Em Angola, a Língua Portuguesa de quem é? A influência do dialeto Kisolongo na concordância verbo-nominal do Português de Luanda

May 23, 2017 | Autor: Eugenia Kossi | Categoria: Applied Linguistics
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Em Angola, a Língua Portuguesa de quem é? A influência do dialeto Kisolongo na concordância verbo-nominal do Português de Luanda Eugénia Kossi (UniPiaget)1

Resumo: O presente trabalho pretende discutir a problemática da fuga à Língua Portuguesa (LP) padrão, que muita gente chama de mau português, para uma que recebe traços dos pressupostos culturais de um povo que tem um passado secular. Tal memória alimenta uma tradição oral que se traduz na língua oficial com características identitárias próprias das línguas locais. Tendo como foco as várias influências linguísticas que o Português de Angola recebe, traçaremos uma comparação entre o Kisolongo e a língua trazida pelos europeus nas comunidades asolongo de Luanda. Queremos com isso mostrar que, apesar de a LP em Angola seguir uma norma europeia, já existe uma língua portuguesa angolana (LPA) com manifestações próprias que merecem ser estudadas do ponto de vista científico e social tendo como base a gramática gerativa e a variação linguística. Palavras-chave: Identidade, gramática gerativa, variação, Língua Portuguesa angolana. Abstract: This work has the purpose to study the problem of the standard Portuguese variation (LP) that many people consider bad Portuguese to one language that receives cultural features of a people with a past started centuries ago. Such memory feeds an oral tradition that creates a bound with the official language carrying an identity of local languages. Focusing the linguistic influences that the Portuguese of Angola receives, we will compare Kisolongo with the colonial language brought by the europeans in asolongo comunities in Luanda. Although the LP in Angola follows european rules, we want to demonstrate that an angolan Portuguese (LPA) already exists with characteristics deserving a social and cientific study focusing the generative grammar and the linguistic variation. Keywords: Identity, generative grammar; variation; Angolan Portuguese.

1. Introdução A presente pesquisa tem como objetivo identificar traços particulares do Português de Angola (LPA) que a diferenciem do Português de Portugal, evidenciando, desta forma, que a identidade cultural de um povo transparece na língua externalizada com características próprias da sua língua internalizada. 1

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Angola é um país multicultural que vai, por isso, emprestando à Língua Portuguesa (LP) características das suas línguas locais. Por este motivo, o estudo aponta para a problemática da concordância verbo-nominal ao comparar o Kisolongoi ao português, pois verifica-se a produção de frases como a do exemplo a seguir: 1 Nós ti vimu ontem

Oyetu twankumona ozono.

Evidencia-se aqui que o Kisolongo tem uma pluralização prefixal – afixos acrescidos ao radical mona – que é traduzida para o português como um processo de interferência a que nós chamamos de enriquecimento, pois aqui o português é falado por um povo que transporta a língua para o seu próprio contexto. Embora a capacidade de criatividade das pessoas possa traspassar a cultura com a criação de enunciados novos que não façam parte de uma ou de outra língua falada por elas, acreditamos que a aceitabilidade dos termos novos dá-se em comum acordo com toda a comunidade. Isto é, só há uso se os falantes os aceitarem e introduzirem no ato de fala. Assim,

os fundamentos da gramática universal

vêm

elucidar

sobre

as

características idênticas das várias línguas existentes mostrando uma base sólida do processo de aquisição da linguagem. Porém, é necessário que se faça uma observação também às variações linguísticas que ocorrem fruto das ligações entre as diversas línguas mostrando que as diferenças também são pertinentes. Este trabalho não pretende discutir sobre os conceitos de gramática universal ou de variação linguística, mas trazer à tona que há um processo identificatório na LPA que faz com que o falante faça escolhas linguísticas tendo em conta as suas necessidades. Neste intuito, baseou-se num corpus tendo em conta uma população mais escolarizada e menos escolarizada ou sem nenhuma escolarização, embora não faça recurso a dados estatísticos.

2. Identidade linguístico-cultural de um povo Para falarmos de cultura é interessante defini-la não só como uma forma de estar e de adquirir determinados conceitos de socialização, mas também como processo de interação. Daí a importância de se recorrer ao linguista suíço Saussure que fez uma distinção entre a língua e a fala, no aspecto em que a fala se realiza em sociedade, e provavelmente fundamenta-se na própria sociedade.

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Pois as relações que o indivíduo vai tecendo ao longo da sua vida permitem que ele não só mude consideravelmente o seu comportamento e os seus conhecimentos, mas também a sua concepção sobre a realidade por meio do pensamento e da linguagem. Obviamente, tais elucidações pessoais seguem algumas características, senão todas, do meio social em que ele está inserido. Embora possa, tendo em conta a sua criatividade, olhar além do seu mundo. Constrói a partir da infância e fortalece na vida adulta, nestes moldes, todo o seu processo de identificação. E a língua joga um papel crucial. Consequentemente, qualquer indivíduo de uma comunidade interage com outro explicitando os seus desejos e o seu saber com bases linguísticas da sua língua materna. Daí, provavelmente, a dificuldade de se aprender uma língua estrangeira na fase adulta, e para muitos angolanos o Português ainda é uma língua estrangeira. Porém, falamos aqui da aprendizagem do uso de uma língua oficial que, por imposição social, faz parte da comunicação dos vários indivíduos que compõem o território angolano. Usamos imposição pelo fato de haver obrigatoriedade do uso da Língua Portuguesa por não haver uma língua africana que faça o seu papel de abrangência nacional. Entretanto, o povo vai construindo e moldando a LP seguindo padrões internalizados das línguas africanas para não fugir da sua própria contextualização. Pois, falar como os portugueses não permite o grau de intimidade entre o falante e a língua. A explicitação do grau de intimidade, neste trabalho, põe-se no aspecto em que o falante é capaz de usar a estrutura complexa que a língua exige para expor de forma coerente e coesa as suas necessidades. Isto, tendo como base uma linguagem que consiga evidenciar o pensamento elaborado e complexo. Não temos, pois, em atenção o conceito gramatical do certo e errado.

3. O Português como língua do outro Além do grau de intimidade que, em alguns casos, é reduzida ou inexistente entre o angolano, neste caso o nsolongo, e a Língua Portuguesa Padrão (de Portugal), há ainda, dentro do conceito de gramática, uma banalização dos falares populares. Isto ocorre com a concepção de que o povo fala muito mal o Português, então é necessário falar esta língua como a usa o português.

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Neste contexto, quem fala bem o Português é o angolano que imita a Língua Portuguesa de Portugal. Se assim for, instala-se no povo um sentimento de repulsa em relação a desconhecida LPA, pois este povo não fala Português, segundo a concepção popular. Em várias pesquisas feitas neste âmbito, que não usaremos neste trabalho, a maior parte dos entrevistados declara que quem fala bem o Português são os portugueses e não os angolanos. Nos anos 90, massificou-se a ideia de que “afinar”ii a língua oficial era falar bem, sobretudo entre os intelectuais. Notou-se, com isso, o exagero no uso de expressões e uma prosódia descontextualizada. A consciencialização do exagero e a ridicularização popular fizeram com que houvesse pelo menos uma aceitação da prosódia angolana, mas ainda há resistência em se aceitar as características fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas próprias do falar Português em Angola que geram estruturas frásicas como no exemplo 2. 2 Me deu com ele este presente. Em Angola ainda é comum ouvir-se, mesmo entre os estudantes de linguística e intelectuais, que o português falado em Angola é mal falado, “não presta” porque “não falamos como os portugueses que o falam com perfeição”. Tal mentalidade encontra um fio lógico na escola onde os professores ensinam o português a uma turma multicultural tendo em conta uma visão eurocentrista e não com base na cultura e na diversidade linguística dos alunos, apesar de muitos terem no seu vocabulário somente o Português que se torna assim língua materna como defendem muitas correntes de estudiosos. Impõe-se aí uma controvérsia, pois o próprio povo nega o Português como sendo sua língua. O que nos leva a conceber que o preconceito gerado durante anos provocou conflitos até mesmo em indivíduos que só falam este idioma. O indivíduo está rodeado por um ambiente em que a elite impõe a Língua Portuguesa Padrão de Portugal (LPPP), mas utiliza palavras como jindungu (pimento), funji (pirão de farinha de mandioca), fuba (farinha de mandioca), kanjika, alembamento (casamento tradicional), kingila (cambista informal), o que gera uma perturbação, pois o indivíduo não sabe que língua fala e qual deve falar. Entre os asolongo, é comum a visão de que quem fala melhor são os de Luanda. Massificou-se a ideia de que aquele povo fala o português como se estivesse a falar o Kisolongo.

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4. A influência do Kisolongo sobre o processo de concordância da Lpa? Enquanto o processo de concordância do português ocorre no sufixo, o Kisolongo usa os prefixos para concordar.

4.1. Concordância verbal 4.1.1 Os verbos na terceira pessoa do plural Notamos que os verbos conjugados na terceira pessoa do plural oferecem certa dificuldade na pronunciação para o falante cuja língua interna é o Kikongo na sua variante Kisolongo. A ditongação não ocorre e o verbo mantém-se no singular (3 e 4) na maioria dos falantes não escolarizados ou com pouca instrução. Entre os intelectuais, a pronúncia muda, pois retiram os ditongos e nasalizam a vogal inicial (5 e 6). Embora alguns estudiosos no processo de desenvolvimento das primeiras gramáticas de Línguas regionais tivessem provado a existência de ditongos no Kisolongo tal como evidencia Lourenço Tavares (1915, 4): “Tanto no dialecto kisolongo, como nos diferentes do Kikongo, as sílabas são formadas: ou duma vogal, ou dum ditongo, ou duma simples consoante, ou duma consoante seguida de vogal ou ditongo…”. Tal fundamento baseava-se em palavras como muixi, diaki, muiku, muinda, mbua por exemplo. Segundo Bruno Okoudowa (2005, 40) o que ocorre é a semivocalização, pois há aqui a modificação da consoante palatalizada ou labializada que é um fonema. Portanto, com a noção das glides, as palavras passaram a escrever-se mwiku (utensílio para preparar o pirão), mwinda (lâmpada), dyaki (ovo), mbwa (não ou cão).

Quadro 1: Apresentação de falares segundo o nível de escolarização.

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4.1.2 Verbo ter e vir A utilização desses verbos remete-nos à observação da influência fonética do Kisolongo na LP, tal como foi discutido acima.

7 Eles não tem vergonha. 8 Eles vem todos os dias.

4.1.3 O pronome nós Com este pronome, o falante, ao rebuscar na sua língua internalizada, tem a noção que só precisa pluralizar o pronome nós e com isso o resto já terá a carga do plural.

Quadro 2: Apresentação de falares por nível de escolarização

Porém, há uma diferença mesmo entre esses falantes, a classe mais escolarizada tenta aproximar-se à língua padrão como vemos em 9.

4.1.4 Particularidades do verbo querer e comer O falante nsolongo utiliza determinados verbos como querer e comer transferindo a desinência de pessoa. Portanto, relativamente ao verbo querer, há uma troca entre a primeira pessoa e a terceira pessoa do singular (13, 14). Em Kisolongo, mais uma vez o prefixo comanda a concordância, somente levando a modificação dos índices ka e kin (13, 14). O verbo comer é utilizado, muitas vezes, com a desinência da terceira pessoa do singular com o pronome na primeira pessoa (15), o que vemos é apenas a diferenciação

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pronominal Mono (eu), Yandi (ele), e na terceira pessoa aparece o aumentativo e sempre em posição prefixal (16). 13 Ele não quero vir/vi

Kazolele kwizako

14 Eu não quero vir.

Kinzolele kwizako

15 Eu come bem.

Mono dya toma dyanga

16 Ele come bem

Yandi dya etoma dyanga

4.1.5 Verbo conjugado na segunda pessoa do singular com o pronome você Embora haja uma explicação histórica para o fato de se utilizar o verbo nestes moldes – o hábito do angolano ser obrigado a chamar o colonizador por você e ser chamado por tu fez com que a única referência que tivesse fosse do verbo na segunda pessoa do singular –, remetemos esse desconhecimento também à estrutura interna do falante, pois não tem na sua língua materna um pronome receptor com um verbo na terceira pessoa (17). 17 Você si aleijaste acumuiii antão?

4.1.5 O pronome quem 18 Fui eu quem comi a magogaiv. 19 Fui eu que comi a magoga. 20 Mono ndidi emagoga

Ocorre aqui a utilização do verbo a concordar com o pronome eu e não com o pronome quem com o qual obrigatoriamente o verbo concorda. O Kisolongo não faz construções deste tipo (20), embora, segundo Tavares, as funções dos pronomes que e quem sejam desempenhadas no Kikongo pelos pronomes demonstrativos e pelas partículas concordantes dos nomes ou prefixos de classe.

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4.1.6 O uso dos verbos auxiliares Tanto na classe menos escolarizada como na mais escolarizada, ocorre o uso da pluralização no verbo auxiliar, mas não no verbo principal (21 e 23), embora nas classes menos escolarizadas, as vezes os dois verbos não tenham morfemas de plural, passando a ter plural somente no determinante (22).

21 Os trabalhador foram escolhido na empresa. 22 Os trabalhador foi escolhido na empresa. 23 Nós samuv ralhado todos os dia na mãe.

4.2 Concordância nominal Como já nos referimos, na língua Kisolongo a pluralização prefixal leva a que os falantes não reconheçam o morfema – “s” sufixal da Língua Portuguesa. Assim, dependendo da classe em que a palavra se insere, o prefixo plural varia, tendo o falante a noção de várias formas de pluralizar as palavras como vemos nos exemplos da tabela 3.

Quadro 3: apresentação do número de alguns nomes na Língua Kisolongo.

Por este motivo, vamos ter, na LP, somente a pluralização dos determinantes (24) e a singularização dos outros sintagmas como o adjetival no sintagma nominal ou inserido no sintagma verbal como vemos em (24). Ocorre essa concordância implícita também na noção de género (24), pois, praticamente não existe. O que há são palavras específicas para dar a noção do masculino

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e singular. Porém, essa noção não se dá por meio de artigos, não há artigos como veremos nos exemplos 27 a 29, embora os gramáticos antigos como João Lourenço Tavares (1915, 7) tenham considerado os aumentativos como artigos, defendendo que a Língua Kisolongo tem somente artigos definidos: “Não há em kikongo senão artigos definidos. São eles: — a, e, o. Correspondem a o, a, os, as da língua portuguesa, e, como nela, apenas se empregam quando se fala de pessoas ou coisas determinadas”.

4.2.1.Determinante plural e núcleo singular 24 Essas pessoa no tá bom

Eyantu yawawa kebena kyabizako

25 Estes caminho tem muito capim.

Jinjila zaji cici mpampa jinina.

26 Os filho num mi respeita.

Eyana yawawa kebekunvuminangako.

4.2.2. Troca do determinante feminino pelo masculino e vice-versa O missionário Lourenço Tavares (1915,24) classifica a maioria dos nomes em Kikongo como sendo epicenos exceto as palavras “dise, tata (pai), ngudi, mama, ngua (mãe), nkala (homem), nkentu (mulher)”. Portanto, o uso dos determinantes na especificação do nome na LPA fica condicionado ao uso da gramática implícita gerando os exemplos abaixo:

27 O areia

nsenge

28 A menino/O menina

mwana

29 O cabeça

ntu

Podem ocorrer os aumentativos no Kisolongo onsenge, omwana, ontu, mas eles não dão a indicação de gênero, ou seja, não determinam o nome. Utilizam-se as expressões homem (yakala, mbakala ou dikoko) ou mulher (nkentu) em nomes específicos de animais e pessoas: mwana nkentu (menina), mwana eyakala (menino), ngombe yambankala (boi), ngombe yankentu (vaca), por isso ocorre muitas vezes em português, a concordância de género feita com o uso de homem e mulher na denominação de alguns nomes: 30 Filho de homem, e filho de mulher – o filho, a filha

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31 Avô de homem, avô de mulher – o avô, a avó

5. Uma Língua sem preconceito 5.1. A gramática universal Apesar do gerativismo não explicar a influência de fenómenos exteriores e culturais que permitam a variação da língua, ela tem uma teoria que desmistifica a poder que a elite construiu em volta da língua padrão. A teoria da Gramática Universal que se baseia na unidade linguística entre todas as línguas humanas, segundo Genaro Chierchia (2003,7), “oferece um esquema geral, um sistema de categorias, regras e princípios que governam o comportamento de qualquer língua e permitem produzi-la ou “gerá-la””. Acreditamos que a gramática implícita, como vimos no capítulo da concordância, influencia de tal forma a Língua Portuguesa tendo como base a estrutura da variante Kisolongo:

32 Este é o problema que estamos com ele. 33 Este é o problema que temos.

Joga aqui, além de um papel cultural, na própria organização do pensamento, uma estrutura profunda:

34 Estamos com problema. 35 Este é o problema.

Temos duas acepções que evidenciadas na mesma frase permitem-nos perceber que o indivíduo, ao construir a sua frase, explicita com base na sua gramática interna que o problema faz parte da sua condição de sujeito, ele não o tem (rejeita este verbo), pois modifica a sua relação com a comunidade, faz parte de si, por isso precisa resolvê-lo. Só que a junção das duas concepções 34 e 35 provoca uma estrutura incompleta, pois o verbo estar precisa na Língua Portuguesa de uma complementação na estrutura superficial, daí 37 e não 36.

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36 Este é o problema que estamo… 37 Este é o problema que estamo com ele.

Além disso, o sujeito depara-se com uma estrutura que não encontra na língua externalizada e precisa fazer escolhas para não provocar a repetição do complemento – problema. Com este intuito substitui-o por um termo anafórico (pronome) (37).

5.1.1. A indeterminação do sujeito Outra questão que nos remete ao poder criativo do falante é o uso da indeterminação do sujeito na Língua Portuguesa pelo falante nsolongo.

38 Eu estou a tomar o pré-natal e o ferro. 39 A minha médica só me deu ferro. 40 Já fizeste todos os exames? 41 Ainda não, me mandaram só fazer aqueles primeiros. 42 Me mandaram na médica.

A médica nesta frase aparece como complemento circunstancial, mas na estrutura profunda é na verdade o sujeito da oração. Nesta conversa entre dois sujeitos, quem manda o segundo fazer os exames é a médica. Assim na estrutura padrão teríamos:

A médica mandou-me fazer os exames.

Na variante Kisolongo, não existe a noção de indeterminação do sujeito, este pode não vir expresso, como vemos nos exemplos (43, 44), mas os índices de sujeito (ba, a) não podem ser retirados: 43 Bankuvanika ezalu.

Deram-me colher

44 Ankuvanika ezalu.

Deu-me colher

45 Nkuvanika ezalu.

agramatical

46 Vanika ezalu

Dar colher

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5.2. A Variação linguística A língua humana sofre mudanças próprias de cada geração, de cada povo. Assim sendo, o dinamismo das sociedades permite que se façam adaptações linguísticas que obedeçam à funcionalidade da própria língua num dado momento. Tal como observa Ávila (2004, 6) “uma língua poderá sofrer modificações pelos falantes a fim de que possa ser útil ao ponto de um falante nativo conseguir se comunicar e expressar o que bem entender através dela”. Tendo em conta estas diferenciações legítimas da estrutura da mudança do próprio pensamento humano, apresentam-se variações. Cunha e Sintra (2004, 3) apontam as variações diatópicas, e diastráticas, diafásicas. É impossível separar o indivíduo das particularidades de uma língua alheia por causa dos contatos sucessivos e interculturais que as sociedades vivenciam. Portanto, o contato entre línguas permite que se transformem. Obviamente que as variações podem ocorrer dentro da própria língua tendo em conta as necessidades de comunicação que uma determinada comunidade possui e não só pelo contacto com outras culturas. Portanto, o dinamismo da própria sociedade orienta as transformações linguísticas, por isso a língua é dinâmica. Nesses moldes, o conceito do “certo” e do errado” que condiciona o falante angolano a crença errada de que não fala o Português, deve merecer uma repreensão, pois as mudanças são naturais. Isto remete-nos à noção de que uma língua não é só patrimônio de quem a possui como materna, mas também de quem a adquire e a usa regularmente. Embora se defenda em determinados círculos angolanos que a nossa Língua Portuguesa Padrão seja a variante portuguesa, é nas línguas regionais que os indivíduos buscam suporte para levá-la a um processo de identificação cultural. Assim, o uso de um vocabulário que se assenta nas línguas regionais é evidente como o uso do calão (47, 48, 49, 50, 51) falado não só por jovens, mas que já se está a tornar, não numa variação de uma faixa etária, mas do próprio português dos defensores do Português Padrão de Portugal (51). Isto porque não há uma aceitação clara de um Português Padrão com influência angolana.

Calão 47 Mo kota, aquele mambuvi mi pertence.

Português Padrão

Mais velho, aquela coisa é minha.

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48 Ndenge, o salu tá a batévii.

Menino, o trabalho está interessante.

49 O mo kamba veio.

O meu amigo veio. viii

50 Encontrei o madye . 51 A kingila está desesperada.

Encontrei aquele indivíduo. A Kingila está desesperada.

Esta análise exige que façamos várias perguntas que ainda estão sem respostas concretas: estamos perante um processo de transformação da LP em Angola? Obviamente que sim. E mesmo que aceitemos que haja indivíduos de origem africana cuja língua materna seja o Português, mas de que variante estamos a nos referir? Aceita o sujeito esta alegação sem dúvidas sobre a sua origem como africano? Existe já uma variante angolana do Português com uma estrutura muito bem delimitada, embora careça de estudos mais profundos. E a mesma tem outras variantes regionais: do leste, norte, sul, centro.

52 Agora vamu fazé acumu antão? 53 Isso tá mbora deferente. 54 Magi vucé num falaste. 55 Meu avó de mulher num quero memu 56 Mo mpai vai im (ir) na escola. 57 Xé, li estranhei. 58 Lhe deram na mãe dele.

6. Algumas considerações Observamos com este trabalho que a posição prefixal da pluralização da língua Kikongo evidencia-se na Língua Portuguesa, mostrando, segundo a concepção de Halldór Ármann Sigurðsson (2011, 29), que o processamento da língua externalizada ocorre porque o falante descodifica-a relacionando-a à sua língua internalizada como se fosse esta. Desta forma, as variações ocorrem em sociedade, pois é necessário que uma determinada regra seja reconhecida por todos os membros para que se torne usual numa comunidade. Assim, em Angola fala-se o Português, mas respeitando-se as particularidades próprias de diversas comunidades, o que se chama Português angolano.

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Embora, seja importante enfatizar que a interação comunicativa que permite tal variação seja um dom da complexidade cognitiva dos falantes na comunidade. Pois, sem isso, acreditamos que haveria uma limitação no uso do léxico apreendido e na sua contextualização linguística e sociocultural.

Notas i

Kisolongo – variante kikongo da província do Zaire (norte de Angola). Termo utilizado em Angola para explicar o uso exagerado da prosódia de Portugal (hipercorreção). iii Variação da conjunção como. iv Termo utilizado para nomear o pão com frango frito. v Variação do verbo ser na primeira pessoa do plural. vi Do Kimbundu: furúnculo. Mas sofreu uma variação semântica e é utilizada no calão como coisa; vii Verbo bater com a conotação de interessante e com a variação do infinitivo; viii Do Kimbundu: marido dela. No calão é utilizado como alguém ou aquele indivíduo; ii

Referências CHIERCHIA, G. Semântica. São Paulo: Editora da Unicamp, 2003. CHOMSKY, N. Reflexões sobre a Linguagem. São Paulo: Editora Cultrix, 1980. COOK, V. J., NEW SON, M. Chomsky’s Universal Grammar: an Introduction. Third Edition. Oxford: Blackwell publishing, 2007. OKOUDOW A, B. Descrição Preliminar de Aspectos da Fonologia E da Morfologia do Lembaama. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005. OTHERO, G. de Á. Sobre a Evolução Linguística. Revista Letra Magna, Rio Grande do Sul, ano 1, n.01, 2º semestre, 2004. Disponível em: http://www.le- tramagna. com/ gabriel davilla othero.pdf. Acesso em: 20 de 06 de 2013. SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. SIGURÐSSON, H. Á. Uniformity and Diversity: A Minimalist Perspective. Linguistic Variation 11: 2, Jonh Benjamins Publishing Company, 2011, pág. 189 -222. Disponível em: http://halldorsigurdsson.files.wordpress.com/2012/07/linguistic -variation-final.pdf. Acesso em: 14 de 08 de 2013. TAVARES, J. L. A Gramática da Língua do Congo (Kikongo): Dialecto Kisolongo. Luanda: Oficinas de Imprensa Nacional de Angola, 1915.

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