitui através das práticas de sujeição ou de práticas de liberdade. Foucault desvenda os modos de subjetivação, isto é, os modos através dos quais os indivíduos são produzidos no assujeitamento ou na liberação, pois o interesse do pensador está na interação entre alguém e os demais.

Os Processos de Subjetivação Foucault (1994) vê, em diferentes momentos históricos, os diferentes modos de produzir a subjetivação na constituição dos indivíduos em sujeitos através de técnicas aplicadas num trabalho sobre si mesmo. Com essa intenção Foucault estuda a história relacionando dois princípios morais: “ocupar-se de si mesmo” e do “conhecer-se a si mesmo” através da compreensão de três momentos históricos bem demarcados: o período socrático-platônico, o período helenístico entre os séculos I e II e finalmente o período entre os séculos IV e V da era cristã. Primeiramente, no período socrático-platônico, Foucault (1994) ressalta que no pensamento da sociedade grega o “código moral” era compreendido como a maneira pela qual cada um devia constituir a si mesmo. No mundo antigo, não havia leis codificadas que exigiam a austeridade em relação às condutas de cada um, fossem civis, sociais ou religiosas. A austeridade moral estava inscrita num espaço de atenção moral independente, sem a incidência de regras que proibissem ou restringissem os atos. Havia liberdade de ação do indivíduo no seu processo de constituição. Foucault evidencia que naquela sociedade o Cuidado de Si era compreendido como a preparação necessária para governar os outros. Era preciso aprender sobre si mesmo para que fosse Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento possível dedicar-se a cuidar dos outros, a conduzi-los. O princípio moral do cuidar-se era compreendido com a base da ação política na condução da cidade. O domínio de si era guiado por uma atitude de combate a adversários (desejos) que estavam dentro do próprio indivíduo. O resultado final desse combate seria um sujeito moral capaz de dominar-se com moderação e sabedoria no agir. Enfim, para os gregos, na constituição de cada indivíduo colaboravam a liberdade e o conhecimento. Liberdade no sentido de cada um ser o senhor de si e dos seus atos e não escravo de seus desejos. E conhecimento na relação com a sua verdade, conhecendo-se e concebendo um tipo de dominação sobre si mesmo. Esse trabalho sobre si permitia estilizar a liberdade através de considerações úteis, e não regras ou leis. Considerações que o indivíduo poderia seguir num processo de escolha dando a forma mais bela possível a sua própria constituição. Era, pois numa relação ética de liberdade consigo mesmo que o indivíduo podia formar a sua estética da existência. Mais tarde, já no período helenístico entre os séculos I e II, o Cuidado de Si converteu-se numa nova forma de “arte de viver”, chamada Cultura de Si, que seguiu a noção de uma fragilidade inscrita no corpo do indivíduo. Foi nesse momento que o Cuidado de Si passou a ser compreendido como um afastamento necessário da política. A ética, ou a relação consigo mesmo, passou a ser colocada acima da política, e o cuidar de si tornou-se mais importante do que se dedicar a cuidar dos outros. Finalmente, no período entre os séculos IV e V da nossa era ganha força e passa a imperar uma ascética cristã. A constituição da moralidade cristã baseia-se na renúncia a si como forma de salvação. O indivíduo deixou o seu corpo para a medicina e a sua alma para a religião. Nesse momento histórico surgiram as instituições de seqüestro, e para Foucault (2004), foi na ruptura da pastoral cristã que o poder passou a ser mais repressivo que afirmativo. Assim, o indivíduo moderno constituído pela norma e pela disciplina, não tem no seu processo de constituição uma relação consigo mesmo, pois as regras impedem que tal relação ocorra. Então, o indivíduo moderno é sujeito de uma identidade que entende como própria, mas que é o resultado dos mecanismos do poder normalizador. Partindo das análises foucaultianas, Judith Revel (2006), afirma que vivemos hoje o cuidado do outro como um governo do outro, um exercício de poder voltado para o controle, para o domínio das vontades, para uma espécie de repressão. Porém, como mostra Foucault, no mundo antigo grego era compreendido como necessário para governar a cidade, assim, o Cuidado de Si e o Cuidado do Outro estavam num contexto de prática de liberdade, e não da repressão ou de governamentabilidade, como conhecemos hoje. Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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U rdimento Então, para Foucault (1988), foi na sociedade moderna quando surgiram as instituições de seqüestro como: a escola, o quartel e o hospital, que o indivíduo passou a ser confinado e disciplinado num processo de subjetivação que é o assujeitamento. Em nossas escolas modernas, os processos de formação foram constituídos como subjetivação externa, pois é guiado por regras, leis e prescrições, constituindo sujeitos para uma máquina social de produção e de reprodução. Assim, compreendida a experiência vivida em nossas instituições educacionais e buscando uma outra possibilidade de Constituição de Si no processo de formação do futuro professor-artísta encontramos em Francisco Ortega uma conexão entre o pensar de Foucault e os conceitos propostos por Emanuel Levinas na relação do Cuidado de Si com o Cuidado do Outro.

Outra Experiência de Subjetividade Ortega (1999), afirma que Levinas advoga uma experiência de subjetividade que somente mediante o outro a experiência de si é possível. Aproximando-se de Foucault, Levinas concebe a ética (para ele a sociabilidade) como nascendo da relação face-a-face com o outro e renuncia às regras, leis ou às verdades normativas e generalizáveis. Para Levinas, a comunidade deve constituir-se sobre a base de relações mediante a responsabilidade pelo outro. Propõe o pluralismo substituindo o liberalismo, pois o pluralismo permite perceber o outro em sua alteridade e no fundamento da proximidade surge a comunidade. Assim, a subjetividade e a sociabilidade ganham um caráter ético. Levinas apresenta a primazia da relação com o outro na constituição do sujeito. É imprescindível o outro na produção de si mesmo. Essa relação aparece na situação face-a-face experienciada como proximidade, mas na qual o outro está na sua alteridade absoluta. No face-a-face, o ser olhado sofre um apelo irresistível e se obriga a uma resposta, este fato o leva a uma relação ético-social e é ai que surge a sociabilidade. Portanto, o pluralismo presente na sociabilidade proposto por Levinas traz uma relação entre os indivíduos seguindo o caminho de um trabalho em colaboração. Como disciplina obrigatória do curso Teatro/Arte-Educação, os alunos participaram da criação e montagem do espetáculo “Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos” e a forma de trabalho escolhida para a realização dessa encenação foi o processo colaborativo que exige a participação de todos os envolvidos com proposições ativas. Então, para compreendermos a contribuição dessa experiência na Constituição de Si do futuro professorartísta, adentraremos no campo das artes cênicas. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento O Trabalho Colaborativo no Fazer Teatral Segundo Carreira (2003), o movimento do teatro de grupo foi o responsável pela introdução da prática de criações coletivas (o processo coletivo) que levou o ator para o centro do processo criativo. As funções que compõem os procedimentos básicos de criação teatral adquiriram novas formas no processo coletivo, pois passaram a ser compartilhada por diferentes membros dos grupos, ou até mesmo funcionando de modo rotativo. As funções estavam presentes e eram reconhecidas pelas equipes de trabalho, mas não eram assinadas por indivíduos de forma particularizada na ficha técnica. Nos anos 90, criações coletivizadas receberam o nome de processo colaborativo propondo o discurso criativo da cena e a valorização da figura do ator na construção do objeto textual e nos rumos da encenação. Para Antonio Araújo (FISCHER, 2003), diretor do Teatro de Vertigem o termo ‘processo colaborativo’ é o compartilhamento da criação pelo dramaturgo, diretor, ator, os outros criadores, sem uma hierarquia nessa criação. O diretor não é mais importante que o dramaturgo, o dramaturgo não é mais importante que o ator e assim por diante. Então, a diferença entre o processo coletivo e o colaborativo está no fato de que neste último cada indivíduo assina sua função, mesmo que todos discutam os aspectos relativos ao trabalho dos outros, pois quando no processo colaborativo é necessária uma decisão final numa polêmica cada um responde por sua respectiva área, dando a ‘palavra final’. Esses dois processos criativos, segundo Carreira (2003), direcionam o ator para um diálogo mais imperativo dentro da criação do texto e do conjunto do espetáculo e dão ao ator uma voz-embrião no surgimento de um gesto coletivo definido diferenças das iniciativas criativas tradicionais. Assim, surge a idéia de um ator ‘propositivo’, que para Araújo (FISCHER, 2003) faz desse ator um ator que pensa e que discute os rumos do trabalho. Assim, Carreira (2003) afirma que se rompe a autoridade da direção monolítica: o dramaturgo sai do gabinete e vai para a sala de ensaio; o ator discute a obra e dá idéias; e assim, todos os indivíduos do grupo passam a criar em conjunto. De um executor de papéis ele passa a fazer parte da discussão da totalidade do espetáculo, daquilo que se quer ver em cena, coletivamente. Fischer (2003), afirma que no processo colaborativo os atores, o diretor, o dramaturgo, enfim, o coletivo estão em diálogo permanente, decidindo os rumos da criação e a manutenção da equipe. Os atores do grupo são autogestores Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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U rdimento e se apropriam de diferentes funções de uma produção cênica. Essa condição instrumentaliza o ator e amplia as possibilidades de criação do ato cênico. Dessa forma o atuador não encerra uma única função na criação, mas aprende a manusear outras linguagens que auxiliam na criação do espetáculo, em sua totalidade. A perspectiva colaborativa se realiza internamente, distribuída entre seus integrantes durante a criação artística. Encontramos ainda, segundo Fischer (2003), durante o processo colaborativo atores que não são simplesmente executores de uma função, mas tornam-se os centros da obra artística. Sem suas intervenções autorais a dramaturgia e a direção têm dimensões criativas diminuídas, pois cabe a cada ator fornecer subsídios inventivos. Neles se concentram os parâmetros da encenação, pois é cada ator quem alimenta, contrapõe e estabelece negociações com a equipe criadora. Em muitas produções do teatro de grupo existe uma ênfase nas criações que articulam processos coletivistas e isso reafirma a própria noção de grupalidade buscando um outro diálogo com o conjunto da criação teatral e desfaz as fronteiras que a rigidez das funções criativas estabeleceu no teatro. O processo colaborativo foi a forma escolhida pela Srª IDK para a construção da montagem aqui analisada. Os alunos do curso de Teatro/ArteEducação da Uniso/Sorocaba foram impactados por essa forma de trabalho. Em muitos momentos nos protocolos apresentados por eles surgiram, dentre outras dúvidas, questionamentos em relação: à liberdade em demasia, à relação com o outro, à direção do espetáculo, às personagens. Mas o que nos interessa aqui é como esse processo influencia a formação do professorartísta. Então, analisaremos os escritos dos alunos encontrados nos protocolos na busca do Cuidado de Si e do Outro no processo colaborativo e da sua contribuição na formação da estética da existência do professor-artísta. Para isso compreenderemos com Foucault a escrita de si presente nos protocolos.

A Escrita de Si Foucault (2004), realiza um estudo sobre a estética da existência na cultura greco-romana e compreende que a escrita, naquela cultura, era entendida como uma técnica de si num treino de si mesmo. O pensador compreende esse treino como um adestramento necessário que permite o viver. Afirma ainda, ser é importante adestrar o pensamento e a escrita seria uma forma de produzir tal adestramento. Segundo Plutarco, o uso da escrita no treinamento de si serve como uma forma de transportar a verdade em éthos. A escrita de si acontece através dos hypomnêmatas, que segundo o pensador são: Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento cadernetas individuais de anotações que guardam fragmentos de coisas lidas, ouvidas ou pensadas permitindo uma releitura posterior e uma reflexão consigo mesmo ou com outros, e conseqüentemente o estabelecimento de uma relação de si consigo mesmo tão adequada e perfeita que proporciona a constituição de si mesmo.(FOUCAULT, 2004: 147) O papel dessa escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um corpo que transforma a coisa vista ou ouvida “em força e em sangue” e torna o próprio escritor um princípio de ação racional. Nos hypomnêmata, a escrita é um trabalho sobre si mesmo que permitem, a um só tempo, atividades de um cuidado de si, mas também de um cuidado do outro, pois a escrita será lida ou ouvida pelo outro e atuará sobre a sua constituição. Os hypomnêmatas podem ser relacionados aos protocolos utilizados por Bertold Brecht que funcionava como um “contínuo” na avaliação cotidiana do seu trabalho desenvolvido durante o processo teatral. Para Koudela o protocolo que é uma reflexão sobre a aula anterior, faz um registro do processo e guarda um importante material de documentação. Pode funcionar, ainda, como um registro das ações que serve de apoio na condução de uma prática educativa menos severa. É, portanto, um colaborador para que se tenha noção de continuidade do processo realizado, que tem como única regra a fidelidade aos acontecimentos. Seu objetivo é tornar presente o encontro anterior motivando esclarecimentos, desfazendo dúvidas ou possíveis mal-entendidos. Sobretudo, o protocolo promove a dialética como método de pensamento (BOY, 2007). Assim, neste estudo, a compreensão do processo de formação do professor-artísta do curso de Teatro/Arte-Educação realizou-se através da análise dos protocolos entregue pelos alunos contendo uma escrita de si, relacionadas aqui aos hypomnêmatas, por ser uma escrita elaborada a partir da reflexão sobre o processo de criação e apresentação do espetáculo teatral. Para isso, analisaremos os protocolos valendo-nos das dimensões das Tecnologias do Eu teorizadas por Foucault (1991).

Tecnologias do Eu Veiga-Neto (2005), ressalta que no estudo do sujeito moderno, Foucault descreve um conjunto de quatro tipos de Tecnologias de Si que mostra como o indivíduo age sobre si mesmo. Estudaremos aqui as Tecnologias do Eu, que segundo Gallo (2006), permite uma espécie de trabalho de si sobre si mesmo, e ele identifica como Ética. As Tecnologias do Eu permitem aos indivíduos operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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U rdimento uma transformação de si mesmos, com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade. É o pesquisador espanhol Jorge Larrosa (2000) que relaciona as Tecnologias do Eu teorizadas por Foucault à Educação, onde há cinco dimensões descritas: a ótica, a discursiva, a narrativa, a jurídica e a prática. É importante destacar que as dimensões das Tecnologias do Eu funcionam em conjunto, estão sempre relacionadas entre si Primeiramente temos a dimensão ótica (ver-se) que determina e constitui o que é visível dentro do sujeito para si mesmo. Larrosa (2000) afirma que a visibilidade é qualquer forma de sensibilidade ou dispositivo de percepção que permite ao indivíduo voltar o olhar para dentro de si. A segunda é a dimensão discursiva (expressar-se) onde se estabelece e se constitui aquilo que o sujeito pode e deve dizer acerca de si mesmo. Para Larrosa (2000), na expressão, a linguagem exterioriza o interior, pois é a linguagem que mostra aos outros, o que já se faz presente para a própria pessoa, sendo uma mediação entre estados internos de consciência (sensações, sentimentos, imagens, etc) e o mundo exterior. Já na dimensão narrativa (narrar-se) o sujeito se coloca dentro da história, como está implícito na trama, como se percebe como personagem de sua própria história. Segundo Larrosa (2000), as máquinas óticas e as discursivas determinam aquilo que a pessoa pode ver em si mesma, e ao narrarse o indivíduo traça seus limites e contornos, construindo uma articulação temporal de sua identidade pessoal. Na dimensão jurídica (julgar-se) o sujeito deve julgar a si mesmo segundo uma trama de normas e valores. Para Larrosa (2000), o ver-se, o expressar-se e o narrar-se num domínio constituído por leis e normas de comportamento que tem relação com o dever entram no domínio moral e constituem-se como atos jurídicos da consciência. O juízo é a dimensão privilegiada nos dispositivos pedagógicos de reflexão, pois o julgar-se é que permite o dizer-se e o ver-se. Finalmente é a dimensão prática (dominar-se) que revela o que o sujeito pode e deve fazer consigo mesmo. Larrosa (2000) analisa que a experiência de si, na dimensão do dominar-se é o produto das ações que o indivíduo efetua sobre si mesmo com vistas à sua transformação. A própria pessoa não se vê sem ser ao mesmo tempo vista, não se diz sem ser dita, não se julga sem ser julgada, e não se domina sem ser dominada. A pessoa é o modo como se relaciona com seu duplo, e essa experiência que ocorre entre o “eu” e o seu “duplo” é o que constitui e transforma a ambos. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Destacaremos, agora, apenas alguns trechos dos protocolos dos alunos colhidos durante o processo de montagem do espetáculo.

Trechos dos protocolos Tânia Mara: “...a nossa montagem, digo nossa, pois é fruto de estudos coletivos...” Eloisa: “... essa experiência me agoniou muito... mas aprendi a tentar conduzir menos a obra teatral e deixar que ela me conduza...” Ulisses: “...durante o processo de criação tivemos de colocar nossos pensamentos em prática... achava que não sairia nada... mas tudo foi tomando forma... percebi que havia aprendido muito durante a criação e construção da peça...” Maria Aparecida: “... as performances da enguia e do cavalo-marinho surgiram na improvisação, assim como no grupo dos mariscos, sardinhas e peixes-voadores... a cada dia ensaiávamos de um jeito, aquilo nos deixava irritados, pois estávamos acostumados a ter uma idéia e ir com ela até o fim... nas cenas do Brecht... levei uma proposta para o grupo e todos acolheram foi muito legal... essa experiência vou levar para o resto da minha vida.” Rogéria: “ ... somos acostumados a ser mandados... mas dessa vez foi diferente, fazíamos o que nós achávamos que cabia na peça...” Adriana: “... o processo foi colaborativo, cada pessoa do grupo contribuía para a construção da cena, às vezes era difícil abrir mão da sua idéia para que a do outro prevalecesse. Eu acredito que a maior dificuldade dos grupos tenha sido a tão sonhada “autonomia”, no começo foi estranho romper com os papéis já estabelecidos de professor e aluno, ou de diretor e ator, a proposta era que nós seríamos co-produtores, a responsabilidade do sucesso ou do fracasso era de todos. O processo de construção teatral pelo qual passei está impresso em mim.” Aparecida: “... não é fácil produzir uma montagem com tantas pessoas diferentes... foi uma aprendizagem de trabalho em grupo onde se deve saber lidar com as diferenças e respeitar o limite do próximo.” Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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U rdimento Regiane: “... oito pessoas com personalidades diferentes se contrariando e tentando chegar a um senso comum, no jogo conseguimos um equilíbrio, uma harmonia, quebrando as barreiras... fomos nos unindo e fortalecendo a criação e as idéias nascidas... eram incorporadas a cena.” Rosicler: “... tudo como uma brincadeira, uma descontração, e a improvisação e a criatividade iam brotando de uma forma espantosa, natural, quando vimos brincávamos em duplas... a brincadeira se incorporou à peça... o excesso de liberdade chega a dar medo, posso criar os movimentos de meu personagem, as falas, conhecer seus limites e também rompê-los, não existe certo ou errado, existe apenas a busca, e a cena muda, evolui.” Ana Caroline: “... essa montagem era semelhante a um quebra-cabeça, achando uma peça aqui, outra ali... o que parecia estranho foi uma ótima experiência...” Débora: “... durante o processo pude perceber que o grupo não tinha os mesmo interesses... surgiram conflitos e dificuldades... mas com o tempo através dos jogos o grupo foi construindo um pensamento parecido... esta experiência construída com jogos, em processo colaborativo e em espaços alternativos me mostrou que é possível construir com alunos espetáculos com qualidade e com materiais acessíveis: a espontaneidade e a criatividade de cada um.” Evandro: “... um momento difícil para mim foi a torção do meu joelho... mas não esqueço do apoio dos meus amigos e a compreensão da professora que me disse para não forçar... mas eu sentia a necessidade de estar com eles.” Juliana: “... um processo diferente.. .participando, sentindo, deixando algo se tornar orgânico... sairemos do curso como: educadores, sabendo que um grande espetáculo necessita de um grande processo colaborativo... não devemos tratar nossos alunos como robô, decora o texto e representa.” Agora, utilizando as Tecnologias do Eu analisaremos a escrita de si presente nos protocolos dos alunos na constituição de si como professorartísta a partir a experiência do processo colaborativo. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Análise dos protocolos Valendo-se da dimensão ótica das Tecnologias do Eu, os alunos construindo a escrita de si mesmos voltam o olhar para dentro de si e a partir da dimensão narrativa, na qual no exercício de escritura dos protocolos narram a si mesmos, percebem as mudanças ocorridas no transcurso das atividades experimentadas no jogo teatral. A aluna Maria Aparecida compreende que as proposições ativas feitas por ela ao grupo promoveram, na constituição de si mesma, uma experiência profunda e inovadora durante o processo da montagem. Maria Aparecida julga suas ações no embate social com os outros elementos do grupo e num Cuidado de Si avalia o seu papel dentro do grupo social. Essa experiência vivida no processo colaborativo do fazer teatral permitiu a ela uma constituição diferenciada de si no seu processo de formação como professor-artísta. Priorizando as dimensões jurídica e narrativa das Tecnologias do Eu, a aluna Adriana avalia as ações vividas no tempo decorrido. Adriana mostra compreender a importância da experiência do processo colaborativo na montagem e como isso afetou a sua formação. Ela teve a oportunidade de vivenciar uma outra forma de trabalho na cena teatral, uma experiência de consideração ao outro e não de governamentalidade do outro. Adriana num Cuidado de Si e do Outro abre mão de suas próprias idéias em benefício do grupo transformando a constituição de si mesma. Também ressaltando as dimensões jurídica e narrativa, a aluna Aparecida avalia o aprendizado vivido durante o processo colaborativo na montagem do espetáculo. Numa situação onde não as regras, mas sim apenas considerações úteis estabeleciam os limites, que podia ou não ser seguida pelos indivíduos do grupo, a aluna percebe que a convivência com o outro foi uma experiência fundamental na formação de cada pessoa. A aluna Regiane, privilegiando as dimensões prática e narrativa, esclarece o trabalho executado por cada indivíduo no processo de criação do espetáculo. No jogo teatral as proposições ativas dos atores no trabalho colaborativo promoveram um movimento de confronto com o outro. Nesse confronto, ora cedendo ora propondo, cada um se constitui a si mesmo de forma diferenciada. Utilizando-se, destacadamente, das dimensões narrativa e discursiva, a aluna Rosicler percebe como o jogo teatral presente no trabalho de criação do espetáculo permitiu o desenvolvimento do processo colaborativo de uma forma ativa para todos os atores. Servindo-se da dimensão ótica e jurídica julga os limites de si mesmo. A aluna percebe as muitas possibilidades na liberdade da criação artística. Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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U rdimento Na prática da dimensão narrativa, a aluna Débora analisa a sua transformação no decorrer da montagem e a sua formação como futura professora no processo de criação do espetáculo. Percebe a importância da experiência na constituição de si mesma. A experiência do processo colaborativo guiado pelo jogo teatral possibilitou uma mudança na visão da aluna sobre o trabalho educacional.

Conclusão Ao final deste trabalho, que pretendia se aproximar da compreensão das implicações do processo colaborativo na formação do professor-artísta, verificamos que a contribuição da experiência vivida na conclusão do curso Teatro/ArteEducação está presente na escrita de si exercitada nos protocolos dos alunos participantes do espetáculo “Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos”. Como vimos com Judith Revel, vivemos atualmente numa sociedade que compreende o Cuidado de Si e do Outro como controle, repressão e não como prática de liberdade, onde uns deveriam se fazer livres e propiciar a liberdade aos outros. Nossas instituições escolares, como participantes dessa sociedade, promovem experiências de si vividas na sujeição, pois criam regras e identidades que impedem uma relação consigo mesmo. Durante a formação do professor-artísta, a experiência do processo colaborativo vivido na montagem, nem sempre apresentou uma relação com o outro determinada pela regra. Muitas vezes, foram apenas considerações que se estabeleceram no grupo em relação ao outro. No processo de montagem apareceram situações como: apesar do seu direito não faltar às aulas, abrir mão das próprias idéias, não ter um caminho determinado, participar de todas as etapas da criação da cena. Estas foram algumas das experiências que puderam promover uma constituição desviante na elaboração de si desse futuro professor. Vimos que no processo colaborativo a exigência é maior sobre o campo de atividade do ator, pois tornam plurais suas atividades e desempenho, exigindo do ator uma formação mais apurada, completa e receptiva ao novo. Cada aluno é chamado a ser um participante ativo no processo de constituição de si mesmo como professor e artista. Assim, numa proliferação de vozes autorais, cada um, encontra e constrói a escrita de si com o seu estilo na sua estética da existência. O que nos lembra Deleuze (1991), quando afirma que estilo é a invenção de uma possibilidade de vida, de uma existência. Ainda para o pensador, não deve existir fronteira entre vida e arte, pois a vida é uma obra de arte e considerá-la assim permite que o pensamento-artista crie novas maneiras estéticas e éticas de viver a vida. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Então, o nosso desafio na educação hoje, é pensar uma construção autônoma de si. Especificamente a construção do educador, pois como afirma Gallo (2006), este precisa adestrar-se a si mesmo, construir-se como educador, para que possa educar, preparar ao outro para que adestre-se a si mesmo. Apenas se emancipando, exercitando a si mesmo, o educador poderá estar apto para um processo de subjetivação que insista em que cada um eduque-se a si mesmo. O jogo da construção da liberdade só pode ser jogado como um jogo coletivo de mútuas interações e relações, em que o Cuidado de Si e do Outro seja a base recíproca de uma ação ética, pois as ações de uns implicam em ações de outros. Um jogo em que uns se fazem livres aprendendo da liberdade dos outros, em que uns se fazem livres na medida em que ensinam a liberdade aos outros. O homem livre exercendo a moderação, para Ortega (1999), não corresponde a submissão a uma lei, nem a um código que se tenta definir, mas a procura de um estilo, de uma estilização do comportamento configurado segundo os critérios de uma estética da existência. A moderação deve ser uma questão de escolha, de estilo, de atitude. Essa escolha do indivíduo é, segundo Palma (2006), onde a arte transborda do mundo dos objetos para inscrever-se dentro da esfera vital. Onde a ética e a estética se unem para que se reinventem esses indivíduos, onde o sensível tenha sentido e lógica própria, e como diria Artaud, tenha “pele eriçada”. A estética da existência deve ter na atualidade a forma que não permanece no nível individual do homem dominante de si representativo na Antiguidade, mas aponta para uma subjetivação coletiva, para uma forma de vida ou para, nas palavras de Deleuze, um devir minoritário, que encontra sua expressão na amizade. Assim, nosso modelo educacional e suas instituições modernas que foram construídos como espaços de subjetivação pela sujeição, só podem se transformar, segundo Gallo (2006), através de práticas desviantes. É então em práticas diferentes das experiências de liberdade do cotidiano da escola, é inventando uma prática educativa que toma como princípio ético a estetização da existência, que reside a possibilidade de resistência e criação. Então, longe de estar submisso a teorias, sistemas, técnicas ou leis, como afirma Spolin (2003), que o ator, e aqui também o professor-artísta, passa a ser artesão de sua própria educação, aquele que se produz livremente a si mesmo. A vivência experimentada em seu processo de formação pode proporcionar ao futuro professor a sua emancipação e a elaboração da escrita de si dentro do seu estilo e de sua própria estética da existência. Estética da existência na formação do professor-artista. Tânia Boy.

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AS APARÊNCIAS MUTANTES DE UM CORPO QUE SE DESNUDA Vera Collaço1

Resumo

Abstract

Pretendo nesse artigo apontar para uma análise das significações que o corpo feminino adquiriu ou foi adquirindo no Teatro de Revista brasileiro no final do século XIX, quando este gênero consegue firmar-se em nosso teatro, até sua desintegração, enquanto gênero específico, no final da década de 1960; e através deste percurso, analisar a participação do corpo feminino revisteiro como definidor do sujeito, da sua história, como construtor de identidades sociais

This article draws on the analysis of the female body meanings as acquired throughout the development of the Brazilian “Teatro de Revista” at the end of XIX century. This theatre form have gradually disappeared since the 60s. To analyse the female body in its remaining documentation will allow for identifying its subject and history as a social identity construction.

Palavras-chave: feminino, revista, corpo.

Keywords: feminin, review, body. Professora efetiva do Centro de Artes/ Universidade do Estado de Santa Catarina, com atividades no Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) e na graduação em teatro; Doutora em História Cultural. Desde 2005 vem pesquisando sobre o Teatro de Revista em Santa Catarina e no Brasil, sendo que este artigo resulta do trabalho desenvolvido nesta pesquisa. 1

Ao partir do pressuposto, tal como colocado por Ana Cláudia de Oliveira e Káthia Castilho (2008:7), de que “o corpo se altera em forma e sentidos ao longo da história e varia também de acordo com a cultura na qual se insere”, percebemos que até o final do século XIX, no mundo ocidental, ao corpo era atribuído um papel secundário, contudo, como bem observa JeanJacques Courtine (2006:7), na “virada do século, [...], a relação entre o sujeito e o seu corpo começou a ser definida em outros termos”. Nesta etapa rompese a linha limite entre corpo e espírito e com isso o século XX, ainda com as palavras de Courtine (2006:7), “restaurou e aprofundou a questão da carne, isto é, do corpo animado”. Coube, portanto, ao século XX a invenção teórica do corpo. Corpo este que passou a ligar-se ao inconsciente, e foi amarrado ao sujeito e inserido nas formas sociais da cultura. Esse século conheceu, pela primeira vez na história, uma superexposição obsessiva do corpo íntimo e sexuado. Assim, viu-se afrouxar Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento as “coerções e disciplinas herdadas do passado”, bem como o fortalecimento e a “legitimidade outorgada ao prazer”, sem que com isso, evidentemente, tenham desaparecido por completo as tensões “entre desejos do corpo sexuado e normas de controle social”, especialmente na primeira metade do século XX. Ao partir da compreensão do acima exposto, das transformações perceptíveis do corpo, pretendo nesse artigo apontar para uma análise das significações que este corpo adquiriu ou foi adquirindo no Teatro de Revista brasileiro desde o final do século XIX, quando este gênero consegue firmarse em nosso teatro, até sua desintegração, enquanto gênero específico, no final da década de 1960; e através deste percurso, analisar a participação do corpo feminino revisteiro como definidor do sujeito, da sua história, como construtor de identidades sociais. Para tanto, o recorte estabelecido neste trabalho diz respeito ao corpo feminino. E ao corpo feminino no Teatro de Revista brasileiro. E do corpo feminino, deste teatro, focalizo minha atenção apenas no corpo das vedetes e das girls, ou coristas como eram denominadas estas dançarinas até a década de 1920. No momento atual da pesquisa, que resulta neste artigo, pretendo interligar este corpo feminino revisteiro com o “recuo do pudor” - expressão cunhada por Anne-Marie Sohn (2006:109) -, ou seja, abordar como o afrouxamento das coerções e o fortalecimento da visibilidade, exposição e do prazer proporcionado pelo corpo sexuado e sensual, foram apropriadas e re-trabalhadas no palco revisteiro através das suas vedetes e girls. E com isso entender o espanto e censura, pela ruptura das normas, o desejo e o maravilhoso, pela exposição do corpo feminino, e por fim, a coisificação, com um corpo explorado apenas como produto barato, tal como é perceptível na história deste gênero teatral no Brasil. Tenho, neste caso, por hipótese que estas mulheres, as vedetes e as girls, podem ser pensadas como o elemento visível destas transformações, ou seja, há uma relação de co-dependência entre corpo e ambiente. E, desta forma, quando o corpo muda, dizia Walter Benjamin (apud KATZ, 2008:69), tudo já foi transformado. E, como conseqüência, as reações ao desnudamento do corpo das vedetes e girls, a apropriação, por parte destas artistas, de seu próprio corpo para o prazer e a sensualidade, servia de reverberação máxima ao que se percebia no corpo social. Assim, neste artigo apresento as interligações deste corpo revisteiro feminino com a construção do corpo feminino que se espraiava no social, desde o final do século XIX e ao longo de todo o século XX. Observo, inicialmente, que o Teatro de Revista enquanto espetáculo ligeiro, que mistura prosa e verso, música e dança, têm por proposição colocar no palco os fatos da atualidade através do uso da paródia, da zombaria, do burlesco, do sensual e do sexual não As aparências mutantes de um corpo que se desnuda. Vera Collaço.

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U rdimento explicitado, mas insinuado através de duplo sentido, do jogo, da teatralidade. Chamo a atenção que para este gênero teatral é, ou era, fundamental o diálogo com o momento presente, este “presentismo”, que quase pode ser definido como o elemento central da estética revisteira, é, ou era, o ingrediente significativo para a compreensão de algumas de suas convenções, seja nas caricaturas vivas, nas paródias, nas críticas sutis ou explicitas, colocadas no palco, e capazes de provocar imediatas conexões com sua platéia. Nesta perspectiva, de trazer para o palco os fatos significativos do contexto imediato, se encontra um dos elementos vitais e fundamental da estabelecida cumplicidade entre palcoplatéia tão perceptível nas narrativas dos partícipes, na sua dramaturgia e mesmo nas fotografias e caricaturas desta prática teatral. Na sua própria definição tal como apresenta Neyde Veneziano (2006:34) destaca-se esta percepção do presente: a revista é “uma resenha dos acontecimentos, passando em revista os fatos da atualidade”. Salvyano (1991:6) explicita ainda mais a ligação com o presente ao definir a Revista como um gênero que tem por função “comentar a realidade cotidiana – com acompanhamento musical”. Na própria denominação do gênero Revista, Re-Vista, está explicito o seu objeto temático, ou seja, passar a vista sobre algo acontecido ou que está acontecendo, rever ou ver novamente. O acontecido se referia sempre ao ano anterior, eram as chamadas Revistas de Ano. Revista de Ano foi à primeira formatação deste gênero teatral, originário da França na segunda metade do século XIX, e que teve sua primeira versão no Brasil em 1859 com As Surpresas do Sr. José da Piedade, de Justino de Figueiredo Novais. Este gênero somente firma-se no Brasil a partir da estréia de O Mandarim, em 1884, que passava em revista o ano de 1883, de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio. A partir da década de 1920 este tipo – Revista de Ano - entra em desuso e passamos a encontrar na denominada Revista Clássica, cuja base é a referencialidade ao presente imediato, ou seja, ao cotidiano que cerca as pessoas na sua atualidade. É no presentismo, na referencialidade ao seu contexto imediato que está à riqueza e a dificuldade para entendermos este gênero teatral na nossa atualidade. Na leitura contemporânea do texto revisteiro perde-se muito do referencial e das sutilezas, às vezes nem tão sutis para sua época, paródicas e caricaturais. Mas, mesmo com estas barreiras, estamos diante de um gênero teatral que permite uma leitura, ou re-leitura, do passado como talvez nenhum outro o possibilite. Flora Süssekind (1986) chega a denominar as Revistas, no seu caso as Revistas de Ano, e que eu me aproprio e o estendo a todo este gênero, como mapas, painéis, panoramas. Mapas é uma imagem do significado da Revista importante para meu raciocínio, pois faz com que a Revista aponte caminhos que estão sendo construídos simultaneamente no social e no palco. Só que no palco estamos no reino da ficção, mas as atrizes, as vedetes e as girls, são pessoas Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento de carne e osso, ou seja, possuem corpo, e, conseqüentemente, estão sujeitas a coerções e a desejos de adequar-se aos novos tempos. Estas personagens apresentam ou representam não apenas seus próprios desejos de adequar-se à modernidade de seu tempo, mas também devem ser passíveis de serem lidas, pelo seu espectador, como um referencial de modernidade dos novos tempos. Elas fazem avançar a fronteira do pudor mais rapidamente do que no social, expõem-se mais à visibilidade, permitem-se mais intensamente a exposição do prazer de possuir corpos bem delineados e submetê-los a apreciação do outro. Para atender ao objeto aqui proposto, analiso o corpo no Teatro de Revista brasileiro em três momentos de sua trajetória, correspondentes aos processos sociais e culturais de transformações nas relações do individuo e do coletivo com o corpo, que abaixo procuro detalhar e fazer as devidas inter-relações.

Um corpo na aparência vestido Em concordância com as palavras de Oliveira (2008:93) entendemos que: A roupa não veste um suporte vazio, o corpo. Ao contrário, sendo carregado de sentido na sua malha de orientações, este interage com as direções, formas, cores, cinetismo e materialidades da roupa e atua de variados modos nas suas configurações, tomadas de posições e de movimentação. O corpo, aparentemente super-vestido, ou seja, um corpo coberto pela roupa, corpo que pouco expõe a pele, a dita “nudez corporal”, domina o período denominado de Revista de Ano, na qual o trocadilho e a possível alusão ao sensual e sexual estava colocado na palavra e não no gesto, portanto, não estava no corpo, e muito menos no corpo feminino. Neste período, que pode ser compreendido entre 1884, esmaecendo a partir de 1910 e findo na década de 1920, deve-se ressaltar que a força do palco estava centrada na figura masculina, especialmente nos atores cômicos. Podemos afirmar que a vedete da Revista de Ano era o comediante. A força do espetáculo estava centrada no texto e na suas possibilidades de provocar o riso por meio da performance cômica dos atores. No palco, quem dava vida e consistência aos tipos esquemáticos da revista, bem como aos da opereta e da mágica, eram os atores cômicos, especialistas da comunicação imediata com a platéia. Cantavam com a pouca voz que tinham, sem aperfeiçoamento musical, mas sabiam extrair do texto a salacidade, o duplo sentido sexual que os autores haviam disseminado no texto, para que explodissem na hora certa em cena, graças aos olhares maliciosos, aos gestos e inflexões equívocos dos interpretes. Nada era dito com todas as letras, tudo ficava subtendido (PRADO, 1999:167). As aparências mutantes de um corpo que se desnuda. Vera Collaço.

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U rdimento Nesta fase revisteira o corpo das mulheres, ainda que considerado exposto para o período, estava bastante protegido. As girls, que ainda se denominavam de coristas, usavam meias grossas, na cor da pele. Os decotes eram discretos, e as vedetes usavam poucos adornos chamativos e menos ainda apelativos ou de duplo sentido. Assim, com as palavras de Oliveira (2008:93), percebemos que “o corpo vestido mostra os modos de o sujeito estar no mundo, a sua presença”, referenciando “as aparências do sujeito e algo de sua essência, o corpo vestido dá a ver”. Portanto, essas vedetes e girls, mesmo com um complemento protegendo seu corpo, estavam sujeitas a uma leitura de desnudamento por parte de seu potencial espectador, que ampliava seu despir-se restrito aos braços e tornozelos, e a um pequeno decote. Embora transgressora para os moralistas de plantão, mais pela palavra do que pela cena, esta revista margeava os limites da moral vigente. As danças desenvolvidas nesta fase da Revista eram improvisadas e dependiam mais da indumentária, com algum apelo visual, do que da uniformidade do conjunto das coristas e dançarinas. Ou como bem o coloca Salvyano Paiva: No século e início do século XX as fotografias nos mostram “coristas gorduchinhas e desengonçadas”. O trabalho de coristas “dependia da indumentária farfalhante” e se caracterizava pela “inexistência de um padrão de uniformidade. [...] Até porque a coreografia era, como tudo o mais, improvisada. Raras vezes as marcações dançantes constituíam parte integrante da ação dos esquetes da peça; ao invés, serviam mais de introdução ou conclusão, ou apenas ensemble para o desempenho de astros e estrelas”. (PAIVA,1999: 21) O corpo, fosse da “estrela” ou das “coristas”- “girls”, estava protegido por “fantasias” que não expunham o corpo no seu todo, mas estas roupas eram construtoras de outras fantasias, vestido ou com pequenas partes despidas, este corpo estimulava um ir além do limite estabelecido no social. Estas mulheres possuíam um corpo de acordo com o tempo em que estavam inseridas, por isso serem “gorduchinhas”, era um corpo no qual a magreza extrema passava longe de uma estética de beleza. E a visão de um corpo totalmente despido podia despertar mais anseios do que prazer. Assim, amostras de partes desnudas do corpo, um avanço enorme para o período, poderia estimular e despertar desejos ocultos, e conter a possibilidade de despi-los mentalmente no limite privado de um quarto ou outro espaço mais íntimo do individuo, onde a censura e a castração momentaneamente fossem banidos. Por isso, podemos dizer que temos no período da Revista de Ano um corpo na aparência vestido, mas que se despe, ou que pode ser despido pelo imaginário do potencial espectador, devido aos indícios de desnudamento corporal e gestual das atrizes. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento O corpo na aparência despido De acordo com Anne-Marie Sohn (2006:110) “o recuo do pudor”, esboçado desde a Bella Époque, “vai se acelerando no período entre-guerras e se difunde durante os Trinta Gloriosos”. Neste período temos o início da virada no Teatro de Revista. Na primeira década do século XX a Revista de Ano começa a ser substituída pela Revista, depois denominada de Revista Clássica. Com isso vai se abandonando o tênue fio de enredo, e a música e a dança ganham mais espaço, e conseqüentemente o corpo avança e domina a cena. Ainda com as palavras de Anne-Marie Sohn (2006:132) observa-se que “durante séculos a sexualidade foi mantida sob silencio ou despachada para o registro de coisas ‘sujas’ e pecaminosas”. Era preciso, portanto, retirar a sexualidade do silencio e da vergonha. Legitimar o prazer. E conseqüentemente deveria ocorrer a dessacralização do corpo feminino. E mais uma vez, me parece, a revista apresenta com antecipação este novo corpo feminino, que começa a aparecer com sua veste original, qual seja, a pele que reveste o corpo, a sua primeira vestimenta. Como afirma Délson Antunes (2002:49) na década de 1920 “o teatro ligeiro embarcava na folia. Consolidava-se definitivamente o grande período das revistas-carnavalescas, que impulsionou a popularidade do gênero”. O predomínio carnavalesco não implicava somente o voltar-se para as musicas e marchas destinadas a folia do carnaval. Implicava, também, e isso é muito significativo, uma nova relação com o corpo, com este corpo que dançaria de forma diferenciada, com cadência e um acento todo particular das “cadeiras”, no rebolado feminino. O corpo feminino que dança não se faz mais de improviso. As coristas, após 1920, passam a ter apoio de coreógrafos profissionais, entram em contato com o balé clássico e com as danças modernas. E, no corpo de baile, havia bailarinos franceses, poloneses, portugueses, argentinos. Todos trabalhando sob rígida disciplina, típica construção do pensamento moderno, que visa modelar, disciplinar tudo o que se refere ao corpo social, inclusive o corpo individual. Duas companhias estrangeiras em tournée pelo Brasil foram significativas para alavancar o “recuo do pudor” na cena revisteira. Em 1922 esteve no Brasil a Companhia de Revista Ba-Ta-Clan, de Madame Rasimi (França), e em 1923 veio a Companhia Velasco, companhia espanhol de Teatro de Revista. Estas duas companhias mostraram aos produtores cariocas “a valorização da participação feminina nos espetáculos. As atrizes ganhavam terreno, com os seus nomes despontando nos cartazes como os primeiros nomes das companhias” (ANTUNES, 2002:54). Mas o avanço foi além: As aparências mutantes de um corpo que se desnuda. Vera Collaço.

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U rdimento Entre as novidades importadas, adotou-se a suspensão das meias grossas que cobriam as pernas das coristas, abrindo caminho para o “nu artístico”. O apelo erótico mais explícito ganhou força nos espetáculos. A nudez de seios e braços das francesas empolgou as platéias e logo foi copiado pelas artistas locais. (ANTUNES, 2002:54) O palco começava a explorar o banho de mar, os maios, e como observa Salvyano Paiva (1999:212) “o corpo feminino começava a ser tratado como objeto estético digno de observação e não mais como santuário indevassável de virtudes vitorianas e de hipocrisia”. A partir da década de 1930 a praia transforma-se em lugar de ócio e de lazer, e “convida a expor o corpo desnudo para apresentar um bronzeado perfeito, símbolo agora de boas férias” (SOHN, 2006:110-111). A revista também explora em seus quadros a sensualidade corporal exposta nas areias das praias cariocas. Contudo, a exposição corporal tem seu preço, as “gorduchinhas e desengonçadas” coritas das décadas anteriores não tinham mais condição de ocupar a cena revisteira, a não ser em papéis cômicos e caricaturais. Começava a era das vedetes, como Otília Amorim, Margarida Max, Aracy Cortes, e girls com corpos trabalhados através da dança, corpos que deviam provocar desejo e dar prazer à platéia na sua visibilidade. É nos anos 1930 que a sexualidade não é mais somente sugerida, mas apresentada em cena, tanto nos filmes como nos cartazes: sedutoras em combinação e ligas, amantes desfalecidas sobre a cama, beijos cheios de paixão, tudo isso como prova do desejo e do prazer (SOHN, 2006:113). O Teatro de Revista caminha a passos largos para o luxo e a exposição da beleza feminina através de corpos cada vez mais trabalhados e magros. Pois, observa SOHN (2006:111) ao referir-se ao novo corpo em construção na década de 1930, no qual incluímos o corpo da atriz revisteira: “Desde então, com efeito, que homens e mulheres não podem mais trapacear com o corpo, os cânones da beleza física se mostram muito exigentes. A partir da Bella Époque, o modelo do homem e da mulher magros e longilíneos predomina”. Era preciso perder peso: “Leve e solto, diziam os conselhos de beleza; o corpo ganharia em charme, juventude e velocidade. Não demoraria muito para que a gordura se transformasse em sinônimo de lentidão, atraso” (SANT’ANNA, 2008:62). E como coloca Neyde Veneziano (2006:259) a beleza e o luxo implicaram em cenas apoteóticas onde não faltavam cascatas. “Havia cascatas de fumaça, cascatas de espuma, cascatas de água, cascatas de mulheres”. O corpo exposto tinha que ser, portanto, bonito e escultural. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento E, para garantir a exuberância das vedetes, Walter Pinto criou uma escada gigante. Girls e vedetes tinham que chegar ao topo e entrar nela através dos camarins do primeiro andar para descer seus degraus, um a um, sem olhar para o chão. Conta-se que Walter Pinto fazia as coitadas descer, em média, trinta vezes por dia, até que conseguissem fazê-lo com graciosidade e de cabeças erguidas! Condição básica para ser uma vedete. E valia a pena! O publico delirava e a revista ditava moda. A rígida censura do Estado Novo fez a revista investir mais e mais no apelo visual e na beleza dos corpos femininos, realçados pelas luzes, brilhos e lantejoulas. O nu artístico e estático começa a ser permitido. Mas, a força do espetáculo se mantém pelo trabalho artístico das vedetes, das girsl e dos grandes cômicos. Nos palcos de exposição do sujeito, integram a cena não somente os modelos prescritos de corpo mas também os prescritos para a indumentária, e os tipos de articulação, que o sujeito realiza no processamento do corpo vestido, vão talhar a construção de sua aparência, na qual intervêm a sua concepção de mundo, de vida, seus anseios e seus valores (OLIVEIRA, 2008:94). Estas estrelas e girls expressavam, através deste despir-se, um comportamento pela linguagem da não-roupa, dos adereços apelativos, de cores exuberantes, o corpo doava-se por inteiro, numa afronta a um pudor deslocado de uma sociedade despudoradamente carnavalesca, mas cuja permissão para tanto desnudamento ainda estava restrito a algumas esferas do social, especialmente para além da fronteira do real-social, na fronteira do ficcional, e que poderia ser avançada para a realidade, mas com o devido deslocamento da palavra atriz para meretriz.

O corpo nu?! Como observa Sohn (2006:114) “os limiares da tolerância, no entanto, evoluem rapidamente nos anos 1950”. A hipocrisia é deixada de lado. O cinema, as artes imagéticas, a Revista passam a explorar o corpo em toda a sua sexualidade e nudez. No final da década de 1950, expõe Sant’Anna: “a publicidade começou a explorar cenas em que a mulher se abraçava e fechava os olhos, expandia uma gargalhada e se mostrava tomada pela alegria de viver” (2008:81). Este processo de desnudamente, das vedetes e girls no Teatro de Revista, parece coincidir com o princípio de desmoronamento deste gênero teatral no Brasil, pelo menos é o que nos apontam os estudiosos mais empenhados em compreender o significado e importância do Teatro de Revista As aparências mutantes de um corpo que se desnuda. Vera Collaço.

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U rdimento brasileiro. Na década de 1950, diz Antunes (2002:124): “as grandes vedetes se tornavam musas. Na falta de outros atrativos, o espetáculo tomava o caminho da exploração desenfreada da sensualidade feminina” . No princípio os nus, eram feitos quase sempre por “estrangeiras”, ficavam localizados no fundo do palco, no alto, às vezes pendurados. As girls nuas eram vistas de longe, usando apenas um tapa-sexo, e encobertas pela fumaça, pelas plumas e brilhos. Neyde Veneziano (2006:277) observa que: Foi nos anos 1960 que os nus começaram a avançar para o proscênio. Ao mesmo tempo que os corpos despidos investiam, em direção ao show de strip-tease, as mulheres vestidas, na platéia, recuavam. Revista era espetáculo assistido por famílias. Mudou o caráter e mudou, também, o público que a prestigiava. A maioria dos estudiosos deste período aponta para a banalização do corpo e do sexo explicito, dominantes no Teatro de Revista a partir de 1960, como o responsável pelo fim deste gênero no teatro brasileiro. Indo numa espécie de contramão do que vinha ocorrendo no social. Visto que o longo processo de liberação do corpo, especialmente do corpo feminino, “esboçado desde o final do século XIX, mas reivindicado somente nos anos de 1960”, (SOHN, 2002: 132) não parece ser mais compatível com sua exposição na cena revisteira. Isso nos leva a questionar: porque a excessiva exposição do corpo no Teatro de Revista implicaria na sua decadência? Que corpos estavam sendo expostos? O que houve com o espetáculo? E Neyde Veneziano aponta dois responsáveis pelo descaminho do gênero: A primeira invasão foi a de um vírus que veio em série: stripteases teatralizados. Atacaram quase todas as salas que apresentavam teatro de revista. Os strip-teases teatralizados reduziram sensivelmente o espetáculo. O problema é que continuaram a chamar esses gêneros de revistas. Só que já não revia mais nada. A segunda invasão foi a da grosseria, responsável pela desintegração do gênero (no sentido estrutural, mesmo). O palavrão gratuito e o sexo quase explicito tomaram conta desses shows (VENEZIANO, 2006: 278). Segundo a maioria dos estudiosos do Teatro de Revista a partir de 1960, mas desde 1950 já começa a despontar, a revista perdia sua força para a gratuidade da exposição física. O palavrão e a sexualização excessiva não deixou margem para a insinuação e a malícia que eram as características mais tradicionais da revista. Dezembro 2008 - N° 11

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U rdimento Vários ingredientes podem ser responsáveis pelo desaparecimento do Teatro de Revista brasileiro, tais como a rígida censura do Regime Militar, de 1964 a 1985, o cansaço das parcerias jamais renovadas, novos veículos como a televisão que passam a sugar os artistas e a oferecer melhores condições de trabalho, a indigência de textos, etc. Mas, a insistência na questão sexual ronda a maioria dos estudiosos, diz Paiva (1999:632). A vulgaridade e o apelo insistente à pornografia – forma diversionista e reforçadora do obscurantismo, típica da cultura de massa estimulada pelos regimes autoritários -, tudo contribuiu, particularmente depois de 1965, para deformar a revista, hoje relíquia arqueológica ou objeto de lazer passadista. Acredito que todos os ingredientes acima tiveram parcela no abafamento desta linda história que foi o Teatro de Revista brasileiro. Poderíamos acrescentar a questão econômica, produzir Revista é muito caro. Apresentar um espetáculo de revista implica num grande elenco, figurinos em grande quantidade e alguns bastante caros para vestirem os corpos das vedetes; implica, também, em muitos cenários, mesmo que estes sejam telões, há necessidade de efeitos especiais, luzes, etc. Sem contar com uma orquestra ou um conjunto musical de qualidade. Os custos são enormes e difíceis de serem arcados por um público escasso e fugidio, como se tornou o público do teatro brasileiro a partir da década de 1960. Assim, não me parece que foram os corpos nus, a saturação do gênero ou a baixa qualidade dos textos que levaram a falência do Teatro de Revista no Brasil, e sim uma peculiar junção de fatores econômicos e estéticos, tal como a valorização excessiva de uma poética cênica dita moderna, e uma perda substancial do público que freqüentava o teatro. O afastamento deste público, de classe média e baixa, das casas de espetáculos tem a ver com as duas causas acima apontadas – econômica e estética – mas, também, com a remodelação das cidades, a partir da década de 1960, que distanciou estes espaços teatrais em relação à moradia e trabalho deste público. Novos corpos, novos tempos. A vedete e as girls tornaram-se corpos do passado, seus corpos vestidos ou nus foram substituídos seus similares em nossa cotidianidade.

Referências bibliográficas ANTUNES, Delson. Fora do Sério: Um panorama do Teatro de Revista no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 2002. COURTINE, Jean-Jacques. Introdução. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLOI, Georges (direção). História do Corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. As aparências mutantes de um corpo que se desnuda. Vera Collaço.

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U rdimento GREINER, Christine. A Moda como Reinvenção do Corpo, o Corpo como Reinvenção da Moda: Estratégias. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de e CASTILHO, Kathia. Corpo e Moda: por uma compreensão do contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2008. KATZ, Helena. Por uma Teoria Crítica do Corpo. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de e CASTILHO, Kathia. Corpo e Moda: por uma compreensão do contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2008. OLIVEIRA, Ana Cláudia de. Apresentação. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de e CASTILHO, Kathia. Corpo e Moda: por uma compreensão do contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2008. PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Viva o Rebolado: Vida e Morte do Teatro de Revista Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. PRADO, Décio de Almeida. História Concisa do Teatro Brasileiro. São Paulo: Edusp, 1999. SANT’ANNA, Denize Bernuzzi. Consumir é ser Feliz. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de e CASTILHO, Kathia. Corpo e Moda: por uma compreensão do contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2008. SOHN, Anne-Marie. O Corpo Sexuado. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLOI, Georges (direção). História do Corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. SÜSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. VENEZIANO, Neyde. De Penas Para o Ar: Teatro de Revista em São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

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