ELEMENTOS DO ITINERÁRIO MARIOLÓGICO ANTONIANO: A MARIOLOGIA “EVOCATIVA” DOS SERMÕES DE ANTÔNIO DE LISBOA

May 27, 2017 | Autor: Daniel Afonso | Categoria: Mariologia, Mariologia Medieval, Santo António de Lisboa
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ELEMENTOS DO ITINERÁRIO MARIOLÓGICO ANTONIANO: A MARIOLOGIA “EVOCATIVA” DOS SERMÕES DE ANTÔNIO DE LISBOA ELEMENTOS DO ITINERÁRIO MARIOLÓGICO ANTONIANO

Elements of the Anthonian Mariological Itinerary: The “Evocative” Mariology of the Sermons of Saint Anthony of Lisbon Daniel Cerqueira Afonso 1 Resumo Santo Antônio de Lisboa, Doutor da Igreja, é uma das mais influentes figuras da Escola Franciscana, seja pelo conhecimento doutrinário, seja pela visão renovada da teologia mística de São Francisco de Assis. Neste artigo analisaremos a visão antoniana sobre Maria, desde a sua maternidade divina até à maternidade espiritual que envolve toda a Igreja através dos séculos. Palavras-chave: mariologia antoniana; maternidade divina, dimensão kenótica, dimensão esponsal, maternidade espiritual, cooperação à salvação, relação de Maria com os cristãos.

Abstract St. Anthony of Lisbon, Doctor of the Church, is one of the most influential figures of the Franciscan School, both for his doctrinal knowledge, and for his renewed vision of the mystical theology of St. Francis of Assisi. In this article we will analyse the Anthonian vision of Mary, from her divine maternity to her spiritual maternity which involves the entire Church throughout the centuries. Keywords: Anthonian Mariology, divine maternity, kenotic dimension, espousal dimension, spiritual maternity, cooperation in salvation, relationship of Mary with Christians.

Introdução A presente investigação tem como ponto de partida o teólogo Antônio de Lisboa, popularmente conhecido como Santo Antônio. Devido à sua importante teologia, pela qual foi declarado Doutor da Igreja, este trabalho objetiva reavaliar, à luz do renovamento mariológico recente, a sua contribuição

1) Doutorando em Teologia com especialização em Mariologia na Pontifícia Faculdade Teológica Marianum, Roma, sócio correspondente da Pontifícia Academia Mariológica Internacional e membro da Comunidade Católica Família Azul. Artigo recebido em 2/10/2014; aprovado em 16/2/2015.

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especificamente mariana. Assim, apresentaremos um percurso que parte da maternidade divina de Maria e explicita a sua contribuição para a Redenção, sublinhando a sua especificidade franciscana, da qual é herdeiro e mentor. Na conclusão, procuraremos apresentar uma síntese de sua abordagem mariológica conforme o título deste artigo.

%LRJUD¿D 2 Antônio entregou sua alma na tarde do dia 13 de junho de 1231. A referência que aqui fazemos de sua morte, ao iniciar sua biografia, reflete a falta de dados acerca de sua vida e, como tal, somos obrigados a nos fixar nas legendae como ponto de partida. 3 Cruzando estas referências, com uma análise crítica das fontes históricas, recolhemos aqui brevemente alguns dados. Nasceu em Lisboa por volta do ano de 1195 e foi batizado com o nome de Fernando. 4 Entre os anos de 1201-1210 frequentou a escola da catedral de Lisboa, e entre 1210-1212 entrou para a Ordem dos Canônicos Regulares de Santo Agostinho de São Vicente do Fora, na mesma cidade. No final de 1212 reside na comunidade dos Frades Agostinianos em Santa Cruz, Coimbra, onde realizou os estudos nas matérias sagradas. No dia 16 de janeiro de 1220 são martirizados cinco frades franciscanos em Marraquexe, Marrocos. Nesse mesmo ano, os corpos desses mártires são levados a Portugal, o que despertou em Antônio um ardente desejo de ser missionário naquele país, a fim de também poder receber a palma do martírio. Mais tarde, durante o verão, junta-se ele ao movimento franciscano após sua ordenação sacerdotal e, entre setembro e outubro, vive no eremitério dos frades menores em Olivais, na periferia de Coimbra. Desde o final do outono de 1220 até março de 1221, tornou-se finalmente missionário no norte da África. Entre março e abril de 1221 naufraga e chega à Sicília, vindo a participar, entre 30 de maio e 8 de junho, do capítulo geral de Assis, durante o qual conhece o fundador de sua ordem, Francisco. Em 1222 recebe a investidura de pregador e, no ano seguinte, em Bolonha, torna2) Para uma completa visão biográfica sobre Santo Antônio cf. *ൺආൻඈඌඈ, Vergilio. Antonio di Padova: vita e spiritualità. Padova: Messaggero di Sant’Antonio, 2011. 3) As legendae, na sua origem etimológica, correspondiam às vidas dos santos lidas nos mosteiros durante as refeições que, a par da Sagrada Escritura, serviam ademais de instrução para os iletrados. As legendae significavam, portanto, não as fábulas ou lendas, mas, antes, aquilo que devia ser lido. 4) Nome de origem visigótica difuso na Península Ibérica que significa “corajoso na paz”, caraterística que, de fato, pautou a vida do santo.

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-se o primeiro mestre de teologia dos frades menores. Dois anos mais tarde, em 1224, realiza missão em França, onde funda vários mosteiros e, em 1227, torna-se ministro provincial do norte de Itália. Três anos depois, em 1230, consagra-se à redação dos Sermones dominicales, época em que abandona o seu cargo de ministro provincial e se encontra com o Papa Gregório IX, que posteriormente o cognominou de “Arca Testamenti” e “Sacrarum Scripturarum scrinium”. 5 No inverno deste mesmo ano compõe os chamados Sermões festivos. 6 Veio a falecer no eremitério de Camposampiero a caminho de Pádua, local onde foi sepultado. O processo canônico para o reconhecimento da heroicidade de suas virtudes decorreu entre o início de julho de 1231 e 30 de maio de 1232, dia de sua canonização na catedral de Spoleto pelo Santo Padre Gregório IX, quem o venerou com uma antífona somente digna dos doutores: “Ó grande Doutor, luz da Santa Igreja, Santo Antônio, amante da lei divina, rogai por nós ao Filho de Deus!” 7 Em 16 de janeiro de 1946, foi proclamado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XII com a Carta Apostólica Exulta, Lusitania felix. 8

2. Teologia do Autor Tendo em consideração a obra de S. Cecchin, 9 apresentamos a seguir as características fundamentais da teologia antoniana.

,QÀXrQFLDV Para compreendermos as influências presentes em nosso Autor, é necessário considerar a sua formação inicial. Estudou em Coimbra e teve João e Rai5) *උൾ඀ඈඋංඎඌ IX apud 3ංඈ XII. Carta Apostólica Exulta, Lusitania felix (AAS 38, 204): “O doctor optime, Ecclesiae Sanctae lumen, beate Antoni divinae legis amator, deprecare pro nobis Filium Dei”. 6) Os sermões foram publicados integralmente. Cf. $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌSermones Dominicales et Festivi, ad fidem codicum recogniti, curantibus - Introductio - Sermones dominicales. %&ඈඌඍൺ, /)උൺඌඌඈඇ ,/ඎංඌൾඍඍඈ30ൺඋൺඇ඀ඈඇ (org.). Padova: Messaggero, 1979, 3 vol. Referimos também as coletâneas seletas de textos: *ൺආൻൾඋඈLuigi. Maria nel pensiero dei teologi latini medievali. Cinisello Balsamo, San Paolo, 2000, p. 237-247; ,ൽൾආTesti Mariani del Secondo Millennio: Autori Medievali dell’Occidente secoli XII-XV, Roma, Città Nuova, 1996, vol. 4, p. 146-162, [=TMSM]. 7) *උൾ඀ඈඋංඎඌ IX apud 3ංඈ XII, Exulta, Lusitania felix (AAS 38, 204). 8) Cf. *ൺආൻඈඌඈVergilio. Antonio di Padova: vita e spiritualità. Padova: Messaggero, 2011, p. 15-22. 9) Cൾർർඁංඇ, Stephano Maria. Maria Signora Santa e Immacolata nel pensiero francescano. Per una storia del contributo francescano alla mariologia. Città del Vaticano: PAMI, 2001, p. 69-76.

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mundo de Coimbra como mestres, os quais, por sua vez, se formaram em Paris, na Abadia dos Vitorinos, com Acardo de São Vítor († 1171). Por esta razão, o método e a orientação doutrinária são os mesmos do clima cultural parisiense do final do século XII. Entre os autores mais citados por Santo Antônio recordamos aqui os encontrados na grande biblioteca do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde estudou as ciências sagradas (muitos dos quais a partir da Glossa ordinaria): Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Gregório, Isidoro de Sevilha, Bernardo, Pseudo-Dionísio, Hugo e Ricardo de São Vítor, Guilherme de Saint-Thierry, e, de tanto em tanto, Pedro Lombardo (Sententiae).

2.2. Temas abordados Santo Antônio aborda os tópicos da Cristologia e dos Sacramentos, sobretudo de uma forma apologética, devido ao caráter eminentemente pastoral de seus sermões. 10 Para ele, o ápice de toda a perfeição é a contemplação ativa de Deus através da humanidade de Cristo; esta é alcançada mediante a inteligência e a vontade, a qual possui a precedência, pois o seu objetivo é a prática da caridade. Tal como Acardo de São Vítor, por sua vez devedor de Ricardo, Guilherme e Bernardo, também faz uso da imagem neoplatônica e agostiniana da regio dissimilitudinis, 11 para indicar a dialética moral da distância/proximidade entre Deus e as criaturas. Para esses autores, o significado da metáfora concede à teologia do pecado original e à inquietude existencial do afastamento de Deus (quando na criatura é ofuscada a semelhança com Deus), a inteligibilidade que Santo Agostinho tinha sobreposto à concepção plotiniana da matéria que oprime o espírito. Para Santo Antônio a natureza da criatura é, no estado atual, um misto de semelhança e dissemelhança. Se a semelhança é a capacidade de conhecer Deus, amá-Lo e louvá-Lo, para poder ser capaz de a restaurar, a criatura

10) Deixamos aqui uma curiosidade acerca da razão pela qual foram escritos: “ad vestram consolationem, fidelium aedificationem, in peccatorum meorum remissionem” ($ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ, Sermo in Dominica IV post Epiphaniam, epil. — sermão considerado posteriormente como deuteroantoniano). 11) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Dominica II in quadragesima, 7: “Regio est religio, in quam de regione dissimilitudinis, idest mundanae vanitatis, transplantati sunt, ut afferant fructus gloriae caelestis” [“A região é a religião, na qual são transplantados da região da dis semelhança, isto é da vaidade do mundo, para trazer os frutos da glória celestial”]. Esta visão antoniana mais tarde viria a ser utilizada nos conceitos de analogia fidei e analogia entis, ou seja, como a partir do ato criativo de Deus se poderia falar acerca da realidade de semelhança e dissemelhança. Esta perspectiva foi posteriormente confirmada pelo IV Concílio de Latrão (cf. DH 806) quando afirma que “entre o criador e a criatura não se pode observar tamanha semelhança que não se deva observar diferença maior ainda” (através da graça).

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deve se afastar da região da dissemelhança, isto é, a vaidade. A atuação autoconsciente da semelhança a liberta da mundanidade, culmina no princípio de identidade entre a inteligência e o amor: o intelecto penetra a verdade, amando-a; amando-a, assimila-a; e assimilando-a, transforma-a em praxis; conceito expresso com a fórmula “amor ipse intellectus est”, lida por ele em Guilherme de Saint-Thierry. 12

2.3. Contribuição teológica O Doutor Evangélico foi um profundo teólogo positivo, grande exegeta e especulativo, percursor da escola franciscana, conseguindo uni-la à antiga tradição agostiniana. 13 A partir do Evangelho e dos Santos Padres, colhe a devoção ao Sagrado Coração e a transmite a São Boaventura; desenvolve, ademais, a devoção ao Nome de Jesus, traditio confiada a São Bernardino de Siena; encontra-se com a devoção ao Sangue de Cristo e a imprime a Giacomo della Marca; defronta-se com a devoção a Cristo Rei da criação e da Redenção, posteriormente difundida por Duns Scoto. 14

3. A Mariologia de Antônio No que concerne ao enquadramento mariológico, Santo Antônio pertence ao ambiente mendicante franciscano e ao mundo medieval, caracterizado por uma homilética mariana litúrgica e entusiasta, no sentido de procurar uma conversão através da devoção à Mãe de Deus. 15 Para este fiel discípulo do Poverello, o mistério da Encarnação será o seu sanctus sanctorum, fundando nele a sua doutrina mariana, isto é, a divina maternidade da Virgem é lida a partir da criação, passando pelas prefiguras do Antigo Testamento, pela

12) *ඎ඀අංൾඅආඈൽං6ൺංඇඍ7ඁංൾඋඋඒ. Commento al Cantico dei Cantici, 1.4.57. Mario Spinelli (ed.). Roma: Città Nuova, 2002, p. 43-45; 88-89. 13) Cf. 3ඣඋൾඓ 6ංආඬඇ/uis. O beata Maria, quae es habitatio Ecclesiae. Carthaginensia, v. 20, 2004, p. 143. 14) Para uma visão mais geral da pluralidade devocional de sua matriz franciscana cf. &ൾർർඁංඇStefano. Maria Signora Santa e Immacolata nel pensiero francescano. Per una storia del contributo francescano alla mariologia. Città del Vaticano: PAMI, 2001. 15) $ඇතඇංආඈ. The Marian Devotion of St. Anthony of Padua. Ephemerides Mariologicae, v. 47, 1997, p. 285-286.

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Anunciação através da obra do Espírito Santo que A libertou da inclinação do pecado e, por fim, pela Redenção. 16

3.1. Mariologia evocativa O carácter homilético em que se insere a figura de Maria — os seus títulos, as abundantes imagens utilizadas pelo Autor, tais como, por exemplo, as suas orações conclusivas — levam-nos a considerar o peculiar constructo antoniano na reflexão sobre a Mãe de Deus como um contributo evocativo. De fato, não demonstra um interesse direto em argumentar, à maneira escolástica, sobre a singularidade da Virgem. 17 Antes, o Santo de Pádua pretende, sobretudo, apresentar a pessoa de Maria em sua relação com Cristo, a tal ponto que poderíamos intuir nessa união, segundo R. Laurentin, uma espécie de via pulchritudinis. 18 No conjunto dos Sermões devemos precisar o tipo de abordagem em relação à Sagrada Escritura. A Sacra Pagina é lida sobretudo em sentido espiritual, característica típica da exegese medieval, bem como da ars praedicandi do século XIII, utilizando com primazia o método alegórico. Exemplo disso é a sua leitura de dois trechos do livro do Eclesiástico: “como estrela da manhã entre as nuvens” (50, 6), e “beleza do céu é a glória das estrelas, glória que ilumina o mundo” (43, 10), para em seguida interpretar o aparecimento da estrela d’alva como alegoria do nascimento da Mãe de Deus, portadora da Luz para o mundo, ou segundo as próprias palavras do Doctor Evangelicus: “Estrela da manhã ou Portadora de Luz é a Virgem Maria que, nascida em meio às nuvens, dissolve a sua obscuridade e, na manhã da graça, anunciou àqueles que estavam nas trevas o Sol da Justiça”. 19 Depois de havermos precisado o pano de fundo histórico-teológico de Santo Antônio e o método com o qual aborda Maria, 20 veremos agora seus 16) Cf. &ൾർർඁංඇStefano. Maria Signora Santa e Immacolata nel pensiero francescano. Per una storia del contributo francescano alla mariologia. Città del Vaticano: PAMI, 2001, p. 72. 17) TMSM 4, p. 149-150. 18) Cf. TMSM 4, p. 149. 19) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Nativitate Beatae Mariae Virginis, 2: “Stella matutina sive Lucifer est beata Maria, quae, in medio nebulae nata, nebulam tenebrosam effugavit, mane gratiae solem iustitiae sedentibus in tenebris nuntiavit”. 20) Não fazemos aqui uma abordagem à forma como Santo Antônio aborda os títulos marianos devido à brevidade do artigo, contudo diremos apenas que é usada uma linguagem tipológica, característica da leitura alegórica, que coloca em paralelo Maria com Sara, Rebeca, Judite, Ester, Eva. O uso deste para-

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dois principais temas mariológicos: a maternidade divina e a participação de Maria na redenção do homem.

3.2. Maternidade divina de Maria Acerca da maternidade divina iremos individuar dois elementos: a dimensão kenótica da Encarnação, isto é, a humildade do nascimento de Maria e a leitura esponsal da encarnação: Maria como o tálamo do Verbo eterno.

3.2.1. A dimensão kenótica da Encarnação: a humildade do nascimento de Maria Santo Antônio, como já foi dito, não procurou teorizar abstratamente o mistério da maternidade divina. Preferiu, ao invés, considerar concretamente a Virgem como Mãe de Deus. Procura também sublinhar que o Filho Eterno assumiu uma humanidade real e, como tal, sujeito a dores e cansaços. 21 De fato, Jesus obtém do Pai a majestade da divindade, e de Maria recebe a fragilidade da humanidade 22 entendida agora não de um modo abstrato, mas como sinônimo de enfermidade e humilhação. 23 Para Santo Antônio o ato da Encarnação foi o abaixar-se do Filho de Deus no seio da Virgem Mãe, que passa, por sua vez, da dimensão de Virgo paupercula 24 (Virgem pobrezinha) à gloria da Domina (Senhora). Por isso mesmo, o Doutor Evangélico afir-

lelismo tipológico deriva da obra Os nomes hebraicos de São Jerônimo e das Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha. Cf. Gൺඌඉൺඋඈඍඍඈ, Giovanni. Dipendenze isidoriane nei “Sermones” di S. Antonio di Padova. In: 3ඈඉඉං, Antonino (ed.). Le fonti e la teologia dei sermoni antoniani, Atti del congresso internazionale di studio sui “sermones” di S. Antonio di Padova. (Padova, 5-10 outubro 1981), Padova: Messaggero, 1982, p. 229-254; Jൺඇඌൾඇ, Katherine. Le fonti erudite nella “lectio” antoniana del “liber naturae”. In: 8උංൻൾ, Fernando. Liber naturae nella Lectio Antoniana. Atti del Congresso internazionale per l’VIII centenario della nascita di Sant’Antonio di Padova (1195-1995) (Roma, 20-22 nov.1995). Roma: Antonianum, 1996, p. 145-159. 21) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Dominica IV Post Pascha, 7. 22) Cf. Cൺඅඏඈ0ඈඋൺඅൾඃඈ, Gaspar. El Espíritu Santo y María, la Madre de Dios, en San Antonio de Padua. Estudios Marianos, v. 62, 1996, p. 359-360. 23) 'ൾ3ඈං, Terenzio. Maria. In: Cൺඋඈඅං, Ernesto (org.). Dizionario antoniano: Dottrina e spiritualità dei sermoni di sant’Antonio. Padova: Messaggero, 1995, p. 455. 24) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Dominica II in Quadragesima, 5; Sermo in Dominica III in Quadragesima (In Laudem Beatae Mariae Virginis), 3. A insistência de Antônio sobre o adjetivo “paupercula” (extremamente pobre) indica-nos que a virtude da pobreza foi muito apreciada por Antônio o qual, como seu fundador Francisco, a relaciona ao despojamento de Cristo, à kenosis de forma esponsal, conforme veremos mais adiante.

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mou que “quando Maria proferiu as palavras da humildade: ‘eis, a serva do Senhor’, foi eleita Rainha celestial”. 25 A kenosis — esvaziamento — da Mãe na kenosis do Filho tem como objetivo a nova criação e, como tal, a nova criatura (cf. II Cor 5, 17). O Verbo-Filho-Jesus não depende de nenhuma realidade terrena, mas regressa ao Pai depois de obter o fruto da resposta dos homens (cf. Jo 15, 2-8). Por este motivo, a semente da Palavra deve encontrar o campo no mundo, ou seja, a Virgem feita Igreja que escuta. A virgindade necessária não se insere num horizonte de ascese, tampouco num horizonte de sucessão de gerações, como acontecia com Abraão ou o Povo de Israel, mas verticalmente do Céu; por isso, o discurso da maternidade desenvolve-se em plenitude no encontro entre a Palavra de Deus e Maria que, por ter escutado, tornou-se Mãe de Deus e Nossa Senhora — Domina Nostra, expressão esta tão comum no desfecho dos sermões antonianos. 26 Portanto, a descida de Jesus na carne humana foi a sua humilhação: “abaixou dos céus” da divindade “e desceu” no seio da Virgem Mãe (cf. Mt 18, 4). 27

3.2.2. Leitura da esponsalidade da Encarnação: Maria, tálamo do Verbo Eterno O extraordinário evento da maternidade, que até aqui procuramos acompanhar de perto, leva Maria de uma forma misteriosa, mas real, a partilhar com o Pai dos Céus o Filho por Ele enviado a realizar as núpcias no tálamo da Virgem. 28 Ademais, afirma o santo lisboeta: Ó felicidade acima de toda felicidade, que geraste o Filho em união com Deus Pai! Que glória seria à mulher pobre se gerasse um filho em união com um imperador mortal! Quanto mais e quão maior é a glória da Virgem, que gerou o Filho em união com Deus Pai! 29 25) Idem. Sermo in Assumptione Beatae Mariae, 4: “Quia in verbo humilitatis, ‘Ecce ancilla Domini’, facta este regina caelestis”. 26) Cf. e.g. idem. Sermo in Dominica III in Quadragesima (In Laudem Beatae Mariae Virginis), 7; Sermo in purificatione Beatae Mariae Virginis, 9. 27) Cf. idem. Sermo in Dominica II Post Octavam Epiphaniae, 3. 28) Cf. idem. Sermo in Dominica XX Post Pentecosten: “Tandem consensit Pater, et misit Filium suum, qui in thalamo beatae Virginis sibi nostram naturam univit, et tunc Pater nuptias Filio suo fecit”. 29) Idem. Sermo in Nativitae Domini, 6: “O omni felici felicior, quae Filium communicasti Deo Patri!. Quanta gloria esset pauperculae feminae si mortali imperatori filium communicasset! Quanta longe longius maior gloria Virgini, quae communicavit Filium Deo Patri”.

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Este tema não é uma perspectiva original do Autor, porque a interpretação da Encarnação mediante o recurso da linguagem esponsal possui raiz na tradição; 30 contudo, o que permanece como significativo nos Sermões antonianos é, essencialmente, o fato de colocar sobre o tálamo nupcial o dom feito à humanidade, com quem o Filho de Deus se une como a uma esposa, 31 e o papel único de Maria, através da qual esta união se realiza. A Virgem, em sua representação de toda a humanidade, é a Esposa porque o Senhor “repousou em seu tálamo e dela tomou a carne”, 32 mas também o templo no qual as núpcias são celebradas, a câmara nupcial onde a união se consuma entre Deus e a humanidade, o lugar onde Deus repousa: Considera que há três espécies de bodas: de união, de justificação e de glorificação. As primeiras foram celebradas no templo da Bem-Aventurada Virgem Maria; as segundas são celebradas todos os dias no templo da alma fiel; as terceiras serão celebradas no templo da glória celeste. 33

O Criador repousa no seio de Maria, criatura sua, como repousou depois da obra Criadora no início dos tempos. Sinal, pois, que no nascimento do Filho eterno, do ventre de Maria, completa-se um novo ato criativo. Podemos então falar aqui de uma obra de re-criação 34 operada pelo Verbo de Deus. De tal sorte, que Santo Antônio nos recorda: Quão grande é a distância entre o dizer e o fazer, tão grande foi entre o criar e o recriar. Leve e fácil foi a criação, pois ocorreu com uma só palavra, ou

30) A interpretação em chave esponsal do mistério da Encarnação encontra um significativo desenvolvimento já no pensamento dos Padres da Igreja, exatamente na maternidade de Maria e na união de Cristo com a Igreja. Cf. Bൺඍඍൺ඀අංൺ, Vicenzo. Il Signore Gesù sposo della Chiesa. Cristologia e contemplazione. Bologna: EDB, 2001, p. 68-102. Cf. etiam: 9ൾൽඈඏൺ0assimo. L’amplexus simbolo dell’unione dell’anima con Dio nel contesto medievale. Miscellanea Francescana, v. 112, 2012, p. 600-618. 31) Idem. Sermo in Purificatione Beatae Mariae, 1, 3: “In opera sua, scilicet redimenda, de Virgine est creatus. Caro enim eius propter opera; divinitas ante opera. Beata ergo Maria uxor eius appellatur”. Cf. Cൺඅඏඈ0ඈඋൺඅൾඃඈ, Gaspar. El Espíritu Santo y María, la Madre de Dios, en San Antonio de Padua. Estudios Marianos, v. 62, 1996, p. 364; Idem. Santa Maria, Madre de Dios, en los sermones de S. Antonio de Padua. Verdad y vida, v. 53, 1995, p. 331-348. 32) Ibid.: “Beata ergo Maria uxor eius appellatur, eo quod in thalamo eius requievit et ex ea carnem accepit”. 33) Idem. Sermo in Dominica XX Post Pentecosten, 3: “Nota quod tres sunt nuptiae, scilicet unionis, iustificationis et glorificationis. Primae celebratae fuerunt in templo beatae Virginis; secundae quotidie celebrantur in templo animae fidelis; tertiae celebrabuntur in templo gloriae caelestis”. 34) 'ൾ3ඈං, Terenzio. Maria. In: op. cit., p. 451.

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Daniel Cerqueira Afonso melhor, somente com a vontade de Deus, cujo dizer é querer; mas a recriação foi bem mais difícil, porque veio através da Paixão e da Morte. 35

O significado da Paixão e da Morte do Cristo de Deus é a Redenção, operada, por sua vez, graças à resposta positiva no fiat da Encarnação. Como tal, procederemos a seguir à indagação da relação entre a Mãe de Deus e a Redenção, na visão de Santo Antônio.

3.3. Maternidade divina e participação na redenção do homem Sobre a maternidade divina que já referimos anteriormente, acrescentaremos agora a visão da cooperação salvífica da Mãe de Deus e, adicionalmente e não menos importante, da relação de Maria com o cristão.

$FRRSHUDomRVDOYt¿FDGD0mHGH'HXV O pano de fundo sobre o qual é colocada a cooperação de Maria na obra da salvação é constituído por uma perspectiva cristológica típica da época do teólogo franciscano, onde se afirma que a história da salvação se desenvolve a partir da luta entre Cristo que liberta a humanidade e o demônio que a escraviza. Nesse sentido, afirma que: Sisara, que significa “exclusão da alegria”, é o diabo que trabalha sempre para excluir os homens do gáudio eterno. Este foi morto pela virgindade da Bem-Aventurada Maria e pela Paixão de seu Filho; ignorou o segredo de ambos e pela força de ambos perdeu o poder. E por isso: bendita és Tu entre todos e entre todas as mulheres, Tu que trouxeste confusão na casa do diabo, cortaste a cabeça do tirano e nos restituíste a paz. 36

Outro texto dos Sermões refere-se ao Livro de Judite (14, 16), em que evidencia a mesma participação de Maria, enfatizando o papel da salvação operada através de suas mãos: 35) Idem. Sermo in Dominica IV Post Pascha, 5: “Quanta distantia est inter dicere et facere tanta fuit inter creare et recreare. Levis et facilis fuit creatio, quia solo tantum verbo, immo sola Dei voluntate, cuius dicere est velle; sed recreatio valde difficilis, quia passione et morte”. 36) Idem. Sermo in Annuntiatione Beatae Mariae (2), 14: “Sisara, qui interpretatur exclusio gaudii, est diabolus, qui semper laborat, ut homines a gaudio aeterno excludat. Hic interfectus fuit beatae Mariae virginitate et sui Filii Passione: utriusque secretum ignoravit, et utriusque virtute potestatem amisit. Et ideo: Benedicta inter omnes et prae omnibus mulieribus, quae in domum diaboli confusionem fecit, caput principis abscidit et nobis pacem reddidit”.

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Elementos do itinerário mariológico antoniano Por isso se diz no Livro de Judite: “Uma mulher hebreia, sozinha, trouxe confusão na casa do rei Nabucodonosor. De fato, Holofernes jaz por terra e a sua cabeça não está mais nele”. Adonai, Senhor, Deus grande e admirável, a Vós o louvor, a Vós a glória, a quem nos deste a salvação pelas mãos de Vossa Filha e Mãe, a gloriosa Virgem Maria. 37

Vemos neste caso claramente definido o carácter evocativo de sua reflexão mariológica. Menos interessado em quaestiones escolásticas, o Autor concentra-se sobre o significado que assume, para o crente, aquele aspecto do mistério que lhe aparece indubitavelmente afirmado, isto é, a cooperação ativa da Mãe de Cristo com o projeto salvífico de Deus, fazendo transparecer Maria como reflexo de Jesus. 38 Portanto, Maria permanece conforme era desde o início: em seu “ventre de virgem pobrezinha”, 39 abraça solidária com o Filho a pobreza de todos os pecadores, através de sua humildade que nos serve de lição. 40 Nessa repetição integrativa traduzida na dor de sua concepção, Maria torna-Se a Esposa do Cordeiro e o ventre da Igreja numa nupcialidade iniciada pelo extremo abandono. Por isso, torna-se ao mesmo tempo, em sua maternidade virginal, a Senhora poderosa — Domina potens —, porque é transparência de Deus.

3.3.2. A relação de Maria com o cristão A participação de Maria no acontecer da salvação parece dar lugar, no sermonário antoniano, à decisiva afirmação de uma forma de mediação. 41 Apli37) Idem. Sermo in Purificatione Beatae Mariae (2), 7: “Unde dicitur in libro Iudith: ‘Una mulier hebraea fecit confusionem in domo Nabuchodonosor regis: ecce enim Holophernes iacet in terra, et caput ipsius non est in illo’ (Iudith 14,16). Adonai, Domine, Deus magne et admirabilis, tibi laus, tibi gloria, quod dedisti nobis salutem in manu Filiae et Matris tuae, gloriosae Virginis Mariae”. 38) Cf. Bൺඎൽඎർർඈ, F. Mariologia cherigmatica di S. Antonio di Padova. Civiltà Cattolica, 4, 1952, p. 549550. 39) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Dominica XXI Post Pentecosten, 11. 40) 3ඈඉඉං, Angelico. La concezione biblica della povertà nei Sermones di s. Antonio. In: 3ඈඉඉං, Antonino (ed.). Le fonti e la teologia dei sermoni antoniani, Atti del congresso internazionale di studio sui “sermones” di S. Antonio di Padova. (Padova, 5-10 out. 1981), Padova: Messaggero, 1982, p. 345. 41) TMSM 4, p.151; Essa abordagem insere-se claramente como o cumprimento da abordagem do período carolíngio à figura de Maria e antecipa em parte o modelo racional e sistemático da escolástica. Podemos assim considerar Antônio como parte do microparadigma escolástico. Contudo, podemos também considerar dentro deste microparadigma o nanoparadigma mendicante. Dentro deste modelo temos um enquadramento mais completo do fundador da escola franciscana em Bolonha que enquanto autor dos Sermones aparece com um carácter laudatório que segue a tradição litúrgica (característica monástica), mas também entusiasta nos seus sermões característica das pregações mendicantes. Cf. 'ൾ)ංඈඋൾඌ, Stefano. Maria sintesi di valori: storia culturale della mariologia. Cinisello Balsamo: San Paolo 2005,

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cando a ela, pensemos, por exemplo, na imagem do arco-íris, o qual, após a ira de Deus e a culpa do homem, traz consigo o sinal da reconciliação e de paz. Por esta razão, o Autor define-a, claramente, como mediatrix: 42 “A Bem-Aventurada Virgem Maria, nossa medianeira, restabelece a paz entre Deus e o pecador. Por isso, diz-se d’Ela no Gênesis: ‘Colocarei o meu arco sobre as nuvens, e isso será um sinal de aliança entre mim e a Terra’” (Gn 9, 13). 43 Para melhor esclarecermos o uso desse termo, será importante compreender a imagem que Santo Antônio utiliza para explicitar a forma como a Mãe une a sua mediação à do Filho: Maria, de fato, indica ao Filho o próprio ventre, dizendo-Lhe para mostrar ao Pai as suas chagas. Ou seja, a expropriação virginal de Maria em favor dos pecadores, como já referimos, torna-se “modelo” da expropriação mortal do cálice da Cruz (cf. Mt 20, 22). Portanto, o ventre e as chagas são os sinais do amor que torna novamente possível o acesso do homem a Deus. A mediação materna da Virgem apresenta-se aqui como aquela que nos conduz à misericórdia do Filho, para que Ele, por sua vez, nos obtenha a misericórdia do Pai. Essa imagem é muitas vezes comparada à de uma porta, através da qual o homem pode levar os tesouros da graça para fora do coração de Deus. Segundo Santo Antônio de Lisboa, “É chamada de porta porque através dela pode-se levar e enviar qualquer coisa, e significa a Bem-Aventurada Maria, por meio da qual nos são enviados os dons da graça”. 44 Desaguando aqui este breve excurso, após termos procurado expor, sinteticamente, o pensamento teológico de Santo Antônio, tocando os principais temas e imagens da sua mariologia evocativa, optamos por concluir com uma apresentação do título deste mesmo artigo, que visa ressaltar o paradoxo da onipotência de Deus que se manifesta, kenoticamente, na humildade de sua Serva.

Conclusão O pensamento mariológico de Santo Antônio não se reveste de uma forma escolástica no sentido clássico, como já foi dito, mas de um modo claro, simp. 177-195; Cf. 'ൺඅ&ඈඏඈඅඈ, Enrico; Sൾඋඋൺ, Aristide. Storia della Mariologia: dal modello biblico al modello letterario. Roma: Città Nuova, 2009, vol. 1, p. 735 et seq. 42) 'ൾඉඈං7Maria, cit., p. 458. 43) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Annuntiatione Beatae Mariae, 11: “Beata enim Virgo Maria, mediatrix nostra, inter Deum et peccatorem pacem reformavit. Unde de ea dicitur in Genesi: “Ponam arcum meum in nubibus caeli (Gen 9, 13)”. 44) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ Sermo in Purificatione Beatae Mariae (1) 6: “Porta dicta, quia potest inde portari vel exportari aliquid, et significat beatam Mariam, per quam gratiarum munera exportamus”.

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ples, em função do auditório que tem à sua frente. Essa forma simples não menosprezou a tradição patrística, litúrgica e doutrinal e, sobretudo escriturística, razão pela qual recebeu o título de Doutor Evangélico. 45 Nesse contexto, o pensamento mariológico antoniano representa, mais do que um tratado de originalidade, uma coerência com o inteiro projeto de salvação onde no centro se encontra Cristo, alfa e ômega, princípio e fim da existência do homem. Também o papel de Maria é relativo ao de Cristo: a sua grandeza e a sua glória dependem, fundamentalmente, da maternidade divina, dom de absoluta gratuidade. Mas não totalmente, dado que a fragilidade de Maria entre o sim dito ao mistério da Encarnação e a sua liberdade, que nos é apresentada através da alegoria entre Elias (I Rs 19, 11-16) e Maria, 46 coexiste no paradoxo da potência frágil reconhecida à liberdade de Maria. De fato, o fiat da jovem de Nazaré, ainda que frágil, permitiu a potente encarnação. Claro está que, pela brevidade deste artigo, não entramos em questões mais polêmicas, como a maternidade corredentora, a maternidade mediadora e dispensadora das graças e a Imaculada Conceição (usando aqui o conceito de “santificação”: in utero matris fuit sanctificata 47), ou ainda, a Assunção, porque essas afirmações, que encontramos explícita e implicitamente nos Sermões de Santo Antônio, não eram seguidas de explicações que pudessem resolver os problemas vigentes no debate teológico, ainda que essas duas últimas possuam hoje caráter dogmático.

45) Cf. TMSM 4, p. 146. 46) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Annuntiatione Beatae Mariae (1) 10 “De hac suavitate dicitur in tertio libro Regum: Ecce spiritus grandis et fortis, subvertens montes et conterens petras, sed non in spiritu Dominus. Et post spiritum, commotio; et ibi non fuit Dominus. Et post commotionem, ignis; nec ibi Dominus. Et post ignem, sibilus aurae tenuis; ibi Dominus (Cf. 3 Reg 19, 11-12). In hodierno evangelio habes ista quattuor. Spiritus grandis fuit angelica salutatio, grandia promittens et a Gabriele, qui interpretatur fortitudo, mulieri fortissimae prolata. Haec salutatio subvertit montes superbiae et contrivit petras, idest duritiem mentis humanae. Quattuor quae in hac salutatione reperiuntur, quattuor lapidis sapphyri proprietatibus comparantur. Sapphyrus stellam videtur ostendere, cui proprietati convenit: Ave, gratia plena (Lc 1, 28); aerei est coloris, et huic convenit: Dominus tecum (Lc l.c.) ; sanguinem restringit, et in hoc concordat: Benedicta tu in mulieribus (Lc l.c.), quae primae maledictionis sanguinem restrinxisti. Item, sapphyrus anthracem necat, et huic proprietati competit: Benedictus fructus ventris tui (Lc 1, 42), qui diabolum interfecit. Bene ergo dicitur: Ecce spiritus grandis etc, et ibi non fuit Dominus, idest Verbi Incarnatio. Et post spiritum salutationis, commotio: Turbata est, inquit, in sermone eius, et cogitabat qualis esset ista salutatio (Lc 1, 29); et ibi non fuit Dominus, idest Verbi Incarnatio. Et post commotionem, ignis, idest Spiritus Sancti superventio et virtutis Altissimi obumbratio (Cf. Lc 1, 35); nec ibi fuit Dominus. Et post ignem, sibilus aurae tenuis, scilicet: Ecce ancilla Domini (Lc 1, 38); ibi fuit Dominus, idest Filii Dei Incarnatio. Cum enim dixit: Fiat mihi secundum verbum tuum (Lc l.c.), statim Verbum caro factum est et habitavit in nobis (Io 1, 14)”. 47) Cf. idem. Sermo in Nativitate Beatae Mariae Virginis, 4.

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Santo Antônio faz uma aproximação da figura de Maria muito humana, em sua condição de Esposa e Mãe. Tendo em conta a Encarnação, faz ressoar, nos Sermões, a transformação da criatura mediante a consentida ação divina, usando Maria, a primeira cristã e a primeira discípula, como exemplo de humildade que se despoja țİȞȩȦ DTXDODWLQJLXRVHXYpUWLFHMXQWRj&UX] onde a Mãe de Deus se torna Mãe espiritual de todos os crentes. É precisamente no despojamento e na humildade que a Virgo paupercula torna-se Domina potens, 48 cujo poder está na misericórdia (e na intercessão junto ao Filho) para com os pecadores. 49 Para Santo Antônio, Maria é a guia segura que conduz o homem à salvação, Cristo Senhor. 50 Ela abre a porta a Deus com o seu sim e, como tal, a todas as suas promessas. Tudo aquilo que Deus promete, encontra lugar no fruto do seu ventre, Jesus, 51 iniciando-se através dela a plenitude dos tempos (Gl 4, 4) para a humanidade. Por esta mesma razão, Maria aparenta ter uma vinculação singular com a Trindade Santa, de tal forma que Santo Antônio conclui que “superior a toda a graça, foi a graça de Maria, que teve um Filho com Deus Pai”. 52 Uma última palavra é dirigida à tipologia da mariologia antoniana. Na verdade, reescrevê-la seria um empreendimento que não portaria a parte alguma, pelo que metodologicamente optamos por colher alguns dos frutos mais duradouros da visão antoniana e franciscana. Mesmo sendo Doutor da Igreja, permanece obscurecido pela dificuldade de acesso à tradição mariológica franciscana que ainda existe nos dias de hoje, representa a Terra Virgem sobre a qual poucos se debruçam. Nesse sentido, o caráter mariano da fé cristã tende, infelizmente, a separar-se em âmbito teológico da mariologia e este é o ponto de interesse que procuramos abordar, ou seja, a maternidade divina e espiritual de Maria, na qual a humildade pobre se expropria a fim de se fazer casa dedicada a Deus, consagrada com a unção do Espírito Santo e, como tal, poderosa. Por isso mesmo, recordando a plurissecular tradição franciscana, é possível afirmar que 48) Cf. 'ൾඉඈං7Maria, cit., p. 456. 49) Tema também abordado por Antônio que não desenvolvemos neste artigo, mas que se podem encontrar referências em: $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Purificatione Beatae Mariae (1), 6. 50) Cf. $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Dominica III in Quadragesima, 7. 51) Cf. 'ൾඉඈං7Maria, cit., p. 451. 52) $ඇඍඈඇංඎඌ3ൺඍൺඏංඇඎඌ. Sermo in Assumptione Beatae Mariae, 3: “Vere omni gratia praestantior fuit beatae Mariae gratia, quae filium cum Deo Patre habuit”.

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a mariologia pode ser vista como o exemplo mais alto da atividade interpretativa da vida do Senhor desenvolvida pelo Espírito Santo, pois representa o necessário desdobramento, por obra da Terceira Pessoa, de uma parte da divina Revelação que a Segunda Pessoa devia ter encoberta. Sobre isso, Santo Antônio de Lisboa foi aluno e mestre. 53

53) Cf. %ൺඅඍඁൺඌൺඋ, Hans Urs von. Teologia della storia. Brescia: Morcelliana, 1964 (orig. 1959), p. 81. Cf. etiam: 3ඈඇඍංൿංർංൺ$ർൺൽൾආංൺ0ൺඋංൺඇൺ,ඇඍൾඋඇൺඍංඈඇൺඅංඌ. La Madre del Signore. Memoria, Presenza, Speranza. Alcune questioni attuali sulla figura e la missione della b. Vergine Maria. Città del Vaticano: PAMI, 2000, p. 27.

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