Eleições nos grotões, Estados Unidos - Brasil

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Quinta-feira, 23 de outubro de 2014

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Eleições nos grotões, Estados Unidos - Brasil

Podemos entender o voto como expressão de uma consciência, seja ela pessimista ou otimista, uma consciência que parte das realidades concretas à sua frente e busca melhorá-las. Consciência essa que, sendo resultado da inevitável luta do dia-a-dia, está sempre aprendendo 23/10/2014 Gregory Duff Morton* de Chicago, Illinois O homem me olhava, cansado mas paciente, enquanto eu implorava: Por favor, vote! Só faltam três horas para as urnas fecharem. Era o 2 de novembro de 2004, e eu estava nos Estados-Unidos, no estado de Ohio, na cidade de Akron, no meio da calçada. Eu não conhecia meu interlocutor. Tratava-se do dia da eleição presidencial nos Estados-Unidos, onde o voto não é obrigatório. Assim, minha tarefa era encorajar, ou até convencer, os indecisos a votar. O homem mostrou-se pessimista. Concordava que George Bush era perigoso, mas duvidava que seu voto, contra ou a favor de Bush, importasse. Eu debatia. O tempo estava frio, a ponto de nevar. Ao nosso redor, espalhavam-se ruas e mais ruas de fábricas abandonadas, casas destruídas, lojas sem ninguém. No século XX Akron tinha sido o centro mundial de produção de pneus para carros. Mas com as mudanças impostas pela globalização à indústria, a cidade foi esvaziada pelo êxodo urbano. Esse homem tinha emprego e não queria perdê-lo. Não sei se vai dar tempo para votar, explicou-me finalmente. Preciso ir para o trabalho e pegar os filhos na escola. Nós depedimos, e fui à procura de outros eleitores no silêncio de uma tarde pós-industrial. Eu tinha viajado a Akron para ajudar nos últimos dias da campanha, junto com uma turma de militantes oriundos das mais variadas tendências: comunistas, anarquistas, sindicalistas, ambientalistas. Não gostávamos do candidato que apoiávamos, John Kerry. Encarávamos a eleição como a maneira mais eficaz de acabar com a guerra no Iraque. O nosso grande inimigo era o desespero. O sistema político no meu país, os Estados-Unidos, não incentiva o ato de votar; a

votação, por exemplo, acontece na terça-feira, num dia de semana que não é feriado. O país, efetivamente, convida o trabalhador a não votar. Quem trabalha para se sustentar precisa de bastante esperança para poder enfrentar os obstáculos práticos e comparecer nas urnas. E a esperança é joia rara: em 2004, apenas 60% dos eleitores votaram. O voto facultativo acaba sendo um presente formidável para a direita norteamericana; os 60% que votam são, em média, mais ricos e mais conservadores do que os 40% que trabalham e pegam seus filhos na escolar ao invés de votar. E esse quadro piorou nos últimos 30 anos. Com o sumiço dos empregos industriais, muitos movimentos sociais ficaram desestruturados, fragilizando a mobilização dos eleitores de esquerda. Como era de se esperar nesse contexto, no dia 2 de novembro de 2004, perdemos a eleição. Acabei dormindo no carro, de tristeza, e no dia seguinte voltei para casa. Lembrei-me do homem de Akron na semana passada, quando li um comentário de Fernando Henrique Cardoso sobre as recentes eleições no Brasil. No entendimento de FHC, o forte desempenho de Dilma entre os eleitores pobres e da zona rural é um sinal de que o PT cresce nos “grotões.” Ele avalia que o partido está “apoiado em setores da sociedade que são, sobretudo, menos informados,” pois existe, na visão dele, “uma coincidência entre os mais pobres e os menos qualificados.” (http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/10/06/fhc-ptcresceu-nos-grotoes-porque-tem-voto-dos-pobres-menos-informados.htm) O discurso do ex-presidente vai além da mera retórica partidária. Faz parte de uma lógica que muito se ouve, uma lógica na qual o grande problema da democracia brasileira seria a “falta de informação” do povo. Esse “povo que não sabe votar,” é claro, é principalmente composto de pessoas pobres, menos urbanas e menos brancas. Com certeza, o homem de Akron seria, para FHC, um dos “menos informados.” Uma outra pessoa que faria parte desse grupo é Dona Silvani, pequena agricultora no sertão baiano, grande amiga minha e grande pensadora, com quem eu morei enquanto estudante de antropologia no Brasil. Quero invocar aqui algumas lições que ela me ensinou. Dona Silvani tem quase 60 anos, mas a idade não impede seu trabalho diário. Ela se levanta antes das seis para assar os famosos biscoitos de mandioca – tão leves como flocos de neve – que ela vende. Ela dorme depois das dez porque precisa dar jantar aos netos e a um vizinho necessitado. Fazem mas de cem anos que sua família mora no mesmo pedacinho de terra seca, longe da água e da cidade, perto dos amigos e dos filhos. Uma vez eu perguntei para Dona Silvani se ela apoiava algum partido. Ela estava no meio de seus afazeres. Sem deixar de mexer com as panelas e o fogão, ela me deu um discurso de meia hora. Gravei suas reflexões.

“Eu apoio o PT pelo seguinte, Duff,” explicou-me. “Que naquela época, que era o PMDB, nós não tinha nada! Nós morava aqui dentro do mato aí, ó. Só tinha as casas, para a gente estar aí.” Na zona rural onde ela morava, o Estado quase não se fazia presente. Não havia professor, policial, militar, nem médico. Ela lembra, “Nasceu e criou sem escola. Nós não tinha aqui—não tinha estrada, não tinha o ônibus. Não tinha nem uma caixa—água nenhuma.” A situação da água era uma complicação diária. “Nós saia daqui para panhar uma carga d’água no Rio Pardo. Era costume chegar meio-dia a água. Nós fazia farofa para comer, que não dava tempo cozinhar arroz e nem feijão.” Dona Silvani indica a data quando começaram as mudanças. Foi com a eleição de um prefeito do PT, nos anos 90. “Depois que o PMDB perdeu, que entrou o PT, foi só melhorando para nós.” Aconteceu aos poucos. Chegou uma estrada de terra: “Pai veio, chegou falando que havia uma máquina abrindo umas estradas aí para nós e tudo. Quando é um dia lá, a gente nem estava esperando, pensei que não, apareceu uma zoada. ‘Que zoada é essa?’ A gente toda besta, não sabia o que é que era nem zoada. Que carro não tinha.” Ela testemunhou a construção. “E aí abriu a estrada. Quando chovia, que o mato crescia, a gente roçava a estrada para não deixar sujar. Porque não tinha carros para poder a estrada viver limpa direto.” Chegou também a educação: primeiro uma professora primária, depois uma escola pequena, e finalmente o transporte escolar, que hoje leva os alunos a um colégio mais distante. “Minhas filhas mesmo já formou,” Dona Silvani diz com orgulho. “Já formou Silvana, Eliana, Adriana.” Duas dessas filhas hoje são professoras. Depois da estrada e da educação, o governo foi ampliando outros serviços básicos. Um dos vizinhos de Dona Silvani foi contratado como agente de saúde. Construiu-se um sistema de caixas para captação de água de chuva. E finalmente, por volta de 2006, chegou a energia elétrica. Dá para perceber que Dona Silvani, que nunca estudou em escola, é longe de ser uma cidadã “menos informada.” Seu apoio ao PT tem fundamento em evidências empíricas e concretas, evidências verificadas ao longo dos anos. É interessante notar que no seu argumento não se destaca o Bolsa Família. Esse “dinheirinho,” segundo ela, “está ajudando,” mas não se resume nele todo o processo de mudança que aconteceu durante a última década. Assim, Dona Silvani desmente a obsessão de certos comentaristas com o suposto poder sedutor do benefício. Dona Silvani não vende seu voto; ela o dá ao partido que mais se importou com a vida dela.

Entretanto, naquele discurso perto do fogão, Dona Silvani explicou-me que o essencial das mudanças não era nem a nova água nem a nova energia, mas sim as novas relações. Por exemplo, no banco: “Antigamente o rico tinha vez. De ir para o banco. Nós nem um banco nós conhecia. Nós pobres. [...] Conheceu o banco depois do PT, que o PT ganhou. Aí já veio uns projetos par fazer empréstimos. [...] Hoje, no banco, qualquer um, nós entra no banco. Resolve alguma coisa no banco. Mas, antigamente? Ô, meu Pai! Eu não conhecia banco. [...] Conhecia banco de sentar. Mas banco, banco de dinheiro, ninguém conhecia. [... ] E aí agora, pode mandar eu ir em qualquer banco da cidade, qualquer lugar que você ia, entrar e sair.” Ou nas urnas. Dona Silvani se lembra das eleições dos velhos tempos: “Eu mesma só votava no PMDB. Votava, não. Torcia, que naquela época não votava. [...] Só votava, assim, aquele pessoal mais velho, que sabia ler [...] Agora hoje você vê aí, no dia de votação, tem carros para panhar todo o mundo, e pobres e ricos votam.” Dona Silvani opina que hoje a postura partidária dos diferentes eleitores explicase sobretudo por meio de fatores econômicos. “O pobre aqui, de primeira, andava era de pé no chão. Os pés viravam casco, que não tinha nem uma sandália para calçar. Tinha duas mudas de roupa.” “Os ricos aqui não apóiam o PT, não. Os ricos aqui— por que é que o PT esta ganhando? Porque é mais pobres do que ricos. Então a pobreza, todo o mundo virou para o lado do PT!” E os ricos, ela observa, não se contentam com essa situação: “Eles não gostam porque antigamente os pobres viviam na mão deles. E hoje é eles que vivem na mão dos pobres.” A questão vai muito além de eleições. São relações diárias que mudaram, relações que expressam toda uma visão do ser humano. “Não tinha opinião de pobre não. Opinião era do rico. [...] Ô Duff, deixa eu te falar aqui uma coisa. [...] Pai fez uma cerca aqui uma época. Aqui era a roça do meu pai, aqui era a roça do meu tio. Meu pai veio com a cerca dele e pegou na roça do meu tio. O que é que aconteceu? As mangas todas cheias de criação. Quando foi no outro dia cedo, que nós chegou na roça, o meu tio tinha ido aqui, nessa cerca do meu pai, e arrancado. Isso que pegou na cerca dele. Ele arrancou e botou no chão. [...] Agora o que é que acontecia? Tem a Justiça hoje para acertar essas coisas, não vê? [...] Meu pai ia atrás de uma pessoa rica. [...] [O rico] buscava um desses genros dele, e aí vinha, chegava lá, onde estava Pai, mais meu

tio, os dois juntos. E eles dois, os ricos, iam, acertavam essa questão [...] O pobre aqui antigamente era por baixo de que todo o mundo.” Para Dona Silvani, o sistema das novas relações tem nome: Direitos. “O problema desses outros partidos aí, que já teve aqui para nós, que não fez nada, é isso mesmo, que eles não, não, não têm direitos para niguém. Só queriam ser para—tirar, né? E hoje tem o direito.” Como foi que chegou a consciência dos direitos? Para Dona Silvani, não foi só um processo partidário. Foi um processo de luta. E é na luta que vemos um outro lado da sua trajetória política, um lado inesperado. Dona Silvani explica que a transformação não começou com o PT: “Eu só votei para – torci pelo PT depois dos sem-terra.” Dona Silvani é dona de terras e sempre foi; há mais de um século, sua família possui o pequeno terreno onde cultiva mandioca e cria gado. Mas, ela era vizinha de grandes latifundiários, os mesmos “ricos” que decidiram o caso do pai e do tio dela. Nos anos 90, o MST organizou ocupações de terra nesses latifúndios. Depois de uma disputa prolongada, fundaram-se vários assentamentos da reforma agrária. No início, Dona Silvani e seus familiares olhavam o MST com raiva e medo. Isso foi mudando passo por passo. “Porque quando veio os sem-terra a gente começou a ver, Duff. O que é que era. Ver—o certo e o errado.” Quando o movimento fazia a festa, convidava os vizinhos. Quando reivindicava que o governo melhorasse os assentamentos – com água, escola, mais estradas – não se esquecia de pedir as mesmas melhoras para os demais pequenos agricultores do local. “Os sem-terra chegou por aí. Logo—o que é que apareceu para nós? Carro. Que nós não tinha. Tinha um carro aqui—de oito em oito, de quinze em quinze. Aí, a pouco, começou a vir essas estradas.” Os pequenos agricultores e os sem-terra acabaram estudando nas mesmas escolas, compartilhando a água do rio, casando uns com outros. Também lutando juntos, pois Dona Silvani e sua família não deixam de comparecer nas mobilizações dos sem-terra, como aliados. Ou seja, a mudança política não chegou até Dona Silvani simplesmente porque o PT buscou intervir na vida dela. Ela mesma se jogou num processo de luta. Suas preferências eleitorais brotam como consequência dessa luta.

“Então por aí a gente foi vendo e já foi mudando. E mudanças, essas, que estão até hoje e acho que não vai sair muito fácil.” No seu discurso, Dona Silvani me ensinou uma lição fundamental sobre a política. Ela pode dar aula também a alguns comentaristas menos informados que moram nos grotões da Copacabana e da Avenida Paulista (mesmo que esses, infelizmente, nunca aprendam o segredo da fabricação de seu delicioso biscoito voador.) Dona Silvani falou de política não como o ato de votar, mas sim como o modo de viver. A votação é a flor que nasce de uma transformação social; a raiz encontra-se nas relações do dia-a-dia. Essas relações podem avançar e, também, retroceder. É justamente isso que separa a neve de Akron e o sol do sertão baiano. Akron hoje é um lugar de movimentos desestruturados e relações interrompidas. Daí o pessimismo que leva à indiferença diante do voto. O sertão passou por um processo no qual os pobres e os ricos mudaram o fundamento de seu vínculo com a sociedade. Obviamente, a mudança não começa nem termina com o PT; é possível acreditar (como eu, aliás, acredito) que o PT hoje vive torturado pelas contradições de sua inserção na economia global. O que não se pode negar é que o cotidiano se transformou. Essa transformação é manifestada nas urnas e vivida toda vez que Dona Silvani vai ao banco. É por isso que a declaração de FHC me parece tão nociva. Nela perverte-se todo um processo histórico. Segundo essa história pervertida, a luta dos menos favorecidos vira o clamor dos menos qualificados, a nova zona rural vira grotões e Dona Silvani e o homem de Akron viram eleitores menos informados, cujos votos se explicam como erros e não como gestos políticos. Por outro lado, podemos entender o voto como expressão de uma consciência, seja ela pessimista ou otimista, uma consciência que parte das realidades concretas à sua frente e busca melhorá-las. Consciência essa que, sendo resultado da inevitável luta do dia-a-dia, está sempre aprendendo. Dona Silvani me falou assim: “A pessoa hoje, o pobre, tem que aprender tudo na vida. Ele tem que enxergar todas as coisas. O que é certo e o que é errado.” Não é só o pobre que precisa aprender. * Gregory Duff Morton é lecturer em Antropologia e Serviço Social na University of Chicago, mestre em Antropologia e mestre em Serviço Social pela University of Chicago, e doutorando em Antropologia e Serviço Social na mesma universidade.

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