ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA HISTÓRICA DA LINGUAGEM NO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL

June 3, 2017 | Autor: Daiane Neumann | Categoria: Ferdinand de Saussure, Henri Meschonnic, Emile Benveniste
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ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA HISTÓRICA DA LINGUAGEM NO CURSO DE
LINGUÍSTICA GERAL




Daiane Neumann
Universidade Federal do Rio Grande do Sul / CAPES
Heloisa Monteiro Rosário
Universidade Federal do Rio Grande do Sul



Introdução


Comumente, a Linguística proposta por Ferdinand de Saussure e
apresentada no Curso de linguística geral (CLG), livro organizado por seus
seguidores, Charles Bally e Albert Sechehaye, publicado pela primeira vez
em 1916, é considerada uma ciência piloto, na medida em que se apresenta
"como origem do estruturalismo"[1] (DELEUZE, 1974, p. 271), movimento que
reuniu pensadores bem diferentes e de gerações distintas.
No entanto, Giorgio Agamben, em sua obra denominada Infância e
história (2005), ao discutir sobre a destruição da experiência e a origem
da história, afirma que a ciência moderna se erigiu sobre a assunção não
declarada do sujeito da linguagem como fundamento da experiência e do
conhecimento. Discussão esta que vamos reconhecer e ver explicitada na
teoria da linguagem proposta por Émile Benveniste, ao afirmar que a
constituição do sujeito se dá na e pela linguagem.
A teoria da linguagem apresentada por Benveniste tem suas bases no
pensamento saussureano apresentado no CLG. De acordo com Henri Meschonnic,
em seu texto Seul comme Benveniste (2008), o linguista aparece sozinho
contra o estruturalismo, na medida em que é o único a compreender o
pensamento de Saussure como um pensamento que entende a língua como um
sistema, e não como uma estrutura, visto que a palavra "estrutura" não
teria em Benveniste o sentido estruturalista. O linguista então incapaz de
sair completamente do domínio semiótico, em que o CLG havia fechado a
língua, seu objeto de estudo, se encontraria em um novo espaço teórico por
ele aberto com a proposta do sistema linguístico da enunciação.
Na leitura da obra de Émile Benveniste, feita por Meschonnic (2009) e
Dessons (2006), os autores afirmam que há filiação teórica entre Benveniste
e Ferdinand de Saussure.[2] Inclusive, o primeiro diz que "de Saussure et
de Benveniste, part une anthopologie historique du langage" (MESCHONNIC,
2009, p. 45).
Partindo de Agamben e Meschonnic, buscamos discutir e refletir neste
artigo sobre como o CLG forneceu as bases para a discussão mais tarde
proposta sobre a linguagem em Émile Benveniste e por que se pode, portanto,
afirmar que do projeto proposto pelos dois teóricos da linguagem parte uma
antropologia histórica da linguagem. Pretendemos pensar o CLG como um outro
começo, como a obra sobre a qual se erige esse novo olhar, proposto na obra
de Émile Benveniste não apenas sobre os estudos da linguagem, mas também
sobre as ciências humanas.
Para isso, em um primeiro momento, discutiremos sobre o lugar
epistemológico ocupado por Émile Benveniste, no projeto geral das ciências
humanas, apresentado por Giorgio Agamben. Em seguida, refletiremos sobre as
bases epistemológicas sobre as quais se erige este projeto e que se
encontram no CLG, para que possamos discutir sobre os elementos para uma
antropologia histórica da linguagem em tal obra.




1. Émile Benveniste: o projeto geral das ciências humanas


Em Infância e história (2005), Giorgio Agamben discute sobre a
destruição da experiência e a origem da história. Nessa discussão, o autor
afirma que o sujeito da experiência era o senso comum, presente em cada
indivíduo, enquanto o sujeito da ciência estava ligado ao nous ou intelecto
agente, que é separado da experiência, "impassível" e "divino" (p. 26).
Problema diverso daquele que se encontrava na antiguidade entre o uno e o
múltiplo, entre o intelecto separado e os indivíduos em sua singularidade,
entre o inteligível e o sensível, entre o humano e o divino. Ou seja, na
antiguidade, o problema central do conhecimento não se dava na relação
entre o sujeito e um objeto, mas na relação entre o uno e o múltiplo.
Na ciência moderna, há uma interferência da experiência e da ciência
em um único sujeito. O homem moderno foi, dessa forma, exproriado de sua
experiência, e esta expropriação estava implícita no projeto fundamental da
ciência moderna; na medida em que a experiência espontânea foi considerada
acaso, a experiência que ocorre deliberadamente recebeu o nome de
experimento e a experiência comum não foi considerada mais que uma
"vassoura desmantelada" (BACON apud AGAMBEN 2005, p. 25).
A comprovação científica da experiência que se efetua no experimento
acabou por transferir a experiência o mais completamente possível para fora
do homem ao relegá-la aos instrumentos e aos números. A experiência
tradicional perdia na realidade todo o seu valor. Donde Agamben (2005)
conclui que, referida ao sujeito da ciência, a experiência tornar-se-á algo
que se pode somente fazer e jamais ter, ela se torna o processo infinito do
conhecimento. Além disso, a expropriação da fantasia no âmbito da
experiência lança uma sombra sobre esta última, o desejo, a ideia de uma
inapropriabilidade e inexauribilidade da experiência.
Segundo o autor (2005.), o fato de ter orientado o problema do
conhecimento pelo modelo da matemática impediu Kant e Husserl de perceber a
situação original da subjetividade transcendental na linguagem e, portanto,
de traçar com clareza os limites que separam transcendental e linguístico.
Segundo Hamann apud Agamben (2005, p. 54), a razão pura de Kant elevada a
sujeito transcendental e afirmada independentemente da linguagem é um
constrassenso, pois não somente a inteira razão da faculdade residiria na
linguagem, mas a linguagem seria também o ponto central do mal-entendido da
razão consigo mesma.
Além disso, de acordo com Agamben (2005), a rigorosa distinção
kantiana da esfera transcendental deve ser ainda uma vez reafirmada, ela
deve ser acompanhada ao mesmo tempo de uma metacrítica que trace
resolutamente os limites que a separam da esfera da linguagem e situe o
transcendental para além do "texto" "eu penso", ou seja, além do sujeito. O
transcendental não poderia ser o subjetivo, a menos que transcendental
significasse simplesmente linguístico.
A ciência moderna, segundo o autor (2005), erigiu-se sobre esta
assunção não declarada do sujeito da linguagem como fundamento da
experiência e do conhecimento, que vamos reconhecer e ver explicitada na
teoria da linguagem de Benveniste, quando este propõe que a constituição do
sujeito se dá na e pela linguagem.
Neste momento, acreditamos que Agamben confere a Benveniste uma
relevância que não está ligada somente a uma contribuição aos estudos da
linguagem, mas também a um projeto geral das ciências humanas, para as
quais a linguagem passa a ter um papel fundador e determinante na
constituição de seus objetos de pesquisa. A linguagem passa a ser a
constituidora da experiência, mas não mais daquela experiência do homem
comum, mas sim de uma experiência que se dá na e pela linguagem, o que leva
o autor a falar de "destruição da experiência", visto que tal experiência
não poderia mais ser observada fora da linguagem. Deve-se a essa mesma
reflexão a "origem da história" de que fala Agamben (2005). Os sujeitos e a
sociedade passam a historicizar-se na e pela linguagem.
A constituição do sujeito na linguagem e através da linguagem seria
precisamente a expropriação de uma experiência "muda", pois a experiência
seria já sempre "palavra". A ideia da infância como uma "substância
psíquica", pré-subjetiva revelar-se-ia então como um mito, como aquela de
um sujeito pré-linguístico. Infância e linguagem parecem assim remeter uma
à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a
linguagem origem da infância.
A experiência se constituiria na cisão entre língua e discurso, que
também é denominada pelo autor experimentum linguae, ou seja, é uma
experiência que se sustém somente na linguagem, em que aquilo que se
experiencia é a própria linguagem. Essa experiência se daria na diferença
entre língua e fala, semiótico e semântico.
A discussão promovida pelo autor sobre a infância também está ligada à
discussão sobre essa experiência que se daria na e pela linguagem. Agamben
não discute sobre uma infância no sentido cronológico, nem algo como uma
idade ou um estado psicossomático que uma psicologia ou uma
paleoantropologia poderiam jamais construir como um fato humano
independente da linguagem, mas sim como uma infância que encontra o seu
lugar lógico em uma exposição da relação entre experiência e linguagem, que
acompanha o homem em sua trajetória. Tal discussão está ligada a uma busca
pela origem da constituição do homem e da sociedade. Afirma o autor em sua
reflexão que a ideia de uma infância como uma "substância psíquica" pré-
subjetiva revela-se então como um mito, tal infância não pode ser buscada
antes e independentemente da linguagem, em uma linguagem psíquica qualquer,
da qual a linguagem constituiria a expressão.
O homem na medida em que teria uma infância, que não seria já sempre
falante, cindiria esta língua una e apresentar-se-ia como aquele que, para
falar, deve constituir-se como sujeito da linguagem, deve dizer eu. Da
mesma forma, para Agamben (2005), somente porque existe uma infância do
homem, somente porque a linguagem não se identifica com o humano e há uma
diferença entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por
isso existe história, somente por isso o homem é um ser histórico.
O fato de que a experiência seja vista enquanto limite transcendental
da linguagem exclui dessa forma que a linguagem possa ela mesma apresentar-
se como totalidade e verdade. Dessa forma, "infância, verdade e linguagem
limitam-se e constituem-se um ao outro em uma relação original e histórico-
transcendental no sentido que se viu" (p. 63).




Experienciar significa necessariamente, neste sentido,
reentrar na infância como pátria transcendental da
história. O mistério que a infância instituiu para o
homem pode de fato ser solucionado somente na história,
assim como a experiência, enquanto infância e pátria do
homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato
de cair na linguagem e na palavra. Por isso a história
não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante
ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência,
intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na
infância a sua pátria originária, rumo à infância e
através da infância, deve manter-se em viagem. (AGAMBEN,
2005, p. 65)




Na leitura proposta de Agamben sobre a obra de Émile Benveniste, torna-
se claro que o trabalho deste último apresenta-se como uma nova proposta
para os estudos da linguagem. Benveniste desenvolve seu trabalho em um
contexto científico em que há grande influência dos estudos
estruturalistas, que se concebiam como continuadores do projeto
saussureano, do Curso de Linguística Geral, na Europa, e de Bloomfield, nos
Estados Unidos, e dos estudos gerativistas, de Chomsky, principalmente nos
EUA.
Sua proposta de estudos da linguagem afasta-se, dessa forma, do que se
realiza no âmbito acadêmico da época. O que se torna flagrante em uma
leitura da obra do linguista. Há, em seus trabalhos, constante preocupação
com o sentido, questão que há tempos era, quando não evitada, relegada a
segundo plano. Podemos perceber ainda a sua dificuldade em enquadrar esses
novos estudos que estavam surgindo nos parâmetros científicos da época,
condição para que houvesse escuta nos bancos acadêmicos. Na coletânea
publicada em Plg I e Plg II, observamos também a busca pelo diálogo com
outras áreas do conhecimento, os textos não são publicados somente em
periódicos e/ou congressos para linguistas, mas sim para filósofos,
psicólogos, o que comprova ao mesmo tempo a falta de escuta no âmbito das
pesquisas em linguística, devido a seu ponto de vista afastar-se daquele
predominante na época, e o nascimento de uma teoria da linguagem que não
fica circunscrita somente ao domínio linguístico.
Conforme salienta Agamben, a proposta de Benveniste está em
consonância com um projeto de ciência moderna que não somente traz uma nova
perspectiva de pesquisa para os estudos da linguagem, como para os estudos
que envolvem as ciências humanas em geral. Nos estudos da linguagem, porque
desloca a reflexão saussureana concernente a um sistema linguístico que se
constitui como um sistema de valores arbitrário, para a discussão no âmbito
do discurso e da enunciação, o que significa analisar o discurso como
único, singular, evanescente e conceber o estudo da linguagem não mais como
passível de classificação, generalização, mais sim como um estudo singular,
único, inacabado, en train de se faire. Nos estudos que envolvem as
ciências humanas em geral, porque comprova que a linguagem não figura mais
nessas ciências como uma simples veiculadora de informações, mas sim como
constituidora dos objetos de pesquisa, bem como do fazer científico. Dessa
forma, não se pode mais aceitar, nesse novo modelo de ciência, nenhuma
verdade-totalidade, ou seja, o conceito de verdade é relativizado.
Nessa discussão apresentada por Giorgio Agamben da obra de Émile
Benveniste, percebe-se com clareza a presença do que mais tarde Henri
Meschonnic denominaria de uma antropologia histórica da linguagem,
principalmente quando o filósofo nos mostra que em Benveniste o sujeito se
constitui na e pela linguagem, já que a experiência acontece num
experimentum linguae, ou seja, que a experiência só tem lugar na e pela
linguagem, dessa forma, ao fazer essa experiência, o sujeito constituiria
sua história.
Passaremos, em seguida, à discussão sobre as bases epistemológicas,
que podem ser encontradas no Curso de linguística geral, para a
constituição desse projeto que foi observado nas leituras de Henri
Meschonnic, Gérard Dessons e Giorgio Agamben, da obra de Émile Benveniste.




2. Elementos para uma antropologia histórica da linguagem no CLG


A leitura feita por Benveniste do trabalho de Ferdinand de Saussure é
muito peculiar e de certa forma opõe-se à leitura feita pelos
estruturalistas. Denominamos esta leitura peculiar devido ao fato de que
mesmo sem terem sido ainda descobertos e publicados os manuscritos de
Saussure[3], Benveniste consegue perceber no conjunto de sua obra
direcionamentos que estão muito consoantes com os estudos atuais sobre o
pensamento de Ferdinand de Saussure.
No texto "Estrutura" em linguística, publicado em Plg I, Benveniste ao
referir-se ao estruturalismo afirma que "é importante notar, para uma
descrição exata desse movimento de idéias que não se deve simplificar, que
Saussure jamais empregou, em qualquer sentido, a palavra estrutura. Aos
seus olhos a noção essencial é de sistema" (2005, p. 98). Ou seja,
Benveniste já observava que as reflexões feitas por Saussure eram muito
mais complexas e traziam uma contribuição muito maior para os estudos
linguísticos do que era revelado nos estudos estruturalistas que se
filiavam ao pensamento do grande mestre.
Para Meschonnic (2008), a língua e a fala, a diacronia e a sincronia,
e o paradigma e o sintagma foram transformados em pares de exclusão pelos
estruturalistas. O que autoriza a afirmação de que Saussure não é
estruturalista. Para Saussure, a fala não é excluída do sistema de signos
que é a língua, ela é somente distinta como objeto de estudo, mas não no
seu funcionamento.
Benveniste não faria, então, uma ultrapassagem em relação a Saussure,
mas um deslocamento nocional, visto que o conjunto de sua obra está ao lado
de Saussure, mas se opõe certamente ao estruturalismo. Nesse sentido, a
relação de interação, que é transformada em pares de exclusão mútua pelos
estruturalistas, é ultrapassada, reposta, pelo conceito de discurso.
Há para Henri Meschonnic um deslocamento, porque enquanto Saussure
preocupa-se com a definição e discussão do sistema da língua, Benveniste
discute o sistema linguístico da enunciação. Ideia que é corroborada
através do estudo do texto "O aparelho formal da enunciação", por exemplo,
publicado em Plg II.
Ferdinand de Saussure, através da definição de alguns conceitos, situa
as bases para a discussão mais tarde proposta por Émile Benveniste. De
acordo com Meschonnic:




la recherche du discours fait necessairement de Saussure
une lecture autre que celle du structuralisme, qui le
didactise et le scolarise en langue/parole,
synchronie/diachronie, avec le présupposé de rigueur de la
continuité entre Saussure et le structuralisme .
(MESCHONNIC apud DESSONS, 2006, p. 183-184)




Para Meschonnic, há quatro princípios que são fundadores de um
pensamento sobre o discurso que está presente em Saussure:




Le 'radicalment arbitraire' du signe, condition de
l'historicité radicale du langage, et du discours; la
pensée du foncionnement, à la fois contre l'origine et
contre les "subdivisions traditionnelles" (lexique,
morphologie, syntaxe); la valeur, contre la notion de
sens; et le système, contre l'historicisme, la
nomenclature, mais aussi la structure, avec laquelle le
structuralisme a confondu la notion du système (MESCHONNIC
apud DESSONS, 2006, p. 184)


Na Primeira Parte do CLG, Saussure discute sobre o conceito de
arbitrário do signo. Em um primeiro momento, tal discussão envolve a
arbitrariedade do significante em relação ao significado, ou seja, não há
ideias completamente acabadas que preexistam às palavras. Os dois elementos
desta composição – o significante e o significado – estariam intimamente
unidos e um reclamaria o outro. Argumentando sobre esta relação de
arbitrariedade, Saussure afirma que, como prova, temos as diferenças entre
as línguas e a existência de línguas diferentes, "o significado da palavra
francesa boeuf ("boi") tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira
franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro" (2004, p. 82).
No entanto, em tal discussão percebemos que a arbitrariedade da
língua no CLG diz respeito não apenas à relação entre significante e
significado, mas também à relação entre língua e realidade. Devido a essa
dupla arbitrariedade da língua, esta se constitui como o mais completo e o
mais difundido sistema de expressão, o que permite à Linguística erigir-se
"em padrão de toda a Semiologia" (2004, p. 82).
Outra consequência de se pensar a arbitrariedade da língua é que esta
se torna radicalmente incapaz de se defender dos fatores que deslocam a
relação entre o significante e o significado. Ao contrário de outras
instituições, conforme nos ensina o mestre genebrino, em que há uma
acomodação necessária entre os meios empregados e os fins visados, como a
moda por exemplo, a língua não está limitada por nada na escolha dos seus
meios, pois "não se concebe o que nos impediria de associar uma idéia
qualquer com uma seqüência qualquer de sons" (2004, p. 90).
O signo, considerado como arbitrário em relação à realidade e cuja
organização interna também se dá através de relações arbitrárias entre
significante e significado, mostra que a língua se organiza em um sistema
cujos valores são determinados pelo seu funcionamento. Ou seja, a língua
não é um conjunto de signos delimitados de antemão, uma vez que seus
valores emanam do sistema. Na língua, desse modo, só existem entidades
opositivas, relativas e negativas. Eis aqui o princípio essencial do
pensamento de Ferdinand de Saussure.
No capítulo IV, do CLG, denominado O valor lingüístico, o linguista
nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo como a união de um
som e de um conceito, na medida em que defini-lo dessa forma equivale a
isolá-lo do sistema, fazê-lo seria pensar ser possível começar pelos termos
e construir o sistema pela soma deles, enquanto cumpre partir da totalidade
solidária para obter os elementos que encerram.
O valor de um signo será fixado não apenas se nos limitarmos a
comprovar que pode ser trocado por um ou outro conceito, mas também se o
compararmos com valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor.
O conteúdo só é verdadeiramente determinado pelas relações que existem fora
do signo, visto que este está revestido não só de uma significação, mas
sobretudo de um valor. Desse modo, Saussure mostra que a parte conceitual
do valor é constituída unicamente por relações e diferenças com os outros
termos da língua, o que também ocorre com sua parte material.
Na língua, portanto, só existem diferenças, sem termos positivos. Esta
não comporta nem ideias, nem sons preexistentes ao sistema linguístico,
somente diferenças conceituais e fônicas que emanam do sistema. Segundo
Saussure, a prova disso é que o valor de um termo pode modificar-se sem que
lhe altere o sentido ou o som, unicamente pelo fato de um termo vizinho ter
sofrido uma modificação.
Os caracteres da língua se confundem com a própria unidade, como em
todo o sistema semiológico o que distingue um signo é tudo o que o
constitui. A diferença faz a característica, bem como o valor e a unidade.
Dito de outro modo, "a língua é uma forma e não uma substância" (2004, p.
141).
Tal concepção de língua enquanto sistema de signos permite a
Benveniste pensar no sistema linguístico da enunciação. Somente se
pensarmos a língua enquanto um sistema linguístico arbitrário, descolado,
portanto, da realidade, poderemos pensar a cisão que ocorre entre o sujeito
empírico, psicossomático, conforme Agamben, e o sujeito da linguagem.
O sistema da língua proposto por Ferdinand de Saussure é tomado por
Benveniste, que o cinde em dois mundos distintos, o semiótico e o
semântico. O mundo semiótico seria aquele que designa o modo de
significação próprio do signo linguístico, enquanto o mundo semântico seria
engendrado pelo discurso. Fazendo esta distinção, Benveniste permite que se
pense o discurso e, portanto, a subjetividade na linguagem.
Dessa forma, o sentido não se constrói mais somente nas relações
internas ao sistema da língua, mas está ligado a um sujeito da enunciação
que se constrói e se constitui no e pelo discurso em uma relação sempre
única, singular, irrepetível com a língua, uma vez que envolve a cada
enunciação um eu-aqui-agora.
Torna-se claro, portanto, que somente a partir do conjunto da obra de
Saussure foi possível que Benveniste desenvolvesse seu trabalho sobre
subjetividade, discurso e enunciação. Somente na continuidade do trabalho
de Saussure, Benveniste pôde desenvolver esse trabalho que está antes de
tudo em consonância com essa historicidade radical da linguagem e do
discurso.


Considerações finais

Ao considerar as discussões propostas no presente trabalho, pode-se
perceber que apresentamos um olhar, dentre outros possíveis, sobre a
reflexão de Saussure no CLG. Para a perspectiva aqui adotada, as noções de
arbitrário, valor, sistema e funcionamento são essenciais, ou seja, são
elas que sustentam todo o pensamento do mestre genebrino.
A noção de valor, tão cara a Saussure, está intrinsecamente
relacionada à discussão por ele proposta sobre o conceito de
arbitrariedade. Haveria, na língua, uma dupla arbitrariedade, de um lado, o
signo em relação à realidade e, de outro, do significante em relação ao
significado. Somente porque o valor do signo independe de sua relação com
a realidade – já que a língua não é uma nomenclatura – é que se pode
afirmar que é a partir da totalidade solidária das partes que se chega ao
valor das unidades.
Dessa forma, o sistema linguístico, considerado radicalmente
arbitrário, é responsável pela construção dos valores da língua. Esses
valores constroem-se na relação interna ao signo, entre significante e
significado, bem como na relação estabelecida entre as unidades do sistema.
Os valores emanam, portanto, dessas relações, isto é, do funcionamento do
sistema. Na língua, só existem entidades opositivas, relativas e negativas.
Deslocando tal reflexão para o sistema linguístico da enunciação,
Benveniste insere a discussão sobre a subjetividade na linguagem e sobre os
dois modos de significar da língua, o semiótico e o semântico. A partir de
tal deslocamento, pode-se falar de um sujeito que se constrói na e pela
linguagem, o que permite a Agamben dar ao linguista sírio o lugar daquele
que discute e teoriza sobre o sujeito da linguagem, portanto, o lugar
daquele que não só apresenta discussões e reflexões que são pertinentes
para o avanço dos estudos da linguagem, como também daquele que apresenta
um novo modelo de ciência, que se opõe, certamente, à ciência positivista.
Além disso, tal reflexão proposta por Benveniste permite também a
Agamben discutir o que denominou experimentum linguae, isto é, a
experiência que se constitui na e pela linguagem, também chamada pelo
filósofo de infância, donde nasce a história. Meschonnic, na mesma linha de
pensamento, afirma que de Saussure e Benveniste parte uma antropologia
histórica da linguagem, ou seja, a partir da reflexão proposta na obra dos
dois linguistas, é que se pode pensar que o sujeito se constrói e, ao mesmo
tempo, constrói a sua história, na e pela linguagem.
Percebe-se, portanto, que a leitura do CLG feita por Émile Benveniste
e que sustenta suas reflexões sobre a linguagem, que são retomadas e, de
certa forma, ampliadas por Giorgio Agamben e Henri Meschonnic, apontam para
um outro olhar sobre o pensamento saussureano. Olhar este que percebe o CLG
não mais como aquele que deu início ao movimento estruturalista, mas como
aquele que fornece as bases para se pensar uma antropologia histórica da
linguagem.


Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da
história. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BENVENISTE, É. "Estrutura" em lingüística. In: _____________ Problemas de
lingüística geral I. Campinas: Pontes Editora, 2005.
DELEUZE, G. Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In: Châtelet,
François (Dir.). História da filosofia, t. 8. O século XX, RJ, Zahar, 1974,
pp. 271-303.
DESSONS, G. Émile Benveniste, l'invention du discours. Paris: Press, 2006.
MESCHONNIC, H. Seul comme Benveniste. In: Dans le bois de la langue. Paris:
Editions Laurence Teper, 2008.
___________ . Critique du rythme: antropologie historique du language.
Lonrai, França: Éditions Verdier, 2009.
SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2004.




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[1] De acordo com Deleuze, não somente Saussure foi considerado aquele que
apresenta a linguística como origem do estruturalismo, mas também a escola
de Moscou e a escola de Praga.
[2] Atualmente, quando se faz referência a Ferdinand de Saussure, é preciso
que se explicite a que Saussure se está referindo, devido à publicação de
seus manuscritos, aos inúmeros estudos que se sucederam a essa publicação.
No entanto neste trabalho estaremos discutindo sobre o Saussure do CLG.

[3] Referimo-nos aqui aos Escritos de linguística geral, organizados e
editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler.
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