Em Busca da Democracia, 1960-2000

June 7, 2017 | Autor: António Costa Pinto | Categoria: Portuguese History, Democratization, Authoritarianism, Decolonization
Share Embed


Descrição do Produto

18mm

E

Marcello Caetano, em 1968, inaugurou

ntre 1960 e o fim do século XX,

Portugal conheceu um triplo movimento de crescimento económico, um simultâneo processo de democratização e descolonização e de adesão à União Europeia. O país inaugurou, nos anos de 1960, um processo de mudança significativo, marcado por um acelerado

um breve período de «liberalização», rapidamente encerrado, provocando, com o seu continuísmo colonial, a queda descontrolada do «Estado Novo», em 1974. O golpe de 25 de Abril de 1974 desencadeou, então, um rápido e complexo processo de democratização

crescimento económico e por uma nova vaga emigratória para a Europa. No campo político, o desencadear das guerras coloniais foi a marca decisiva dos anos derradeiros da Ditadura. O afastamento

e de descolonização. Consolidando a sua democracia, Portugal retomou, com a adesão à União Europeia em 1986, um período de mudança económica e social cuja erosão começou a ser visível em 2000.

VOLUME 5

nacional num enquadramento mais amplo: ibérico, atlântico e global. Uma tal perspetiva proporciona as chaves para o estudo das relações da História de Portugal com a América Latina e permite estabelecer uma agenda temática diversa, apresentando diferentes aspetos da realidade portuguesa a partir das perspetivas económica, política, social, diplomática e cultural.

A BUSCA DA DEMOCRACIA 1960-2000

A coleção História Contemporânea de Portugal insere-se num projeto editorial mais vasto, intitulado América Latina na História Contemporânea, idealizado pela FUNDACIÓN MAPFRE e que conta já com publicações em dez países da América Latina, bem como em Espanha. A série sobre a História Contemporânea de Portugal, dirigida a um público alargado e diverso, situa a história

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DE PORTUGAL: 1808-2010

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DE PORTUGAL: 1808-2010

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DE PORTUGAL: 1808-2010 DIREÇÃO ANTÓNIO COSTA PINTO NUNO GONÇALO MONTEIRO

VOLUME 5

A BUSCA DA DEMOCRACIA 1960-2000

de Salazar e a sua substituição por

COORDENAÇÃO ANTÓNIO COSTA PINTO

ISBN 9789898775429

9 7 8 9 8 9 8 7 7 5 4 29 >

ÍNDICE

ÍNDICE DE GRÁFICOS

15

CRONOLOGIA 17 AS CHAVES DO PERÍODO António Costa Pinto

19

A VIDA POLÍTICA 25 António Costa Pinto PORTUGAL NO MUNDO Nuno Severiano Teixeira

57

O PROCESSO ECONÓMICO 81 Luciano Amaral POPULAÇÃO E SOCIEDADE 113 António Barreto A CULTURA 145 João Pedro George BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

193

ÍNDICE ONOMÁSTICO 197 A ÉPOCA EM IMAGENS OS AUTORES

205

235

13

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 13

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 14

30/03/15 10:14

ÍNDICE DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – PIB per capita e PIB por trabalhador-hora em Portugal como % dos

países mais desenvolvidos, 1820-2007. Pág. 83 Gráfico 2 – Grau de abertura da economia portuguesa comparado com o dos

restantes países europeus, 1960-2010 .Pág. 85 Gráfico 3 – Despesa pública total como % do PIB, Portugal e médias dos países

europeus e desenvolvidos, 1950-2008. Pág. 86 Gráfico 4 – Défice orçamental, Portugal (% do PIB), 1953-2010. Pág. 87 Grafico 5 – Peso do sector empresarial público, Portugal e alguns países da

OCDE, 1982 e 1988. Pág. 94 Gráfico 6 – Balança de transações correntes, Portugal (% do PIB), 1960-2010.

Pág. 97 Gráfico 7 – Peso do sector empresarial público, Portugal e alguns países da

OCDE, 1998 e 2003. Pág. 105 Gráfico 8 – Rácio capital-trabalho vs PIB por trabalhador, 2010 (1000 euros).

Pág. 106

15

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 15

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 16

30/03/15 10:14

CRONOLOGIA 1960-2000

1960 – Adesão de Portugal à EFTA. 1961 – 4 de fevereiro – Início da Guerra Colonial (em Angola). Março/abril –

Golpe de Estado do general Botelho de Moniz pela demissão de Salazar. 1968 – 27 de setembro – Tomada de posse de Marcello Caetano, após incapa-

cidade física do ditador Oliveira Salazar. 1972 – 22 de julho – Acordo Comercial com a CEE. 1974 – 25 de abril – Golpe de Estado derruba a ditadura. 1975 – 25 de abril - Primeiras eleições democráticas para a Assembleia Cons-

tituinte; 25 de novembro - um Golpe de Estado assegura a vitória dos moderados e a rápida institucionalização da democracia; independência das Colónias Africanas. 1976 – 25 de abril – Primeiras eleições democráticas para a Presidência da

República e para a Assembleia da República. 1986 – 1 de janeiro – Adesão de Portugal à CEE. 1996 – 17 de julho – Fundação da Comunidade dos Países de Língua Oficial

Portuguesa (CPLP). 1999 – 1 de janeiro – Adesão ao euro.

17

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 17

30/03/15 10:14

PORMENOR DA IMAGEM DA PÁGINA 22

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 18

30/03/15 10:14

AS CHAVES DO PERÍODO 1960-2000 António Costa Pinto

Portugal inaugurou na década de 1960 um importante processo de mudança, marcado, no campo económico e social, por um acelerado crescimento económico e por uma vaga emigratória para a Europa. Convém não esquecer, como salienta António Barreto no capítulo 4 deste volume, que Portugal exibia, em 1960, vários títulos que o distinguiam da maior parte dos países europeus ocidentais. Um dos mais antigos e durável impérios coloniais. Uma longa ditadura pessoal moderna. O país europeu onde as taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil eram as mais elevadas. No campo político, o desencadear de uma guerra colonial prolongada foi a marca decisiva dos anos derradeiros da ditadura, entre 1961 e 1974. Oliveira Salazar reagiu com sucesso à crise de 1961 e 1962, que quase o apeou do poder, e resistiu tenazmente à pressão descolonizadora, até ao seu afastamento por questões de saúde, em 1968. O afastamento do velho ditador e a sua substituição por Marcello Caetano, outro professor de Direito e velho colaborador de Salazar, inaugurou um breve período de «liberalização», rapidamente encerrado, provocando com o seu continuísmo colonial a queda descontrolada do Estado Novo em 1974. Na década de 1960, o Estado Novo continuou a olhar para a vida cultural portuguesa com grande desconfiança, privilegiando as manifestações que inequivocamente servissem para engrandecer os denominados «valores portugueses» e esforçando-se por desativar ou mesmo anular e eliminar as produções consideradas subversivas. Em 1960, ao mesmo tempo que comemorava, com um frenesi místico, a figura do Infante D. Henrique, símbolo por excelência da colonização portuguesa e ótimo pretexto para se afirmar a inalienabilidade dos territórios ultramarinos, o regime continuava a enviar intelectuais para a prisão e

19

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 19

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

a expulsar outros das universidades. Na verdade, como se salienta no capítulo 5, da autoria de João Pedro George, a cultura portuguesa da década de 1960, tendo sempre como pano de fundo a ausência de liberdade, foi essencialmente uma história de protestos e de proibições; de exigências e de intransigências; de transgressões e de repressões, radicalizadas pela Guerras Colonial. O golpe militar 25 de Abril de 1974 em Portugal abriu então a 3.ª vaga dos processos de democratização na Europa do Sul. Portugal conheceu uma transição por rutura, ou seja sem qualquer pacto ou negociação entre a elite da Ditadura e as oposições. Ainda sem grandes constrangimentos internacionais pró-democratizadores e em plena Guerra Fria, a rutura provocada pelos militares portugueses, deu lugar a uma crise acentuada do Estado, potenciada pela simultaneidade entre democratização e descolonização do último império colonial europeu. Portugal sofreu também, durante este curto período de 1974-75 uma significativa intervenção externa, não só diplomática, como também na própria estruturação dos partidos políticos, organizações da sociedade civil e na estratégia político-militar antiesquerdista no «Verão Quente» de 1975. Por outro lado, o caso português foi tema divergente nos fora internacionais, da NATO à CEE, passando pelas relações entre estas instituições e o então bloco socialista, dirigido pela União Soviética. Quaisquer que sejam os indicadores escolhidos, parece não oferecer dúvidas que o período de 1974-75 em Portugal conheceu grande «saliência internacional». É neste complexo período de transição democrática que se dá, como lhe chamou o historiador Norrie MacQueen, «uma compressão dramática do timing do fim do império». Além da pressão internacional e dos movimentos de libertação, tratava-se de uma vontade global de descolonização rápida que caracterizava um segmento importante dos atores políticos da democratização, do MFA aos partidos de centro-esquerda e direita. A democratização e a descolonização de 1975 representaram o processo de rutura mais importante deste período. Se lhe acrescentarmos a consolidação de uma democracia semipresidencial e a rápida adesão à então Comunidade Económica Europeia, em 1986, o retrato de rutura com o passado autoritário fica completo. Reafirmando a sua identidade europeia, mantendo-se otimistas sobre a União Europeia e a integração portuguesa ao longo da década de 1980, os Portugueses não passaram por sérios problemas de identidade com o fim do império colonial, em 1975, ou com a sua nova inserção internacional no espaço europeu, em 1986. No primeiro capítulo desenvolvem-se estes três temas. Os mais marcantes da história política de Portugal entre 1960 e 2000.

20

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 20

30/03/15 10:14

A S C H AV E S D O P E RÍ O D O 1 9 6 0 - 2 0 0 0

Como salienta o segundo capítulo, da autoria de Nuno Severiano Teixeira, a entrada de Portugal na CEE também conferiu às suas relações pós-coloniais uma nova dimensão: Portugal procurou, a partir de então, rentabilizar a sua integração europeia nas relações com os países de expressão portuguesa, isto é, procurou funcionar como placa giratória entre os seus «novos parceiros» e as suas «antigas colónias». A constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) seria a sua concretização mais cabal. No campo económico, os anos de 1960 a 2000 corresponderam ao período de mais rápido crescimento da economia portuguesa em toda a sua história. Foi nessa altura, como salienta o capítulo terceiro, que ela inverteu de forma duradoura a trajetória de divergência relativamente às economias mais desenvolvidas que a caracterizou durante a segunda metade do século XIX e o princípio do século XX, recuperando mesmo grande parte do terreno então perdido. Durante o primeiro período, de 1960 a 1973, o crescimento fez-se a taxas consistentemente elevadas, levando a um encurtamento sistemático da distância para as economias mais ricas. Estes anos podem ser vistos como a versão portuguesa daquilo a que em França se chamou «les trinte glorieuses» ou, nos países anglo-saxónicos, a «Golden Age» do crescimento económico do pós-guerra. Durante o segundo subperíodo, esta evolução foi interrompida enquanto tendência de longo prazo. Apenas entre 1986 e 1992 registou a economia um comportamento semelhante ao da década de 1960. Nos restantes 26 anos deste subperíodo, esse comportamento foi muito intermitente. Acrescendo que estes anos antecedem aquela que tem vindo a ficar conhecida em Portugal como a «década perdida», de 2000 a 2010, em que a diferença para os países mais ricos se alargou seis pontos percentuais. Embora esta década esteja fora do âmbito cronológico do corrente texto, não pode deixar de ser mencionada, uma vez que, como salienta Luciano Amaral, trouxe a economia de volta à divergência persistente, algo que não se verificava há mais de um século. Em conclusão, se excluirmos a segunda metade da década de 1980, a maior parte do período democrático inaugurado em 1974, quando medido através do PIB per capita, é de estagnação comparativa. Se, em termos económicos, Portugal mostrou muitas dificuldades em convergir com os países que elegeu como modelo, o mesmo não aconteceu em termos institucionais: de facto, o país transformou-se numa democracia liberal, dotado de um Estado-Providência desenvolvido, como se explica no capítulo 4, da autoria de António Barreto. A chegada de Portugal a este padrão deu-se tardiamente, o que teve custos, pois enquanto os países europeus ocidentais construíram os seus Estados sociais num período de grande prosperidade, Portugal,

21

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 21

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Eduardo Gageiro Marcello Caetano e Américo Tomáz – sede da PIDE, 1974 © Eduardo Gageiro, SPA 2015

ao contrário, fê-lo em pleno abrandamento do crescimento económico, com consequentes e inevitáveis dificuldades para o seu financiamento. Entre 1960 e 2000, as mudanças na sociedade portuguesa foram dramáticas. Em menos de quarenta anos, embora fosse o mesmo país, passou a viver-se numa sociedade muito diferente. Alguns dos traços essenciais do Portugal de 1960, incluindo fatores históricos de longa duração, desapareceram: não só elementos tradicionais, mas também aspectos estruturais da população e da sociedade, assim como características dos comportamentos e das mentalidades. A terciarização foi rápida e completa, com a redução drástica do sector primário e a estabilização da população industrial. A fundação do Estado-Providência democrático ficou muito a dever ao crescimento económico, à pressão das classes médias e às mudanças sociais ocorridas a partir da década de 1960. Mas, a rapidez da mudança, associada à posição periférica de Portugal e à pobreza geral de recursos, esteve entre as primeiras

22

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 22

30/03/15 10:14

causas dos desequilíbrios entretanto criados. Ao fim de quarenta anos de evolução acelerada e de aproximação constante dos níveis de desenvolvimento europeus, o país encontrou-se, em 2000, a braços com uma sempre muito baixa produtividade, a falta de capital e de organização empresarial e a escassez de recursos financeiros públicos. As expectativas e as aspirações dos Portugueses eram, em 2000, numa sociedade aberta e plural, as de qualquer cidadão dos mais desenvolvidos e ricos países europeus, mas os fatores acima assinalados iriam marcar negativamente a viragem para o século XXI em Portugal.

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 23

30/03/15 10:14

PORMENOR DA IMAGEM DA PÁGINA 33

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 24

30/03/15 10:14

A VIDA POLÍTICA António Costa Pinto

Portugal conheceu na década de 1960, um importante processo de mudança económica e social, marcado, por um acelerado crescimento e por uma vaga emigratória para a Europa. No campo político, a marca decisiva dos anos derradeiros da Ditadura, foi o desenvolvimento de uma Guerra Colonial prolongada. O velho ditador Oliveira Salazar reagiu com sucesso à crise, resistiu diplomática e militarmente à pressão descolonizadora até que, em 1968, uma queda a contemplar o mar lhe provocou um acidente cardiovascular-cerebral. A sua substituição por Marcello Caetano nesse mesmo ano de 1968, outro Professor de Direito e velho colaborador de Salazar, inaugurou um breve período de «liberalização», rapidamente encerrado, provocando com o seu continuismo colonial a queda abrupta do Estado Novo. O golpe militar de 25 de Abril de 1974 abriu então um processo simultâneo de democratização e de descolonização. A DÉCADA DE 1960: CRESCIMENTO, MUDANÇA E GUERRA

Ao cultivar a imagem de uma nação isolada no seu combate pela civilização ocidental em África, o salazarismo devolveu à controlada opinião pública portuguesa da década de 1960 um retrato a preto e branco do seu posicionamento internacional. Na realidade, este isolamento foi bem menor do que a oposição ao salazarismo desejaria e não exatamente quando mais seria de esperar. No campo dos seus aliados mais importantes, só os EUA, sobretudo durante os anos iniciais da administração Kennedy, ensaiaram uma pressão ativa para a descolonização de Angola. Quando, alguns anos mais tarde, a guerra alastrou à Guiné e a Moçambique, desgastando com maior eficácia as Forças Armadas Portuguesas,

25

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 25

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

e Salazar foi substituído por Marcello Caetano, a neutralidade colaborante do Presidente norte-americano Richard Nixon para com o colonialismo português será mais evidente e a pressão descolonizadora escassa. No seu conjunto, os 14 anos da Guerra Colonial assumiram pouca saliência internacional, quase reduzida ao seu início em Angola, entre 1961 e 1962, e seguramente ao seu fim, com o 25 de Abril de 1974. Subsumidas por conflitos localizados da Guerra Fria noutros continentes e, sobretudo, pela escalada do Vietname, as guerras de Portugal em África foram sofrendo um progressivo apagamento internacional em meados da década de 1960, para voltarem a gozar de algum destaque mediático, sobretudo negativo para a ditadura, na opinião pública dos países ocidentais, alguns anos depois. A Guerra Colonial gozaria também, com raras exceções, de uma neutralidade colaborante dos principais aliados de Portugal (EUA, França, Grã-Bretanha e República Federal Alemã), parceiros centrais da Aliança Atlântica. Curiosamente, o fundamental da guerra dar-se-á numa fase em que as colónias diminuíram o seu peso na economia portuguesa, a favor da Europa, particularmente a área da EFTA. Vistos em retrospetiva, os mais importantes agentes da resistência diplomática portuguesa às pressões descolonizadoras da comunidade internacional, e mesmo dos seus aliados, não eram novos e provaram o seu relativo sucesso: a condição de membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e a base norte-americana nos Açores. A muralha protetora da Aliança no contexto da Guerra Fria diminuiu o isolamento internacional e permitiu um apoio militar importante. Se considerarmos que o convite para membro fundador da NATO teve como motivo principal a utilização militar dos Açores, estes agentes quase poderiam ser reduzidos a este último. Entre 1961 e 1974 Portugal alimentou uma Guerra Colonial em três frentes. Ao contrário do que muito observadores previam, a resistência à descolonização da ditadura foi duradoura e as Forças Armadas Portuguesas prepararam-se para uma guerra de guerrilha que prometia ser prolongada. Ofuscada pela Guerra do Vietname, relativamente esquecida pela comunidade internacional, foi-se desenrolando sem grandes sobressaltos até à década de 1970, quando a situação militar se deteriorou para os portugueses na minúscula Guiné-Bissau. A guerra estava anunciada e o próprio Salazar já se referia a ela em 1959, reconhecendo que «o certo é que vamos ter uma guerra no Ultramar e será uma guerra de guerrilha». O discurso «luso tropicalista», doravante oficial, seria o de Portugal como «uma nação compósita-euro-africana e euro-asiática [que], estendendo-se por espaços livres ou desaproveitados, pretendeu imprimir aos povos conceitos muito diversos dos que depois caracterizaram outros tipos de

26

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 26

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

colonização (…)». Resistir seria a palavra de ordem do ditador, que nunca abriu uma porta a negociações e acabara de recusar qualquer liberalização do regime em 1958. Várias democracias desenvolveram guerras coloniais após 1945 e seria ocioso entrar aqui em longos exercícios contrafactuais. No entanto, parece razoável afirmar que, a estarem presentes alguns fatores de democratização no caso português, estes teriam levado seguramente a uma mais rápida solução negociada do problema colonial. De facto, a dimensão analítica mais importante para a explicação da longa duração da Guerra Colonial, parece ser a própria natureza ditatorial do regime político português nessa época. Falhada a tentativa de derrube de Salazar por uma parte da hierarquia das Forças Armadas, o ditador e a sua elite política conseguiram reequilibrar e «congelar» o sistema político que, sem derrota militar previsível, se limitou a resistir, rejeitando qualquer procura de solução negociada. O futuro do regime transformou-se assim no futuro da guerra. Muito embora o início da resistência ao colonialismo português se prenda com as próprias revoltas contra a colonização, e esta história esteja cheia de mitos fundadores, parece consensual iniciar nos movimentos antissalazaristas do pós-guerra as origens políticas de alguns dirigentes nacionalistas que protagonizaram a luta pela independência das colónias portuguesas. Importa, no entanto, sublinhar que esta foi apenas um faceta da diversidade de formações e percursos dos nacionalistas das colónias portuguesas, muitos dos quais nunca conheceram a metrópole e tiveram uma relação cultural e política bem mais ténue com Portugal e com a oposição eleitoral e clandestina ao salazarismo. O redespertar étnico, a missionação protestante ou a emigração para países vizinhos e, sobretudo, a vaga das independências no Norte do continente africano, foram os grandes viveiros dos primeiros movimentos nacionalistas das colónias portuguesas. As primeiras elites independentistas germinaram entre o reduzido sector assimilado, muitas vezes mestiço, de Cabo Verde, Angola e Moçambique. Na Guiné-Bissau foram cabo-verdianos, na sua maioria, os primeiros a criar movimentos autonomistas. Muitas das clivagens que marcaram os movimentos anticoloniais, nasceram da socialização diferenciada desta reduzidíssima elite, alimentada e formada quer pelo escasso aparelho escolar colonial, quer, sobretudo, pelos missionários protestantes e católicos. Alguma desta formação seria continuada nas universidades da metrópole, em contacto mais estreito com a oposição ao salazarismo. Foi entre o escasso número de africanos que vinham estudar para a metrópole que vieram a revelar-se alguns dos futuros dirigentes dos movimentos de libertação, caso dos cabo-verdianos Amílcar Cabral e Vasco Cabral,

27

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 27

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

dos angolanos Agostinho Neto e Lúcio Lara, ou do moçambicano Marcelino dos Santos, entre muitos outros. Como assinalou um estudioso da Guerra Colonial, Patrick Chabal, os movimentos de libertação eram, antes de mais, nacionalistas e o desencadear da guerra foi uma «decisão mais prática do que ideológica». Acresce que os primeiros movimentos eram bastantes diversos, política e ideologicamente, divididos ainda por formas de dependência dos países vizinhos. Na perspetiva de uma descolonização rápida, vários sectores das elites e os poderes fronteiriços recém-chegados à independência apoiavam movimentos políticos, alguns preparando-se para uma luta mas douradora, outros à espera de negociações rápidas. Utilizando a tipologia do estudioso Patrick Chabal, os movimentos independentistas das colónias portuguesas dividiram-se entre «modernizadores» (com uma visão política universalista), «tradicionalistas» (mais ligados ao imaginário das sociedades africanas) e «etno-nacionalistas» (utilizando o nacionalismo para quase exclusiva promoção de interesses étnicos). Na Guiné e em Moçambique, o PAIGC e a Frelimo conseguiram cooptar os «tradicionalistas» ou deixá-los num estádio embrionário, na dependência de poderes externos. Em Angola, o MPLA perdeu esta batalha durante os anos da Guerra Colonial. Porém, nos três casos, os «modernizadores» sofreram um processo de viragem à esquerda durante os anos da guerra, dotando-se alguns deles de uma estrutura político-militar de tipo revolucionário, mais ou menos marxista ou mesmo marxista-leninista. A Frelimo é talvez o melhor exemplo: após uma guerra de guerrilha de uma dezena de anos, o movimento dirigido por Machel era um partido bem diferente da frente provisória fundada em 1962. Tinha-se transformado num partido revolucionário, bastante influenciado pelo marxismo, numa conjuntura de Guerra Fria. Na década de 1960 assistiu-se a uma diversificação crescente da oposição à ditadura e uma radicalização política de alguns dos seus segmentos. Contudo, alguma desta diversificação não teve que ver com a guerra, caso da emergência da extrema-esquerda, ainda que esta tenha provocado o aparecimento de certas formas de ataques violentos a objetivos político-militares, ausentes desde a década de 1930, e o desenvolvimento de certas ações bombistas da responsabilidade do próprio PCP e de organizações de extrema-esquerda. Mais significativo deste movimento de diversificação foram os discretos abalos numa das mais importantes escoras ideológicos do regime: a Igreja Católica, que tinha, até aí, sido um pilar importante do salazarismo e que, apesar de algumas tensões recentes, nomeadamente a referente ao caso do bispo de Porto, exilado em Roma por desafiar o ditador, apoiara a resistência à descolonização durante os primeiros anos da guerra.

28

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 28

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

Será sob a dupla influência do Concílio Vaticano II e da pressão dos seus pólos mais abertos à sociedade civil, como a Juventude Escolar Católica (JEC) e Juventude Universitária Católica (JUC), que a Igreja começou a ser confrontada com o problema da Guerra Colonial. Sob o «silêncio oficial», alguns grupos de católicos começaram a desafiar a hierarquia e o regime. Apesar da «abertura» de 1969, seria sob a chefia de Caetano que se dariam os casos mais mediáticos, como o afastamento do pároco de Belém, o padre Felicidade Alves, nesse mesmo ano, ou a prisão de vários católicos de esquerda na Capela do Rato, por ocasião de uma vigília pela paz, no final de 1973. O grande choque, para o regime e para a própria comunidade católica, seria, no entanto, o encontro entre os dirigentes dos movimentos de libertação africanos e o Papa, em 1970. Até à substituição do cardeal Cerejeira, foram poucos os sinais de moderação no integrismo católico dominante, com o Patriarca apressando -se a reprimir eventuais dissidências internas e recusando mesmo as tímidas reformas de Caetano, no sentido da autonomia do Estado da Igreja e da abolição da obrigatoriedade do ensino religioso. Os únicos conflitos que atingiram níveis mais elevados na hierarquia deram-se nas colónias, onde a internacionalização era, por razões óbvias, mais elevada. A «Primavera Marcelista» de 1968-69 permitiu a redinamização de vários sectores da oposição e o seu alargamento a instituições sindicais e a grupos de interesses, bastante mais controlados durante o salazarismo. No entanto, é difícil estabelecer uma correlação entre vagas de movimentos sociais e políticos oposicionistas e queda do regime. Retrospetivamente, aliás, as conjunturas do pós-guerra e de 1958, foram mais poderosas na expressão de um prenúncio de mudança como resultado de movimentos de desafeição. Marcello Caetano sofreria, porém, a verificação empírica de uma dificuldade: liberalizar mantendo a guerra. Ao escolher a segunda, provocou a queda descontrolada da Ditadura em 1974. A Guerra Colonial acabou por coincidir com um período de desenvolvimento económico e obrigou mesmo Salazar a medidas de liberalização e abertura ao investimento externo, à revelia das suas convicções. No entanto, muito embora conhecendo um crescimento acentuado na década de 1960, como toda a Europa do Sul no mesmo período, Portugal não deixava de ser um país relativamente atrasado e pobre. O mais pobre do Ocidente europeu. Algumas das teorias em voga nas décadas de 1960 e 1970 do século XX apresentaram a Guerra Colonial como única alternativa para defender um império que era, para a ditadura, economicamente imprescindível e não passível de modelos neo-coloniais de dominação. Vários estudos salientaram, entretanto,

29

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 29

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

não ser seguro que uma descolonização rápida, em 1961, tivesse desastrosas consequências económicas. Por outro lado, algumas destas teses cometeram o erro de subestimar o desenvolvimento português na década de 1960 e o afastamento da economia portuguesa de África para a Europa, exatamente nesta década central da Guerra Colonial. Uma outra questão, também complexa, é a de saber se a guerra constituiu um fator de desvantagem em termos de desenvolvimento económico, pois os seus custos tiveram de facto efeitos ambíguos na economia portuguesa. Apesar disso, parece seguro afirmar que a guerra desviou fundos apreciáveis de duas áreas fundamentais durante a década de 1960: a do investimento em infraestruturas viárias e de transporte em geral, e a da educação. Uma consequência da guerra foi, de forma menos irónica do que poderia parecer, a emergência de uma vaga real de crescimento económico em Angola e em Moçambique, com uma acentuada melhoria das condições de vida das populações locais, uma extensão da escolaridade e dos cuidados primários de saúde, muito embora o ponto de partida fosse baixo. Angola representou o exemplo mais paradigmático deste movimento de crescimento económico durante a década de 1960. Menos tocada pela guerra e alvo de maior investimento metropolitano e internacional, a economia angolana cresceu 7,8% por ano entre 1960 e 1973, adquirindo rapidamente a 3.ª posição no rendimento per capita em África. O início da exploração de petróleo, na segunda metade da década de 1960, acelerou uma economia já rica em recursos minerais, aumentando o investimento estrangeiro. Outra conclusão relativamente pacífica é a de que no final dos anos de 1960, as colónias representavam um peso negativo na despesa pública, com uma dívida acentuada a Lisboa, num altura em que, para citar o historiador Clarence-Smith, um estudioso do colonialismo português, «Portugal no longer needed the colonies to pay its way». Apesar das divergências sobre o papel da guerra no crescimento económico, a opinião do mesmo segundo a qual «A guerra foi realizada mais para defender o regime do que para salvar a economia», parece assim ser bastante credível. Ainda nesta década, Portugal conheceu uma das maiores mobilizações militares da sua população jovem e o impacto social e político da guerra na metrópole foi enorme. Em percentagem, Portugal mobilizou cerca de 1% da sua população para a guerra, algo que só era excedido na época por Israel. Como nota comparativa, seria equivalente aos Norte-Americanos recrutarem dois milhões e meio para o Vietname, em vez dos 500 000 que para aí foram mobilizados.

30

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 30

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

O aumento do recrutamento nas próprias colónias impôs-se naturalmente como a via menos dolorosa para manter o nível de tropas requerido e a «africanização» dos combatentes portugueses foi um facto, sobretudo a partir de 1970. Os efetivos recrutados nas colónias passaram de 30% em 1966, para 40% no final da década, mantendo-se pouco acima dessa percentagem até ao fim do conflito. A percentagem foi, no entanto, diferenciada nos três teatros de guerra, mantendo-se em Angola à volta dos 42%, em Moçambique acima dos 50% e na Guiné apenas nos 21%. Estas percentagens referem-se apenas ao exército; aumentam se considerarmos todas as forças militares e militarizadas. Além da sua presença na tropa regular, o recrutamento de africanos alargou-se também bastante para as formações especiais. A «africanização» não representou, por si, qualquer inovação particular, sendo modelada em guerras semelhantes dos Franceses, dos Ingleses e dos Norte-Americanos, e na já velha tradição dos próprios Portugueses nas colónias. A sua utilização foi, no entanto, bastante alargada, sendo, segundo os dados disponíveis, superior aos dos primeiros na Argélia e dos EUA no Vietname, entre 1963 e 1973. De mais difícil resolução foi o problema do quadro de oficiais profissionais, com o rápido declínio dos candidatos às academias militares. A partir de 1966, o número de candidatos às academias era já menor do que os lugares disponíveis e a proporção baixou sempre até 1974. Além de outros expedientes, como ir buscar à Escola Central de Sargentos alguns candidatos, sucederam-se opções de reserva, como as de prolongar o contrato dos oficiais milicianos, dando-lhes a possibilidade de passarem ao quadro, o que iria provocar algumas tensões corporativas que estiveram na origem da criação do Movimento dos Capitães e do derrube da ditadura em 1974. Se considerarmos como número válido o de 8300 mortos durante os 13 anos de guerra, referido por uma comissão oficial das Forças Armadas Portuguesas, ele foi de facto relativamente baixo e parece provar o carácter de «low cost conflict» da Guerra Colonial. Por outro lado e contra a propaganda da guerrilha independentista, o recrutamento de africanos não transferiu para estes o fundamental dos mortos e feridos em combate. Segundo as estatísticas disponíveis, a proporcionalidade de mortos e feridos manteve-se, continuando a tocar a Metrópole. No entanto, mesmo que, em termos comparativos, o número de mortos tenha sido relativamente baixo, o seu impacto na população foi brutal e agravou-se sobretudo com a longa duração da guerra e a invisibilidade de qualquer solução de compromisso a prazo. O número de feridos e mutilados de guerra aproximou-se dos 28 000. Ainda que o impacto social, traduzido

31

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 31

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

em aumento de uma opinião pública antiguerra, seja de difícil reconstituição, dada a natureza ditatorial do sistema político vigente em Portugal nesta época, a Guerra Colonial e seu cortejo de violência marcou de forma duradoura a sociedade portuguesa. O MARCELISMO, A GUERRA E A QUEDA DA DITADURA

Marcello Caetano herdou um país diferente no verão de 1968, mais europeu, em termos de trocas económicas, e esboçou inicialmente algum ímpeto liberalizador. Caetano tinha sido um dos raros notáveis da ditadura a propor a evolução para um federalismo prudente em 1962, mas, quando chegou ao poder, nenhuma alteração foi esboçada na frente colonial, optando-se pelo continuísmo da guerra, quer no discurso político quer no empenho estratégico, reafirmado pela sua viagem às colónias em 1969. O esforço de guerra não deixava de aumentar, apesar de num quadro de crescimento económico. Em 1970, Portugal despendia 45% do orçamento em defesa e segurança. Com uma força militar de 140 000 homens, como foi referido atrás, só Israel e os dois Vietname o batiam em percentagem perante o total da população. A vitória de Nixon nas eleições presidenciais, em finais de 1968, foi vista como uma bênção por Lisboa. Republicano conservador, Nixon tinha experiência internacional e conhecia bem o problema das colónias portuguesas, tendo criticado várias vezes a política africana de Kennedy, o que prognosticava que, à «neutralidade benigna» de Johnson, talvez se seguisse o apoio sem reservas. Uma medida tomada de imediato pela nova administração norte-americana foi a de ordenar o encerramento de todos os contactos com os movimentos de libertação das colónias portuguesas. Para o poder branco, no Sul de África, a conjuntura foi boa, dado o relaxamento generalizado das restrições aos contactos com Portugal, África do Sul e Rodésia. Os investimentos norte-americanos nas colónias portuguesas eram já significativos, sobretudo em Angola, com a descoberta de petróleo em Cabinda. No final da década de 1960, algumas opiniões otimistas sobre resistência militar à descolonização, como as atrás citadas, já não refletiam bem a situação nas colónias portuguesas, e as «menores» estavam ausentes de qualquer consideração nos relatórios, caso da Guiné Bissau. No meio da indiferença perante o conflito português, havia, pelo menos, uma atitude de maior simpatia. A ditadura era, finalmente, nas palavras de Kissinger citado por Schneidman «um aliado da NATO defendendo o ocidente e os seus flancos africanos». Seria um

32

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 32

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

Miranda Castella Fotografia, 1974 Arquivo Histórico Parlamentar

pouco exagerado afirmar, como R. F. Holland, «que, paradoxalmente, a presença portuguesa em África convinha bastante às outras potências da NATO», mas a opinião de que o fundamental do «envolvimento económico e militar» dos EUA era pelo manter do «statu quo colonial», parecia um facto nas vésperas do golpe militar de 1974. A ditadura recebeu entretanto um «prémio diplomático». Produto, é certo, de um acaso favorável, Nixon e o Presidente francês Pompidou, encontraram-se nos Açores para discutir problemas de paridade cambial e Caetano não perdeu a ocasião. Um choque diplomático de sentido inverso e com profundas implicações na opinião pública portuguesa deu-se com o Vaticano, em junho de 1971, quando o papa Paulo VI, graças ao apoio de alguns católicos italianos, recebeu Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos em audiência. Para a elite do regime e para os valores do bloco sociológico que

33

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 33

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

o apoiava, a audiência aos chefes dos movimentos de libertação foi política e moralmente devastadora. Muito embora sempre controlada, a situação militar em Angola conhecia mudanças. O MPLA abria uma nova frente a leste, chefiada por Daniel Chipenda. A UNITA, negociava com as Forças Armadas Portuguesas um cessar-fogo informal, tendo como principal inimigo o MPLA. A FNLA mantinha a sua presença habitual no Norte. Em Moçambique, o general Kaúlza de Arriaga desencadeava a operação Nó Górdio, tentando destruir as bases da Frelimo no Norte, objetivo apenas parcialmente conseguido. A pior situação era a da Guiné, longe dos olhos das grandes potências, mas Caetano continuou a recusar qualquer contacto ou negociação. Em 1972, no entanto, Caetano autorizou o general Spínola a encontrar-se com Senghor na fronteira com o Senegal e este discutiu um plano de resolução do problema da Guiné. Caetano recusou qualquer ideia de negociação com base no exemplo negativo que o abandono da Guiné seria para Angola e Moçambique, preferindo uma eventual derrota militar. Apesar da manifestação de uma corrente europeísta com dados precisos sobre o impacto já bastante mais moderado da «perda do império», reforçada pela adesão de Inglaterra à CEE e correspondente acordo comercial que Portugal então assinou, nenhuma iniciativa do poder político de resolução pacífica do problema colonial se declarou. Em 1973, Portugal era outra vez referido na imprensa internacional. Em julho, poucas semanas antes de uma visita de Marcello Caetano a Londres no quadro das celebrações da Aliança Luso-britânica, o padre inglês Adrian Hastings publicou no Times um artigo denunciando um massacre cometido em Wiriyamu (Moçambique) pelas tropas especiais portuguesas, no final de 1972. Não era a primeira denúncia, mas foi provavelmente a de maior impacto mediático. A viagem a Londres sofreu as consequências. Marcello escapou por poucos votos a uma declaração de desagravo no Parlamento de Londres e sofreu manifestações de rua. Um acontecimento militar pouco notado nos media provocou, entretanto, um salto qualitativo na guerra na Guiné. Em março de 1973, o PAIGC abatia, pela primeira vez, aviões portugueses com mísseis Sam-7 de fabrico soviético, praticamente paralisando a aviação nacional, sem meios de resposta equivalentes. Como escreveu Kenneth Maxwell, um analista académico da descolonização, «durante a década entre 1963 e 1973 nenhuma das grandes potências pressionou por mudanças no statu quo» nos territórios portugueses. De facto, «A ajuda soviética aos movimentos de libertação das colónias portuguesas era de escala

34

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 34

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

modesta – muito menos do que os Portugueses apregoavam ou os movimentos de libertação queriam; e o mesmo pode ser dito sobre o apoio ocidental que os Portugueses conseguiram espremer dos seus aliados da NATO.» O fornecimento de mísseis terra-ar ao PAIGC representou uma escalada a que os Portugueses se esforçaram por responder, pressionando imediatamente os Norte-Americanos. Mas, ainda que em boas relações, até o mero ato de se fazer notar era complexo, perante um governo norte -americano preocupado com a sua própria crise provocada pelo escândalo Watergate. O ministro dos negócios estrangeiros português, Rui Patrício, começou mesmo a ameaçar com a não-renovação do acordo das Lajes, que expirava em fevereiro do ano seguinte, mas o impacto foi escasso. Convém não esquecer que, como salientou W. Shneidman, um estudioso das relações luso-americanas, «entre 1969 e 1974» Portugal e a África portuguesa «entraram na fase dormente» da política externa norte-americana e aí ficaram «até ao golpe em Lisboa». Foi então que a Guerra do Yom Kippur, entre Israel e os países árabes, fez pender a balança para o lado português, mais uma vez graças aos Açores. Perante a contingência de um apoio de emergência a Israel, nenhum país europeu se mostrou disposto a aceitar a aterragem de aviões norte-americanos para reabastecimento. Caetano rejeitou o primeiro pedido para utilização dos Açores e os Portugueses tentaram então obter os aviões e os mísseis pedidos como condição prévia para a cedência dos Açores. Kissinger não aprovou a lista portuguesa e respondeu com um quase-ultimatum, ao qual Portugal não podia deixar de ceder, o que fez em algumas horas. Apesar de ter rejeitado as pretensões portuguesas, Kissinger prometeu ajudar o governo português quando passou por Lisboa, em dezembro de 1973. Dado o agravamento da situação militar na Guiné, Caetano voltou a autorizar contactos secretos com o PAIGC, desta vez por iniciativa britânica, pouco tempo depois, talvez interrompidos com a digestão da boa notícia de que os mísseis tinham sido finalmente desbloqueados e deveriam ser entregues na República Federal da Alemanha no final de abril de 1974. A natureza do derrube do regime e a quase simultaneidade entre transição democrática na metrópole e descolonização, iria dar novamente a Portugal algum destaque internacional. A TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA E A DESCOLONIZAÇÃO

O golpe militar de 25 de Abril de 1974 em Portugal abriu a 3.ª vaga dos processos de democratização na Europa do Sul. Ainda sem grandes constrangimentos

35

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 35

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

internacionais pró-democratizadores e em plena Guerra Fria, a rutura provocada pelos militares portugueses, deu lugar a uma crise acentuada do Estado, potenciada pela simultaneidade entre democratização e descolonização do último império colonial europeu. A Guerra Colonial determinou a forma específica como a ditadura foi derrubada em Portugal, mobilizando atores políticos ausentes em processos semelhantes na Europa do Sul. Mais do que a forma de queda – um golpe de Estado militar – foi na emergência do Movimento das Forças Armadas, enquanto grupo de quadros militares intermédios, progressivamente politizado à esquerda, que residiu a sua singularidade. Iniciado como reação a um problema corporativo, provocado pela emergência de um corpo de oficiais recrutados a partir dos milicianos, o MFA marcou indelevelmente a natureza da transição. Por outro lado, a profunda crise do Estado e a forte mobilização social que logo se seguiu ao derrube do regime, introduziu uma dinâmica de rutura que não se limitou à esfera política, incluindo uma forte pressão anticapitalista e a emergência de legitimidades não eleitorais. A grande singularidade da transição para a democracia em Portugal foi a intervenção democratizante do movimento dos capitães, rara, senão única, no século XX, e que estava longe de ser previsível, muito embora, como vimos atrás, a Guerra Colonial os tivesse tornado atores inevitáveis de qualquer mudança política. Apesar do efeito surpresa da ação do movimento dos capitães, a intervenção militar deu-se num contexto ditatorial onde existiam elites alternativas com laços a vários segmentos da sociedade civil. A presença de uma oposição semilegal e clandestina diversificada ao salazarismo, ainda que com escassa ligação ao militares que desencadearam o golpe de Estado, foi fundamental, pois constituiu de imediato uma opção legitimada pelo combate à ditadura. Por outro lado, o afastamento por doença do ditador e a sua substituição por Marcello Caetano, em 1968, que ensaiou uma breve experiência de «liberalização», bloqueada dois anos depois, também consolidou a emergência de uma «ala liberal», dissidente da ditadura. A fundação da SEDES, em 1970, expressou bem a convergência reformadora dessa elite. Considerando transição, na definição de Leonardo Morlino, «o período fluido e incerto em que as estruturas democráticas estão e emergir», mas onde ainda não é claro que regime vai ser instaurado, a fase mais complexa do caso português decorre entre 1974 e 1976, ano da aprovação da Constituição e das primeiras eleições legislativas e presidenciais. Concentraram-se nestes dois anos tensões poderosas na sociedade portuguesa, com alguns elementos de uma conjuntura revolucionária.

36

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 36

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

Ao contrário de Espanha, Portugal conheceu uma transição por rutura, ou seja, sem qualquer pacto ou negociação entre a elite da ditadura e as oposições, mas não existe uma relação direta entre esta acentuada descontinuidade e alguma radicalização subsequente. Outros processos de transição por rutura não arrastaram consigo uma crise acentuada do Estado, como no caso português. Muito embora uma forte mobilização antiditatorial tenha sido determinante nos primeiros dias após o golpe de 1974, nomeadamente na imediata dissolução das instituições mais conotadas com o Estado Novo, como a polícia política ou o partido único, e nas ocupações de muitos sindicatos, organismos corporativos e câmaras municipais, o primeiro governo provisório e uma parte da elite militar e das organizações de interesses apontavam para uma rápida institucionalização de um regime democrático com eventuais contornos presidencialistas. A clivagem em torno da descolonização, motor inicial do conflito entre os capitães dirigentes do golpe e o general Spínola e outros oficiais generais conservadores, marcou a emergência política do MFA. Este fator abriu um espaço de mobilização política e social e concomitante crise do Estado, que pode explicar a incapacidade das elites moderadas dominarem a rápida institucionalização da democracia representativa. Muitas análises da transição portuguesa salientaram justamente esta grande «revitalização da sociedade civil», como fator de radicalização. De facto, como sublinhou Philippe Schmitter, «Portugal conheceu uma das mais intensas e generalizadas experiências de mobilização das neo-democracias» mas convém sublinhar que esta mobilização se desenvolveu em paralelo com a presença deste «chapéu» protetor e é dificilmente imaginável sem ele. Os tímidos movimentos de rutura simbólica e de elites com o passado começaram então a desenvolver-se. O rápido e multidirecionado movimento de «saneamentos», nome dado em Portugal às purgas políticas, foi disto exemplo. Após uma rápida decisão de afastamento dos elementos mais «visíveis» da elite política da ditadura e de alguns militares conservadores, este movimento de «desfascização» começou a desenvolver-se na administração pública e no sector privado, caracterizando-se pela sua progressiva radicalidade, atingindo quadros muito abaixo da elite política nacional do regime deposto, ainda que de forma desigual. As reivindicações de criminalização da polícia política, a conhecida PIDE-DGS, e de outros organismos repressivos também cresceram de imediato.

37

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 37

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

OS PARTIDOS DA DEMOCRACIA

Como noutros processos de transição para a democracia, foram muitos os partidos políticos que se formaram ou legalizaram a seguir ao 25 de Abril; no entanto, a grande maioria dos partidos que iria representar a esquerda do espectro político já existia clandestinamente ou de forma semilegal durante a fase final do Estado Novo. Foi o caso de uma pequena multidão de partidos de extrema-esquerda, de orientação maoísta, trotskista, guevarista, ou socialista marxista. Foi também o caso do Partido Socialista Português, fundado pouco antes do 25 de Abril, em abril de 1973, por Mário Soares, mas foi sobretudo o caso do partido de maior longevidade política no século XX nacional, o Partido Comunista Português, que, no fundamental, sobreviveu e se desenvolveu na clandestinidade sob a ditadura. Aquando das «eleições» de 1969, logo após a chegada de Marcello Caetano ao poder, os socialistas de Mário Soares criaram uma frente eleitoral (a CEUD), que obteve um magro resultado eleitoral comparado com a frente apoiada pelos comunistas e outros movimentos de esquerda. Herdeiro do republicanismo histórico, o pequeno PS iria desempenhar um papel dominante durante a transição, transformando-se, em termos eleitorais, no principal partido português. Mais complexa e, nalguns casos, difícil foi a criação dos partidos que iriam representar a direita do espectro político. Legitimado pela sua origem na «Ala Liberal» da Assembleia Nacional de Marcello Caetano e pela oposição clara à ditadura por parte do seu fundador, Francisco Sá Carneiro, o Partido Popular Democrático (PPD), criado logo a seguir ao 25 de Abril, entraria imediatamente nos governos provisórios. Mas mais difícil seria a vida do Centro Democrático Social (CDS), fundado por Diogo Freitas do Amaral, um ex-assistente de Marcello Caetano na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que não tinha um passado de dissidência da ditadura. Após a ilegalização de várias organizações de direita e extrema-direita logo em 1974, o esforço destes partidos de centro-direita e direita de exclusão de nomes associados ao Estado Novo e de procura de dirigentes com legitimidade democrática foi grande e os seus programas políticas encontravam-se, no geral, à esquerda da matriz política dos seus militantes e eleitores. Apesar disso, o CDS, responsável pela integração no sistema democrático dos segmentos da sociedade portuguesa que expressavam valores autoritários conservadores, iria estar na fronteira da ilegalização até às primeiras eleições para a Assembleia Constituinte a 25 de abril de 1975. Entre 25 de abril de 1974 e 1976, Portugal seria dirigido por governos provisórios, cuja composição foi refletindo a dinâmica de crise da sociedade portuguesa

38

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 38

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

e o crescente domínio dos militares e das diversas fações do MFA, protagonizando diferentes clivagens. A primeira, como já vimos, sobre a questão da descolonização, arrastando consigo a queda do general Spínola, na sequência do chamado 28 de setembro de 1974, e a institucionalização do MFA, que passou a dirigir os governos provisórios. A segunda entre fações moderadas e radicais do MFA, progressivamente acompanhadas por uma mobilização política anticomunista pelo PS e partidos do centro-direita, de um lado e, do PCP e de alguns grupos esquerdistas, por outro. A derrota de Spínola e o seu exílio na sequência do chamado 11 de Março de 1975 e a viragem à esquerda do MFA, com a Reforma Agrária e as nacionalizações dos grandes grupos económicos portugueses, são símbolos e motores de uma acentuada crise do Estado que alimentaram poderosos movimentos sociais. O MFA passou a ter uma estrutura de direção, o Conselho da Revolução (CR) e realizou vários pactos com os partidos políticos, em posição dominante sobre estes. A decisão do MFA de respeitar o calendário eleitoral foi o elemento central da abertura de uma legitimidade fundadora do regime democrático e a sua realização, a 25 de abril de 1975, dotou os partidos moderados de uma poderosa alavanca. A opção por um sistema eleitoral proporcional, corrigido pelo método d’Hondt, foi determinada pela prioridade de dar expressão à pluralidade de representação partidária, com um bónus ao maior partido. As primeiras eleições democráticas da história portuguesa deram a vitória aos partidos moderados, transformando-se o PS no primeiro partido português, seguido pelo PSD. O CDS ganhou também consagração eleitoral para a sua sobrevivência. O PCP e os pequenos partidos de extrema-esquerda, que dominavam os movimentos sociais e os sindicatos, ficaram conscientes da sua menoridade eleitoral. Os partidos moderados tinham agora uma legitimidade democrática para exigir a rápida institucionalização do novo regime democrático e o afastamento dos militares, dos comunistas e dos esquerdistas a favor dos partidos vencedores das eleições. As tensões no governo agravaram-se e Vasco Gonçalves, primeiro-ministro nomeado pelo MFA, começou a sofrer algum isolamento provocado quer pelo abandono do Governo Provisório por parte do PS e do PSD, como ainda pela criação do chamado «Grupo dos 9» constituído por militares moderados, próximos das posições do PS. Os comunistas e seus aliados foram, assim, os únicos a ficar no V Governo Provisório.

39

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 39

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

O VERÃO QUENTE DE 1975

Seria simplista considerar o «Verão Quente» de 1975 apenas a tentativa de o Partido Comunista Português impor uma ditadura apoiada pela União Soviética. Muito embora seja natural que a elite política democrática tenha concentrado aqui o fundamental do seu discurso fundador, ele está longe de esgotar o tema. O desenvolvimento de fortes estruturas políticas de base, como as comissões de trabalhadores, o desafio que a extrema-esquerda representou nesta conjuntura de crise e a própria penetração política desta nas forças armadas são exemplos de uma maior complexidade, que passou pelos «casos» da ocupação, por jornalistas de extrema-esquerda, da emissora católica Rádio Renascença, do jornal República (até aí porta-voz da esquerda moderada), ou pela dinâmica de ocupação de propriedade urbana em Lisboa. As clivagens políticas no interior das forças armadas também introduziram alguma autonomia que não pode ser reconvertida em mera «conspiração programada». Mais uma vez, como salientou um analista da transição portuguesa, Duran Munoz, a crise de Estado foi um «fator de oportunidade» para alguma radicalização dos movimentos sociais e este fator não deverá ser afastado da análise do período. Portugal conheceu, no verão de 1975, uma conjuntura de polarização rara, sobretudo pela mobilização antirrevolucionária da província, em especial no Norte do país. Muito embora protagonizada pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata em Lisboa e no Porto, à medida que o sector moderado do MFA se preparava para o golpe de 25 de novembro de 1975, a mobilização de província a norte do Tejo só foi possível com a entrada em cena da hierarquia da Igreja Católica e da mobilização paroquial, em conjunção com a notabilidade local. Acompanhada pela mobilização de elementos de direita e extrema-direita, militares e civis, a ofensiva antiesquerdista passou por uma onda de violência política contra as sedes do PCP, da extrema-esquerda e sindicatos a eles associados, e daria origem a organizações terroristas de direita. Portugal sofreu também, durante este curto período de 1974-75, uma significativa intervenção externa, não só diplomática, como também na própria estruturação dos partidos políticos, organizações da sociedade civil (como sindicatos e organizações de interesse) e na estratégia político-militar antiesquerdista no «Verão Quente» de 1975. Por outro lado, o caso português foi tema divergente nos fora internacionais, da NATO, à CEE, passando pelas relações entre estas instituições e o então bloco socialista, dirigido pela União Soviética. Quaisquer que sejam os indicadores escolhidos, parece não oferecer dúvidas que o período de 1974-75, em Portugal, conheceu grande «saliência internacional».

40

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 40

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

Apanhada de surpresa pelo golpe, a comunidade internacional, com particular relevo para os EUA, concentrou-se no apoio às forças políticas democráticas de centro esquerda e de direita, na metrópole, e no acompanhamento e intervenção no rápido processo de descolonização, particularmente em Angola. Utilizaram-se então métodos herdados do pós-Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, em Itália. Perante uma fortíssima mobilização política e social esquerdista, um tecido económico com um forte sector nacionalizado e a fuga generalizada de capitais e da própria elite económica, os partidos moderados só conseguiram implantação e funcionamento nesta conjuntura de crise com um apoio financeiro e de formação de quadros significativos por parte da administração norte-americana e das organizações internacionais das «famílias políticas» europeias, servindo as segundas, por vezes, de mediadoras do apoio à primeira. A natureza de rutura da transição, mas sobretudo a crise do Estado que esta desencadeou, é fundamental para explicar algumas características mais radicais da transição e algumas dimensões das atitudes perante o passado autoritário durante este período. Ambas confluíram num duplo legado à consolidação democrática. A DESCOLONIZAÇÃO

Foi na fase inicial do processo de transição para a democracia que se realizou a descolonização portuguesa e qualquer análise do rápido fim do império português terá de sublinhar este contexto. A questão colonial esteve na origem do primeiro conflito entre o general Spínola e o MFA, durante o golpe militar. O programa do movimento previa o «claro reconhecimento do direito à autodeterminação», mas Spínola conseguiu eliminar o ponto, transformando-o num mais vago «lançamento de uma política ultramarina que conduza à paz». Entre abril e julho de 1974, data da clarificação formal, com a lei 7/74, a tensão entre Spínola e a crescente afirmação do MFA, a propósito da descolonização, foi grande. O conflito prolongar-se-á pelo verão, até à queda do general em setembro de 1974. Embora com uma evolução vagarosa na década de 1950 e acelerando na década seguinte, a cultura política de todos os sectores de esquerda, desde os republicanos moderados ou dos católicos progressistas à extrema -esquerda, era, nas vésperas do derrube do regime, favorável à descolonização. Esta fazia parte dos seus programas políticos e dominava a sensibilidade dos

41

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 41

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

dirigentes do PS, do MDP e do PCP que entraram nos primeiros governos provisórios. Sob forte pressão de uma dinâmica de libertação da ditadura, da sua elite e dos seus símbolos, mesmo os partidos que iriam ocupar o espaço do centro-direita e de direita ou se desdobraram em declarações de apoio à descolonização, caso do Partido Popular Democrático, fundado a partir da ala liberal, ou se recolheram à sombra da opção federalista e referendária do general Spínola, sofrendo a dissolução na sequência do 28 de Setembro de 1974. Ainda antes da nomeação do I Governo Provisório, Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros iniciou conversações informais com dirigentes dos movimentos de libertação e delegados do general Spínola. Ao mesmo tempo que estes pretendiam o imediato reconhecimento do direito à independência como condição para o cessar-fogo, Spínola entrou em tensão com o MFA que, quer no terreno africano, quer na metrópole, iniciou um processo de afirmação como ator político. Apoiado pelos partidos de esquerda, mas com grande iniciativa própria, o MFA divergiu de Spínola não só a propósito das tentativas deste em tornar-se o efetivo dirigente do processo de institucionalização da democracia, como sobretudo sobre a questão colonial. Com a nomeação do II Governo Provisório, já chefiado por Vasco Gonçalves, o MFA iniciou a sua organização autónoma e foi sob sua iniciativa que Spínola assinou a lei 7/74, que proclamou o direito à independência das colónias, determinou o quadro legal permitindo a descolonização e definiu os órgãos nele envolvidos. A partir daí, as negociações aceleraram, com uma participação mais ativa do MFA, além de Mário Soares e Almeida Santos, ministros que dirigiam já o processo negocial. Durante o verão de 1974, Spínola persistiu na defesa de uma opção referendária, procurando terceiras vias alternativas aos movimentos de libertação e acolhendo as esperanças das comunidades brancas locais, sobretudo em Angola e Moçambique, contra a sensibilidade dominante quer do incipiente sistema partidário, quer do MFA no terreno, cujos elementos pressionavam a favor da rápida saída e dominavam o poder militar. A opção de Spínola só seria possível com um poder metropolitano forte e uma estratégia negocial escorada na força militar colonial, mas nenhuma das condições estava presente. Com a queda de Spínola, a descolonização como que se comprimiu, adquirindo um carácter global, com uma sociedade metropolitana em crise, progressivamente dividida num turbulento processo de institucionalização da democracia. Em poucos meses, Portugal tinha passado também de parceiro anticomunista menor, na Aliança Atlântica, para um «semi-infiltrado comunizante»

42

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 42

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

com hesitações terceiro-mundistas na sua política externa, ganhando visibilidade internacional na direta proporção de uma crescente intervenção externa na própria modelação do sistema político português. Deu-se então, como lhe chamou o historiador Norrie MacQueen, «uma compressão dramática do timing do fim do império». Como se verá à frente, além da pressão internacional e dos movimentos de libertação, tratava-se de uma vontade global de descolonização rápida que vencia com a queda de Spínola e que caracterizava um segmento importante dos atores políticos da época, do MFA aos partidos de centro-esquerda. Nas palavras de Medeiros Ferreira, «Ao mito do “Portugal Uno e Indivisível do Minho a Timor” opõe-se a metodologia da descolonização uniforme. É esta a forma que a metrópole europeia encontra de se libertar de uma vez por todas da lógica ultramarina. É o centro que dispensa a periferia.» Uma volta aos processos de descolonização colónia a colónia parece indicar um padrão relativamente claro, muito embora com impactos diferentes. AS TRANSFERÊNCIAS DE PODER EM ÁFRICA

A queda da ditadura e a natureza da transição para democracia na metrópole iriam proporcionar a descolonização rápida do último império colonial europeu em condições extremamente favoráveis para os movimentos guerrilheiros. Com a súbita impossibilidade de manter a pressão militar no terreno e um clima metropolitano favorável à transferência de poderes para os movimentos de guerrilha, a metrópole foi rápida a desfazer-se não apenas do mais ameaçado, mas de todo o património colonial. A fraquíssima capacidade de reação da comunidade branca em Angola e Moçambique não encontra explicações simples. Mas a hipótese de esta fraca reação ser ainda uma consequência da ditadura, da sua ausência de descentralização, da sua repressão da sociedade civil e de quaisquer pressões autonomistas, pode ser um elemento de explicação para esta excessiva dependência da metrópole. Uma visão caso a caso ilustra bem estas condicionantes da descolonização. O processo de transição para a independência da Guiné-Bissau foi o mais rápido de todos, embora não isento de tensões. Além da especificidade de se refletir formalmente no reconhecimento da independência proclamada unilateralmente pelo PAIGC em 1973, representou para alguns estudiosos, como A. E. Duarte Silva, «o modelo de descolonização português». Cabo Verde inaugura o processo de descolonização por iniciativa metropolitana em territórios sem luta armada ou pressão internacional forte. Os acordos

43

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 43

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

de Argel com o PAIGC já incluíam algumas normas sobre a descolonização de Cabo Verde e este foi reconhecido de facto como o legítimo representante para a negociação da sua independência. Considerada por alguns historiadores «uma das decisões mais discutíveis do processo de descolonização», a união entre o problema de Cabo Verde e da Guiné tinha apenas a cobertura, além da direção Cabo Verdiana do PAIGC, de uma resolução de 1972 das Nações Unidas. Com o caso das pequenas ilhas de São Tomé e Príncipe entramos diretamente nas independências que foram mais uma consequência da transição democrática em Portugal e do surto global de descolonização, do que da luta organizada de um nacionalismo autóctone ou de pressão internacional que tivesse, de algum modo, perturbado a metrópole. Durante o Estado Novo, o Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe tivera uma existência errática, complexa e grupuscular no exílio, tendo quase que desaparecido numa cisão em 1965, e a própria OUA tinha dúvidas sobre a viabilidade de São Tomé como Estado independente. Em 1972, no entanto, um pequeno grupo de nacionalistas são-tomenses reuniu-se na Guiné Equatorial e reconstituiu a organização com o nome de Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), estabelecendo um pequeno escritório no Gabão, chefiado pelo seu secretário-geral, Pinto da Costa. Em 1973, a OUA reconheceu então o MLSTP como único representante dos nacionalistas são-tomenses. Refletindo a nova conjuntura política em Portugal, as conversações no Gabão, no final de setembro de 1974, já excluíam o referendo e reconheciam o MLSTP como único interlocutor, que entretanto absorveu a Frente Popular Livre. Os acordos de Argel com o MLSTP, assinados em novembro do mesmo ano, foram inspirados nos de Moçambique, prevendo um governo de transição, mas incluíam eleições para uma Assembleia Constituinte que deveria proclamar a independência a 12 de julho de 1975. A relativa tranquilidade da transição são-tomense e a presença de um Alto-Comissário com maior poder político e militar não impediu o regresso da comunidade branca à metrópole, receosa de represálias. Com alguma agitação social, que chegou a provocar incidentes, os cerca de 2000 colonos brancos depressa foram afastados. Em Moçambique, o 25 de Abril foi recebido com apreensão e existiram mesmo alguns esboços de resistência por parte do governador militar e alguns altos comandos, neutralizados por unidades afetas a Lisboa. Ainda que em menor escala do que em Angola, a guerra era uma realidade relativamente distante da comunidade branca em Moçambique, embora mais marcante nos últimos anos do conflito, e esta conheceu também um apreciável desenvolvimento

44

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 44

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

na década de 1960. Em pouco meses, no entanto, Moçambique iria sofrer mudanças radicais, com a saída da comunidade branca e a transferência de poderes para a FRELIMO. Do lado da comunidade branca, Jorge Jardim, um carismático notável da colónia com um passado de ousadia negocial, seria dos poucos candidatos a modelos rodesianos. Jardim era um dos raros empresários moçambicanos a assustar quer o novo poder em Lisboa quer a Frelimo, mas o seu papel no processo foi bastante turvo e ziguezagueante. Depois de alguma diplomacia por conta de Jardim, o MFA, torpedeando Spínola, bloqueou os contactos e chegou a proibir-lhe a saída da colónia. Vários encontros informais e secretos entre delegados portugueses e da Frelimo, já escorados na lei 7/74, em Dar es Salaam abriram o caminho à descolonização rápida, sem referendo e reconhecendo-a como alvo da transferência de poderes. A 7 de setembro, em Lusaca, o acordo foi assinado. Nele se previa a nomeação de um governo de transição já de maioria da Frelimo e a independência para 25 de junho do ano seguinte, mais cedo do que os Portugueses queriam, sobretudo devido ao receio das atitudes da comunidade branca e à existência de problemas económicos ainda pendentes. Os acordos de Lusaca provocaram a mais séria das revoltas da iniciativa da comunidade branca, com o apoio de alguns partidos africanos opositores da Frelimo. Alguns incidentes raciais iriam ainda rebentar com mortos entre brancos e negros, em outubro, mas foi a assinatura do acordo que marcou o êxodo da colónia branca. Já com um aumento de saídas para a África do Sul ou para a metrópole, a colónia branca e alguma de origem indiana, começou então a abandonar Moçambique a partir de setembro. Quer o governo de transição quer o Alto-Comissário apelaram várias vezes ao regresso à ainda colónia, mas, em finais de outubro já se encontravam 15 000 na África do Sul, calculando-se que entre 1974 e 1977 tenham vindo para a metrópole, cerca de 160 000 colonos. A descolonização de Angola foi, obviamente, a mais complexa. Efeito de arrastamento da mudança política na metrópole, seria exagerado dizer, como o fez o historiador David Birmingham, que esta emergiu «quase por acaso», mas não foi provocada por qualquer aceleração da pressão militar ou política sobre o colonizador, da parte dos relativamente fracos e divididos movimentos de libertação. Angola era a mais rica e bem-sucedida das economias coloniais da década de 1960, a que tinha o maior número de colonos brancos e também a que conheceu a mais frustrante e violenta das descolonizações. O 25 de Abril surpreendeu um dos movimentos de libertação, o MPLA, numa grave crise interna, divido em três fações, uma das quais bem armada. Perante

45

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 45

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

a desagregação da força militar do MPLA, A FNLA, apesar de se ter transformado num apêndice de Mobuto e as suas forças numa «extensão das forças armadas» do Zaire, reganhava o primeiro plano no campo militar e esforçava-se por recuperar o apoio norte-americano como futuro campeão do Ocidente em Angola. Quando o almirante Rosa Coutinho partiu para Angola, em finais de julho de 1974, como Governador, com a lei sobre o reconhecimento da independência aprovada, o quadro estava mais claro. Portugal já chegara a acordo com a UNITA para o fim das hostilidades, mas tardavam os acordos com os restantes. A FNLA tinha visto a sua penetração em território angolano bloqueada pelo exército português e o MPLA continuava em luta pela representatividade na mesa das negociações. Spínola tentou dirigir pessoalmente a descolonização de Angola, esboçando várias manobras para mobilizar as «forças vivas» brancas para um papel ativo no processo e realizando ainda um encontro polémico com Mobutu, para discutir opções para o problema angolano. Porém, também em Angola, o MFA se apresentava como uma força autónoma com preferências políticas. Contestando as opções do general Spínola, uma assembleia do MFA realizada em Luanda, com cerca de 500 oficiais, aprovou, por esmagadora maioria, o apoio à descolonização rápida, tendo como interlocutores os movimentos de libertação. Durante os primeiros meses, a comunidade branca ficou expectante em relação às decisões da metrópole, muito embora proliferassem imediatamente os partidos de colonos brancos. A queda de Spínola e, com ele, do sonho de uma solução negociada com forte intervenção da comunidade branca, marcou a retomada das negociações com o MPLA e a FNLA e estes movimentos acabaram por se tornar, de facto, os únicos interlocutores do governo português para a descolonização de Angola. Em outubro de 1974, negociou-se o cessar-fogo com a FNLA e com a fação de Agostinho Neto, sob os protestos de Chipenda, e estes começaram a abrir delegações em Luanda. Em janeiro de 1975, FNLA, UNITA e MPLA, reuniram-se em Mombaça para aprovarem os princípios gerais das negociações com Portugal e, uma semana depois, assinaram-se os Acordos de Alvor, no Algarve, regularizando e calendarizando todo o processo de descolonização de Angola. Eram assim excluídos os partidos dos colonos brancos e as cisões africanas, e reconhecidos apenas os três movimentos históricos. A UNITA, teve de ser rapidamente reconhecida pela OUA, o que só aconteceu poucos dias antes das negociações. Preparando eventuais eleições, quer a FNLA quer a UNITA iniciaram alianças com a comunidade branca

46

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 46

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

Seguindo o modelo já utilizado noutros casos, nomeou-se um alto-comissário e um governo de transição, prevendo-se eleições para uma Assembleia Constituinte em outubro, com a particularidade de que apenas poderiam concorrer os três movimentos, e a independência foi marcada para 11 de novembro de 1975. Em fevereiro de 1975, os combates iniciaram-se em Luanda, curiosamente entre o MPLA e a sua cisão de Daniel Chipenda, abrindo um ciclo de guerras civis, com uma forte intervenção das duas superpotências e a participação direta do Zaire, de Cuba e da África do Sul. Nas palavras de um historiador de África, David Birmingham, em 1975 «o conflito não era sobre a libertação, mas sobre quem iria herdar o bolo de uma colónia que se tinha tornado rica e de sucesso». Com o início dos confrontos armados, Portugal foi ultrapassado enquanto mediador e a escalada de apoio militar internacional a uma latente guerra civil cresceu. Em julho de 1975, o MPLA expulsava os adversários de Luanda e os primeiros militares cubanos fizeram uma breve aparição ao lado do MPLA. O governo de transição entrava assim em colapso e, com ele, o que restava dos Acordos de Alvor. Jomo Kenyatta ainda tentou, sem sucesso, repor os acordos em vigor em conversações no Quénia. Significativamente, e por decisão destes, não existiram representantes portugueses nesta tentativa de conciliação entre os três movimentos, realizada em junho de 1975. Acelerou-se então a saída em massa dos civis portugueses. Desde o verão de 1974 que o retorno da colónia branca era um facto. Em janeiro de 1975 já tinham saído de Angola cerca de 50 000 portugueses, mas, no verão desse ano, organizou-se então uma verdadeira ponte aérea para a evacuação dos colonos. Com a participação de aviões militares e comerciais, recorrendo também a companhias norte-americanas, francesas, suíças, inglesas, da RDA e mesmo da União Soviética, chegaram a Portugal mais de 200 000 retornados de Angola. No dia combinado para a independência, 11 de novembro, o Alto-Comissário retirou a bandeira e as últimas tropas portuguesas de Luanda e ofereceu a independência «ao povo angolano», mas a guerra não parou nesse dia em que o MPLA proclamou a República Popular de Angola, em Luanda, e a FNLA e a UNITA proclamaram também a República Democrática e Popular de Angola. A FNLA encontrava-se, então, em Ambriz, apenas a alguns quilómetros do norte da capital. Timor representou o caso mais extremo das encruzilhadas da descolonização portuguesa. Pequeno território com uma importância meramente simbólica para Portugal, esta ilha partilhada com a Holanda não conheceu a presença de movimentos autonomistas significativos durante as décadas de 1950 e 1960,

47

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 47

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

muito embora a independência da Indonésia tenha tido impacto em algumas revoltas nesta colónia. Durante os primeiros meses após a queda da ditadura não se registaram mudanças em Timor e só com a visita de Almeida Santos ao território, em novembro de 1974, é que foi nomeado um novo governador, Lemos Pires. Constituíram-se, entretanto, três partidos locais: a Associação Popular Democrática Timorense (APODETI), favorável à integração na vizinha Indonésia, a União Democrática de Timor (UDT), inicialmente favorável a uma associação com Portugal, e a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), constituída por jovens independentistas revolucionários. Os primeiros conflitos violentos estalaram em finais de julho e, em agosto, já saíam refugiados do território. Entre golpes da UDT e da FRETILIN, as autoridades portuguesas recolheram à ilha de Ataúro, ao mesmo tempo que este último movimento parecia vencer a batalha e controlar o território nesta mini-guerra civil. Entre várias conversações entre Portugueses e Indonésios e a preparação política da ocupação do território pelo poderoso vizinho, a FRETILIN declarou a independência de Timor a 28 de novembro. No mesmo dia, UDT e APODETI proclamaram a associação com a Indonésia, que invadia Timor poucas semanas depois. Portugal não reconheceu nem a independência nem a ocupação indonésia, retirando-se da ilha de Ataúro no dia seguinte à invasão. O governo português cortou então relações diplomáticas com a Indonésia e recorreu para as Nações Unidas, que continuaram a reconhecer Portugal como país administrante de um território não autónomo. Mais de vinte anos após a anexação, o fim da Guerra Fria e um complexo processo de transição para a democracia, após décadas de crescente corrupção da ditadura de Suharto, abriram-se perspetivas para a independência de Timor. Alguns massacres indonésios no território começaram a ser conhecidos da opinião pública internacional a partir da década de 1990, mas a decisão de realizar um referendo com observadores internacionais sobre uma eventual independência foi um ato inédito na região. Os massacres das Forças Armadas indonésias que se seguiram à vitória dos pró-independentistas determinaram a intervenção militar das Nações Unidas no território, em 1999, e, finalmente, a independência. Ainda que por fatores internacionais, quer a independência de Timor quer, de forma diferente, a integração de Macau na República Popular da China se prolongassem até ao final do século XX, a descolonização portuguesa foi extremamente rápida. Em pouco mais de um ano, Portugal desfez-se de todas as suas colónias. Episódio final da descolonização europeia em África, comportou as

48

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 48

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

dúvidas crescentes sobre as independências africanas, o papel das suas elites e os avanços e recuos das sociedades pós-coloniais. Mas o exercício de demonstração de que «não existem provas convincentes de que os movimentos de libertação arrastavam atrás a maioria das suas “nações”», como escreveu o historiador Norrie MacQueen, ainda que seguramente verdadeiro, é uma projeção retrospetiva de preocupações mais recentes e um ilustre desconhecido da história da formação dos Estados contemporâneos. CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA E INTEGRAÇÃO EUROPEIA

A vitória dos partidos moderados nas eleições de 25 de abril de 1975 deu ao PS uma maioria confortável e um papel dominante na elaboração da nova Constituição. Por outro lado, com a nomeação do VI Governo Provisório e a vitória dos militares moderados a 25 de novembro de 1975, a extrema-esquerda e os comunistas deixaram de hegemonizar os poderosos movimentos sociais e várias instituições. No entanto, a Constituição de 1976, aprovada com os votos favoráveis do PS, PSD e PCP, consagraria formalmente a transição para o socialismo, as nacionalizações e a reforma agrária, contendo princípios ideológicos muito marcados pelo domínio da esquerda durante a transição. Os militares não deixaram também de marcar a natureza semipresidencial da democracia portuguesa, em compromisso com a elite moderada. Nem o PS nem o PSD previam este sistema nos seus programas, sendo o segundo pacto MFA-Partidos parcialmente responsável pela existência de um Presidente da República eleito por sufrágio universal e dotado de poderes consideráveis. Além da constitucionalização transitória do Conselho da Revolução (CR), também existe consenso entre os estudiosos sobre a existência de um acordo implícito entre o CR e os partidos de que o primeiro presidente seria militar, presidindo também ao CR. É provável que outros fatores também tivessem estado na origem desta escolha, nomeadamente a «memória histórica» de instabilidade do parlamentarismo da I República, e a necessidade de dotar a jovem democracia portuguesa de um poder arbitral com legitimidade eleitoral. No início de 1976, apenas com os votos contra do CDS, a Constituição é aprovada e o general Ramalho Eanes, chefe militar do 25 de novembro, é escolhido como o candidato presidencial apoiado pelo PS, PSD e CDS, ganhando as eleições; pouco tempo depois, as primeiras eleições legislativas dão a maioria ao PS, seguido pelo PSD, CDS, e PCP, com um deputado da UDP, mantendo um alinhamento próximo daquele que resultara das eleições do ano anterior. Com

49

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 49

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

a realização das eleições autárquicas em dezembro desse ano, as novas instituições da democracia portuguesa entraram então em funções. As elites moderadas que dominaram o processo de consolidação da democracia portuguesa herdaram uma conjuntura complexa. A intervenção militar de 25 de novembro de 1975, marcou o passo da institucionalização da democracia, embora ainda tutelada pelos militares através do CR até 1982. No campo económico, um fortíssimo sector nacionalizado e intervencionado pelo Estado e a implementação de medidas de austeridade, na sequência de um primeiro programa de ajustamento com o FMI, foram símbolos de recessão e de redução drástica dos salários reais. No campo social, convém também referir o impacto do regresso de algumas centenas de milhar de retornados de África, na sequência da descolonização. «Reconciliação» e «pacificação» da vida política seriam elementos importantes do discurso oficial dos primeiros governos constitucionais, dirigidos por Mário Soares, primeiro-ministro socialista, apoiados pelo primeiro Presidente democraticamente eleito, o general Ramalho Eanes. Os saneamentos foram interrompidos e reavaliados, sob pressão dos partidos de centro-direita e direita, que os consideravam um «excesso» de 1974-1975. Durante o mesmo período, desencadeou-se um processo de afastamentos políticos contra a esquerda comunista, civil e militar. Vários militantes de partidos da extrema-esquerda e do PCP foram afastados das suas posições no aparelho de Estado e nas empresas públicas. Nas Forças Armadas, foram também afastados muitos militares associados com a esquerda militar. Este clima de «reconciliação política» que caracterizou o final da década de 1970 influenciou, assim, processos relacionados com o legado do anterior regime. Foi este o caso do julgamento dos membros da antiga polícia política. Após a atmosfera de caça aos pides, contra os que não tinham fugido do país, seguiu-se um período de dois anos em que muitos agentes da DGS aguardaram julgamento na prisão ou em liberdade condicional. Estes julgamentos foram organizados de acordo com o novo ethos político. Consequentemente, quem não se tinha aproveitado da liberdade condicional para emigrar, foi punido com leveza por tribunais militares (coincidindo muitas penas com o período de prisão preventiva já cumprido), especialmente benevolentes para com aqueles que tinham bons cadastros militares na Guerra Colonial. Os dois anos decorridos diluíram significativamente as «emoções» de 1974 e a elite política no poder favoreceu a desmobilização institucional. O discurso oficial do Partido Socialista de Mário Soares, acompanhado pelos partidos democráticos de direita, durante o período de consolidação da democracia, foi o do

50

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 50

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

«duplo legado»: o do autoritarismo de direita do Estado Novo e o da ameaça autoritária de 1974-1975. O regresso a Portugal dos exilados de direita, o recrudescimento da imprensa dos «espoliados» do período de 1974-1975, e a procura de alguns «heróis militares» anticomunistas, apagou-se com escasso rasto. A descolonização, agravada pela incapacidade de mobilização dos «retornados», marcou o fim de uma época. Esta integração em geral pacífica dos retornados das ex-colónias não foi apenas produto dos «brandos costumes»» portugueses ou dos acentuados esforços de apoio financeiro do Estado. Fatores constitutivos dos colonos, como a sua extração relativamente recente (e os consequentes laços familiares com a metrópole), ou a emigração direta para outros países, por exemplo a África do Sul, amorteceram o choque. O final dos anos de 1970, marcado pelo progressivo afastamento dos militares da cena política, pela consolidação dos partidos parlamentares e pela fixação do seu eleitorado, marcou, também, não só o fim de qualquer possibilidade de reconversão política dos «barões» do anterior regime, como também de algumas figuras militares com tentações populistas de capitalizar o sucesso da sua ação antiesquerdista em 1975. Em 1985, nas vésperas da adesão portuguesa à União Europeia, as heranças do duplo legado estavam praticamente extintas. À direita, nenhum partido de algum modo veículo da elite ou dos valores autoritários herdados do salazarismo tinha expressão parlamentar ou eleitoral. À esquerda, sucessivas revisões da Constituição retiraram-lhe a carga socialista e a tutela militar, herdada de 1975. A CAMINHO DA CEE

Foi no quadro deste complexo processo de democratização e descolonização que a adesão à UE e o seu impacto vão marcar, de forma decisiva, a consolidação da democracia portuguesa. A CEE, enquanto ator internacional, não foi um elemento determinante na transição democrática em Portugal. Embora vários autores sugiram como hipótese «que a Comunidade Europeia teve um papel importante» na promoção da democracia na Europa do Sul, a sua verificação para Portugal foi menos nítida. Apesar de a componente «apoio económico» ter sido importante, o impacto global da «perspetiva de adesão» para a consolidação da democracia portuguesa merece um estudo mais aprofundado. Para uma parte da elite política nacional da época, no entanto, a adesão era vista como

51

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 51

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

uma garantia de consolidação democrática interna e como uma alavanca para a modernização do país. Presente nos programas de alguns partidos desde os meses a seguir ao 25 de Abril de 1974, foi fundamentalmente no contexto das c1ivagens políticas de 1975 que os partidos políticos de direita e de centro-esquerda reforçaram a constelação «europeia» e «comunitária» como referência para Portugal perante alternativas socialistas e terceiro-mundistas. No contexto de uma transição polarizada, em que, como salientou Berta Alvarez Miranda, algumas das clivagens se cristalizaram mais numa luta «entre democratas e revolucionários do que entre democratas e involucionistas», a opção europeísta foi um elemento central de rutura com o passado ditatorial, isolacionista e colonial, assumindo simultaneamente uma dimensão anticomunista e antirrevolucionária. O caso português ilustra bem a tese segundo a qual a Comunidade Europeia, enquanto referência da Europa desenvolvida, foi um «símbolo disponível» para as elites democráticas legitimarem uma nova ordem interna após uma transição por rutura bastante conflituosa e o fim do império colonial, que tinha sido o argumento final do Estado Novo. Por outro lado, à semelhança de Espanha, para utilizar as palavras de Vítor Perez-Dias, ensaiou-se, com sucesso aliás, a consolidação de uma tradição democrática» baseada na «sincronização e homogeneização da cultura e das instituições […]» nacionais «com as da Europa», que, nas suas componentes sociais e económicas, estavam já em curso desde a década de 1960. Quando, em maio de 1977, um governo do PS, chefiado por Mário Soares, solicitou formalmente a entrada de Portugal na CEE, o país estava a braços com a herança de uma transição por rutura, uma Constituição que tinha consagrado as nacionalizações e a reforma agrária e uma ainda forte presença militar na vida política. A campanha eleitoral do PS em 1976 tinha sido desenvolvida com o mote «a Europa connosco», contando com a presença de vários dirigentes da família socialista e social-democrata europeia. De slogan vago, pretendendo fixar a demarcação das tentações terceiro -mundistas ou neutralistas que tinham caracterizado os anos de 1974-1975 e que marcavam ainda uma parte da esquerda moderna e do MFA, Soares concretizou no programa a proposta de adesão à CEE como eixo prioritário da política externa portuguesa. Desde 1974 que a adesão à Comunidade fazia parte do programa dos partidos de direita e centro-direita, com o CDS expressando um europeísmo convicto e o PSD defendendo uma aproximação mais matizada. A partir da iniciativa socialista, os três partidos rivalizarão em propostas de avanço das negociações,

52

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 52

30/03/15 10:14

A V IDA PO L Í T I C A

com o PSD oscilando em algumas fases por razões inerentes ao debate político interno. Durante a segunda metade da década de 1970, o argumento comunitário foi abundantemente utilizado como referência para as reformas do sistema político e da Constituição, sobretudo no que dizia respeito à presença dos militares no Conselho da Revolução e às nacionalizações. Só o PCP se manifestou abertamente contra, recusando a perspetiva de adesão e fazendo dela um elemento importante da sua campanha política entre 1977 e 1986. A partir desta última data, este evoluiu para uma posição mais moderada, deixando de exigir a retirada de Portugal da CEE, embora continuando a sua luta pela revisão dos tratados. O processo conducente à integração na CEE teve uma escassa participação da sociedade civil e dos grupos de interesses que representavam os sectores mais atingidos. Foi uma decisão da elite política, e não seguramente uma resposta a uma reivindicação popular. A elite governamental dominou, como é óbvio, o processo de negociação e o envolvimento das associações empresariais e agrícolas portuguesas foi reduzido. Contrariando as perspetivas mais catastrofistas da década de 1970, Portugal consolidou a sua democracia e deu um salto importante na modernização económica e social, já como membro da União Europeia, vendo-se mesmo obrigado a acelerar a liberalização do seu mercado interno, como consequência do aprofundamento da união económica e monetária, entretanto decidido. Seguindo um padrão de adesão promovido pelas elites, com um grande consenso entre os principais partidos do sistema, à exceção do Partido Comunista, e ainda desprovido de mecanismos referendários, só após a entrada na CEE existiram pressões da opinião pública para uma maior participação popular nas grandes reformas da União Europeia. Com o mito das colónias encerrado, as elites democráticas conseguiram consolidar na opinião pública a opção europeia como a única que poderia recriar uma relação importante com os novos países africanos de língua portuguesa, com os quais as relações económicas haviam quase desaparecido e as políticas se tinham deteriorado após a vaga de independências em 1975. Com a perspetiva de adesão, e sobretudo depois desta, novos problemas identitários surgiram, sendo o mais significativo o das relações com a vizinha Espanha. Falhadas as tentativas portuguesas de negociação autónoma da integração na Comunidade, a Espanha emergiu de tempos a tempos na opinião pública como um poderoso vizinho «invadindo» economicamente Portugal. Transformando-se em pouco tempo em parceiro comercial maior, no entanto, a «ameaça espanhola» não iria tardar a desaparecer, sinal da integração económica do espaço ibérico.

53

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 53

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Em 1978, três anos após a descolonização, a grande maioria dos portugueses, quase 70%, pensava que «Portugal deveria ter dado a independência a esses países», embora salvaguardando os direitos dos portugueses lá radicados. Apenas 2,2% dos inquiridos se manifestaram a favor da continuação da luta contra os movimentos de libertação. Apesar desta constatação, nesse mesmo ano de 1978, existia uma significativa minoria, cerca de 20% dos inquiridos, que pensava que, em termos económicos, Portugal não poderia sobreviver sem as ex-colónias. A observação do processo de apagamento desta posição parece indissociavelmente ligado à perspetiva de adesão à CEE, ilustrando como «o processo de adesão e a própria adesão tiveram um papel de consolidação dos laços com as democracias europeias, além de constituírem um substituto da perda das ex-colónias e um incentivo às mudanças na estrutura das atividades económicas, sociais e culturais do país». Pouco tempo depois do pedido de adesão, em 1978, os Portugueses tinham escassa opinião sobre o tema, com mais de 60% da população sem saber se a entrada era decisiva para o futuro económico de Portugal. Só no início dos anos de 1980 se começou a notar uma maior informação e clareza de opinião sobre o tema. O Eurobarómetro que, desde 1980, regista sistematicamente a opinião dos Portugueses sobre o tema, revelou uma clara linha ascendente durante esta década, com um forte salto após a adesão, em 1986. O número de portugueses que consideravam a adesão à CEE uma coisa boa aumentou de 24,4% entre 1980 e 1982 para 64,5% entre 1986 e 1990, atingindo mais de 70% nos anos seguintes. Em 1993, 65% da população achava que Portugal tinha beneficiado muito em termos de desenvolvimento económico com a adesão à CEE. Como noutros países do Sul da Europa, parece existir uma forte correlação nos elementos das classes médias urbanas entre europeísmo e fraco «orgulho nacional» e, nas classes baixas rurais e pouco instruídas, entre fraco europeísmo e forte «orgulho nacional». Reafirmando a sua identidade europeia, mantendo-se otimistas sobre a União Europeia e a integração portuguesa ao longo dos anos de 1980, os Portugueses, tanto quanto os estudos de opinião pública permitem avaliar, não passaram por sérios problemas de identidade com o fim do império colonial, em 1975, ou com a sua nova inserção internacional no espaço europeu, em 1986.

54

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 54

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 55

30/03/15 10:14

PORMENOR DA IMAGEM DA PÁGINA 69

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 56

30/03/15 10:14

PORTUGAL NO MUNDO Nuno Severiano Teixeira

Desde o segundo pós-guerra que as linhas de orientação da política externa do Estado Novo estavam redefinidas de acordo com os três princípios tradicionais da política externa portuguesa: em primeiro lugar, a integração no sistema de segurança atlântico com a entrada de Portugal na North Atlantic Treaty Organization (NATO); em segundo lugar, a reticência e o pragmatismo face ao processo de construção europeia, com a participação nos projetos de cooperação económica e a recusa de qualquer forma de integração política; e, finalmente, a recusa absoluta da descolonização e a defesa intransigente do Império. Após um curto período de isolamento internacional, entre 1945 e 1949, a entrada de Portugal na NATO, como membro fundador, abre um dos períodos mais favoráveis da política externa do Estado Novo. Em primeiro lugar, no plano global, a adesão de Portugal à Aliança Atlântica, veio quebrar o isolamento internacional e, em certa medida, legitimar internacionalmente o regime. Em segundo lugar, possibilitou o reencontro com os vetores tradicionais da orientação diplomática portuguesa: a «vocação atlântica» e a aliança preferencial com a potência marítima, agora com uma novidade: o pólo de referência da potência marítima já não é a «velha aliança», mas os Estados Unidos da América. Em terceiro lugar, no plano peninsular, a entrada portuguesa e a exclusão espanhola veio reforçar a posição de Lisboa no quadro da Península Ibérica e constituir Portugal como o interlocutor privilegiado para o exterior. Este período estende-se até 1955, data em que a entrada de Portugal na Organização das Nações Unidas (ONU), que parecia uma vitória para a política externa portuguesa, veio, paradoxalmente, inverter a situação. Em dezembro de 1955, em conjunto com vários outros países, entre os quais a Espanha, Portugal é admitido com membro da ONU. Inicia-se, a partir de

57

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 57

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

então, um movimento de sentido inverso no posicionamento internacional dos dois países ibéricos. A entrada da Espanha na ONU significa, para o regime de Franco, o princípio do fim do seu isolamento internacional. Pelo contrário, para Portugal, significou o fim da tolerância para com o Estado Novo e o princípio da contestação internacional à política colonial do regime. Além da possibilidade de uma política externa multilateral, a entrada de Portugal nas Nações Unidas tem como consequência imediata e, sem dúvida, a mais relevante para o governo de Lisboa, o início do confronto com o espírito anticolonialista do movimento afro-asiático e não-alinhado que dominava a Assembleia Geral da ONU. De facto, embora a década de 1950 seja, para Portugal, marcada por uma política atlântica e pelos compromissos militares com a NATO, a questão colonial constitui-se, já entre 1956 e 1961, como uma preocupação dominante da política externa portuguesa. E, durante este período, a diplomacia portuguesa move -se para a procura de apoios externos à política ultramarina de Portugal. É neste contexto e com este sentido que se abre, a partir de 1957, um ciclo de viagens de Estado que se inicia com o Presidente do Brasil Jucelino Kubishek de Oliveira, na desenvolver tentativa de uma comunidade luso-brasileira e prossegue com o Presidente do Paquistão, a rainha Isabel II de Inglaterra, o Presidente Sukarno da Indonésia e o imperador Haile Selassie, da Etiópia. Já no ano de 1960, dá-se continuidade a esta política com as visitas dos presidentes do Peru, do Nepal e da Tailândia, que culmina com as visitas do secretário-geral das Nações Unidas, Dag Hamarskjoeld e, sobretudo, do Presidente norte-americano, Eisenhower. Contudo, e apesar destas tentativas, o clima internacional em torno da política colonial portuguesa agrava-se progressivamente e, após o confronto ideológico na Assembleia Geral da ONU, chegará a Portugal o confronto diplomático e militar. Primeiro, com a União Indiana; depois, com os movimentos de libertação africanos. EM DEFESA DO IMPÉRIO

Desde 1950 que a União Indiana apresentara, em Lisboa, um memorando diplomático reclamando, formalmente, a soberania da Índia sobre os territórios de Goa, Damão e Diu e propondo a abertura de negociações nesse sentido. Pela primeira vez, Salazar via-se confrontado com o problema da descolonização. Por princípio, tinha dificuldade em aceitar o direito dos povos a disporem de si mesmos e, por isso mesmo, não aceitava as suas consequências políticas:

58

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 58

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

a autodeterminação e a independência dos povos coloniais. Mas, além do princípio teórico, via-se, agora, confrontado com o problema concreto: se aceitasse a soberania indiana sobre Goa, Damão e Diu, com que legitimidade defenderia a soberania portuguesa nos outros territórios ultramarinos? O objetivo era, pois, a manutenção intransigente e a todo o custo da integridade colonial. A estratégia da política externa portuguesa procura, então, retirar as alternativas políticas e diplomáticas à União Indiana, no pressuposto de que Nehru, no seu assumido pacifismo, não recorreria à alternativa militar. E, se o fizesse, pensava Salazar, Portugal teria o apoio dos seus mais próximos aliados. Duplo erro de cálculo: em dezembro de 1961, a União Indiana invadiu e ocupou Goa, Damão e Diu; nem a velha aliada, Inglaterra, nem a antiga colónia, o Brasil, apoiaram a posição portuguesa. A Espanha franquista estabelecera, já em 1956, relações com a Índia de Nehru, primeiro sinal de quebra da «amizade peninsular». Nenhum dos parceiros da NATO apoiou Portugal. A comunidade internacional assistiu aos acontecimentos com indiferença e a Assembleia Geral da ONU até com algum regozijo. Entre 1961 e 1974, acentua-se o isolamento e a hostilidade internacional ao Estado Novo. Reduz-se, significativamente, o empenhamento atlântico e os compromissos com a NATO e a questão colonial torna-se a preocupação quase exclusiva da política externa portuguesa. Perdida a Índia, o problema estende-se a África. No mesmo ano de 1961, começa a guerra em Angola e, a breve trecho, Portugal vê-se envolvido em três conflitos de descolonização em três teatros de operações diferentes: Angola, Guiné e Moçambique. Em abril de 1961, logo no início da guerra, um grupo de militares chefiados pelo general Botelho Moniz, com o conhecimento e o assentimento da administração norte-americana, tentou um golpe, falhado, contra Salazar. O objetivo era alterar a política colonial, abandonar a via militar e procurar uma solução política para o conflito. Depois do golpe falhado, a administração Kennedy tentou ainda, em 1963, um acordo entre Washington e Lisboa com vista a uma solução negociada para o problema colonial português. A proposta americana era a de uma terceira via entre o integracionismo de Salazar e a independência pura e simples do movimento afro-asiático: uma fórmula de autodeterminação, que Salazar acaba, também, por rejeitar, inviabilizando o acordo. Entre o golpe falhado e a tentativa de acordo, a administração norte-americana chegou a elaborar uma lista de países com quem Portugal tinha melhores relações e que, por isso mesmo, estariam em melhores condições de pressionar Lisboa a infletir a sua posição: a Inglaterra, a Espanha, o Brasil e o próprio Vaticano.

59

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 59

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Em vão. A todos a política externa portuguesa ofereceu a mais firme resistência. Tal como sucedera na questão indiana, a Inglaterra afasta-se, agora, de Portugal na questão da descolonização africana. A Espanha por várias vezes se distancia das posições portuguesas e o próprio Brasil, sob a presidência de Jânio Quadros, assume idêntica posição. Mesmo o Vaticano se abstém de apoiar Portugal e Paulo VI, apesar da visita a Fátima em 1967, chega a receber os movimentos de libertação das colónias portuguesas, logo no início dos anos de 1970. Em matéria africana, chegava-se ao ponto mais alto na política do «orgulhosamente só». Salazar via África como um prolongamento natural da Europa e reservava-lhe um papel de inseparável complementaridade em relação ao velho continente. No seu pensamento, essa complementaridade tinha não só funções económicas, mas também um valor estratégico na defesa do Ocidente, o que chegou a argumentar, em vão, no processo de adesão à Aliança Atlântica. Dominada pelo vetor atlântico e absorvida pela defesa a todo o custo da integridade colonial, a política externa portuguesa confere à questão europeia, durante este período, um papel meramente secundário, para não dizer acessório. Salazar manifestou, sempre, ceticismo e, amiúde, hostilidade em relação ao processo de construção europeia. À posição tradicional de afastamento de Portugal das questões continentais, juntava-se agora uma desconfiança profunda em relação aos processos de integração e supranacionalidade e, em última instância, o receio de que envolvimento nesse processo pusesse em a causa o regime autoritário. A posição de Portugal perante a construção europeia é, portanto, uma posição de afastamento. E, quando participa, fá-lo não pelo ideal político da construção da Europa, que recusava, mas pelo interesse pragmático da conjuntura. Neste contexto e apesar do peso dos Estados Unidos no quadro atlântico deste a entrada de Portugal na NATO, em matéria europeia, a política externa portuguesa continua a seguir de muito perto as posições da velha aliada Inglaterra. Desde o segundo exercício do Plano Marshall, em 1949-50, que Portugal tivera a sua primeira experiência nas instituições de cooperação económica europeia, na Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE). Quando, em 1957, a Inglaterra se afasta das negociações que haveriam de conduzir ao Tratado de Roma e inicia, em 1959, conversações para a constituição da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), Portugal será um dos países membros. A experiência europeia da EFTA faz emergir em Portugal, sobretudo entre as elites económicas, uma corrente pró-europeia que acabará por se refletir sobre a própria orientação externa do país. À ideia da complementaridade África-Europa do pensamento de Salazar, substitui-se, progressivamente, uma perceção

60

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 60

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

contraditória e, quase, dilemática, para a política externa portuguesa: ou a África, ou a Europa. Em 1961, quando a Inglaterra decide pedir a adesão ao Tratado de Roma, Portugal solicita, também, negociações com a Comunidade Económica Europeia (CEE) com vista a um acordo de associação, o que veio a formalizar-se, já, em maio de 1962. Todavia, o veto do general De Gaulle à entrada de Inglaterra acaba por arrastar, necessariamente, o malogro das negociações em curso com os outros países da EFTA, entre os quais Portugal. Só em 1969, afastado De Gaulle e após a cimeira de Haia, Portugal volta a solicitar a abertura de negociações com a Comunidade Europeia. Estava-se em maio de 1970. A negociação estender-se-ia, ainda, por quase dois anos e só em março de 1972, já depois da entrada da Inglaterra, é assinado o acordo comercial entre Portugal e a CEE. O acordo comercial representava o ponto máximo da aproximação política possível de Portugal ao processo de integração europeia. E o dilema entre a África e a Europa era, então, de uma clareza meridiana: ou Portugal mantinha a opção africana e o império colonial, tendo para isso de continuar a guerra e, para tal, de manter o regime autoritário; ou Portugal aprofundava a relação com a Europa, o que implicava a descolonização que, por seu turno, implicava a democratização. A «opção europeia» teria de esperar pela transição para a democracia e seria a verdadeira novidade da política externa da democracia. A DIMENSÃO INTERNACIONAL DA TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA

O fim do regime autoritário e o processo de transição para a democracia que se inicia em 25 de Abril de 1974, vem determinar uma redefinição profunda da política externa portuguesa de acordo com o espírito do programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) que se traduzia, em síntese, na fórmula: «democratização, descolonização, desenvolvimento». Apesar do programa do MFA anunciar e garantir o cumprimento de todos os compromissos internacionais de Portugal, tornava-se claro que estes dois simples princípios – democratizar e descolonizar – implicariam uma reinterpretação desses mesmos compromissos e uma alteração de fundo na orientação externa do Estado português. Ainda em 1974, iniciam-se as negociações com vista à descolonização dos territórios coloniais. A descolonização constituiria, de facto, o primeiro grande desafio da política externa do novo regime. Sobre a questão várias conceções ideológicas se defrontavam nos bastidores: uma primeira tendência, herdeira da proposta de Spínola em «Portugal e o Futuro», continuava a insistir na teoria federativa; uma segunda, inspirada por Melo Antunes, procurava a constituição de um eixo

61

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 61

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

neutralista, não-alinhado e terceiro-mundista; finalmente, Vasco Gonçalves perfilhava uma tendência pró-soviética. Do ponto de vista político, estas nuances ideológicas dividiam-se em duas posições políticas fundamentais: a primeira defendia que a autodeterminação não se traduzia necessariamente em independência e era intransigente na luta pela soberania portuguesa, defendendo a realização de um referendo que deveria decidir o destino dos territórios coloniais; a segunda, pelo contrário, defendia a identidade entre autodeterminação e independência e pugnava pela transferência imediata de poderes para os movimentos de libertação enquanto legítimos representantes dos povos coloniais. Num processo complexo, não sem reflexos importantes sobre a política interna, venceu a segunda posição. Ao mesmo tempo que, no terreno, se implementava o cessar-fogo, nas chancelarias iniciavam-se as primeiras negociações diplomáticas. A Guiné-Bissau, que declarara, unilateralmente, a independência em 1973, seria o primeiro país a ser reconhecido pela antiga potência colonial. Estava-se em agosto de 1974. Entre agosto de 1974 e janeiro de 1975, seguir-se-ia, embora com variantes próprias para cada caso, o mesmo processo de transferência de poderes para os movimentos de libertação noutras antigas colónias portuguesas. Ao mesmo tempo que decorre o processo de descolonização, estabelecem-se relações diplomáticas com a União Soviética, os países de Leste e do Terceiro Mundo, com exceção da Albânia e da China, onde o processo conheceu maiores dificuldades, só resolvidas em 1979. Todavia, a descolonização, a abertura diplomática e o fim do isolamento internacional do país não bastavam, por si só, para definir as novas orientações externas da democracia portuguesa. Muito pelo contrário. Sob as lutas ruidosas do processo de democratização interna, trava-se uma outra luta, silenciosa, sobre os objetivos e as opções estratégicas da política externa portuguesa. Entre abril de 1974 e janeiro de 1986, a política externa portuguesa oscilou entre duas orientações de fundo que marcam, igualmente, duas fases distintas: a da transição para a democracia, correspondente ao período pré -constitucional dominado pelo processo revolucionário; e a da consolidação democrática, correspondente ao período constitucional marcado pela institucionalização e estabilização do regime democrático. O período pré-constitucional é caracterizado pela luta em torno das opções externas do país, pelo exercício de diplomacias paralelas e, consequentemente, pela indefinição da política externa. Apesar das lutas, das hesitações e da indefinição, a orientação global da política externa portuguesa, durante os governos provisórios e, em particular, aqueles de maior preponderância militar, tende para

62

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 62

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

uma opção terceiro-mundista e para o desenvolvimento de relações privilegiadas com os novos países saídos da descolonização portuguesa. Era o último avatar, agora socializante, da tese tão cara a Salazar, da «vocação africana» de Portugal. O período constitucional que se inicia, precisamente, com o primeiro governo constitucional, caracteriza-se pela clarificação da política externa portuguesa e pela definição unívoca e rigorosa do posicionamento externo de Portugal, que assume a sua condição de país ocidental, ao mesmo tempo europeu e atlântico. Estes serão, pois, os dois vetores centrais da política externa do Portugal democrático, a que deverá acrescentar-se, a partir da década de 1980, as relações pós-coloniais. O REENCONTRO DA TRADIÇÃO ATLÂNTICA

O vetor atlântico significou para Portugal a permanência das características históricas da sua política externa e jogou um papel importante, não só ao nível da orientação externa como também da estabilização interna do país. No plano bilateral, esse atlantismo materializou-se no estreitamento de relações diplomáticas com os Estados Unidos e pela renovação do Acordo das Lajes em 1979 e 1983. Através destes acordos, Portugal estende as chamadas «facilidades» nas bases dos Açores aos Estados Unidos da América até 1991, e recebe como contrapartida «ajudas» no sector económico e militar. Este ambiente altera-se e, com o fim da Guerra Fria, as relações com os Estados Unidos passam a ser marcadas quer pelo reajustamento das políticas de segurança e defesa norte-americanas, quer pela nova dimensão europeia de Portugal. O entendimento acaba por se concretizar, já na década de 1990, pela assinatura de um novo Acordo de Cooperação e Defesa que marcaria o início de um novo modelo de relação entre Washington e Lisboa. O fim da Guerra Fria teve, como não poderia deixar de ser, uma enorme influência na política de segurança dos Estados Unidos que, no início dos anos de 1990, é caracterizada por um período de maior desinvestimento no sector da defesa, pelo menos nos seus pressupostos tradicionais. São desativadas bases militares em território americano, diminui a presença norte-americana no teatro europeu e, na sequência da chamada Estratégia de Defesa Regional de George Bush e da «Bottom-up Review» anunciada por Bill Clinton, altera-se, substancialmente, o conceito de «defesa avançada» que, desde o segundo pós-guerra, construíra uma rede de bases militares americanas em todo o mundo. A presença

63

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 63

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

militar externa americana orienta-se, doravante, para outras prioridades: forças mais reduzidas mas, simultaneamente, com maior flexibilidade, mobilidade e eficácia. Os Estados Unidos passam, a partir de então, a desativar, de modo total ou parcial, muitas das suas bases militares no estrangeiro. Ao mesmo tempo começa também a alterar-se a filosofia tradicional que presidia aos programas de auxílio externo, reduzindo a assistência militar em favor de programas de carácter económico ou humanitário. Este novo clima não deixou de se refletir sobre as relações dos Estados Unidos com Portugal, em particular, sobre a questão dos Açores. Este facto, associado ao desenvolvimento económico, estabilidade social e consolidação da democracia que se confirmam com a integração europeia de Portugal, pesarão decisivamente nas negociações que se abrem para um novo acordo em 1991. A tentativa de desvalorização estratégica da base das Lages por parte dos Estados Unidos e a insistência portuguesa no modelo das contrapartidas financeiras e no prolongamento da assistência militar e até económica, no caso específico da base das Lajes nos Açores, conduzem as negociações a uma situação que atinge o impasse em 1992. A partir de 1993, flexibilizam-se as posições e, face à integração europeia e aos níveis de desenvolvimento do país, a política externa portuguesa não só abandona a filosofia tradicional das «facilidades vs. contrapartidas», mas, sobretudo, assume uma nova forma de encarar as relações transatlânticas. Para Portugal, a relação com a única potência global transcendia a questão específica da base das Lajes, abrindo o caminho a um acordo de natureza geral. A 1 de junho de 1995, os ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os países assinavam, em Lisboa, o Acordo de Cooperação e Defesa, mas também, um Acordo Técnico e um Acordo Laboral para os trabalhadores da base das Lajes. O novo Acordo de Cooperação e Defesa não definia programas específicos, mas identificava as diferentes áreas de cooperação: militar e de defesa, científica e tecnológica e no domínio das relações económicas e comerciais. No plano multilateral, o vetor atlântico traduziu-se pela manutenção e reforço da posição de Portugal na Aliança Atlântica e pela reaproximação, redefinição e renovação do empenhamento português nos compromissos militares da NATO, que o esforço da guerra em África tinha obrigado a abandonar desde a década de 1960 e que as vicissitudes revolucionárias da transição portuguesa tinham agravado, na década seguinte. No que concerne ao exército, este reforço dos compromissos traduziu-se na organização da Brigada Mista Independente, entretanto convertida em Brigada Aero -Transportada, que vem substituir e reativar a antiga Divisão Independente do Exército e que mantém, no essencial,

64

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 64

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

os seus antigos objetivos nas missões NATO no flanco Sul da Aliança. Ao nível da Marinha e Força Aérea, reforçam-se as missões de patrulha no quadro do IBERLAND, cujo comando é elevado à categoria Comando-Chefe – CINCIBERLAND – e passa a poder ser desempenhado por um oficial português. A partir de meados da década de 1980 e, sobretudo, no pós-Guerra Fria, a presença de Portugal na NATO é marcada, não só pela transformação e adaptações da Aliança ao pós-Guerra Fria, mas também, simultaneamente, pela integração europeia de Portugal e, em particular, pela adesão à União da Europa Ocidental (UEO), em 1990, e o empenhamento na Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD) e, finalmente, na Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) e Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). Criada para a Guerra Fria e pensada contra a ameaça soviética, a NATO não só persiste à morte do seu inimigo, razão da sua existência, como sobrevive a um mundo para o qual não fora criada e inicia um complexo processo de reforma das suas estruturas para se adaptar a novas funções e novas missões. Reformas no plano político e reformas no plano militar. No plano político, são duas as questões centrais na agenda da NATO: o alargamento a leste e a relação transatlântica, ambas com implicação para Portugal. A primeira questão e o grande desafio da Aliança foi o alargamento a leste, forma simbólica de marcação da vitória na Guerra Fria e, simultaneamente, preenchimento do vazio estratégico aberto pela dissolução do Pacto de Varsóvia e fator de segurança na Europa pós-comunista. À lógica de confrontação, substitui-se uma lógica de cooperação e os antigos inimigos tornam-se parceiros e aliados. Neste processo, a NATO desenvolve uma iniciativa em três fases: o estabelecimento de uma estrutura de cooperação, lançada na Cimeira de Roma de 1991 – o Conselho de Cooperação do Atlântico Norte; a oferta de uma parceria estratégica proposta na Cimeira de Bruxelas de 1994 – a Parceria para a Paz – e, finalmente, o Alargamento, decidido em Madrid em 1997, e concretizado a três países – Polónia, Hungria e República Checa. A Rússia não é esquecida nem excluída da nova arquitetura de segurança europeia. Pelo contrário, é objeto de uma aproximação especial que se concretiza na Acta Fundadora de Paris de 1997 e a associa à Aliança através do Conselho de Parceria Euro-Atlântico. Em todo o processo da reforma política e, em particular, no processo de alargamento, Portugal revelou sempre uma conceção aberta e dinâmica para a evolução da Aliança Atlântica. Participou em todas as novas instituições, desenvolveu relações de cooperação em matéria de Defesa com todos os países do centro e Leste europeu no quadro da Parceria para a Paz e apoiou ativamente

65

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 65

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

o alargamento da NATO. Na Cimeira de Madrid, que definiu o figurino do alargamento a três países, Portugal defendeu, com outros países europeus, a fórmula 3+2, apoiando um alargamento mais amplo não só à Polónia, República Checa e Hungria, mas também à Eslovénia e Roménia. De então para cá, o processo de alargamento da Aliança não cessou e tem-se realizado sem ruturas. Na Cimeira de Washington, em 1999, a Aliança decidiu que não deveria fechar a porta à entrada de novos membros e definiu os princípios do método a adotar: poderiam entrar os candidatos que preenchessem os requisitos políticos e militares necessários, isto é, que respeitassem os princípios políticos fundadores da Aliança – a liberdade, a democracia e o Estado de direito – e cujas capacidades militares tivessem condições para contribuir para a segurança coletiva e a estabilidade internacional. Com o último alargamento, em 2009, à Albânia e à Croácia, a Aliança conta, hoje, com 28 membros. E, dentro destes princípios, Portugal foi, sempre favorável ao processo de alargamento. A segunda questão da agenda política prende-se com o relacionamento entre os dois pilares da Aliança – o americano e o europeu – ou, dito de outro modo, com a relação transatlântica. Durante a Guerra Fria, esta relação fora o garante da segurança europeia e da própria paz. No pós-guerra, a manutenção do vínculo transatlântico continuou a ser considerada condição fundamental para a segurança da Europa. Porém, o facto de os Estados Unidos se terem tornado a única potência global e de a União Europeia ter institucionalizado a PESC, reativado a UEO e posto em marcha a IESD, obrigou a repensar a relação transatlântica. A Aliança Atlântica interpretou, inequívoca e imediatamente, a IESD não como «um braço armado da União Europeia», mas antes como «pilar europeu da NATO». E, nas sucessivas Cimeiras e Declarações desde 1992, não só apoiou esta conceção da Identidade Europeia de Segurança e Defesa, como a Cimeira de Berlim de 1996 declara a construção da IESD no seio da própria NATO. Portugal apoiou sempre a construção da IESD e evolui, nesta matéria, de uma posição estritamente atlantista para uma posição euro-atlântica. Depois da criação da Política Europeia de Segurança e Defesa e, por fim, da Política Comum de Segurança e Defesa, apesar da capacidade de defesa autónoma da União Europeia, os dados do problema não se alteraram de forma substancial. A intervenção norte-americana no Iraque, em 2003, provocou a mais grave crise transatlântica desde a saída da França da estrutura militar integrada da NATO, em 1966, e deixou sequelas. A crise foi ultrapassada, o vínculo transatlântico restabelecido. A política da administração Obama, do lado americano e o regresso da França à estrutura militar da NATO, do lado europeu, parecem

66

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 66

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

ter encerrado, definitivamente, este ciclo. No entanto, a relação entre NATO e União Europeia e, em particular, NATO -PCSD está longe de estar resolvida. Tanto no plano político como no plano institucional e operacional. A prova é a ambiguidade da formulação da parceria estratégica NATO -UE no novo conceito estratégico da Aliança. Portugal, que apoiou e integrou, desde o início, a PESD e a PCSD defendeu, sempre, em ambas as instâncias, uma perspetiva de complementaridade estratégica entre a NATO e a UE. No plano da reforma militar, a agenda da NATO inscreveu outra questão fundamental e, igualmente, com implicações para Portugal: a reestruturação dos comandos militares e a sua adaptação aos novos conflitos e às novas missões. A reestruturação dos comandos visava responder e adaptar a NATO à nova conjuntura estratégica. Mantém, na sua estrutura, os dois Comandos Estratégicos, o do Atlântico e o da Europa, porém com reformas nos comandos de nível inferior: três comandos de nível regional no SACLAND, dois comandos de nível regional no SACEUR e, no âmbito destes, outros comandos de nível sub-regional. Para Portugal, o objetivo fundamental nesta reestruturação de comandos era a manutenção em território português do CINCIBERLAND e da sua permanência ao nível de comando regional. A questão colocava-se face à entrada de Espanha na estrutura militar integrada da NATO e à decisão do estabelecimento de um comando em território espanhol. Esta questão não era bilateral, mas sim uma questão da NATO, de definição de responsabilidades entre os dois Comandos Estratégicos – SACLAND e SACEUR – e acaba por ter uma solução diplomática negociada entre Portugal e Espanha, solução esta apresentada à Aliança e posteriormente ratificada nas suas instâncias militares e políticas. A nova filosofia dos Comandos Aliados define apenas os limites dos seus comandos estratégicos e não dos comandos de nível inferior. Os limites destes e as suas responsabilidades militares são definidos pelos comandos estratégicos em casos de necessidade, definindo-se nas zonas de interesse mútuo um «supporting command» e um «supported command». Dentro desta filosofia, Portugal obtém um acordo que garante inteiramente os seus objetivos. Em primeiro lugar, mantém no seu território não só o Comando Ibero-Atlântico, mas também o nível deste mesmo comando. Em segundo lugar, e pela primeira vez na história da sua presença na Aliança, o território português, continental e atlântico, fica todo ele integrado sob o mesmo comando: o SACLAND. (Desde a primeira definição de comandos militares da NATO que a defesa da componente atlântica do território português estava confiada ao

67

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 67

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Comando Estratégico do Atlântico, mas a defesa do território continental era responsabilidade nacional). Em terceiro lugar, evita a pretensão espanhola de um corredor estratégico entre Gibraltar e as Canárias sob o comando do SACEUR e em particular do comando sub-regional de Madrid. Com a exceção de uma «bolha» sobre as ilhas Canárias, resultante do compromisso alcançado e que fica sob comando de Madrid, todo o espaço atlântico a ocidente do meridiano do rio Guadiana e a norte do trópico de Câncer é da responsabilidade do SACLAND. A Espanha, por seu lado, ao entrar na estrutura militar integrada, consegue desde logo a obtenção de um comando sub-regional no seu território. Consegue, igualmente, manter todo o seu território, incluindo as Canárias, sob o mesmo comando – o SACEUR – e faz deslocar para ocidente – de Gibraltar para o Guadiana – a linha de demarcação entre os dois comandos estratégicos da Aliança. Após o 11 de Setembro, a mudança do ambiente estratégico internacional, as novas ameaças e riscos continuaram a impor à Aliança o desenvolvimento do processo de transformação e, em particular, a adaptação das suas estruturas militares às novas missões. Depois da Cimeira de Washington, em 1999, o comando NATO não só se mantém em território português como é transformado e reforçado num dos três comandos regionais: o CINCIBERLANT passa a CICSOUTHLANT. A EUROPA CONNOSCO

O vetor atlântico constituiu o reencontro com a tradição. A «opção europeia» constituiria a verdadeira inovação e o grande desafio da política externa do Portugal democrático. Ultrapassadas as resistências antieuropeias, primeiro da opção africana do regime autoritário, depois da tentação terceiro-mundista do período revolucionário, Portugal assume, a partir de 1976, a «opção europeia», agora enquanto projeto político e não só numa perspetiva meramente económica, como aquando dos acordos de associação em 1972. A aproximação de Portugal ao processo de construção europeia começa, precisamente, nesse ano de 1976, com a adesão ao Conselho da Europa (CE) e a assinatura dos Protocolos Adicionais ao Acordo de 1972 que constituem, em certa medida, a fase preliminar do processo de adesão. Depois de uma ronda negocial pelas capitais europeias, coroada de êxito, entre setembro de 1976 e fevereiro de 1977, o I Governo Constitucional solicita,

68

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 68

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

Rui Homem Soares e Machete na assinatura da adesão de Portugal à CEE, 1985 Global Notícias

69

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 69

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

formalmente, o pedido de adesão de Portugal à CEE. Estava-se em março de 1977. Com o pedido formal de adesão ultrapassavam-se, em definitivo, as hesitações sobre a fórmula da integração portuguesa – fosse o estatuto de pré-adesão ou da chamada «associação privilegiada» – e concretizava-se a «opção europeia». Era uma opção estratégica que marcaria de forma decisiva o futuro do país. Motivavam o governo e fundamentavam esta opção estratégica dois objetivos: em primeiro lugar, a consolidação da democracia que a entrada de Portugal na Comunidade assegurava; em segundo lugar, a modernização e o desenvolvimento económico que a ajuda comunitária favorecia. Ao pedido de adesão seguir-se-ia um longo e complexo processo de negociação que se estenderia por quase uma década. O culminar do processo chegaria, em junho de 1985, com a assinatura do Tratado de adesão de Portugal à CEE. A partir de 1 de janeiro de 1986, Portugal torna-se membro de pleno direito da Comunidade Europeia e, nesse mesmo ano, assinava o Acto Único Europeu. Portugal apoiou o Acto Único Europeu de 1986, o Tratado de Maastricht de 1992 e, de uma forma geral, todos os sucessivos tratados europeus com o objetivo de aprofundamento do processo de integração económica e política. Os vários governos viram a presença portuguesa na União Europeia não só como uma garantia de consolidação democrática, nos primeiros tempos, como mais tarde, como uma forma de apoio aos planos de desenvolvimento económico e estrutural português, apesar de compreenderem que estas alterações implicavam mudanças profundas na sociedade, na política interna e na política externa portuguesa. Este processo, não foi, no entanto, linear, sendo que podem destacar-se três momentos fundamentais na participação de Portugal no processo de integração europeia após 1986: um primeiro momento, entre 1986 e 1992, caracterizado por um posicionamento de pragmatismo face ao processo de integração europeia; um segundo momento, de euro-entusiamo, de 1992 até 2000, em que a integração europeia atinge o topo das prioridades nacionais e os governos portugueses colocam Portugal no pelotão da frente do processo de integração europeia num processo de «convergência»; e, finalmente, um terceiro período, de 2000 até ao presente, em que se assiste ao retorno do pragmatismo, com Portugal a utilizar os instrumentos da integração europeia de forma a potenciar o seu papel externo, num equilíbrio entre custos e benefícios da presença no seio da União Europeia, mas em que é já claro o processo de «divergência» que a crise atual veio confirmar. Os primeiros anos (1986-1992) de integração na então CEE são tempos de pragmatismo e moderação. A entrada de Portugal nas Comunidades Europeias ocorreu quando a integração europeia entrou num intenso processo de

70

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 70

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

aprofundamento. A partir de 1986, a própria CEE passa por um período de relançamento institucional, traduzido pela assinatura do Acto Único Europeu, a primeira revisão do Tratado de Roma em cerca de trinta anos. Estas alterações foram recebidas em Portugal com apreensão, na medida em que o aprofundamento político determinado pelo Acto Único levantava dúvidas junto da elite política sobre a capacidade de Portugal cumprir as novas e reforçadas exigências. A abertura da economia nacional, tradicionalmente atrasada em relação à maioria dos parceiros da Europa Ocidental, obrigou a que a adesão de Portugal à CEE fosse seguida de medidas económicas compensatórias. Assim, em termos de objetivos políticos, o governo português, liderado por Aníbal Cavaco Silva desde finais de 1985, seguiu uma linha clara, que passava pela credibilização da participação plena de Portugal, ao mesmo tempo que procurava capitalizar ao máximo as vantagens económicas e sociais que decorriam da integração portuguesa nas Comunidades Europeias. Apesar da moderação e do pragmatismo da posição portuguesa, foi através de um dos princípios base do Acto Único que a primeira fase da participação na CEE ficou marcada. A decisão da criação do Mercado Único ficou intimamente ligada à necessidade de promover a coesão económica e social no interior das comunidades, sendo que os países do Sul da Europa e a Irlanda receberam, com a aprovação do Pacote Delors I (1988), compensações financeiras significativas com o objetivo de tentar diminuir as consequências da maior liberalização do mercado europeu. Este fator foi decisivo para Portugal e o governo de Lisboa foi um dos que mais beneficiou com a implementação destas medidas, que tiveram consequências determinantes nas transformações estruturais realizadas em Portugal e contribuíram para a mudança na perceção da opinião pública em relação à Europa e às implicações decorrentes da integração europeia de Portugal. E, se nos primeiros anos da adesão, a perceção dominante era de receio quanto à capacidade de o país responder aos desafios da entrada na CEE, a receção maciça de transferências financeiras e a modernização das infraestruturas e da sociedade que possibilitaram tornaram claras e visíveis as vantagens da integração e alteraram de forma radical a perceção de Portugal em relação à Europa. Do ponto de vista político, a adesão à CEE obrigou o governo português a reequacionar a sua estrutura de alinhamento nas relações intraeuropeias. Nos primeiros anos, a prudência portuguesa e a postura pragmática dos primeiros governos de Cavaco Silva conduziram Portugal a uma continuidade das posições atlânticas e a um alinhamento com os antigos parceiros da EFTA. Seguindo a linha tradicional da política externa em relação ao processo de integração europeia, Portugal alinhou com o Reino Unido, vendo no governo de Margaret

71

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 71

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Thatcher um aliado seguro e ponderado face às tendências supranacionais de defesa da integração europeia. No outono de 1989, quando se dá a queda do Muro de Berlim e consequente derrocada dos regimes comunistas na Europa Central e de Leste, predominava ainda a linha tradicional da política externa portuguesa. Mas, depois da implosão soviética, da reunificação alemã e do processo de alargamento e aprofundamento político, económico e monetário da CEE, decidido em Maastricht, o governo de Lisboa evoluiu do alinhamento tradicional do país para uma posição inequivocamente europeísta. A nova posição portuguesa já se refletiu no primeiro semestre de 1992, altura em que Portugal assumiu, pela primeira vez, a Presidência da União Europeia. Foi um momento em que a questão europeia foi encarada como um novo desígnio nacional, com Portugal a empenhar-se na nova forma institucional do projeto europeu: a União Política. A presidência portuguesa da União Europeia de 1992 marcou, sem dúvida, a mudança para uma nova fase do processo de integração de Portugal na Europa e abriu a porta a um período de euro-entusiasmo (1992-2000). O sucesso português, que teve como ponto alto o acordo para a reforma da Política Agrícola Comum, contribuiu para afastar de vez as posições conservadoras e reticentes dos primeiros anos dos governos de Cavaco Silva e para iniciar um período de entusiasmo em relação à participação de Portugal no projeto de integração europeia. Enquanto isto, a União Europeia entrava numa nova fase após a assinatura do Tratado de Maastricht, com profundas transformações ao nível da Política Externa e de Segurança Comum e Justiça e Assuntos Internos, bem como pelo estabelecimento do objetivo da União Económica e Monetária, Portugal projetava junto das instituições europeias a imagem do «bom aluno». Para trás ficava a tendência conservadora, tradicional, atlantista e, até então, dominante na cultura estratégica e diplomática, que via no vetor atlântico e no relacionamento privilegiado com os Estados Unidos e com os países lusófonos a prioridade externa portuguesa. Com o fim da Guerra Fria, a posição internacional de Portugal evoluiu para uma tónica euro-atlântica que traduzia um processo de europeização da orientação estratégica portuguesa. Esta situação é visível a partir de 1995, reforçando-se até ao final da década. A participação nas missões de paz nos Balcãs, ao longo da década de 1990, tornou clara esta viragem na tradição da política externa portuguesa. Ela corresponde à assumpção plena do estatuto de país europeu e à fase mais clara de europeização, não só da política externa mas também da política de defesa de Portugal, já que, pela primeira vez desde 1914-1918 as Forças Armadas Portuguesas participaram em operações militares no continente europeu.

72

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 72

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

Assumindo uma vertente europeísta, tradicional no seu discurso político desde 1976, o governo socialista liderado por António Guterres viu no projeto de União Monetária o principal objetivo português em matéria de integração europeia. O governo de Lisboa assumia ser seu objetivo a colocação de Portugal na frente do processo de integração, única forma de manter um pequeno país periférico no centro das decisões da União. Esta estratégia implicou a necessidade de uma rápida europeização das políticas públicas portuguesas, em todas as áreas, contribuindo para que depressa se integrassem as alterações propostas pelos tratados da União Europeia, nomeadamente pelo Tratado de Amesterdão de 1997. Assim, assistiu-se à incorporação dos valores políticos da União Europeia em todos os níveis da política portuguesa. O auge desta estratégia ocorreu em 1998 quando, apesar da atávica indisciplina financeira dos países do Sul da Europa, Portugal cumpre todas as condições e é aceite no grupo restrito de Estados europeus admitidos para constituir a moeda única europeia, o Euro. Ao mesmo tempo que conseguia esta vitória junto dos seus parceiros comunitários, a diplomacia portuguesa obteve um dos maiores sucessos externos do regime democrático, com a resolução da questão de Timor-Leste. Após a anexação daquele território pela Indonésia durante o processo de descolonização em 1975, a condenação do Conselho de Segurança das Nações Unidas não foi suficiente para pôr termo à ocupação. Ao longo da década de 1990 assistiu-se a uma crescente sensibilização da comunidade internacional para o problema timorense graças às mudanças provocadas no sistema internacional e devido à persistência da diplomacia portuguesa. A pertença à União Europeia foi, indiscutivelmente, um fator determinante, já que possibilitou que Lisboa aumentasse a capacidade de afirmação internacional dos seus interesses, permitindo que fosse possível à população timorense exercer o direito de autodeterminação por via de um processo de transição política regulado pela ONU. A segunda presidência de Portugal da União Europeia, no primeiro semestre de 2000, marcou a entrada de Portugal no novo milénio, com o objetivo europeu a marcar a prioridade dos seus interesses nacionais. Nesta presidência, e ao contrário do que havia acontecido em 1992, o governo português procurou passar a imagem de um país integrado no projeto europeu, capaz de mobilizar os seus parceiros no desenvolvimento e aperfeiçoamento da União. No Conselho Europeu de março de 2000, a presidência portuguesa conseguiu que fosse aprovada a Estratégia de Lisboa, uma declaração de princípios que pretendia colocar a União Europeia, em dez anos, na liderança da economia mundial. Através da promoção de políticas sociais, educativas e ambientais, a Estratégia de Lisboa procurava tornar o espaço económico europeu mais competitivo e preparado

73

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 73

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

para os desafios da globalização. Embora com objetivos importantes para a afirmação da Europa no século XXI, as propostas aprovadas em Lisboa nunca foram cumpridas, em parte porque o método de aplicação fugiu às tradicionais fórmulas de integração comunitária, ou seja, sem obrigações vinculativas. Na realidade, em 2000, a maior parte dos países europeus estava mais interessada no aperfeiçoamento do sistema institucional da UE, para adaptar Bruxelas ao alargamento a Leste. A reunião da Conferência Intergovernamental em Nice, em 2000, apesar de ter como objetivo resolver apenas as questões deixadas pendentes no Tratado de Amesterdão, marcou o início da pressão dos grandes países no sentido de verem reconhecido e aumentado o seu peso na ponderação de votos no processo de decisão europeu. A culminar este período de euforia europeísta, a CIG de Nice permitiu a Portugal desempenhar um papel de liderança dos pequenos e médios Estados europeus na defesa dos seus interesses, perante a pretensão das grandes potências em reforçarem o seu peso na ponderação de votos. Este papel foi importante nas negociações da reforma institucional e foi, sem dúvida, um dos momentos mais ativos da participação de Portugal no processo de integração europeia. Paradoxalmente, o Tratado de Nice, em 2001, marca o princípio do fim do euro-entusiasmo e o regresso a um certo pragmatismo. Em síntese, a participação no processo de integração europeia trouxe custos e benefícios para Portugal, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista económico e social. De um ponto de vista global, a adesão de Portugal à CEE foi fundamental, quer para a consolidação da democracia ao nível interno, quer para a definição de um novo modelo de inserção internacional ao nível externo. Apesar de Portugal estar inserido no sistema internacional, pós-Segunda Guerra Mundial, enquanto parte integrante da ONU, da NATO, da OCDE e da EFTA, só a entrada na CEE fechou o ciclo de normalização da presença portuguesa no sistema internacional, colocando o país no clube restrito das democracias ocidentais, estáveis em termos políticos e economicamente desenvolvidas. No plano económico e social, assistiu-se a uma profunda alteração, em cerca 15 anos de integração de Portugal na UE. A economia portuguesa sofreu uma modernização acelerada, com impactos claros ao nível das estruturas produtivas, comércio externo e coesão social. A adesão de Portugal à CEE ocorreu no preciso momento em que as comunidades procuraram reforçar o aprofundamento da integração europeia, nomeadamente com a assinatura do Acto Único Europeu. Neste sentido, através dos fundos estruturais e das políticas de coesão, a economia e a sociedade portuguesas entraram num processo de reformulação

74

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 74

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

estrutural, com o objetivo de estabilidade macroeconómica e aumento da competitividade do sistema produtivo, que se tornou uma das consequências-chave da adesão. Com todas as dificuldades e limitações, a participação portuguesa no processo de integração traduziu-se, ao nível económico e social, por década e meia de convergência europeia de Portugal, tendência que se inverte, a partir dos primeiros anos do século XXI, sob o duplo efeito do alargamento a Leste, primeiro, e da crise do Euro, depois, que iniciam um período de divergência europeia de Portugal. No plano político, assistiu-se, claramente, a um processo de europeização das instituições e das políticas públicas portuguesas. A transposição da legislação europeia implicou alterações profundas de forma a adaptar as instituições e as políticas públicas ao modo de funcionamento das instituições e dos processos de decisão europeus. Neste processo de europeização e ajustamento de Portugal às instituições europeias, os custos da transferência de soberania nos vários sectores afetados parecem ter sido compensados pelos benefícios económicos alcançados. Prova disto é o apoio da opinião pública portuguesa ao processo de integração europeia e à participação portuguesa no projeto europeu até ao ano 2000. AS RELAÇÕES PÓS -COLONIAIS

Se ao vetor atlântico e à opção europeia se acrescentarem as relações pós-coloniais. encontraremos os três eixos centrais da política externa do Portugal democrático. O estabelecimento e desenvolvimento de relações e laços de amizade e cooperação com os novos países de expressão oficial portuguesa, saídos da descolonização, constituiu uma preocupação importante da política externa portuguesa desde 1976. Os sucessivos governos, e sobretudo o Presidente da República Ramalho Eanes, foram os protagonistas desses primeiros esforços diplomáticos de aproximação e melhoria das relações com os Países de Expressão Oficial Portuguesa (PALOP). Logo após a descolonização, ainda em 1975, inicia-se a cooperação com Cabo Verde que tem sido, ao longo de todo o período, o caso exemplar da cooperação portuguesa. Em 1978, Ramalho Eanes desloca-se a Bissau e assina com a Guiné acordos de cooperação em vários domínios. O «espírito de Bissau», como então se chamou, vem dar um novo élan à política de aproximação com os PALOPS e os acordos de cooperação estendem-se a São Tomé e, com mais dificuldade

75

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 75

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

e menos resultados, a Moçambique e, por fim, a Angola. O primeiro acordo de cooperação Portugal-Angola fora assinado em Bissau, em 1978, entre os presidentes Ramalho Eanes e Agostinho Neto, mas nunca saiu do papel. As sequelas da descolonização estavam ainda muito vivas, a política de cooperação portuguesa muito incipiente e o contexto internacional da Guerra Fria, em África, com a constituição de regimes marxistas de democracia popular nas antigas colónias condicionou os esforços de aproximação e o desenvolvimento da cooperação portuguesa. Em Portugal, a vontade política existia, as iniciativas diplomáticas também, mas, durante a segunda metade dos anos de 1970 e a década de oitenta, as circunstâncias eram adversas e os resultados foram limitados. Com o fim da Guerra Fria e a integração europeia de Portugal, o panorama muda por completo: as relações pós-coloniais entram numa nova fase e a política de cooperação ganha uma nova dimensão. No pós-Guerra Fria, a perda de influência soviética em África e a tentativa americana de conseguir uma solução negociada para a África Austral dão a Portugal a oportunidade de um novo regresso a África e de um novo papel de mediador diplomático nos conflitos que afetavam as suas antigas colónias. É neste contexto que deve compreender-se a intervenção diplomática portuguesa na mediação da guerra civil em Angola, que foi decisiva e conduziu ao Acordo de Bicesse, em 1991. O acordo de paz foi um sucesso para a política externa portuguesa, o que não deixou de se refletir nas relações entre Portugal e Angola. Porém, foi uma paz de pouca dura. O acordo previa a realização de eleições, que aconteceram, de facto, em 1992, dando a vitória ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) (53%), mas os resultados não foram aceites pela União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA) (34%) e a guerra civil regressou ao país. A ONU assume, a partir de então, a liderança do processo para o restabelecimento da paz, com a troica – Estados Unidos, Rússia e Portugal – como observadores. No quadro da ONU e sob a presidência de Maître Baye, diligências diplomáticas portuguesas conseguem, ainda em 1994, um efémero acordo de cessar-fogo, mas guerra continuaria até 2002. A intervenção diplomática portuguesa no processo de paz em Moçambique é menos relevante, mas insere-se no mesmo contexto. Com a perda de influência e a redução dos apoios soviéticos, cresce a intervenção americana e, numa ofensiva diplomática, abrem-se os primeiros contactos negociais entre a Frente Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), no Quénia, em 1989. A liderança é norte-americana, mas o representante português esteve presente e exerceu os seus «bons ofícios».

76

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 76

30/03/15 10:14

P O RT U GA L N O M UN DO

A partir de 1990, as negociações tornam-se públicas e a Igreja, beneficiando da sua influência e presença em todo o território moçambicano, é chamada a liderar a mediação do processo de paz através da Comunidade de Santo Egídio. O processo diplomático transfere-se, então, para Roma, sede da Comunidade, e Itália assume o papel de mediador oficial. Portugal só volta a intervir mais ativamente na fase final das negociações, que se concluem com sucesso em 1992. A entrada de Portugal na CEE confere às suas relações pós-coloniais uma nova dimensão: o país procura, a partir de então, rentabilizar a sua integração europeia nas relações com os países de expressão portuguesa, isto é, procura funcionar como placa giratória entre os seus «novos parceiros» e as suas «antigas colónias». Este novo contexto e este novo conceito não estiveram isentos de dificuldades. Em primeiro lugar, porque a maioria dos países saídos da descolonização portuguesa eram já signatários da Convenção de Lomé, antes mesmo, da adesão de Portugal à Comunidade Europeia. E, depois, porque Portugal teria de enfrentar, em África, a concorrência dos seus parceiros europeus. De todo o modo, a política de cooperação portuguesa passa a desenvolver-se num quadro mais estruturado, numa lógica de ajuda ao desenvolvimento e, ainda que mantendo a sua dimensão bilateral tende, também, a ganhar uma dimensão multilateral. A constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) seria a sua concretização mais cabal. A CPLP tem antecedentes históricos que remontam ao fim do ciclo imperial e aos primeiros anos da independência dos países africanos de expressão portuguesa quando, a partir de 1976, começam a realizar cimeiras entre si, sem Portugal e sem o Brasil. Em meados da década de 1980, passadas as primeiras sequelas da descolonização e num quadro de melhoria das relações, sobretudo entre Portugal e Angola, a língua portuguesa torna-se pretexto e fator de dinamização dos primeiros encontros entre os países lusófonos. Em 1986, no Rio de Janeiro, é assinado um acordo para uniformização da ortografia da língua portuguesa. Em 1989, é criado o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e, em 1990, assinado um protocolo sobre a unificação ortográfica do português. Esta dinâmica internacional em torno da língua e da cultura, não tinha, porém, qualquer tradução no plano político, nem sequer quando se registavam posições de interesse comum no plano internacional, como era manifesto no caso da defesa da independência de Timor-Leste. Angola e Moçambique recusavam não só essa dimensão política, como a constituição de uma organização internacional de carácter permanente que

77

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 77

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

pudesse concretizá-la. Todavia, esta posição evoluiu a partir da década de 1990, permitindo que as cimeiras entre os cinco países africanos de expressão portuguesa, que se realizavam regularmente desde 1976, pudessem ser por fim alargadas a Portugal e ao Brasil. Em 1994, em Brasília, os sete países de língua portuguesa afirmam, pela primeira vez, a intenção de criar uma comunidade lusófona. Portugal e Brasil assumem a liderança do processo, que culmina na cimeira de Lisboa, em 1996, e que marca a fundação da CPLP. Outras áreas de interesse estratégico emergiram para Portugal ao longo deste período. A Ásia e o Pacífico, onde as questões centrais continuaram a ser a questão de Macau até à transição do território para administração chinesa, em 1999, e Timor até à independência, em 2002, ou o Mediterrâneo e o Norte de África. A partir da década de 1990, estas tornaram-se novas áreas regionais de interesse para Portugal, seja no plano das relações bilaterais, com Marrocos, Argélia, Tunísia e, mais tarde, Líbia, seja no plano multilateral, com a participação nas iniciativas europeias do Processo de Barcelona, da União para o Mediterrâneo, dos 5 + 5, ou o Diálogo Mediterrânico no quadro da NATO (Faria, 1996). Finalmente, a participação das Forças Armadas Portuguesas na produção de segurança internacional no âmbito de missões internacionais de natureza humanitária ou de manutenção da paz, seja no quadro da ONU, da NATO ou da União Europeia, tornou-se um dos eixos mais importante da política externa portuguesa. Em síntese, poderia dizer-se que, sem prejuízo destas novas áreas de interesse para Portugal, a União Europeia, a NATO, e as relações pós-coloniais, a que a CPLP veio dar um quadro multilateral, constituem as orientações fundamentais e as prioridades estratégicas da política externa e da inserção internacional do Portugal democrático.

78

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 78

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 79

30/03/15 10:14

PORMENOR DA IMAGEM DA PÁGINA 93

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 80

30/03/15 10:14

O PROCESSO ECONÓMICO Luciano Amaral

INTRODUÇÃO

Os anos de 1960 a 2000 correspondem ao período de mais rápido crescimento da economia portuguesa em toda a sua história. Foi nessa altura que se inverteu, de forma duradoura, a trajetória de divergência relativamente às economias mais desenvolvidas que a caracterizou durante a segunda metade do século XIX e o princípio do século XX, recuperando mesmo grande parte do terreno então perdido. Deverá talvez, no entanto, dividir-se o conjunto do período em dois subperíodos com características diferentes. Durante o primeiro, de 1960 a 1973, o crescimento fez-se a taxas consistentemente elevadas, levando a um encurtamento sistemático da distância para as economias mais ricas. O processo já começara no início dos anos de 1950, mas depois acelerou. Estes anos podem ser vistos como a versão portuguesa daquilo a que em França se chamou «Les Trente Glorieuses» ou, nos países anglo-saxónicos, a «Golden Age» do crescimento económico do pós-guerra. O Gráfico 1, em que o PIB per capita português é medido enquanto percentagem do PIB per capita de um conjunto representativo de economias mais desenvolvidas, mostra-o com clareza. No final da Segunda Guerra Mundial, o PIB per capita português era de apenas cerca de 30% do PIB per capita dos países mais ricos; em 1973, alcançou um nível superior a 50%, uma recuperação de 20 pontos percentuais. Durante o segundo subperíodo, esta evolução foi interrompida enquanto tendência de longo prazo. Apenas entre 1986 e 1992 registou a economia um comportamento semelhante ao da década de 1960. No resto dos vinte e seis anos deste subperíodo, este comportamento foi muito intermitente. Não poderá

81

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 81

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

dizer-se que a recuperação não tenha continuado: a diferença entre a economia portuguesa e as mais desenvolvidas contraiu-se cerca de 15 pontos percentuais até ao ano 2000, atingindo então o PIB per capita português 65% da média daquelas economias. Mas o encurtamento deveu-se, quase em exclusivo, ao tal brevíssimo período de cinco a seis anos entre 1986 e 1992, uma espécie de mini-idade de ouro. Acrescendo que estes anos antecedem aquela que tem vindo a ficar conhecida em Portugal como a «década perdida», de 2000 a 2010, em que a diferença para os países mais ricos se alargou seis pontos percentuais. Embora esta década esteja fora do âmbito cronológico do corrente texto, o Gráfico 1 documenta-a e a mesma não pode deixar de ser mencionada, uma vez que trouxe a economia de volta à divergência persistente, algo que já não se verificava há mais de um século. Em conclusão, se excluirmos a segunda metade dos anos de 1980, a maior parte do período de 1974 a 2010, quando medido através do PIB per capita, é de estagnação comparativa ou mesmo de colapso. E os números são ainda menos satisfatórios quando se usa a produtividade como referência: entre 1974 e a atualidade, a produtividade portuguesa apenas se aproximou dos países mais ricos em 5 pontos percentuais (i.e. metade da aproximação do PIB per capita) e a mini-idade de ouro, de 1986 a 1992, pouco de notável tem a este respeito (Gráfico 1). Torna-se, assim, claro o grande problema da economia portuguesa: a produtividade no longo prazo. É interessante que estas diferenças de comportamento económico entre os dois subperíodos tenham sido acompanhadas por grandes diferenças políticas. Durante a década de 1960, sobreviveu em Portugal um dos poucos regimes autoritários da Europa Ocidental que restou da vaga de autoritarismo dos anos de 1920 e 1930. Este regime não só não acompanhou a vaga de democratização subsequente à Segunda Guerra Mundial como também não o fez no que toca ao desenvolvimento do Estado-Providência. Depois de 1974, no entanto, o inverso aconteceu. Ou seja, se em termos económicos Portugal mostrou muitas dificuldades em convergir com os países que elegeu como modelo, o mesmo não aconteceu em termos institucionais: o país transformou-se numa democracia liberal, dotada de um Estado-Providência desenvolvido. A chegada de Portugal a este padrão foi tardia, o que teve custos, pois enquanto os países europeus ocidentais construíram os seus Estados sociais num período de grande prosperidade, Portugal, ao contrário, fê-lo em pleno abrandamento do crescimento económico, com consequentes e inevitáveis dificuldades para o seu financiamento. Os défices orçamentais, a dívida pública e mesmo a dívida externa demonstram-no. Este texto divide-se em sete partes, seis das quais dedicadas aos que elegi como sendo os momentos cruciais da evolução da economia portuguesa entre

82

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 82

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Gráfico 1 PIB per capita e PIB por trabalhador-hora em Portugal como % dos países mais desenvolvidos, 1820-2007 85

75

65 Capita 55 Trabalhador-hora 45

35

2005

2000

1995

1990

1985

1980

1975

1970

1965

1960

1955

1950

1945

1940

1935

1930

1925

1920

1915

1910

1905

1900

1895

1890

1885

1880

1875

1870

1865

1860

1855

1850

1845

1840

1835

1830

1825

1820

25

Países representados na amostra: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos da América, Finlândia, França, Itália, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, Suécia e Suíça. Fonte: Para Portugal: 1820-1910 – Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics, Paris, OCDE, 2003; 1910-1950 – Dina Batista et allii, New Estimates of Portugal’s GDP: 1910-1958, Banco de Portugal, Lisboa, 1997; 1950-2007 – Luciano Amaral, «New Series of Portuguese Population and Employment, 1950-2007: Implications for GDP per capita and Labor Productivity» in Análise Social, n.º 193, 2009; para os outros países: 1810-1950 - Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics, OCDE, Paris, 2003; 1950-2007 – Groningen Growth and Development. Centre: http://www.ggdc.net/

1960 e a atualidade: a fase final do Estado Novo, entre 1960 e 1974, a melhor fase de crescimento económico da história de Portugal; o período revolucionário e a constitucionalização da democracia, entre 1974 e 1976, que trouxeram grandes mudanças ao enquadramento institucional da economia vindo do Estado Novo; o período que começa com os desequilíbrios externos gerados pela expansão do crédito na segunda metade da década de 1970 e na primeira metade dos anos de 1980 e que levaram à negociação de dois programas de estabilização com o FMI, terminando com a adesão do país à CEE, em 1985; o período a que chamei de mini-idade de ouro (por analogia com a idade de ouro dos anos de 1950 e 1960), correspondente a seis anos de muito forte crescimento da economia, entre 1986 e 1992; o período da preparação para a adesão à União Económica e Monetária (UEM), entre 1990 e 1999, durante o qual muitas das condições que tinham

83

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 83

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

permitido o crescimento anterior desapareceram, particularmente no domínio da política monetária e cambial; e, enfim, a parte dedicada aos primeiros dez anos da participação de Portugal na UEM e a que chamei a «década perdida de Portugal», uma vez que se caracterizou pelo regresso da divergência duradoura da nossa economia em relação às economias mais desenvolvidas. A última parte do texto procura fazer um balanço e discutir os problemas dos últimos cinquenta anos de história da economia portuguesa. O ESTADO NOVO: 1960 -1974

Como vimos, os anos de 1960 a 1974 são os de mais rápido crescimento económico na história de Portugal e de maior aproximação às economias mais desenvolvidas. Este percurso foi feito sob um regime autoritário, cujo intervencionismo económico era muito pesado. O Estado Novo definiu-se como um regime «corporativo» que, embora querendo garantir um papel importante à iniciativa privada, procurou também discipliná-la. A liberdade de funcionamento dos mercados estava limitada por diversos instrumentos. Desde logo, pelo controlo de preços, que abundava aos mais diversos níveis do ciclo económico (na produção, no consumo e na comercialização) para vários produtos, incluindo o dinheiro, com um controlo estrito das taxas de juro (as centrais e as bancárias) e de câmbio, ambas decretadas. Depois, pela regulação de mercados, onde se impunham condições de comercialização e margens de intermediação. E, ainda, por uma série de outros instrumentos, como os incentivos fiscais, as isenções aduaneiras arbitrárias ad hoc ou o acesso ao crédito em benefício de certas atividades. O licenciamento industrial estava sujeito a um mecanismo consultivo-arbitrário (o condicionamento industrial) que, em última instância, fazia depender de decisão governamental uma parte substancial da vida das empresas num grande número de sectores: a abertura, o encerramento, a sua reestruturação e até a compra de certos produtos intermédios importados. Algo de parecido acontecia com o sistema bancário, pois tanto a abertura de novos bancos como até a abertura de novas agências necessitava de autorização governamental. Tal como na indústria, o propósito era limitar a concorrência na sequência da sucessão de crises bancárias da primeira metade do século. Nas relações económicas internacionais, o Estado Novo adotou, até 1960, um protecionismo acentuado e sérias restrições ao investimento estrangeiro (à sombra da chamada «Lei da Nacionalização dos Capitais»). Convém lembrar

84

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 84

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Gráfico 2 Grau de abertura da economia portuguesa comparado com o dos restantes países europeus, 1960-2010 60

55

50

45

40 Média zona euro Média UE-27

35

Média UE-15 Portugal

30

25

20

15

Nota: o grau de abertura é medido como

[

20 08

20 10

20 04

20 06

20 02

19 98

20 00

19 96

19 92

19 94

19 90

19 86

19 88

19 84

19 80

19 82

19 78

19 76

19 74

19 72

19 68

19 70

19 66

19 64

19 60

19 62

10

]

[(exportações + importações)/2] –––––––––––––––––––––––– × 100 PIB

Fonte: AMECO: http://ec.europa.eu/economy_finance/ameco/user/serie/SelectSerie.cfm?CFID=676778&CFT OKEN=793056b112249642-9DF104B8-95D8-856A-1B6C6F61AEA91CFD&jsessionid=240673eaf2763b1b5a71

que esta era a prática do dia em todo o mundo, na sequência da crise da década de 1930 e da Segunda Guerra Mundial. Assim como não foi exceção nessa época, também não o foi depois, quando aos poucos abriu a economia ao exterior. O principal marco neste processo foi a adesão à EFTA, em 1959, embora tenha sido precedido de outros passos importantes. Apesar das condições especiais que o país obteve, graças ao Anexo G da Convenção de Estocolmo, que abrandaram o desmantelamento da proteção, a verdade é que, chegado 1974 (no final do Estado Novo), o grau de abertura da economia portuguesa tinha aumentado e, embora fosse inferior, não estava muito distante do das economias da Europa Ocidental (Gráfico 2). Já no tocante à criação de empresas públicas, o Estado Novo revelou uma grande timidez intervencionista. As empresas propriedade do Estado praticamente não existiam. No entanto, o quadro é um pouco enganador, pois não foi esta ausência que o impediu de se constituir como o maior acionista do país, embora com uma carteira de títulos dispersa. Ou seja, apesar de ter mostrado

85

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 85

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Gráfico 3 Despesa pública total como % do PIB, Portugal e médias dos países europeus e desenvolvidos, 1950-2008 55 50 Média países europeus

45

Média países desenvolvidos

40

Portugal 35 30 25 20 15

2008

2006

2004

2002

2000

1998

1996

1994

1992

1990

1988

1986

1984

1982

1980

1978

1976

1974

1972

1970

1968

1966

1964

1962

1960

1958

1956

1954

1952

1950

10

Países representados na amostra: Alemanha, Áustria, Bélgica, Canadá, Estados Unidos da América, França, Holanda, Irlanda, Itália, Japão, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça. Fonte: para Portugal, 1950-1989 – Maximiano Pinheiro et allii (org.), Séries Longas para a Economia Portuguesa, Pós-II Guerra Mundial, Vol. I – Séries Estatísticas, Banco de Portugal, Lisboa, 1997; 1990-2009 - AMECO; para os outros países, 1950-1989 – Vito Tanzi e Ludger Schuknecht, Public Spending in the Twentieth Century, Cambridge Univeristy Press, Cambridge, 2000; 1990-2008 – AMECO.

contenção na constituição de empresas públicas, não prescindiu de uma participação significativa no capital de várias empresas mistas. Também no domínio das finanças públicas, o Estado Novo preferiu a contenção. Com efeito, tanto a despesa quanto a receita foram mantidas a níveis baixos, nomeadamente quando comparadas com a prática comum no mundo ocidental (Gráfico 3). Esta pequena dimensão resultava, sobretudo, do facto de o regime não ter desenvolvido (embora as tivesse começado) as políticas de tipo social que se expandiram na Europa Ocidental a partir dos anos de 1930. Seria só no final da sua existência que lhes passaria a dedicar mais recursos. O fraco volume de despesas dedicadas a fins sociais foi importante, não apenas para manter a despesa pública a níveis baixos, como também para ajudar ao equilíbrio orçamental, um princípio constitucional do regime (artigo 66.º da Constituição de 1933), a que os diversos governos foram genericamente fiéis (Gráfico 4).

86

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 86

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Gráfico 4 Défice orçamental, Portugal (% do PIB), 1953-2010 4 2

19 53 19 55 19 57 19 59 19 61 19 63 19 65 19 67 19 69 19 71 19 73 19 75 19 77 19 79 19 81 19 83 19 85 19 87 19 89 19 91 19 93 19 95 19 97 19 99 20 01 20 03 20 05 20 07 20 09

0 -2 -4 -6 -8 -10 -12 -14

Fonte: 1953-1996 - M. Pinheiro, op.cit.; 1996-2010 – AMECO.

Esta política orçamental, por sua vez, permitiu a prossecução de uma política monetária neutral: desde 1931 que o escudo devia comportar-se, por lei, «como se» estivesse inserido no sistema do padrão divisas-ouro. A massa monetária emitida pelo Banco de Portugal dependia das reservas de ouro e divisas existentes nos seus cofres, as quais, a partir de 1946, deveriam cobri-la em 50%, metade necessariamente em ouro. Num país que, por tradição, enfrentava dificuldades de pagamentos internacionais, estas regras tinham, em princípio, um pendor anti-inflacionista, que parece ter sido eficaz: se excetuarmos os períodos da Segunda Guerra Mundial e do final do regime, a época do Estado Novo foi de baixa inflação, com taxas anuais rondando os 2% a 3%. A partir de meados da década de 1960, no entanto, toda a situação de pagamentos internacionais se alterou graças às divisas provenientes do turismo e da emigração. A balança de pagamentos ficou muito mais folgada e o mecanismo forjado nos anos de 1930 para controlar os preços funcionou, então, de forma inflacionária. No final do regime, a inflação rondava os 20% ao ano. Em matéria laboral, o Estado Novo legislou num sentido genericamente desfavorável aos trabalhadores. A sindicalização não era livre, os sindicatos eram, por lei, obrigados a manter uma dimensão e uma estrutura que lhes coartava poder negocial, as suas direções eram homologadas pelo governo, a greve estava proibida e as possibilidades de despedimento eram vastas. Não admira, assim,

87

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 87

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

que os horários e os períodos de trabalho anuais fossem longos, que as férias fossem curtas e que não existisse um salário mínimo nacional ou um subsídio de desemprego geral. Como é evidente, as situações variavam conforme os sectores, os contratos e os acordos, uns mais favoráveis do que outros, mas isso não alterava o quadro genérico. Vale a pena recordar que estas restrições à liberdade económica não eram um exclusivo do Estado Novo. Também existiam nas democracias que apareceram a seguir à Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental. Em termos das relações económicas internacionais, durante a década de 1930, o Estado Novo não foi diferente dos restantes governos, já que todos desenvolveram fortes políticas protecionistas, a que estiveram associadas políticas acessórias de cartelização, concentração forçada, aquisição de participações em empresas privadas e mesmo de licenciamento industrial arbitrário (ao estilo do condicionamento industrial português). Certos países chegaram a nacionalizar partes importantes das suas economias (como a França da Frente Popular ou a Itália fascista) e desenvolveram esquemas de planeamento centralizado. Mesmo depois da guerra, contrariamente ao que poderia pensar-se, estas tendências intervencionistas não só não desapareceram como se expandiram e, sobretudo, mudaram de natureza. Esta foi a idade de ouro da «economia mista», a peculiar mistura de liberdade económica e intervencionismo estatal que passou, então, a ser típica da Europa Ocidental. Convém recordar que o esforço de guerra aliado recebeu um grande contributo da URSS e, consequentemente, dos partidos comunistas e socialistas dos países ocidentais. Quando a guerra terminou, a agenda destes partidos não podia deixar de influenciar as políticas então adotadas, a que acresce o facto de muitos dos movimentos políticos anticomunistas (como a Democracia-Cristã e a Social-Democracia) também nutrirem simpatia pela intervenção estatal. A França e a Inglaterra, por exemplo, nacionalizaram uma parte muito significativa dos seus sectores industriais, de transportes e energia. Em França, foram mesmo nacionalizados os quatro maiores bancos comerciais. A Itália preservou o essencial da estrutura nacionalizada durante o fascismo, o que também incluía a banca comercial. Se a Alemanha «desnacionalizou» parte das empresas tornadas públicas durante o nazismo, a verdade é que preservou ainda um sector estatal importante, e os exemplos podiam multiplicar-se. Além disso, o pós-guerra foi o período de instalação e/ou expansão do Estado-Providência na Europa, o que implicou um forte crescimento da despesa e da administração públicas. Com efeito, foi durante este período que se montaram, de forma consistente, sistemas de saúde públicos, além dos diversos mecanismos

88

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 88

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

da chamada segurança social (subsídios de desemprego e sistemas de pensões). O nível de recursos que passou a ser apropriado pelo Estado teve, consequentemente, uma enorme expansão. Se em 1950 a despesa pública representava, em média, cerca de 25% do PIB das economias ocidentais mais desenvolvidas, em 1973-74 tinha chegado quase a 40% (Gráfico 3). A isto acresceram os mecanismos de negociação coletiva com maior ou menor mediação estatal, mas que introduziram um grau de direção central da economia ao nível da oferta de emprego, dos salários e dos lucros inédito em termos históricos. Ligado a estes aspetos esteve ainda a adoção de políticas de gestão agregada da procura, muito inspiradas pela obra de Keynes (vinda da crise da década de 1930), que fizeram generalizar o uso da oferta monetária controlada pelas autoridades centrais e da despesa pública para acelerar ou arrefecer a economia.

* Eram estes, de forma genérica, os instrumentos à disposição do Estado Novo para intervir na economia. E se os agentes económicos ainda detinham uma larga margem de autonomia (não se tratando, afinal, de uma economia socialista, totalmente estatizada e sem propriedade privada), a verdade é que o Estado e os seus diversos mecanismos de intervenção não deixavam de ser essenciais à formação das decisões dos agentes económicos. Ou seja, seria um equívoco pensar que o Estado era capaz de dirigir por completo as decisões económicas, mas também seria errado achar que era irrelevante para estas decisões e que não terá mesmo sido capaz de as conduzir, pelo menos parcialmente, por caminhos da sua preferência. O principal instrumento do rápido crescimento da economia portuguesa nesta época foi a acumulação de capital, ou seja, a substituição de mão-de-obra por equipamento. Recorde-se que este é o mecanismo essencial do crescimento da produtividade. Ora, é bastante provável que os empresários (ou seja, os principais agentes de acumulação de capital) tenham apreciado o enquadramento institucional acima descrito. As políticas orçamental e monetária visavam combater os males proverbiais das finanças públicas e da moeda em Portugal, que eram o desequilíbrio orçamental e a inflação, sendo que o explícito propósito último a este respeito (várias vezes reiterado por Salazar) era criar um ambiente de previsibilidade que diminuísse o risco para os empresários. A repressão do trabalho também terá ajudado à expansão do investimento. Os baixos salários assim garantidos permitiam a obtenção de lucros altos, posteriormente reinvestidos. Ou seja, o Estado terá ajudado a uma distorção da remuneração dos

89

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 89

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

fatores de produção em favor do capital, cujo contributo para o investimento e o crescimento económico foi positivo. Por sua vez, o condicionamento industrial poderá ter tido efeitos idênticos, embora de maneira diferente. Enquanto a estabilidade macroeconómica e a repressão laboral beneficiavam os empresários de forma genérica, o condicionamento beneficiava aqueles que conseguissem obter boas condições de exploração, prejudicando os que as não obtinham. O condicionamento restringia o acesso aos mercados, criava condições privilegiadas para a sua exploração (oligopólios ou monopólios) e impunha regras estritas. Consequentemente, quem fosse beneficiado com a atribuição de um alvará ficava bastante protegido da concorrência. O principal problema do condicionamento, mesmo para os beneficiários, terá sido a burocratização, que tornou as decisões de investimento pouco ágeis. Alguns grupos económicos cresceram e prosperaram à sombra do condicionamento industrial (como a CUF, o grupo Champallimaud ou o Banco Espírito Santo). Ou seja, por muito que se queixassem da burocratização do condicionamento, estes empresários souberam negociar com o Estado condições favoráveis ao crescimento das suas empresas. Muitos destes grupos foram bem-sucedidos nas suas negociações com o Estado, mesmo além do condicionamento, obtendo parcerias, condições de exploração privilegiadas, proteção pautal, isenções fiscais ou crédito específico. Muitos destes projetos possuíam um elevado conteúdo capitalístico e tecnológico. Igualmente importante para a acumulação de capital foi a alteração da composição de fatores de produção resultante da emigração. Apesar da tradição vinda do século XIX, nunca o número de emigrantes foi tão grande em Portugal como entre os anos de 1950 a 1960. Estima-se que, nestas duas décadas, tenham saído do país cerca de um milhão de pessoas, um fluxo de tal maneira significativo que a população decresceu na década de 1960, algo que não acontecia em Portugal há muitos séculos. O efeito económico deste movimento foi fazer sair do país uma parte importante da mão-de-obra que se achava subempregada e cuja produtividade era, portanto, baixa. Isto permitiu que outros fatores de produção, como o capital (e também a terra), crescessem em relação ao trabalho. Para mais, o fluxo de trabalho para fora do país tinha uma contrapartida no fluxo para dentro de uma grande quantidade de meios de pagamento: eram as famosas remessas dos emigrantes, que, durante alguns anos da década de 1960, chegaram a atingir 8% do PIB. Estes meios de pagamento eram reciclados pela banca e, desta forma, usados para fazer crescer o investimento e, logo, a acumulação de capital.

90

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 90

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Além do mais, tudo isto se inseriu no processo geral de crescimento das economias europeias, as quais adquiriam mercadorias nacionais, faziam deslocar grande quantidade de turistas para o país (trazendo também eles um volume significativo de meios de pagamento) e constituíam a grande fonte de recrutamento dos emigrantes portugueses. 1974 -1976: DO PREC À CONSTITUIÇÃO DE 1976

Na passagem do Estado Novo para a democracia o comportamento da economia portuguesa alterou-se bastante. De 1974 em diante, o seu crescimento abrandou de forma clara. Os anos de 1974 e 1975 foram marcados por grandes convulsões, tanto internas como externas. No plano interno, resultaram do processo revolucionário inaugurado a 25 de Abril de 1974. No plano externo, do choque petrolífero iniciado em 1973, a que se seguiu uma crise internacional profunda. O processo revolucionário trouxe alterações substanciais ao enquadramento institucional da economia portuguesa. Estas alterações não devem ser entendidas de forma linear. A maior parte não constitui senão passos de convergência para um padrão institucional europeu. Isto é bastante claro no que toca ao desmantelamento da estrutura corporativa, pelo menos na forma existente sob o Estado Novo (já que também as democracias ocidentais têm as suas instituições corporativas), e é também claro no que toca à instauração de uma série de direitos dos trabalhadores. É ainda verdadeiro, mesmo se indo já um pouco além desse padrão, no que toca às nacionalizações, pois a existência de um forte sector empresarial público era algo de comum às economias da Europa Ocidental, embora talvez não com a dimensão atingida pelo português depois de 1975. Mas vai já bastante além dele no que se refere à Reforma Agrária. Contudo, mesmo nos aspetos mais contrários a essa convergência, a correção de tiro subsequente foi substancial. Primeiro de forma tímida, ainda nos anos de 1970, e, depois, de forma clara, a partir de meados da década de 1980.

* As perturbações iniciais da economia entre 1974 e 1975 tiveram origem na multiplicação de greves e paragens laborais, associadas a reivindicações por aumentos de salários e redução de horários de trabalho. Os salários aumentaram próximo de 30% (!) em termos reais num só ano, em 1975. Esta explosão foi ainda mais

91

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 91

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

difícil de acomodar dada a sua associação com uma explosão populacional paralela, resultante da chegada de cerca de 600 000 «retornados» das colónias entre 1975 e 1976. Ou seja, quando tanto a crise internacional quanto o aumento da oferta de mão-de-obra pressionavam para uma queda dos salários, eles aumentaram como nunca antes haviam feito. O desemprego, virtualmente inexistente em 1973 (1,5%), saltou para 5%. Além dos aumentos salariais, registaram-se grandes alterações na legislação laboral. Logo em 1974 foi introduzido o salário mínimo, antes inexistente. No ano seguinte, seria promulgado um vasto pacote legislativo: o descanso ao sábado foi alargado a mais sectores além dos poucos que já vinham de antes da revolução, foi aumentado o período de férias e reduzidos os horários de trabalho; foram introduzidos o décimo terceiro e décimo quarto meses de pagamento; a greve foi legalizada e, acabando os sindicatos corporativos, foi introduzida a liberdade sindical; acrescente-se a isto o facto de a contratação coletiva, embora já existente no Estado Novo, ter sido generalizada; também um novo regime de cessação do contrato de trabalho foi aprovado, tornando os despedimentos individuais praticamente impossíveis (apenas invocando a «justa causa», em regra apenas de carácter disciplinar) e tornando também complicados os despedimentos coletivos. Embora os propósitos iniciais dos autores do golpe militar de 25 de Abril de 1974, bem como do I Governo Provisório, fossem relativamente moderados (dentro da linha semimarxista/semissocial-democrata típica na época), a verdade é que a situação evoluiu num sentido cada vez menos moderado. Não vale a pena entrar aqui na complexidade e indefinição do quadro político de então, mas pode dizer-se que, sobretudo a partir dos eventos políticos de 28 de setembro de 1974 e 11 de março de 1975, se verificou o ascendente de sectores próximos de interpretações mais radicais do marxismo (que, nesta altura, incluíam o Partido Socialista, além do Partido Comunista, do Movimento Democrático Português e de outras organizações chamadas «esquerdistas», todos com maiores ou menores extensões no MFA). Como se dizia a 15 de abril de 1975, nas «Bases Gerais dos Programas de Medidas Económicas de Emergência» do IV Governo Provisório, estava na hora de construir um «socialismo verdadeiramente português». As consequências deste projeto foram diversas. Logo a 14 de março de 1975, seriam nacionalizados todos os bancos e seguradoras, o que, dada a sua participação na estrutura acionista de muitas empresas, implicou a nacionalização indireta de cerca de 1300 dessas empresas; a 1 de abril, o Conselho de Ministros do IV Governo Provisório decidiu um novo programa de nacionalizações, cujos

92

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 92

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Luís Pavão Expo’98, 1998 Coleção particular do autor

93

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 93

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

propósitos eram fazer passar para a alçada do Estado os sectores considerados básicos da economia, assim eliminando também a força dos grandes grupos económicos: ao longo do ano de 1975, cerca de 250 empresas ou partes sociais viriam a ser diretamente nacionalizadas. Os grandes grupos vindos do Estado Novo desapareceram quase integralmente e o Estado passou a controlar, em maioria ou em exclusivo, uma série de sectores: emissão monetária, banca, seguros, siderurgia, construção e reparação naval, cimentos, celulose, produtos químicos e petroquímicos. No final do processo de nacionalização, o sector empresarial do Estado gerava entre 20% e 25% do PIB, representava cerca de 30% do investimento do país e empregava cerca de 8% da mão-de-obra, passando Portugal a ser um dos países com maior sector empresarial público no mundo ocidental (Gráfico 5). Gráfico 5 Peso do sector empresarial público, Portugal e alguns países da OCDE, 1982 e 1988

25

20

15 1982 10

1988

5

Po rtu ga l

Itá l ia

ré ci a G

Fr an ça

Es pa nh a

Al em an ha

ni do .U R

Bé lg ic a

Fi nl ân di a

ol an da H

EU

A

0

Fonte: Eric N. Baklanoff, «Breve experiência de socialismo em Portugal: o sector das empresas estatais», in Análise Social, Vol. XXXI, n.º 138, 1996. Nota: o indicador é uma medida compósita incluindo diversas variáveis, como o peso do sector empresarial público no PIB, na formação bruta de capital físico ou no emprego – v. Eric N. Baklanoff, «The Political Economy of Portugal’s Later ‘Estado Novo’: A Critique of the Stagnation Thesis», in Luso-Brazilian Review, Vol. 29, n.º 1, 1992.

94

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 94

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

A 31 de março de 1975 começaram as ocupações de herdades no Alentejo, Ribatejo e Algarve. Até ao final do ano, 1 200 000 hectares de propriedade agrícola nessas regiões (sobretudo no Alentejo) viriam a ser ocupados pelos trabalhadores rurais, no âmbito do processo chamado de «Reforma Agrária». A escala deste movimento foi substancial, representando as terras afetadas aproximadamente 13% do território nacional. Uma boa parte destas transformações viria a ser consagrada constitucionalmente em 1976. A Constituição passou a definir Portugal como um país «a abrir caminho para uma sociedade socialista» (preâmbulo da Constituição da República Portuguesa de 1976, que resistiu às sete revisões constitucionais até agora feitas), o que, além da retórica, teve consequências reais. O artigo 10.º proclamava que «o desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação coletiva dos principais meios de produção». Em consequência, as nacionalizações foram declaradas irreversíveis (ou melhor, «conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras»), juntamente com a Reforma Agrária. Os sectores básicos (i.e. os nacionalizados) foram vedados à iniciativa privada e esta foi reconhecida como legítima, apesar de residual (art. 85.º). Para mais, parte substancial da legislação laboral (art.º 50 a 62) recebeu consagração constitucional, o que tornou a sua alteração por via ordinária impossível em determinados aspetos. Finalmente, o texto constitucionalizou na prática o Estado-Providência através dos artigos 63.º e 64.º, que previam a criação e instalação de um sistema de Segurança Social e de um sistema de saúde geridos pelo Estado. DOS DESEQUILÍBRIOS EXTERNOS À ADESÃO À CEE: 1976 -1986

A partir de 1976, os diversos governos procuraram, através de uma série de reformas institucionais, restabelecer a confiança dos empresários no sistema político, muito afetada pelas alterações revolucionárias. É neste âmbito que deve ser entendida a chamada Lei de Delimitação de Sectores, de junho de 1977. Embora confirmasse a irreversibilidade das nacionalizações, a lei visava também estabelecer um limite à sua expansão, abrindo mesmo a porta à gestão privada de empresas públicas, à participação minoritária do capital privado em determinados sectores públicos e à criação de entidades financeiras não-públicas (como as caixas económicas – mesmo se os bancos comerciais continuaram a ser públicos). A própria Reforma Agrária começou a ser desmantelada a partir de 1977, com a aplicação da chamada «Lei Barreto» (do nome do então ministro

95

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 95

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

da Agricultura, António Barreto), que permitiu a devolução de grande parte das terras ocupadas logo nessa altura (processo que continuou até finais dos anos de 1980). No domínio laboral, verificou-se também uma progressiva liberalização a partir de 1976, com aquelas que ficaram conhecidas como a Lei dos Contratos a Prazo e a «Lei Gonelha» (do nome do então ministro do Trabalho, Maldonado Gonelha), permitindo a introdução do chamado trabalho precário. O despedimento coletivo foi facilitado, com o abaixamento do limiar do número de empregados envolvidos, que passou a ser de dois, para empresas com menos de 50 trabalhadores, e de cinco, para empresas com mais de 50 trabalhadores, assim aproximando o despedimento coletivo do individual. Foi ainda estabelecida uma política de indemnizações aos proprietários expropriados. Adicionalmente, os governos da época utilizaram o crédito das instituições bancárias (que agora eram públicas) e as empresas públicas não-financeiras para estimular a atividade económica. Os efeitos deste conjunto de esforços foram positivos para o crescimento, que atingiu taxas entre 5% e 7% em 1977 e 1978. Tratou-se, no entanto, de um crescimento demasiado dependente da expansão do crédito, e tornou-se difícil de sustentar, nomeadamente no que se refere ao equilíbrio externo. Foi ainda um crescimento a contraciclo do resto do mundo, algo que não ajudava às exportações, também prejudicadas por uma taxa de inflação interna da ordem dos 25%, que não era compensada por uma equivalente desvalorização do escudo. Em 1977, o défice na balança de transações correntes chegou a quase 10% do PIB (Gráfico 6). Entre 1977 e 1978, o país entrou em rutura de pagamentos, remediada (mas não resolvida) com empréstimos internacionais (americanos e europeus). Estes empréstimos vinham condicionados à adoção de certas políticas, algo que viria a ser consagrado em 1978 com o primeiro acordo de estabilização económica assinado entre Portugal e o FMI. No essencial, as políticas adotadas ainda timidamente antes do acordo e por ele ratificadas consistiram em subir as taxas de juro e restringir a concessão de crédito tanto à atividade económica quanto ao sector público, com o objetivo de travar a procura agregada; consistiram também na subida dos preços dos bens de consumo, que se achavam limitados administrativamente, de forma a permitir às empresas refletir o aumento de custos nos seus resultados; e consistiram ainda numa desvalorização do escudo que permitisse compensar a inflação e aumentar a competitividade das exportações. Depois de algumas desvalorizações ad hoc, foi adotada, a partir do verão de 1977, uma política cambial e monetária que marcaria a economia portuguesa até 1990, o crawling peg, ou seja, a desvalorização mensal do escudo em montantes pré-anunciados. A ideia era não só manter a competitividade das exportações como conferir credibilidade à política

96

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 96

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Gráfico 6 Balança de transações correntes, Portugal (% do PIB), 1960-2010 2

19 60 19 62 19 64 19 66 19 68 19 70 19 72 19 74 19 76 19 78 19 80 19 82 19 84 19 86 19 88 19 90 19 92 19 94 19 96 19 98 20 00 20 02 20 04 20 06 20 08

0 -2 -4 -6 -8 -10 -12 -14 -16

Fonte: AMECO

económica, que assim se comprometia com objetivos definidos por antecipação. O conjunto de medidas deveria ainda incluir a disciplina orçamental, que, no entanto, e apesar dos compromissos, apenas se verificou parcialmente (v. Gráfico 4). Seja como for, em termos de equilíbrio externo, os resultados foram muito positivos, com o défice da balança de transações correntes a atingir um número próximo de 6% do PIB em 1978 – vindo de quase 10% no ano anterior – e 4% em 1979 (Gráfico 6). A lógica geral da política seguida consistiu numa combinação de repressão financeira com elementos de expansão, neste último caso visível na política cambial. Assim, a atividade económica acabou por não ser demasiado afetada, tendo o crescimento continuado, embora de forma mais moderada do que nos dois anos anteriores. Apesar de tudo, verificou-se um certo efeito negativo no desemprego, que aumentou, atingindo 8% em 1978 e 7% em 1979. Além disso, a desvalorização significava uma redução dos salários reais, embora por via indireta. Esta política acabou por não enfrentar decisivamente o problema do défice orçamental que, aliás, voltaria a agravar-se em 1980, quando o governo em funções, por razões de calendário eleitoral, adotou uma política orçamental expansionista, combinada com uma subida generalizada dos salários e uma revalorização da moeda. Estas medidas permitiram um aumento do poder de

97

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 97

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

compra tanto interno como externo, mas trouxeram de novo o desequilíbrio face ao estrangeiro. Depois do esforço dos dois anos anteriores, tudo se desfaria, sendo a situação particularmente gravosa graças à sua combinação com um novo e mais vigoroso choque petrolífero, ocorrido em 1979, também ele associado a uma nova crise internacional. Como a incapacidade para controlar o défice e introduzir medidas restritivas continuasse nos anos seguintes, a situação externa voltou a ameaçar rutura em 1983, ano em que o défice da balança de transações correntes atingiu o recorde de mais de 14% do PIB (Gráfico 6). Foi então necessário aceitar outro empréstimo internacional, condicionado à assinatura de novo acordo com o FMI, regressando assim o anterior receituário, embora de forma mais violenta: os preços administrados sofreram enormes aumentos, as taxas de juro também, o escudo foi fortemente desvalorizado, os limites ao crédito bancário tornaram-se ainda mais restritivos e alguns impostos foram aumentados. Este programa foi aplicado de forma consistente entre 1983 e 1984, mais uma vez com êxito em termos de equilíbrio externo. Ao contrário do programa anterior, no entanto, o efeito na atividade económica e no desemprego foi muito pesado. O crescimento do PIB foi negativo em 1983 e 1984, a inflação atingiu cerca de 30% e o desemprego chegou aos 8,5%. No meio das perturbações, o problema orçamental continuou por resolver, subindo a valores recorde nestes anos: próximo de 10% do PIB em 1984 e 1985. A questão dos chamados bloqueios constitucionais foi também enfrentada ao longo do período, vindo a Constituição a ser revista em 1982, no sentido de facilitar a atividade económica privada. Embora mantendo a exigência da apropriação coletiva dos meios de produção e a irreversibilidade das nacionalizações, a Constituição passou a penalizar menos a propriedade privada, alargando o seu âmbito, nomeadamente ao permitir que regressasse ao sector bancário e segurador, o que logo se repercutiu em legislação ordinária no ano seguinte, com a revisão da Lei de Delimitação de Sectores, conduzindo mais tarde (1985) à abertura dos primeiros bancos privados posteriores ao 25 de Abril. Em 1985, a situação externa estava de novo estabilizada, mas o quadro económico do país era muito deprimido. Foi nestas circunstâncias que Portugal aderiu à CEE, o horizonte mítico perseguido por grande parte da classe política que, através dele, procurava ultrapassar as veleidades comunizantes que se tinham afirmado no período revolucionário, vinculando o país ao tipo de solução política e económica representada pela Europa Ocidental: democracia liberal e Estado-Providência. A adesão foi pedida em 1977 e, depois de quase uma década de negociações, foi conseguida em 1985, juntamente com a Espanha. A entrada de Portugal para este clube teve um conjunto de importantes efeitos económicos.

98

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 98

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

A proteção existente foi forçada a desaparecer. Surgiu a possibilidade de receber fundos para fins de desenvolvimento de infraestruturas e capital humano. E uma série de regras económicas e comerciais comuns a todos os países-membros teve de ser adotada. Embora muitas vezes se apresente a entrada na CEE como o momento em que Portugal passou de vez a fazer parte do grupo dos países democráticos ocidentais, a verdade é que a sua ligação à «Europa» era um facto herdado do Estado Novo. De forma curiosa, foi o novo regime a pô-lo em causa, embora brevemente, nos anos conturbados de 1974 e 1975. Com efeito, desde o Plano Marshall, em 1947, e da criação da OECE, em 1948, que Portugal participou nos principais momentos de integração política e económica europeia. Essa primeira fase de europeização do país foi consagrada com a entrada na EFTA em 1960. A preferência pela EFTA (em vez da CEE) ligava-se a dois objetivos: manter o sistema de relações económicas preferenciais com o império e as trocas com a Grã-Bretanha, ainda então o nosso maior parceiro comercial. Contudo, os primeiros passos em direção à CEE viriam a dar-se ainda antes do 25 de Abril: primeiro, quando em 1962 o país quis assinar um acordo de associação com a Comunidade, na sequência do primeiro pedido de adesão da Grã-Bretanha, e depois, em 1972, com a efetiva assinatura de um acordo comercial, na sequência da entrada da Grã-Bretanha. Este processo de aproximação viria a ser comprometido durante o período de radicalização política de 1974 e 1975, não só com o regresso do protecionismo mas também com a adoção, por alguns protagonistas e movimentos políticos da época (sobretudo à esquerda), de ideias socialistas ou «não-alinhadas». A adesão acabou por tornar-se um objeto de luta política durante os anos de 1970 e 1980, mas a sua concretização fez o país regressar à tradição vinda da década de 1940. A novidade agora era o facto de Portugal ser uma democracia de estilo europeu e não um velho regime autoritário. A MINI -IDADE DE OURO (1986 -1992)

A meia dúzia de anos que vai de 1986 a 1992 corresponde ao melhor período de crescimento económico de toda a história da democracia portuguesa. Tratou-se, no entanto, de um período curto (ao contrário do que mediou entre os anos de 1950 e 1973) e revestiu-se de características particulares e provavelmente irrepetíveis. De facto, um conjunto de circunstâncias excecionais fizeram sentir-se na segunda metade dos anos de 1980. Por um lado, o preço do petróleo caiu cerca de 50% entre 1984 e 1986. Para uma economia tão dependente da importação deste

99

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 99

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

combustível, tratou-se de um bónus de proporções avultadas. Assim como, no passado, o seu aumento tinha contribuído para o grave desequilíbrio das contas externas, agora o efeito foi exatamente simétrico. Por outro lado, em 1985 terminava o período de estabilização das contas externas, na sequência do acordo negociado com o FMI. Ou seja, todas as reformas necessárias (e muito punitivas do crescimento) tinham já sido executadas. Finalmente, a adesão à CEE em 1986 abriu às exportações do país as portas do enorme e próspero mercado europeu, então a atravessar uma boa fase de crescimento. A tudo isto juntou-se um efémero mas espetacular afluxo de investimento direto estrangeiro, que passou de níveis residuais no final da década de 1980 para cerca de 4% do PIB em 1990. Ao mesmo tempo, começaram a chegar as transferências do orçamento comunitário para investimento em infraestruturas e requalificação da mão-de-obra, numa proporção que atingiu uma média, ao longo do período, de cerca de 1,5% do PIB, embora nalguns anos chegasse a cerca de 4%. A abertura da economia acentuou-se, passando o volume do comércio externo a representar cerca de 35% do PIB em 1991 (sendo de apenas 30% cinco anos antes). No entanto, mais do que a exportação, aumentou sobretudo a importação, o que se explica tanto pelo valor cambial do escudo como pelas políticas expansionistas internas, em larga medida alimentadas pelo investimento estrangeiro e pelas ajudas comunitárias. Este é, efetivamente, o período da expansão das redes de infraestruturas (estradas, sobretudo), associadas ainda a um forte impulso à contratação de funcionários públicos e ao aumento dos respetivos salários. A partir de 1985-1986, começou a definir-se uma linha política geral de desinflação, embora com fases diferenciadas. Num primeiro momento, o governo usou para esse fim a política cambial, reduzindo a desvalorização do crawling peg. Esta política foi possível graças às novas influências positivas externas, como o abaixamento do preço do petróleo, que permitiu utilizar menos o instrumento cambial para garantir competitividade às exportações. O impacto sobre a inflação foi imediato, descendo a sua taxa de cerca de 25% ao ano em 1985 para cerca de 12% em 1988. Este processo, porém, não impediu uma progressiva sobrevalorização do escudo, uma vez que o diferencial de inflação com os países parceiros continuava alto. Se aquela valorização também contribuía para o controlo da inflação, a verdade é que gerava problemas de competitividade, que se foi deteriorando (lenta, mas efetivamente) com o tempo. Seja como for, o controlo da inflação por via cambial permitiu libertar o instrumento das taxas de juro para estimular a economia. Graças à crescente tendência para a sobrevalorização do escudo, este estímulo acabou

1 00

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 100

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

por fazer-se sentir sobretudo no sector não-transacionável, em particular a construção civil e o retalho. O parque habitacional português sofreu então uma enorme renovação, tendo para isso contribuído também a expansão do crédito bancário. Os bancos recentemente privatizados e reestruturados encontraram no imobiliário um novo mercado por explorar, ajudado pelas taxas de juro em queda, por certos incentivos legais à aquisição de casa própria e pelo fraco desenvolvimento da habitação social promovida pelo Estado. Este seria um processo que continuaria ao longo de toda a década de 1990. A queda das taxas de juro tornou ainda possível um melhor controlo da despesa pública, embora a política orçamental deste período não tivesse sido muito disciplinada. A queda dos juros permitiu uma enorme poupança, por via do serviço da dívida. Tudo ajudado por um crescimento económico significativo, com um impacto cíclico positivo nas receitas. O défice passaria de cerca de 10% do PIB em 1985 para cerca de 4% em 1988, mesmo sem especiais preocupações na redução dos custos de pessoal ou outras despesas, particularmente as de natureza social (tendo sido estas duas rubricas as grandes responsáveis pelo crescimento da despesa neste período). Nos anos seguintes a 1989, o défice voltou a subir (entre 6% e 7% do PIB em 1990 e 1991), apesar do aumento das receitas. A razão residiu no crescimento persistente das despesas com pessoal e pensões. O défice começou a criar novas pressões inflacionistas, pondo em causa o compromisso assumido pelo governo a este respeito, o que levou à adoção de uma nova política monetária em 1990. Esta acabaria por constituir o padrão até ao final da década, altura da adesão à União Económica e Monetária (UEM, vulgarmente conhecida pelo nome da moeda que nela circula, o euro). O seu aspeto essencial consistiu no abandono do sistema do crawling peg e na indexação do escudo a um conjunto de moedas que tinha como referência o marco alemão. A consagração dar-se-ia com a adesão do escudo ao Sistema Monetário Europeu (SME) em 1992. Os governos desta época continuaram a lidar com o problema constitucional, o que levou, em 1989, a uma revisão profunda da Constituição. A revisão estabeleceu ainda com maior clareza a natureza «mista» do enquadramento institucional da economia, ao revogar o princípio da apropriação coletiva dos meios de produção, ao «desconstitucionalizar» a Reforma Agrária e ao estabelecer a reversibilidade das nacionalizações, o que logo abriu um extenso programa privatizador, que se encontra em curso ainda hoje.

101

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 101

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

A CAMINHO DO EURO: 1990 -2000

A década de 1990 foi essencialmente marcada pelas medidas necessárias para abolir o escudo e fazer de Portugal um dos fundadores da UEM. Como vimos, a fase final do processo de desinflação teve início com o abandono do crawling peg em 1990 (cuja taxa deslizante tinha já sido reduzida nos anos anteriores). Uma vez que este sistema tinha por objetivo repor a competitividade da economia por via cambial, o seu abandono tornou necessário trazer a inflação para níveis idênticos aos das economias a cujas moedas o escudo estava indexado. O método foi a manutenção das taxas de juro em níveis muito elevados por comparação com os países de referência (o diferencial da taxa de juro entre Portugal e a Alemanha oscilou, de 1991 a 1994, entre 3% e 5%). A política acabou por ser bem-sucedida em termos do objetivo anti-inflaccionista estabelecido. O câmbio da moeda portuguesa acabaria por estabilizar de forma duradoura a partir de então. Posteriormente, tratou-se apenas de ajustar a taxa de juro de referência ao novo ritmo (inferior) da inflação. A conjugação entre um câmbio estável, uma inflação, apesar de tudo, alta em comparação com os parceiros comerciais, uma crescente abertura às importações da Europa e uma crise internacional, conduziu ao período negativo de crescimento entre 1992 e 1994. O escudo apreciou-se 30% em termos reais entre 1989 e 1992. O método encontrado pela economia para suportar condições tão punitivas sem um completo colapso foi a moderação salarial dos anos de 1990 a 1994. Além da disciplina autoimposta, a moderação deveu muito ao desemprego, que então duplicou. À medida que a fixação do câmbio foi exercendo o seu efeito sobre a taxa de inflação e as taxas de juro puderam baixar, o impacto negativo resultante do câmbio forte foi compensado pelos juros baixos. Quando, em 1994, a Europa recuperou da recessão, a economia portuguesa não só a acompanhou como foi ainda mais estimulada pelas taxas de juro: a taxa nominal passou, entre 1992 e 2001, de 16% para 4%, e a taxa real de 6% para 0%. Os efeitos foram muito positivos no consumo, mas menos no investimento. Tanto para as empresas como para as famílias, a queda dos juros representou um aumento súbito de riqueza, bem como um incentivo para a diminuição da poupança e para o aumento do endividamento: a poupança deixou de ser bem remunerada e o endividamento tornou-se cada vez mais comportável. O processo foi ainda ajudado pela significativa modernização do sector financeiro, que multiplicou as disponibilidades de crédito. A queda dos juros e a expansão de certas despesas públicas foram as principais causas do bom crescimento da economia até ao fim do século (com uma taxa média entre 3% e 3,5% ao ano), embora menor do que entre 1986 e 1990.

102

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 102

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Este crescimento, portanto, e ao contrário do verificado naquele período, não recebeu grande contributo das exportações, que começaram a acusar o peso da valorização cambial. O crescimento foi, assim, sobretudo baseado na procura interna, com principal impacto no sector não-transacionável. O resultado foi um aumento do endividamento externo, medido pelo défice da balança de transações correntes, que, em 1995, representava 3% do PIB e em 2000 representava já 10% (Gráfico 6). A adesão ao SME, em 1992, não tinha sido senão a antecâmara da adesão à UEM. De facto, em 1992, os países-membros da CEE assinaram o Tratado de Maastricht, que criou a UE (no lugar da CEE e das Comunidades Europeias) e estabeleceu um horizonte próximo para a criação da UEM. Dada a grande diferença de tradições e práticas em termos orçamentais e respetivos efeitos monetários, o tratado obrigava todos os países participantes a adotarem limites estritos para o défice orçamental e a dívida pública (3% e 60% do PIB, respetivamente). A partir de então, a política orçamental dos sucessivos governos portugueses visou alcançar e manter estes objetivos (os quais foram atingidos). No entanto, a política orçamental revelou-se ambígua. Por um lado, foi expansionista, ao alargar o número de funcionários públicos e aumentar-lhes os salários de forma consistente. Ao mesmo tempo, foi contracionista, embora de forma involuntária, graças à redução do serviço da dívida, em resultado da convergência das taxas de juro com as praticadas nos países mais desenvolvidos da UE. À medida que este efeito se esgotou e a despesa continuou em crescimento, as fragilidades das contas públicas foram, porém, tornando-se claras. Assim, ao mesmo tempo que se cumpriam os critérios da UEM, uma nova crise orçamental germinava. A crise tornar-se-ia explícita logo no ano 2001, não tendo ainda sido resolvida. Uma das principais questões resultantes da evolução da economia neste período foi a deterioração da competitividade das exportações. Na tentativa de combater uma inflação renascente no final da década de 1980 e de colocar o país em condições de aderir à UEM, a política monetária e cambial estrangulou as exportações e o sector transacionável. Uma das mais importantes consequências deste processo foi a progressiva dificuldade em manter a balança de transações correntes equilibrada, o que resultou no início de um processo de endividamento externo que constitui, hoje, um dos mais intratáveis problemas com que o país se defronta. Tudo isso se tornaria claro no período seguinte, na sequência da efetiva adesão de Portugal à UEM.

103

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 103

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

BALANÇO E CONCLUSÃO

Um resumo das consequências finais do conjunto de transformações do quadro institucional da economia portuguesa na passagem do Estado Novo para a democracia, desde o PREC até às reformas posteriores, poderia ser feito da seguinte forma: desapareceu a estrutura corporativa típica do salazarismo, bem como os restantes instrumentos de intervenção da economia que este possuía; desapareceu também a estrutura empresarial formada durante o regime, em torno dos chamados «grupos económicos», por via de um programa maciço de nacionalizações; também, num primeiro momento, uma parte importante da agricultura portuguesa foi sujeita a uma experiência bastante inovadora, através da «Reforma Agrária» mas, tal como no caso das nacionalizações, foi integralmente revertida; a legislação laboral conferiu, ao início, um grau substancial de rigidez ao mercado de trabalho, mas foram sendo introduzidos ao longo do tempo diversos mecanismos que a atenuaram, através das formas de trabalho precário. Este conjunto de mutações sofreu, em larga medida, consagração constitucional, mas também, de maneira progressiva, a Constituição (através das suas revisões) se foi tornando menos rígida. Verificaram-se alterações importantes no domínio das finanças públicas, com uma expansão significativa da receita e da despesa. Se o Estado perdeu os instrumentos de intervenção característicos do período anterior ao 25 de Abril, ganhou outros, que lhe asseguram um controlo muito maior sobre o conjunto do produto através da fiscalidade e da despesa pública. A isto acresceu um quadro de sistemática indisciplina orçamental, que ainda não teve solução mais de trinta anos depois do abandono dos princípios de equilíbrio típicos do Estado Novo. Poderá então dizer-se que, se num primeiro momento as transformações radicais de 1975 levaram a economia a limites bordejando o socialismo real, progressivamente as coisas alteraram-se de tal forma que o quadro institucional da economia portuguesa convergiu em pleno para o padrão europeu. Desde logo, no que toca ao sector empresarial do Estado. Uma vez tornadas possíveis as privatizações, Portugal desmantelou-o profundamente. Entre 1992 e 2001, foram privatizadas a maior parte das empresas nacionalizadas em 1975. Hoje, Portugal voltou a estar entre os países com menor propriedade pública no mundo ocidental (Gráfico 7). Apesar das oscilações, esta evolução configura um quadro de convergência institucional com o padrão europeu, o que viria a ser como que consagrado com a adesão de Portugal às Comunidades Europeias em 1986. A confirmação desta convergência verificou-se quando Portugal adotou algumas das mais difíceis

10 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 104

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

Gráfico 7 Peso do sector empresarial público, Portugal e alguns países da OCDE, 1998 e 2003 5 4,5 4 3,5 3 2,5

1998

2

2003

1,5 1 0,5

K

SA U

U

Sp ai n en m ar k Po rtu ga l D

G

Fi nl an d er m an N y et he rl a n Sw s ed en Ire la nd

Ita ly Be lg iu m

Au st ria G re ec e

Fr an ce N or w ay

0

Fonte: OCDE, OECD Comparative Report on Corporate Governance of State-Owned Entreprises, OCDE, Paris, 2005. Nota: o indicador é uma medida compósita incluindo diversas variáveis, como o peso do sector empresarial público no PIB, na formação bruta de capital físico ou no emprego – v. OCDE, op. cit.

reformas europeias, como as relacionadas com o Acto Único Europeu, de 1992 (que, no fundo, liberalizou de forma quase integral o comércio e o trânsito de fatores entre os países-membros), e, no que constituiu então uma grande surpresa internacional, a adoção da moeda única, em 1999. A narrativa que abarca os principais períodos de evolução da economia portuguesa desde o 25 de Abril aponta para dois grandes temas: as dificuldades de convergência económica e, pelo contrário, a quase completa convergência em termos políticos e institucionais. É como se tivesse ocorrido uma inversão face ao período do Estado Novo. Enquanto, neste regime, a convergência económica não foi acompanhada por uma equivalente convergência política e institucional, durante a democracia verificou-se o contrário. O crescimento económico no Estado Novo ocorreu em paralelo com a manutenção de um regime político autoritário, pouco sensível à política social; a lentidão económica da democracia, inversamente, fez-se acompanhar de uma aproximação clara no domínio do regime político e das

1 05

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 105

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

suas preocupações sociais. O país não se transformou apenas numa democracia de tipo ocidental. Transformou-se também num Estado-Providência. O grande problema do conjunto do período posterior a 1974 é, portanto, o da lentidão no crescimento económico, resultante de um fraco crescimento da produtividade. Ora, a teoria económica estabelece de maneira clara a associação da produtividade com a disponibilidade de capital por mão-de-obra. Isto é, em regra (e com especificidades próprias a cada uma delas), nenhuma economia poderá ter uma produtividade elevada se não tiver também uma elevada proporção de capital pelos trabalhadores existentes. Precisamente, uma das características estruturais da economia portuguesa é a sua baixa intensidade capitalística em comparação com os países mais desenvolvidos, como mostra o Gráfico 8. Se é muito comum afirmar-se que existe em Portugal um défice de capital humano (ou seja, de educação ou de qualificação da mão-de-obra), a verdade é que o défice de capital físico é ainda maior. Eis, por conseguinte, uma maneira fácil e imediata de explicar a baixa produtividade da economia portuguesa. É claro que as coisas não são assim tão simples. Sendo talvez o mais importante fator de crescimento, a acumulação de capital não os esgota. Neste aspeto, é preocupante que esta acumulação, tal como ocorreu em Portugal nas últimas

Gráfico 8 Rácio capital-trabalho vs PIB por trabalhador, 2010 (1000 euros) 90 Luxemburgo

80

P. Baixos 70

Finlândia

60

Bélgica

Áustria

UE-15 Zona Euro Alemanha

50

Irlanda

França

Itália Espanha

40 Grécia 30

Portugal

20 0,7

0,9

1,1

1,3

1,5

1,7

1,9

2,1

2,3

2,5

Nota: o rácio capital-trabalho encontra-se no eixo horizontal; o PIB por trabalhador no eixo vertical. Fonte: AMECO

106

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 106

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

décadas, não se tenha repercutido num aumento proporcional da produtividade. A questão é também de eficiência nessa acumulação. Dito de outra maneira, a produtividade do capital em Portugal é baixa. Temos, assim, dois fatores que explicam a baixa produtividade nacional: fraco crescimento do stock de capital pela mão-de-obra existente e baixa produtividade desse mesmo stock. A acumulação de capital depende do investimento, o qual é realizado pelos empresários. Como o investimento cresceu, podemos dizer que os empresários portugueses encontraram oportunidades para investir. O que pode também dizer-se é que as oportunidades poderiam ter sido maiores. A partir de 1986, as condições para o investimento alteraram-se. Por um lado, a abertura dos mercados europeus às exportações portuguesas inaugurou um período de oportunidades. Por outro, a revisão da Lei de Delimitação de Sectores de 1983 abriu o sector bancário à propriedade privada, o que a deveria ter tornado mais seletiva no crédito concedido, permitindo uma melhoria da qualidade do investimento. Além disso, a partir da revisão constitucional de 1989, uma boa parte do restante sector nacionalizado foi também aberto à propriedade privada, o que, mais uma vez, teria criado oportunidades de investimento. Tudo isto enquadrado, até 1990, por uma quebra das taxas de juro, embarateceu o crédito. Além destas alterações genéricas nas condições do investimento, devemos ainda considerar o contributo dado pelo Estado. A entrada na CEE ofereceu-lhe novas oportunidades para dirigir a distribuição de recursos na economia. Não se tratava já de dirigir o investimento através da banca e das empresas públicas, mas sim através de subsídios concedidos ao abrigo dos chamados «fundos estruturais» europeus. Uma série de programas comunitários destinados a permitir às economias ou regiões menos desenvolvidas compensar o seu atraso relativo passaram a aplicar-se em Portugal: o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (conhecido pela sua sigla FEDER) e o Fundo Social Europeu (FSE), administrados por agências governamentais, permitiram uma grande atividade discricionária da parte do Estado. Mas talvez o mais importante destes programas tenha sido o Programa Específico de Desenvolvimento à Indústria Portuguesa (famoso também pela sua sigla PEDIP), a que se seguiram diversas gerações de Quadros Comunitários de Apoio, que o Estado usou abundantemente para exigir às indústrias apoiadas que se reestruturassem. Há dúvidas, no entanto, de que assim tenha sido, suspeitando-se de um uso dos apoios bastante mais indiscriminado. A importância do Estado para o aumento do investimento no país é indubitável. Mais problemática é a qualidade desse investimento. Uma das componentes fundamentais dos fundos europeus é o apoio ao desenvolvimento de infraestruturas. Em Portugal, isso traduziu-se numa muito visível

10 7

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 107

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

expansão da rede viária. Em meados dos anos de 1980, Portugal era um dos países europeus com mais baixa densidade de autoestradas. No início do século XXI, detinha já uma das maiores do mundo. No entanto, o investimento público não se restringiu apenas à rede viária, bastando pensar na sucessão de projetos mais ou menos espetaculares dependentes do esforço estatal, como a Exposição Universal de Lisboa de 1998 (EXPO’98 – incluindo a Ponte Vasco da Gama), o Campeonato Europeu de Futebol de 2004 (EURO 2004) ou a construção de hospitais. O Estado influenciou também a natureza do investimento realizado através de formas mais indiretas, como sejam os benefícios fiscais à aquisição de casa própria, com a consequência de grande parte do crédito bancário ter sido dirigido para esse fim e um correspondente estímulo à construção civil. O importante a notar a propósito deste conjunto de práticas é que os recursos mobilizados são convidados a direcionar-se para determinado tipo de investimentos em detrimento de outros. É aqui que entra a questão da produtividade do investimento. Desde meados da década de 1980 que este se concentrou, pelas razões enunciadas, em sectores de menor produtividade potencial e, consequentemente, de menor impacto no crescimento económico. O problema não resulta apenas da direção dada ao investimento público. Resulta também da despesa pública em geral. De facto, como vimos acima, a principal característica desta última foi o seu crescimento a ritmos superiores aos da economia. Isto induziu à expansão do número de funcionários públicos (sejam simples funcionários administrativos, sejam médicos, enfermeiros ou professores) e dos gastos em programas sociais. O que este conjunto de práticas configura é uma série de incentivos ao crescimento do sector não-transacionável da economia. O enviesamento em favor do sector não-transacionável foi um elemento estrutural da evolução da economia portuguesa entre 1986 e o ano 2000, como consequência de vários efeitos: da política de investimentos do Estado, da política genérica de instalação do Estado-Providência e, enfim, da política monetária seguida desde 1990. Até 1990, foi possível compensar o enviesamento com uma política monetária, cujo objetivo era manter a competitividade dos bens transacionáveis nos mercados internacionais, graças ao sistema do crawling peg e à sua desvalorização deslizante. Porém, a política anti-inflaccionista seguida, a partir de 1990, não só o eliminou da panóplia de instrumentos à disposição dos governos portugueses como implicou um significativo reforço do valor cambial da moeda portuguesa. O câmbio estabelecido entre 1990 e 1992 acabou por ser aquele com que o país aderiu à UEM, e parece ter sido fixado a um nível demasiado elevado para a competitividade das exportações portuguesas.

10 8

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 108

30/03/15 10:14

O P RO CE S SO E C O N Ó MI C O

De tudo isto resultou um quadro definido pela estagnação da produtividade agregada da economia (sobreviveram as empresas mais produtivas, mas o seu número é muito reduzido e, por conseguinte, também o seu impacto) e pela incapacidade para financiar o acréscimo do sector não-transacionável. Dito de forma simples: Portugal deixou de produzir o suficiente para cobrir e pagar os bens que importa. O endividamento externo, que aumentou muito desde 1996, é a materialização desta impossibilidade. O potencial do país para seguir outro caminho existia no início do período democrático. Em 1974, Portugal possuía boas condições para uma reestruturação da economia que dirigisse recursos dos sectores de menor produtividade para outros de maior produtividade. Em particular, possuía uma grande quantidade de mão-de-obra empregue num sector agrícola pouco produtivo e que, nas condições apropriadas, poderia ter-se deslocado para a indústria. Em vez disso, um bom número dessa mão -de-obra deslocou-se diretamente para os serviços, a maior parte deles públicos. A agricultura portuguesa, tal como a indústria, sentiu os mesmos efeitos de enviesamento dos incentivos a favor dos bens não-transacionáveis, mas agravados ainda pelas políticas agrícolas que foram seguidas até à adesão à CEE e, depois, pela aplicação da Política Agrícola Comum europeia (PAC). Em 1975, o impacto da Reforma Agrária e da pressão salarial deterioraram as condições de produção e de produtividade da agricultura. A seguir, o sector recebeu um impulso positivo quando a Reforma Agrária foi revertida e a política de desvalorizações sucessivas do escudo passou a ser aplicada. De 1983 em diante, no entanto, o quadro agravar-se-ia de forma consistente. Nesse ano, e no âmbito do acordo de estabilização com o FMI, o sistema específico de apoio à agricultura (de subsídio aos fatores de produção) teve de ser abolido. A partir de 1996, a PAC passou a ser plenamente aplicada à agricultura portuguesa. Ora, os preços da PAC foram estabelecidos para beneficiar sobretudo os produtores agrícolas dos países centrais da União (França, Alemanha, Holanda…), penalizando os produtos típicos portugueses. Em suma, os últimos quarenta anos de políticas agrícolas conduziram, por um lado, ao definhamento do sector e, por outro, à manutenção de baixos valores de produtividade. Em si mesmo, o definhamento poderia não ter sido um problema, bem pelo contrário. Sendo a agricultura pouco produtiva, a deslocação de mão-de-obra para outros sectores poderia representar um choque positivo de produtividade. Mas, para isso, seria necessário que essa deslocação se tivesse conjugado com o aumento da produtividade industrial. Acontece, porém, que a indústria deixou de ser capaz de absorver o trabalho libertado pela agricultura. Em consequência, este foi empregar-se diretamente nos serviços.

1 09

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 109

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Se quiséssemos resumir as razões da lentidão do crescimento da produtividade em Portugal desde o 25 de Abril, poderíamos falar de dois momentos cruciais: um, a passagem, entre 1974 e 1975, de um regime de repressão laboral para outro de liberdade sindical, com as consequentes dificuldades de gestão da mão-de-obra pelas empresas; o outro, a escolha da revalorização cambial em 1990 para combater a inflação, inaugurando uma política de «câmbio forte». Em si mesmo, o primeiro momento poderia não ter dado origem a custos imediatos tão elevados, bastando para isso que os trabalhadores tivessem moderado as suas reivindicações. Não foi isso que aconteceu, e logo durante uma grave crise. Foram então necessários dez anos de persistentes desvalorizações cambiais para fazer os salários regressar a um nível consentâneo com a sua produtividade. No entanto, pouco depois de este equilíbrio ter sido alcançado, chegou o segundo momento. A revalorização do escudo tornou difíceis as condições de produção dos bens transacionáveis, incentivando a expansão do sector não-transacionável e deixando o país incapaz de financiar as suas importações. É esta a origem do endividamento iniciado na década de 1990.

110

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 110

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 111

30/03/15 10:14

PORMENOR DA IMAGEM DA PÁGINA 125

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 112

30/03/15 10:14

POPULAÇÃO E SOCIEDADE António Barreto

Nas últimas quatro décadas do século XX, as mudanças na sociedade portuguesa foram dramáticas. Em profundidade e, sobretudo, em celeridade. Em menos de quarenta anos, sendo embora no mesmo país, passou a viver-se numa sociedade muito diferente. É este um dos «mistérios» da nacionalidade e da identidade cultural: apesar das ruturas e das diferenças, a continuidade e a memória fazem com que os cidadãos sintam pertencer ao mesmo país. Como veremos, alguns dos traços essenciais do Portugal de 1960, incluindo fatores históricos de longa duração, desapareceram. Entre estes, contam-se não só elementos tradicionais, mas também aspetos estruturais da população e da sociedade, assim como características dos comportamentos e das mentalidades. Muitos acontecimentos históricos tiveram influência decisiva na mudança social, como seja a revolução política de 1974. Mas não deve perder-se de vista a relação inversa: a fundação do Estado democrático, a adoção de políticas liberais e o estabelecimento de uma economia de mercado muito ficaram a dever ao crescimento económico, à pressão das classes médias e às mudanças sociais ocorridas a partir dos anos de 1960. Antes de passar em revista as mais relevantes mudanças sociais ocorridas nestas quatro décadas, importa referir alguns acontecimentos históricos que as acompanharam. BREVE ENQUADRAMENTO

No final da década de 1950 e início da de 1960, alguns acontecimentos marcam a cronologia histórica do país. Portugal é, em 1959, um dos fundadores da EFTA (European Free Trade Association), resposta de alguns países à criação

1 13

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 113

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

do Mercado Comum europeu. O facto terá, no futuro imediato, importantes repercussões. Não só é esbatido um relativo isolamento político internacional do regime autoritário de Salazar, mas, sobretudo, iniciar-se-á o primeiro processo de abertura da economia (do comércio e da indústria, sobretudo) ao exterior, designadamente aos países europeus. Segundo um estudo da EFTA, o produto industrial português cresceu de modo muito significativo, entre 1960 e 1965, graças aos efeitos deste novo enquadramento internacional: quase 80%. No mesmo período, as exportações para a EFTA terão aumentado mais de 140%; enquanto o aumento das exportações totais portuguesas correspondente terá sido de apenas 76%. Em poucos anos, o investimento externo em Portugal cresceu como nunca antes; surgiram empresas estrangeiras de fabrico e de montagem de aparelhos e máquinas; instalaram-se empresas industriais com o objetivo essencial de produzir para a exportação e com destino às economias desenvolvidas; e liberalizaram-se, embora moderadamente, as trocas comerciais com os países europeus, por exemplo de produtos industriais. Apesar da abertura, o governo português pretendeu manter sob proteção especial um certo número de sectores, de empresas e de mercadorias (cujo desarmamento aduaneiro seria mais gradual e demoraria mais tempo). Anos houve, neste período, em que a produção industrial chegou a crescer mais de 20%. Pela primeira vez, parecia haver uma alternativa industrial ao emprego agrícola, o que implicava nova organização do trabalho, salários superiores e emprego durante muito mais tempo em cada ano. Entre 1960 e 1973, o rendimento nacional por habitante cresceu a uma média superior a 6,5%, com valores que, por vezes, ultrapassavam os 10%. Foi este o período de maior crescimento económico da história do país. Nos primeiros anos da década de 1960, a emigração portuguesa, que tradicionalmente se dirigia para o Brasil, para outros países da América Latina, para os Estados Unidos, Canadá, África do Sul e colónias portuguesas em África (sobretudo Angola e Moçambique), passa a encaminhar-se de preferência para a Europa, muito em especial para França. Ao mesmo tempo, o número de emigrantes que, anualmente, saem de Portugal, atinge volumes muito altos, antes desconhecidos. A partir de meados da década de 1960, o saldo migratório anual ultrapassa em muito o saldo fisiológico, o que quer dizer que a população decresce em termos absolutos. De certo modo coincidindo com este fluxo migratório, outro acontecimento marca este tempo: o início do turismo de massas para Portugal. A origem é essencialmente europeia (britânica, alemã, espanhola, etc.); o destino é a costa sul do país, nomeadamente o Algarve. Em poucos anos, o número anual de turistas passa a atingir os vários milhões. Os efeitos deste fenómeno foram importantes,

11 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 114

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

não só para a balança de pagamentos, como também para as atividades (hotelaria, comércio, construção, imobiliário, etc.) de várias regiões, sobretudo litorais, onde as alternativas à agricultura demoravam a surgir e onde o surto industrial, presente sobretudo em redor das áreas metropolitanas, não tinha ainda chegado. Por último, o ano de 1961 representa, politicamente, um momento excecional da história moderna do país. No primeiro trimestre, iniciam-se as operações militares em Angola, após os movimentos independentistas terem desencadeado a luta armada. A UPA, União dos Povos de Angola, iniciou operações de guerrilha na cidade de Luanda, em fevereiro de 1961. No mês de março seguinte, novamente a UPA levou a cabo, em vastas regiões rurais do Norte, ações de terror, sobretudo contra os fazendeiros e seus trabalhadores Pouco depois, também o MPLA, Movimento Popular de Libertação de Angola, deu início a operações de carácter militar e de guerrilha. Durante muitos anos, a primeira iniciativa fora atribuída ao MPLA, a segunda à UPA. Todavia, de acordo com informações mais recentes e nova literatura, as operações lançadas em fevereiro contra a prisão de Luanda foram da responsabilidade da UPA. O governo português responde com o envio de forças armadas. Começa a Guerra Colonial, alastrada depois à Guiné e a Moçambique, e que vai durar quase treze anos, representar perto de 50% da despesa pública e mobilizar, em média, perto de 200 000 soldados em armas por ano, o que representava mais de 2% da população total do país, taxa que nenhum outro país ocidental registou em qualquer guerra colonial, nem ultramarina, como a do Vietname. Ainda nesse ano de 1961, em dezembro, depois de vários anos de hostilidades políticas e de quezílias de fronteira, as forças armadas da União Indiana invadem e conquistam o Estado Português da Índia (composto por três parcelas principais, Goa, Damão e Diu), o que constituiu a primeira perda colonial de Portugal no século XX, e, de facto, virá a revelar-se o início do fim do Império. A Guerra Colonial será, durante mais de dez anos, o elemento crucial da vida nacional, condicionando toda a política, cativando uma parte muito considerável dos recursos orçamentais e reforçando a severidade da ditadura (partido único, polícia política, censura à imprensa, sindicatos oficialmente homologados, etc.). Depois da substituição de Salazar por Marcello Caetano, em 1968, será ainda a Guerra Colonial que condicionará o rumo político seguido, liquidando as pressões liberais da sociedade e mesmo as eventuais veleidades, no mesmo sentido, do novo governo.

115

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 115

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

EM REGIME DEMOCRÁTICO

Nas duas décadas seguintes, de 1970 e 1980, novos acontecimentos terão influência decisiva na evolução social do país. A revolução de 1974/76 alterou radicalmente a vida política, o que teve implicações sociais, culturais e económicas de grande dimensão. Para efeitos de sistematização, poder-se-ão distinguir várias fases naquele que foi um processo muito complexo: o golpe de Estado militar de 25 de Abril de 1974; uma revolução política e social entre 1974 e 1975; uma contrarrevolução democrática entre finais de 1975 e 1976 (ano em que se aprovou uma Constituição democrática, se realizaram eleições legislativas, presidenciais e municipais e foi formado o primeiro governo democrático); um período de «normalização» democrática, entre 1976 e 1982, até à revisão da Constituição (donde foram retirados vários princípios propriamente revolucionários e de tutela militar sobre os órgãos de soberania) e à aprovação das novas leis das forças armadas. Os aspetos mais políticos de todo este processo não serão aqui tratados. Não obstante, esta experiência teve profundos efeitos nos comportamentos sociais e culturais. Entre outras consequências, condicionou a rápida descolonização que se lhe seguiu e trouxe para o país cerca de 650 000 expatriados de África, nomeadamente de Angola e de Moçambique. A prossecução da Guerra Colonial, sem perspetivas de resolução política, foi o fator determinante para a iniciativa e a ação dos militares. Num país que vivia sob ditadura, não houve alternativa para qualquer outra intervenção. Por outro lado, uma atuação militar deste cariz acabaria forçosamente por ter uma dimensão política drástica, isto é, o derrube do regime. Assim, foi encerrado o ciclo colonial de Portugal, tal como foram cortados os vínculos ultramarinos do país. Por vários motivos, incluindo as sequelas da guerra e do processo de descolonização, as relações entre Portugal e os novos Estados independentes foram, durante as primeiras décadas de independência dos Estados africanos, erráticas e muito débeis. As relações económicas foram drasticamente reduzidas. As exportações para as colónias, feitas em regime protecionista, chegaram a representar, ainda durante o período colonial, quase um quarto do comércio externo de Portugal. Algumas matérias-primas, como o petróleo, o café, os diamantes, o açúcar, as oleaginosas, o sisal, o algodão e alguns minerais, desempenhavam um papel muito importante na balança comercial da metrópole. Tudo isto quase desapareceu até ao início do século XXI. As perspetivas de emigração de portugueses para África – uma constante da história recente do país – desapareceram também. O papel político do Estado português ficou reduzido ao seu território europeu. Já no princípio dos anos de 2000, começaram a notar-se desenvolvimentos interessantes nas

1 16

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 116

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

relações económicas, financeiras, comerciais, sociais e políticas entre Portugal e as antigas colónias.

A REVOLUÇÃO POLÍTICA

Consequência imediata da revolução foi ainda a nacionalização de vastos sectores produtivos e de numerosas empresas, o que representou um real desmembramento ou destruição dos grupos económicos privados. Além disso, as explorações agrícolas de uma parcela importante do território agrícola do país foram objeto de ocupação e de nacionalização, num complexo processo dito de «reforma agrária» de cariz coletivista. No total, cerca de 1 milhão e duzentos mil hectares foram ocupados e passaram para as mãos de «unidades coletivas de produção»: cerca de 14% da superfície do país, ou um quarto da área agrícola útil, foi gerido por um conjunto de entidades em tudo parecidas com «kolkhozes» independentes. Durante um ou dois anos, viveu-se um período em que se processou uma inversão de poderes políticos e sociais. Trabalhadores, técnicos, grupos políticos, partidos, sindicatos e militares revolucionários exerciam, espontânea ou legalmente, os poderes e as competências das autoridades. Sucederam-se os governos de composição maioritária esquerdista, com participação de militares revolucionários. Após um processo político rápido e pacífico (tal como, em grande parte, tinha sido a revolução), baseado sobretudo na realização de eleições, na aprovação de uma Constituição e na reposição da autoridade administrativa e legal constitucional, foi fundado um regime democrático e parlamentar. A gradual «normalização» significou a reposição das normas legais de garantia dos direitos fundamentais, incluindo os de propriedade; regressaram a Portugal todos os que, por motivos vários, se tinham entretanto exilado; e foram repostas as regras de funcionamento do mercado.

INTEGRAÇÃO EUROPEIA

Quase no seguimento da revolução política, Portugal apresenta a sua candidatura à Comunidade Económica Europeia (mais tarde União Europeia, UE), que é aceite, de princípio, em 1977, e se torna efetiva a partir de janeiro de 1986. Começa então o «segundo impulso» europeu da economia e da sociedade portuguesa, depois do primeiro, o da EFTA e da emigração da década de 1960. Este novo estímulo é, todavia, mais radical. A UE representará, anos depois, três

11 7

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 117

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

quartos da balança comercial portuguesa. As empresas nacionais estão muito estreitamente ligadas às multinacionais e aos grupos económicos europeus. O protecionismo económico nacional quase desapareceu. Portugal transformou-se, em poucos anos, numa das economias mais abertas da Europa, facto este medido pela proporção do seu comércio externo em relação ao produto nacional. No início do século XXI, Portugal integrou o grupo de países que adotou o euro como moeda única. Foi nesta segunda fase, de 1976 ao fim do século, que se fundou e consolidou o sistema político democrático e parlamentar, baseado nos direitos cívicos e políticos fundamentais, assim como no sufrágio universal e na liberdade de ação política, o que aconteceu pela primeira vez na história do país. Segundo uma certa tradição cultural e historiográfica, Portugal conheceu outros períodos de democracia, como, por exemplo, algumas décadas no século XIX (período da monarquia constitucional) e a chamada «Primeira República», de 1910 a 1926. Pode afirmar-se que, nestes períodos, momentos houve em que as liberdades fundamentais eram praticadas e mais ou menos garantidas; e em que existia uma instituição parlamentar (aliás, várias vezes dissolvida). Porém, a capacidade eleitoral estava reduzida a uma ínfima parte da população (as mulheres, os indigentes, os desempregados e os analfabetos estiveram quase sempre afastados). O Parlamento dependia mais do governo e do monarca do que o contrário ou os principais partidos políticos comportavam-se quase como em ditadura. A democracia que se inicia nas décadas de 1970 e 1980 é muito diferente. É neste novo ciclo que se garante, pela primeira vez, a independência do poder judicial e que a maior parte dos órgãos de imprensa e de informação se tornaram independentes do Estado e livres de qualquer censura política. Talvez pela primeira vez em dois séculos, assiste-se a uma espécie de «consenso constitucional»: uma forte maioria dos votos expressos em eleições e dos deputados eleitos concorda com o sentido geral da Constituição. O facto, pouco usual no mundo ocidental, de a Constituição ter sido revista nove vezes em 35 anos, não nega esta afirmação, antes a confirma. Com efeito, são precisos dois terços dos votos para aprovar uma revisão. Quer isto dizer que foi possível encontrar uma tal maioria tantas vezes quantas foi julgada necessária pelos dois partidos mais representativos, o PSD e o PS. Ao contrário do que se passou em boa parte dos séculos XIX e XX, a natureza do regime (República ou Monarquia, por exemplo) não está em causa e as suas fundações democráticas são aceites pela quase totalidade da representação popular. Não existe uma «questão religiosa», em contraste com outros momentos dos dois últimos séculos. Pela primeira vez, desde

118

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 118

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

há muitas décadas, não existem exilados políticos, não há detidos por delito de opinião e nem sequer existe o conceito de «crime político». Parece pouco, mas são novidades para a história moderna do país. A MUDANÇA SOCIAL A POPULAÇÃO

Com estes acontecimentos a formarem um pano de fundo histórico e político, vejamos as principais tendências da mudança social operada. A população envelheceu a um ritmo superior ao dos outros países europeus. Portugal tinha, há cinco décadas, a mais jovem população da Europa. Já não é o caso. E, embora não seja a mais velha, é uma das que envelhece mais rapidamente. Desde o final da década de 1990, talvez desde 2000, a proporção dos idosos, com mais de 65 anos, na população total, passou a ser maior do que a dos jovens com menos de 15 anos. A esperança de vida aumentou consideravelmente, passando de 60 e 66 anos (homens e mulheres), em 1960, para 73 e 79 (respetivamente), em 2001, e 76 e 81 em 2008. A grande responsável pelo envelhecimento é a quebra da natalidade: passou a ser uma das mais baixas da Europa (7,9‰), depois de ter sido, nos anos de 1960, a mais alta (24‰). O mesmo aconteceu com o índice de fecundidade (1,4 por mulher em idade fecunda; era, em 1960, de 3,4). A mortalidade geral (9,8‰ em 2008, era de 11,5‰ em 1999) manteve-se relativamente estável, mas a mortalidade infantil registou uma redução drástica: de mais de 80‰, em 1960, para menos de 6‰ em 2001, e de cerca de 3,4‰ em 2008, naquela que é uma das mais baixas mortalidades infantis do mundo. A dimensão das famílias baixou consideravelmente e situa-se perto de 2,5 pessoas por agregado. Causa e consequência deste facto, a natureza das famílias mudou também. Estamos agora em presença da família estritamente nuclear, de uma ou duas gerações, na qual trabalham o pai e a mãe. São cada vez em menor número as famílias em que se reúnem, sob o mesmo teto, mais de duas gerações. Como são também em reduzida proporção do total os agregados familiares de dimensões superiores a cinco ou seis pessoas. Crescem os números das uniões de facto, das famílias monoparentais e das famílias de um só indivíduo. Aumentou o número de divórcios (dois divórcios para três casamentos) e de segundos casamentos. Até 1975, por efeito conjugado das leis em vigor e da Concordata (assinada entre o governo português e a Santa Sé), o divórcio dos casamentos católicos (que eram a grande maioria) era interdito. A partir desse

1 19

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 119

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

ano, graças à revisão da Concordata e à aprovação de novas leis civis, o divórcio passou a ser permitido. Cresce significativamente o número de filhos fora do casamento: pertence a este grupo um em cada dois nascimentos. O sentido geral da evolução demográfica portuguesa foi o de uma aproximação aos padrões europeus conhecidos: envelhecimento, quebra da natalidade, aumento da esperança de vida, redução da fecundidade, diminuição das dimensões dos agregados familiares, aumento das uniões de facto e dos filhos fora do casamento, acréscimo das famílias monoparentais, crescimento do número de divórcios, etc. O que sobressai, no caso português, é o facto de todos estes acontecimentos demográficos se terem de certo modo iniciado mais tardiamente do que no resto da Europa. Em consequência, foram muito mais rápidos, tendo, em muitos casos, ultrapassado as médias europeias (quebra de natalidade, redução do índice de fecundidade e ritmo de envelhecimento).

AS MIGRAÇÕES

Um país tradicionalmente de emigração transformou-se, por um breve período, num país de imigração: eis talvez uma das mais notáveis mudanças ocorridas em Portugal nas últimas décadas. Também neste caso deve recordar-se que não se trata de fenómenos inéditos ou únicos na Europa. Outros países, como a Itália e a Espanha, eram, em meados do século passado, países de emigração e recebem hoje muitos mais estrangeiros do que os nacionais que emigram para outros países. Relativamente aos padrões demográficos e sociais europeus, a especificidade portuguesa nota-se sobretudo nos ritmos e na cronologia, mais do que na natureza dos factos. Nos anos de 1960, Portugal registava o mais alto índice de emigrantes em relação à população residente. Na década de 1970, o regresso de expatriados de África constituiu, em proporção à população, o maior fluxo de pessoas retornadas bruscamente ao país de origem: mais de 7% num só ano. No final dos anos de 1990, Portugal é o país europeu onde cresce mais rapidamente a proporção de imigrantes. A partir de 2005, em resultado de novas dificuldades económicas e de um crescimento mais lento, o número de imigrantes diminuiu, bom número de imigrantes residentes (sobretudo ucranianos) deixou o país e assiste -se, hoje, a um recrudescimento da emigração de portugueses para o estrangeiro, com relevo para Espanha, Inglaterra, Suíça e Angola. Verificou-se uma nova mudança e Portugal retomou as suas tradições de emigração, com valores semelhantes aos da década de 1960.

120

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 120

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

Entre 1960 e 1973, mais de um milhão e meio de portugueses abandonaram o país para trabalhar no estrangeiro. Rompendo com as tradições seculares, os emigrantes deixaram praticamente de se dirigir para o Brasil e outros países da América Latina, e preferiram o destino europeu, em particular a França, logo seguida da Alemanha, da Bélgica, do Luxemburgo e da Suíça (mais tarde, a Grã-Bretanha, a Holanda e a Espanha). Há como que uma «urgência», neste surto migratório. A tal ponto que o número de emigrantes «ilegais» ultrapassa o de legais. A política oficial portuguesa foi sempre ambígua, talvez de propósito. Por um lado, o governo não queria reconhecer publicamente o facto, como se este fosse uma demonstração do mal-estar social do país. Além disso, as exigências militares obrigavam a uma tentativa de controlo de movimentos, a fim de manter os níveis de recrutamento desejáveis. Por outro lado, a emigração interessava ao governo por, pelo menos, dois motivos. Primeiro, aliviava as tensões sociais de grandes áreas do país, sobretudo no Norte e no interior. Segundo, as remessas financeiras dos emigrantes, após estes se fixarem, constituíam um substancial apoio à balança de pagamentos. Na primeira metade dos anos de 1970, a emigração reduziu, até porque a situação económica e social internacional (recessão e choque petrolífero) contribuiu nesse sentido. A descolonização teve como efeito o regresso (ou a vinda, dado que muitas pessoas tinham nascido nas colónias e bastantes nunca tinham visitado a metrópole) de várias centenas de milhar de pessoas (talvez 650 000) previamente residentes nas colónias. A sua integração na sociedade e na economia fez-se de forma rápida e sem incidentes ou conflitos dignos de registo. Mantiveram-se correntes de emigração, a partir de Portugal, mas em volumes muito mais reduzidos. Emigração tradicional da Madeira e dos Açores, sobretudo para os Estados Unidos, o Canadá, a Venezuela e a África do Sul. Emigrantes sazonais para os trabalhos agrícolas (beterraba, vindimas, etc.) em Espanha, em França e na Suíça. Emigração regular para alguns países que, como a Suíça, não são membros da União Europeia Contudo, em pouco tempo, efetuou-se uma verdadeira inversão do movimento de população. Com efeito, durante a década de 1980, assistiu-se à consolidação gradual de uma corrente de imigração com origem no Brasil e nas antigas colónias. Também um número crescente de europeus escolheu Portugal como residência ou local de trabalho (pessoas ligadas aos negócios e aos novos investimentos estrangeiros, agricultores, reformados, etc.). Em meados dos anos de 1990, já a população estrangeira residente (legalizada) alcançava os 2% do total. Persistia uma pequena corrente de emigrantes portugueses para o estrangeiro, não alcançando, em média anual, os dez mil definitivos e os quinze

121

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 121

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

mil temporários. Gradualmente, a partir dos anos 1995-1997, o saldo passou a ser positivo, isto é, o número de imigrantes ultrapassou o de emigrantes. Sendo certo que, com a União Europeia, a livre circulação de pessoas e o «Espaço Schengen», se tornou impossível manter uma estatística exaustiva e rigorosa dos movimentos de população dentro das respetivas fronteiras. A partir dessa altura surgiu, com surpreendente rapidez, uma nova corrente de imigração: a de trabalhadores da Europa Central e de Leste, designadamente de ucranianos, russos, romenos, antigos jugoslavos e moldavos. Em menos de dez anos, a população estrangeira residente chegou aos 5% do total. Com as novas dificuldades económicas e as sucessivas recessões, tanto internas como externas, o país perdeu a capacidade para receber imigrantes e as oportunidades de emprego diminuíram de forma drástica. No fim da primeira década do século XXI, Portugal era, de novo, um país com forte emigração.

INTEGRAÇÃO NACIONAL

Processou-se de modo completo a integração nacional, administrativa, territorial e social. É verdade que o país é homogéneo, o poder administrativo vigora há muito em todo o território e algumas realidades, como a moeda, a língua, as leis e as forças armadas, tinham já carácter nacional. Mas o certo é que uma grande parte do país vivia a ritmos diferentes da capital e das principais áreas urbanas. Vários fenómenos contribuíram para essa integração, incluindo a mobilização para a Guerra Colonial, a generalização da televisão, a expansão dos serviços de saúde e de segurança social e o estabelecimento de redes escolares, postais e bancárias que, finalmente, cobriam todo o país. No entanto, o elemento mais importante terá, sem dúvida, sido a integração da população ativa, com relevo para as mulheres. Estas passam a estar presentes em todas as empresas, profissões, escolas e universidades. Até 1976, algumas profissões estavam, por lei, reservadas aos homens: a carreira judicial e a do Ministério Público, a diplomacia, a polícia, e as forças armadas. Modificou-se profundamente a presença da mulher na sociedade e no espaço público. Muitos dos seus direitos de cidadania (voto, capacidade legal e comercial, passaporte, liberdade de circulação e de deslocação ao estrangeiro, etc.) só lhes foram reconhecidos a partir da década de 1970, nomeadamente após a revolução e a aprovação da Constituição de 1976. No início desta década, as mulheres representariam cerca de 20% da população ativa empregada; três a quatro décadas depois, a sua parte eleva-se a praticamente 50%. Em muitos sectores de atividade, como a Administração

1 22

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 122

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

Pública e os serviços (especialmente na saúde e na educação), as mulheres são maioritárias. A população estudantil universitária é maioritariamente feminina (cerca de 56%) e são as mulheres que, todos os anos, obtêm a maior parte (65%) dos diplomas universitários. Esta mudança, associada à evolução cultural das últimas décadas, foi responsável por uma alteração importante na distribuição sexista de poderes: uma sociedade patriarcal e masculina tem vindo a ceder o passo a um mais visível equilíbrio entre os sexos. A desigualdade salarial, em Portugal como noutros países, está ainda bem presente na economia privada. Nos últimos vinte anos é notória uma tendência para a respetiva aproximação, mas a distância ainda se estabelece, para trabalho igual, à volta dos 15% a 20% a favor dos homens. Na Administração Pública, no entanto, a igualdade é a regra legal e, na prática, efetiva. Este fenómeno de integração, também envolveu, camadas populacionais mais jovens. Com o desenvolvimento da «cultura jovem» e da categoria etária e social «jovem», nasceu um novo segmento geracional ativo, eleitor, consumidor e produtor: os jovens. Com a evolução da economia e do sector da educação, as jovens gerações adiaram, por vários anos, a sua entrada na vida profissional. Estão presentes nas escolas secundárias e nos estabelecimentos de ensino superior, que entretanto cresceram em número e em dimensão. Praticamente isentos de serviço militar, deixaram de ter diante de si esse vínculo à administração e ao serviço público. Com direito a voto aos 18 anos (desde março de 1978), são objeto de especial atenção por parte dos partidos políticos e das autoridades. São atraídos pelas juventudes partidárias para colaborar nas campanhas políticas. São solicitados pelo comércio e pela publicidade. Têm, nos locais de divertimento, nos espaços públicos culturais e na vida noturna (bares, discotecas, etc.) os seus pontos de encontro, protagonizando uma marca indelével nas cidades.

CRESCIMENTO DOS SERVIÇOS

A terciarização foi rápida e completa, com a redução drástica do sector primário e a estabilização da população industrial. O sector primário, ainda maioritário nos anos de 1960, foi-se reduzindo à menor expressão (menos de 8% em 2000 e menos de 6% em 2010). Ao contrário do que aconteceu nos países da Europa Ocidental, nunca a indústria foi o sector mais importante de ocupação da população ativa. O sector dos serviços passou diretamente do último para o primeiro lugar na ocupação de mão-de-obra e no emprego. Cresceu muito marcadamente a Administração Pública: os cerca de 196 000 funcionários das administrações

1 23

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 123

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

central e local, de 1968, eram, em 1983, 516 000 e são, em 2001, mais de 716 000 e cerca de 720 000 em 2009. Aumentaram significativamente os funcionários dos sectores da educação e da saúde. Assistiu-se a uma expansão previsível do comércio, da restauração e hotelaria, do sistema bancário e dos serviços de telecomunicações. Em paralelo com a terciarização, reforçaram-se a litoralização e a urbanização. Prosseguiram as migrações internas, levando a população a concentrar-se no litoral e nos centros urbanos, de preferência nas duas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas também à volta de alguns pólos de crescimento urbano que melhor resistiram à desertificação: Braga, Aveiro, Coimbra, Viseu, Évora e Faro. A composição social e profissional da população residente e da população ativa sofreu, nestas quatro décadas, transformações profundas. Segundo os Censos, a população empregada no sector primário passou de 43,6% (em 1960) para 10,9% (em 1991), sendo atualmente de cerca de 6%. A do sector secundário subiu, no mesmo período, de 28,9% para 37,9%, podendo ser hoje de 34% a 36%. A do sector terciário saltou de 27,5% para 51,3%. Nunca a população ativa portuguesa foi maioritariamente industrial ou empregada no sector secundário, o que, na Europa, é caso único. A análise das estimativas anuais e dos inquéritos anuais ao emprego sugere que, algures na década de 1970, a população do sector secundário poderá ter sido esporadicamente maioritária. Contudo, não é o que resulta das análises de médio e longo prazo nem dos resultados dos Censos da população. As mulheres são hoje maioritárias na população ativa dos sectores primário e terciário, sendo ainda minoritárias no secundário. No geral, as mulheres representam praticamente metade da população ativa empregada. Os indicadores publicados não permitem observar uma série homogénea de 1970 até 1974. As estimativas existentes, porém, permitem verificar que foi neste período que as mulheres foram, em definitivo, integradas na população ativa empregada. Em 1960, as mulheres não deveriam representar mais de 20% a 25% do total. A industrialização e a terciarização estão na origem deste facto, mas, ainda mais especialmente, foram a emigração e a Guerra Colonial que trouxeram as mulheres para o emprego.

POPULAÇÃO ATIVA E ESTRUTURAS SOCIAIS

Ao longo dos últimos 25 anos, a população ativa aumentou em cerca de um milhão de pessoas (até 1,2 milhões), totalizando hoje cerca de 5 milhões, mais ou menos metade da população residente. Estes acréscimos são, sobretudo, da

1 24

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 124

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

Eduardo Gageiro Bairro de Lata, 1971 © Eduardo Gageiro, SPA 2015

1 25

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 125

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

responsabilidade do sector terciário (mais 781 000 mulheres e 397 000 homens), seguido do secundário (mais 304 000 homens e 150 000 mulheres). Entretanto, o sector primário terá perdido pelo menos 650 000 trabalhadores. Mais ainda, se contarmos todos os que, homens e mulheres, camponeses, seus familiares e trabalhadores, constituíam a população agrícola: mais de 1 630 000 foram os que abandonaram as explorações agrícolas desde 1968. A composição profissional e social da população ativa também registou alterações. Em termos globais, a proporção de patrões mais do que duplicou (de 2,6% para 5,8%); a de isolados (trabalhadores independentes) aumentou ligeiramente (de 16% para 19%), assim como a de trabalhadores por conta de outrem (de 65% para quase 70%). Mudanças mais importantes, na distribuição social e profissional, verificaram-se na população ativa feminina. A proporção de patroas (em cada categoria da população ativa dos dois sexos) passou de 10% para 26%; a de isoladas, de 22% para 46%; a de trabalhadoras por conta de outrem, de 35% para 45%. Ao invés, a parte das empregadas domésticas desceu consideravelmente, de 80% para 58%. As estatísticas do desemprego, pela sua relação direta com a conjuntura económica, nem sempre refletem estruturas e tendências sociais profundas. Sublinhe-se todavia que, ao longo de trinta anos e até à crise económica de 2008, o desemprego global nunca terá ultrapassado os 10% da população ativa (ao contrário do que se passou na maioria dos países da União Europeia). No entanto, decorrendo da crise financeira e económica nacional e internacional dos anos 2008/2009, o desemprego subiu a níveis quase inéditos em Portugal. No início de 2010, por exemplo, a taxa oficial era de 9,7%, com tendência para aumentar. Tendencialmente, a taxa de desemprego feminino é sempre superior à masculina (por norma, 15% a 20% superior); em períodos de crise económica e de maior desemprego, a diferença pode atingir os 50% a mais de mulheres desempregadas. Tendencialmente também, as taxas de desemprego afetam mais as populações jovens; os trabalhadores de ambos os sexos da indústria e dos transportes; as mulheres empregadas em serviços domésticos; os trabalhadores por conta de outrem com contrato a prazo; e os trabalhadores (homens e mulheres) sem grau de instrução ou apenas com o ensino básico. Note -se que, nos últimos anos (1991 a 2009), começa a tomar algum significado o «desemprego qualificado»: pessoas com um grau do ensino superior (em geral licenciatura) ou pós-secundário e quadros dirigentes e intelectuais. Os respetivos montantes poderão já ultrapassar os 20 000 a 36 000, cerca de 20 000 dos quais com licenciatura. Quanto ao tipo de contrato dos trabalhadores por conta de outrem, a maioria possui um contrato permanente ou um contrato sem prazo; e cerca de 12%

1 26

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 126

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

a 20% do total trabalha ao abrigo de contratos a prazo. Esta situação é muito oscilante, pois está na dependência direta e imediata da conjuntura económica. Os sectores ditos de «economia informal», de «economia paralela», de «mercado de trabalho ilegal», de «trabalho negro», de «trabalho sem contrato», etc., podem representar uma parte importante da força de trabalho e pesar, conforme a conjuntura, nos volumes de desemprego. No entanto, nada se sabe de seguro sobre estas realidades e as estimativas são tão díspares (oscilam entre 1% a 10% do total de trabalhadores por conta de outrem) que não vale a pena considerá-las. Os dados relativos à regulamentação coletiva de trabalho revelam, apesar de algumas oscilações, uma tendência para a integração: são cada vez mais os instrumentos de regulamentação negociados e mais elevado o número de trabalhadores atingidos. Nas duas últimas décadas anteriores à crise de 2008, regista-se também uma tendência, mau grado variações, para a diminuição de conflitos de trabalho, medidos estes pelo número de greves, de trabalhadores abrangidos e de dias de trabalho passados em greve.

PORTUGAL NO CONTEXTO EUROPEU

As comparações de Portugal com os restantes países da União Europeia revelam alguma consistência com outros indicadores demográficos, sanitários e educativos: assiste-se a uma aproximação, por parte de Portugal, dos padrões europeus relativamente às estruturas sociais. As taxas de atividade masculina e feminina, gerais ou por grupos etários, são semelhantes, exibindo Portugal valores acima de certos países e abaixo de outros. O mesmo é válido para as taxas de emprego. Já a taxa anual de variação de emprego revela algumas realidades interessantes. Entre 1960 e 1990, as médias das taxas de variação anual foram, em Portugal, inferiores à média da União, sendo mesmo as mais baixas de todas, país a país. Recorde-se que, neste primeiro período, se assistiu ao maior fluxo de emigração de Portugal para a Europa. A partir de 1987 e até ao final dos anos de 1990, Portugal exibe taxas anuais, na maior parte dos casos, superiores à média europeia. O país coloca-se entre aqueles que exibem os mais altos valores: Espanha, Holanda, Irlanda, Luxemburgo e Portugal. A estrutura do emprego, por sectores de atividade, apresenta uma diferença marcante entre Portugal e a maioria dos países europeus. Assim, Portugal tem a segunda maior taxa de emprego agrícola (13,7% do emprego total), depois da Grécia (17,7%). A média europeia é de 4,6% e quase todos os países se situam abaixo dos 6%. A taxa de emprego na indústria (36%) é a mais alta de todas

1 27

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 127

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

(média europeia de 29,5%), encontrando -se todos os países entre os 20 e os 30%. A taxa de emprego nos serviços (50,2%) é a mais baixa da União (média de 65,7%), sendo que todos os países apresentam valores entre os 60% e os 75%. Por outro lado, as taxas de emprego feminino na agricultura e na indústria são, em Portugal, as mais elevadas da União Europeia. A evolução do desemprego, ao longo das décadas de 1980 e 1990, revela que Portugal se situou entre os quatro com mais baixas taxas (Áustria, Holanda, Luxemburgo e Portugal) sempre com valores marcadamente inferiores às médias da União. Estas últimas, na década de 1990, estiveram quase sempre acima dos 10%, o que nunca se verificou em Portugal nem naqueles três outros países, até à crise de 2008. Pelas outras características do desemprego (género, idade, duração, sector de atividade e profissão), não se nota um comportamento específico de Portugal. Finalmente, as remunerações dos assalariados: quaisquer que sejam os termos de comparação, Portugal ocupa sempre, destacado, o último lugar. Muito longe dos países mais ricos e das médias europeias; e ainda longe da Espanha e da Grécia. Os valores portugueses, em 1998 (em Paridade de Poder de Compra), ficam-se em 63% da média europeia, 71% da Espanha, 91% da Grécia e 57% da França. Esta situação é já muito diferente da verificada ainda em 1980. Nessa altura, os vencimentos dos portugueses, trabalhadores por conta de outrem, não ultrapassavam os 45% da média europeia; 67% da Grécia; e 41% da França. A remuneração média horária do trabalhador manual na indústria mostra igualmente Portugal em último lugar, com valores que podem ser um terço ou metade dos outros países, incluindo mesmo a Espanha e a Grécia. É, aliás, possível que as diferenças de salário entre os vários países sejam mais marcadas nos grupos profissionais menos qualificados. Um indicador frequentemente utilizado (ganhos médios mensais líquidos de um casal de operários manuais, na indústria transformadora, com dois salários, sem filhos) revela uma grande distância entre Portugal e os restantes países: 48% da Grécia, 40% da Espanha e 34% da França.

O ESTADO SOCIAL

O Estado de proteção social universalizou-se. Este fenómeno foi particularmente visível no caso da segurança social, onde, por exemplo, o número de pensionistas passou de 56 000, em 1960, para 2,5 milhões, em 2000 e quase 3 milhões em 2009, contando com os reformados da Caixa Geral de Aposentações

1 28

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 128

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

(funcionários públicos). Tenham ou não contribuído durante a sua vida de trabalho, todos os cidadãos têm direito a uma reforma de velhice, assim como a pensões de invalidez ou sobrevivência. Este processo de generalização da proteção social iniciou-se ainda antes da revolução política de 1974. Com efeito, nos últimos anos da década de 1960 e nos primeiros da de 1970, os governos de Marcello Caetano tomaram iniciativas no sentido de alargar o número de contribuintes e de beneficiários do sistema. Nessa altura, uma grande parte de idosos rurais e de empregadas domésticas foi incluída no rol de beneficiários. Depois disso, já em regime democrático, quase todos os governos, por sinceridade programática ou por preocupação eleitoral, tomaram decisões tendentes a aumentar o número de pessoas abrangidas, assim como assumiram a criação de novos mecanismos de apoio às populações ou a segmentos especiais (deficientes, mulheres, jovens, desempregados, reformados, famílias numerosas, etc.). Já em meados da década de 1990, foi criado o «rendimento mínimo garantido», que, ao fim de cinco anos, abrangia cerca de 145 000 famílias, num total de perto de 430 000 pessoas. Desde 2002, por razões também de ordem política e ideológica, o «rendimento mínimo garantido» foi legalmente modificado, passando a designar-se por «rendimento social de inserção», mas, mau grado algumas diferenças de conceção e de organização, mantém as características essenciais de um dispositivo deste género, tal como é conhecido em vários países europeus. Desde 2008, devido à situação de crise financeira e económica, o número de famílias e de pessoas a beneficiar destes apoios extraordinários tem aumentado. Tal como noutros países, também em Portugal surgiram os primeiros problemas financeiros com os sistemas de segurança social pública. O crescimento muito acelerado do sistema, associado ao envelhecimento rápido da população, faz com que seja necessário que o Estado, há já bastantes anos, cubra anualmente o défice do sistema. As transferências do Estado, por via do orçamento, para a Segurança Social, a fim de compensar a insuficiência de receitas correntes do sistema, podem atingir valores próximos do 4% do produto nacional. Atualmente, o número de ativos empregados (a descontar para a Segurança Social) é de 1,7 por cada pensionista. Trata-se do rácio mais baixo de toda a União Europeia.

A EDUCAÇÃO E A SAÚDE

A escolaridade universalizou-se. O analfabetismo juvenil terminou, sobrando apenas alguns analfabetos adultos e idosos. Dos quase 40% de analfabetos em 1960, passou-se a uma taxa próxima dos 8%. Estas são taxas de analfabetismo

1 29

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 129

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

absoluto. As taxas de analfabetismo funcional ou de iliteracia relativa são desconhecidas com rigor, embora estimativas de investigadores e das Nações Unidas apontem para valores que rondam os 35% a 50%. A expansão do sistema escolar atingiu grandes proporções, tendo chegado, pela primeira vez na história do país, a todo o território e a toda a população. A escolaridade obrigatória (de 9 anos) é efetiva desde a década de 1980 (a escolaridade de 12 anos a partir de 2009). Apesar das elevadas taxas de repetição, insucesso e abandono, quase toda a população juvenil até aos quinze anos está escolarizada. Em 1960, o número de estudantes a frequentar o 2.º ciclo do ensino secundário era ligeiramente superior a oito mil; é atualmente de cerca de 380 000. A expansão do sistema de ensino superior foi igualmente muito visível, dadas as suas reduzidas dimensões prévias: entre 1960 e 2010, a população estudantil a frequentar estabelecimentos de ensino superior passou de 26 000 para mais de 400 000. De notar, finalmente, que a população dos ensinos básico e secundário, depois de notável crescimento nas décadas de 1970 e 1980, tem vindo a diminuir de modo flagrante: no 1.º ciclo do básico, para metade; no 2.º ciclo do básico, 60% do que era em 1985; e no 3.º ciclo do básico, 80% do que era em 1992. No secundário, registou-se primeiro um aumento de enormes dimensões – de 8000 em 1960 para mais de 400 000 na década de 1990 – mas também se verificou, depois, um decréscimo, a partir de 1997. Desapareceu, finalmente, o analfabetismo na sociedade portuguesa e parece estar garantida a escolarização universal. Contudo, a formação média da população é ainda relativamente baixa, quando comparada com outros países europeus. Universalizou-se também o sistema de saúde pública. Após uma evolução lenta, já visível durante os anos de 1960, os sistemas de saúde conheceram uma expansão rápida que garantiu a cobertura do território e parece estar ao alcance de toda a população, independentemente das regiões e das localidades, das profissões e das condições sociais. No final da década de 1970, foi criado o Serviço Nacional de Saúde, mas, já antes disso, cerca de dois terços da população se encontravam abrangidos por um qualquer sistema de apoio à doença. O decréscimo da mortalidade infantil, assim como o aumento da esperança de vida, sem falar na diminuição das taxas de mortalidade por doença contagiosa (incluindo a tuberculose), atestam as consequências da expansão dos serviços de saúde pública. Um indicador pode refletir adequadamente esta evolução: a assistência ao parto, por exemplo, passou de 15% de todos os nascimentos em 1960, para 99.9% em 2009. A expansão dos sistemas de proteção social foi, desde o final da década de 1960, contínua e rápida, tendo sido acelerada por efeitos da revolução política,

13 0

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 130

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

primeiro, e do funcionamento da democracia, depois. Há, todavia, problemas e desequilíbrios que acompanharam esta veloz universalização. Em primeiro lugar, as relativamente baixas prestações sociais. Os montantes das pensões mínimas situam-se à volta dos 250,00 € mensais para as reformas por velhice e dos 200,00 € para as de sobrevivência. Por outro lado, sob o efeito conjugado do envelhecimento da população e do reduzido número de ativos por pensionista, anteveem-se dificuldades financeiras a relativo breve ou médio prazo. No sector da saúde, apesar dos notórios progressos verificados, existem muitas situações de atraso e ineficiência, constantemente debatidas na imprensa e na atividade política. As «filas de espera» para cirurgia ou consulta, reconhecidas pelos próprios poderes públicos, podem representar, em certos casos, muitos meses ou anos de demora. Ora, já nem sequer se trata de falta de equipamento, de hospitais ou de pessoal profissional. Com efeito, o número de médicos por habitante, por exemplo, é hoje em Portugal superior ao de vários países europeus. Finalmente, no sistema educativo, mau grado, também, uma formidável expansão do sistema, a verdade é que as taxas de abandono e de repetência são muito altas (o que implica um elevado desperdício de recursos) e a eficiência dos estabelecimentos educativos é, com frequência, posta em causa. No caso do ensino superior, por exemplo, o sistema público foi de tal modo incapaz de responder à procura dos estudantes, que foram criadas, em quinze anos, dúzia e meia de universidades privadas e umas dezenas de escolas superiores igualmente privadas. Portugal é, na União Europeia, o país com maior sector privado no ensino superior: mais de um quarto dos estudantes frequentam instituições privadas.

OS CUSTOS E OS RECURSOS

A medíocre eficiência do Estado de proteção social, medida tanto pelos baixos montantes de prestações pagas aos beneficiários da segurança, como pelas disfunções dos sistemas de saúde e educação, fica certamente a dever-se à falta de organização e experiência, mas também a um real défice de recursos. Apesar de orçamentos elevados, o défice da saúde (dívidas do sistema de saúde às farmácias, aos laboratórios, à indústria farmacêutica, aos hospitais e aos médicos) cifrava-se, no princípio de 2002, em cerca de dois mil e quinhentos milhões de euros (2 500 000 000,00 €). Em 2009, o défice era ainda muito elevado, não se sabendo exatamente a quanto ascendia: a contabilidade pública e as regras orçamentais da União Europeia têm conseguido «disfarçar» uma parte do défice

13 1

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 131

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

com a saúde. O que pode parecer paradoxal. Com efeito, a despesa pública com a chamada «função social do Estado» atinge hoje níveis iguais ou superiores aos que se conhecem em países europeus desenvolvidos. Com a saúde e a educação, o Estado português gasta uma percentagem do produto nacional superior à de vários parceiros da União. Nos anos de 1960, Portugal gastava, por ano, com a educação e a saúde, entre 1% e 1,5% do produto nacional, muito longe de qualquer outro país europeu. No final dos anos de 1990, esta proporção subiu a mais de 5,5% para a educação e mais de 4,5% (sem contar a despesa privada com um e outro sectores). Em 2008, a despesa total com a saúde, pública e privada, ascendia a 10,3% do PIB, contra 8,8% no início da mesma década. Esta taxa é, em Portugal, superior à da média europeia. O problema parece, pois, residir na escassez do produto. O sector da educação ilustra bem esta realidade. Segundo os inquéritos regulares da OCDE («Education at a glance», Paris, vários anos), os professores portugueses do ensino básico e secundário são, em termos absolutos e em paridades de poder de compra, os que auferem os mais baixos vencimentos. Em contrapartida, estão à cabeça na percentagem do produto que representa a massa salarial que lhes é distribuída.

NÍVEIS DE VIDA E BEM-ESTAR

De qualquer modo, estas últimas quatro décadas constituem um período de aumento progressivo e quase constante do bem-estar coletivo e individual. Este progresso deve ser cotejado com a situação de real atraso em que o país se encontrava em 1960. Nesse ano, segundo os Censos oficiais, dispunham de água canalizada 28% das habitações do país; duche ou banho, 19%; instalações sanitárias, 42%o; eletricidade, 41%; e ligação a esgoto, 38%. Quarenta anos mais tarde, estes valores são, respetivamente: 87%, 82%, 89%, 98%, e 91%. Numa primeira fase, até meados dos anos de 1980, o relevo vai para a instalação das infraestruturas de equipamento coletivo de base: eletricidade, água, esgotos, etc. A fundação do Estado democrático e a organização de eleições, nomeadamente para as autarquias locais, tiveram efeitos no ritmo de construção das infraestruturas coletivas. Muitos dos serviços públicos de água, eletricidade, iluminação, esgotos, etc., só chegavam, nos anos de 1960, a menos de metade dos agregados familiares, enquanto hoje é praticamente a totalidade que deles beneficia. Depois, entre os anos de 1980 e o final dos anos de 1990, chegou o ciclo dos bens de consumo individual e doméstico. Telefone, televisão, electrodomésticos, automóvel, aparelhagem de música e de fotografia, computadores

13 2

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 132

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

e telemóveis tiveram notável expansão e generalizaram-se à maior parte dos agregados familiares, sendo que alguns (televisão e telefones, por exemplo) estão presentes em quase 100% dos lares. Quanto aos automóveis, cerca de 60% dos agregados familiares possuem um. Finalmente, a propriedade de casa própria atingiu níveis raros na Europa (mais de 65% dos agregados familiares são proprietários da casa onde residem). Este fenómeno não deve ser olhado apenas à luz do progresso económico e da prosperidade dos Portugueses. Na verdade, países com rendimentos muito superiores não ostentam valores equivalentes. Quer isto dizer que há outros fatores sociais, institucionais, tradicionais e outros, que influenciam o andamento deste indicador. Em Portugal, a débil situação do mercado de aluguer, assim como o sistema de rendas de casa (congeladas ou semicongeladas), é, em parte, responsável por este surto de propriedade de casa própria. A habitação é adquirida através de contratos de longa duração (até 25 e 30 anos), enquanto o Estado, pelo seu lado, subsidia bonificações da taxa de juros para os agregados com mais necessidades e sobretudo para os casais jovens.

ECONOMIA E SOCIEDADE

Todos estes fenómenos são conhecidos e ocorreram noutros países. Com eles, nasceu a sociedade de consumo de massas e desenvolveram-se as classes médias. Ao mesmo tempo, alargaram-se as desigualdades sociais. Segundo os dados do EUROSTAT, Portugal é o país onde as desigualdades sociais e económicas são mais marcadas; é também aquele em que o maior número de famílias se situa abaixo da «linha de pobreza», isto é, menos de 50% do rendimento médio nacional. Todos os grupos sociais conheceram progressos e aumentos de rendimento indiscutíveis, mas a distância entre os rendimentos superiores e os inferiores aumentou. É possível que a modernização rápida tenha esses efeitos. Mas também é provável que, em cada sociedade, fatores institucionais, políticos, culturais e outros, influenciem a distribuição social de rendimento, de tal modo que a maior ou menor desigualdade não dependa apenas do nível de rendimento. Utilizando os coeficientes de Gini, usados pelo Eurostat (serviço de estatística da União Europeia), verifica-se que um país com menor rendimento por habitante do que Portugal (a Grécia), tem índices de desigualdade inferiores; enquanto outros países muito mais desenvolvidos (como o Reino Unido) têm índices semelhantes aos portugueses. Sem falar nos Estados Unidos, muito mais desenvolvidos e muito mais desiguais.

13 3

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 133

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Com exceção de três anos até à crise (1975, 1984 e 1993 e 2009) e todos depois disso, os Portugueses conheceram um aumento consistente do produto nacional e do rendimento por habitante. A preços constantes, o rendimento nacional per capita aumentou, de 1960 a 2009, mais de cinco vezes. As remunerações do trabalho aumentaram quase na mesma proporção. As taxas de variação anual do produto nacional e do produto nacional per capita tiveram oscilações, registando, com exceção dos três anos negativos citados, valores muito altos no período que vai de 1962 a 1972. Período de crescimento sólido, apesar de inferior àquele, foi também o de 1986 a 1992. As taxas de variação anual das remunerações do trabalho per capita confirmam esta evolução: o mais consistente crescimento é o do período que vai de 1961 a 1974, com valores superiores aos do crescimento do produto. São oito os anos em que é negativa a sua evolução: 1976 a 1979, 1983 a 1985 e 1994. Depois de 1974, são poucos os anos em que o crescimento, por habitante, das remunerações do trabalho, é superior ao do produto: 1974, 1981, 1982, 1989, 1991, 1992 e 1993. Os valores máximos de crescimento são os seguintes: produto nacional, 10,5% em 1971; remunerações do trabalho, 14,3% em 1974; produto por habitante, 11% em 1971; remunerações do trabalho por habitante, 11,9% em 1970. A percentagem dos ordenados e salários no rendimento disponível (por outros termos, a parte do trabalho no rendimento nacional) conheceu também oscilações previsíveis, não só de acordo com a evolução da conjuntura económica, mas também em função da situação política. Os valores do final da década de 1990 situam-se à volta dos 46%, muito semelhantes aos do início da década de 1960 (47%). De 1960 a 1974, a tendência foi de subida gradual, com uma aceleração brusca em 1974, altura em que a taxa chegou aos 60,1%. As consequências imediatas da revolução política e social podem ver-se nesta drástica mutação na distribuição do rendimento. O seu valor máximo foi atingido em 1975 (62,3%), para depois decrescer de modo consistente até 1987. A partir de então, voltou a assistir-se a uma lenta recuperação, mas ainda longe dos níveis anteriores. Esta curva acompanha, previsivelmente, a evolução política e social do país. E não deixa de ser digno de nota o facto de a percentagem do trabalho ser, em 1999, praticamente igual ao que era em 1960. O salário mínimo nacional para a indústria e serviços, instituído em 1974, revela uma interessante evolução. A preços correntes, passou de 3300 escudos para cerca de 60 000 em 1999. Mas é a preços constantes que se observa uma realidade nem sempre visível: é, na primeira década do século XXI, inferior ao que era em 1974, sendo que durante mais de 30 anos se situou a níveis inferiores aos do início desta medida em 1974. O valor deste indicador está hoje

13 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 134

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

ligeiramente abaixo do que estava na década de 1970. Subiu de forma gradual até 1980, desceu de modo drástico até 1984 (uma quebra superior a 25%), para depois recomeçar uma evolução ascendente, muito lenta, até ao fim desta década. Durante alguns anos registou uma tendência permanente para a subida, mas sempre abaixo dos valores da década de 1970. Depois da crise financeira, da recessão de 2008 e anos seguintes, o valor real deste salário mínimo voltou a decrescer.

RENDIMENTOS

A evolução, de 1981 a 1995, das receitas dos agregados familiares, mostra, a preços constantes, uma subida consistente, proporcional à do produto. Todavia, a observação da sua repartição por categoria socioeconómica revela diferenças importantes. Apesar do crescimento real de todas, algumas cresceram muito menos e outras distanciaram-se mais dos valores nacionais. As famílias de produtores agrícolas e de assalariados rurais estão, em 1995, mais longe da média nacional. As famílias operárias (das indústrias de transformação), que em 1981 se encontravam acima da média nacional, estão agora ligeiramente abaixo. Também viram piorar a sua situação, em relação à média nacional, o pessoal administrativo (125% da média nacional contra 130%) e as profissões liberais (208% da média nacional contra 242%). Conheceram um melhoramento real e relativo os quadros técnicos, científicos e de direção, assim como os empresários não agrícolas. Entre 1995 e 2005, estas tendências confirmaram-se. O rendimento médio de todas as famílias, a preços constantes e em poder de compra real, aumentou sempre, dando todavia sinais de abrandamento desde 2003 até à atualidade. Quanto à proveniência das receitas dos agregados familiares, sublinhe-se que o trabalho por conta de outrem está em ligeira diminuição; tal como o trabalho por conta própria, o rendimento de propriedades e as remessas dos emigrantes; em crescimento relativo estão a segurança social, os seguros e as receitas em natureza. Os valores das remunerações e dos ganhos mostram oscilações, refletindo a conjuntura económica e a situação social e política. A evolução dos ganhos médios mensais por sector de atividade, por exemplo, revela que, entra os quatro grandes sectores de atividade, só a «banca e seguros» está nitidamente acima da média nacional e não cessou de aumentar a sua distância relativamente aos outros sectores. Abaixo da média nacional, encontram-se a agricultura e pesca,

13 5

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 135

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

a indústria transformadora e o comércio. Entre estes, a agricultura desce também em termos relativos, a indústria estabiliza e o comércio tem uma ligeira melhoria. Se prestarmos atenção aos níveis de qualificação, verifica-se que foram os quadros superiores e os quadros médios que mais viram aumentar, em termos absolutos e relativos, os seus ganhos médios mensais e que os profissionais qualificados e não qualificados foram os que sentiram menores melhoramentos. Uma vez mais, foi na banca, nos seguros e no comércio que os ganhos mais subiram, em todos os níveis de qualificação, e na agricultura e na indústria que menos subiram. Os ganhos médios mensais das mulheres, segundo o sector de atividade e os níveis de qualificação, revelam que a sua situação registou aumentos absolutos a preços constantes e ligeiras melhorias, na última década, relativamente às médias nacionais e aos homens. A percentagem dos ganhos médios mensais das mulheres (em todos os sectores de atividade e em todos os níveis de qualificação) era, em 1986, de 80% da média nacional (homens e mulheres incluídos); 79% em 1991; e 82% em 1996. Até meados da primeira década do século XXI, esta diferença entre os ganhos das mulheres e os dos homens manteve-se.

PRODUTOS NACIONAIS COMPARADOS

As comparações com os restantes catorze países da União Europeia permitem observações interessantes. No final da década de 1990, o produto por habitante, em Portugal, ainda é apenas de três quartos (75,3%) da média europeia. Mas era, na década de 1960, de menos de metade (45,2%). Em 1960, e até grande parte da década de 1980, Portugal era, no que diz respeito ao produto por habitante, o último país. Até ao princípio dos anos 2000, Portugal estava a diminuir a sua distância em relação à Europa. A aproximação da Europa, um dos objetivos políticos mais proclamados por quase todos os partidos, foi sendo feita de forma gradual: em quarenta anos, foram recuperados, na exclusiva perspetiva do produto por habitante, cerca de trinta pontos percentuais, num atraso que se mediria antes em 55%. No entanto, ao longo da presente década, Portugal viu de novo aumentar a distância que o separa das médias europeias Num período de quarenta anos (1960-2000), Portugal registou, entre os quinze primeiros membros da Comunidade ou da União, a segunda mais elevada taxa de crescimento do PIB por habitante (a seguir à Irlanda). Se considerarmos apenas as três primeiras décadas (1960 a 1990), então Portugal ocupa o primeiro lugar. Nas décadas de 1960 a 1980, Portugal registou médias anuais

136

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 136

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

de crescimento do produto superiores às da Europa dos quinze. Na década de 1990, houve dois anos em que o crescimento português foi inferior: 1993 e 1994. Na década de 1990, as taxas de crescimento anual em Portugal, tal como em quase toda a Europa dos quinze, abrandaram nitidamente. Para Portugal, anuncia-se mesmo, para os anos que vão de 2000 a 2008 para o triénio de 2000 a 2002, uma taxa inferior à europeia. Neste período, a grande exceção é a da Irlanda, com elevadas taxas de crescimento (superior a 10% em 1997), duas a três vezes superiores às de Portugal e três a quatro vezes superiores às da União Europeia. No consumo privado por habitante (em PPC), Portugal detinha, em 1960, o último lugar (46,3% da Europa dos quinze), seguido da Grécia (57,3%) e da Espanha (63,4%). A evolução, até 1999, é paralela à do produto, passando Portugal a 74,4%. Apesar disto, mantém o último lugar, dado que na Grécia o consumo privado representa 77,5% do da União e em Espanha 79,2%.

A SOCIEDADE GLOBAL

As mudanças mais socioeconómicas foram acompanhadas de transformações em todas as outras áreas: políticas, jurídicas, culturais, etc. Assistiu-se ao incremento da formalização jurídica das relações sociais. A integração da população ativa, o crescimento económico, a consolidação do capitalismo e o desenvolvimento do mercado tornaram cada vez mais necessários o direito em geral e os contratos em particular. O regime democrático e a escolarização ajudaram os cidadãos a tomar consciência dos seus direitos e a procurar formas legais de os defender e garantir. Assim, verificou-se um enorme crescimento da litigância entre 1960 e 2000, mas sobretudo entre 1975 e 2000. O número de processos iniciados anualmente aumentou cerca de três vezes. Os números de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público por habitante aumentaram, cada um, cerca de 4,5 vezes; o de advogados aumentou de oito vezes. Os números de processos iniciados e findos, anualmente, por magistrado, passaram aproximadamente para metade (1000 para 500); mas o de processos pendentes por magistrado manteve-se a níveis semelhantes. Na última década do século XX e na primeira do século XXI assistiu-se ao desenvolvimento de uma permanente «crise de Justiça». A procura aumentou muito, mas o sistema não se adaptou facilmente. Um complexo sistema de poderes corporativos parece estar a impedir que a Justiça portuguesa se modernize e atinja níveis de eficácia mais razoáveis. Os atrasos da Justiça (a duração excessiva dos processos) tornaram-se um facto reconhecido por todos e, de resto, frequentemente condenados pelo Tribunal Europeu. Por

13 7

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 137

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

outro lado, têm-se sucedido casos de corrupção, ou, pelo menos, tem-se desenvolvido a denúncia de casos de corrupção, perante os quais a Justiça parece algo ineficiente. Eis uma situação que tem contribuído para agravar a alegada «crise da Justiça». A nova configuração da cidadania, em resultado da fundação do Estado democrático, implica as liberdades públicas, a afirmação dos direitos individuais e respetivas garantias e a entrada em vigor dos direitos políticos. Abriu-se a possibilidade à participação política, social e cívica. Pela primeira vez na sua história, todos os Portugueses, homens e mulheres, civis ou militares, letrados ou analfabetos, profissionais ou desempregados, podem eleger o Chefe de Estado, os representantes no Parlamento nacional, os dirigentes locais e as assembleias autárquicas representativas. Com as liberdades e sob a influência de uma sociedade cada vez mais aberta ao mundo, liberalizaram-se os costumes, progrediu a permissividade e afirmou-se a laicização da sociedade e dos comportamentos. A Igreja, as Forças Armadas e os grandes corpos de Estado têm hoje menos influência na sociedade. Ou antes, a sua influência é hoje partilhada e discutida, eventualmente contestada. Não só a Igreja vive numa sociedade diferente, como ela própria mudou. O Concílio Ecuménico Vaticano II teve indiscutíveis repercussões na Igreja portuguesa. Esta, até meados dos anos de 1960, vivia em muito estreita ligação com o governo. Depois do Concílio, muitos católicos portugueses sentiram-se estimulados a debater as questões sociais, políticas e coloniais, como raramente o fizeram antes.

UMA SOCIEDADE ABERTA E PLURAL

A sociedade conheceu um processo de diversificação cultural, étnica e religiosa, acompanhado pelo estabelecimento do pluralismo político. Pela primeira vez, desde há vários séculos, a Igreja Católica vive em coexistência (e competição) com outras igrejas, outros cultos e outras religiões. As religiões islâmicas, hindus e animistas têm atualmente milhares de adeptos e as suas formas de culto são livres e públicas. As igrejas protestantes e reformadas estabelecidas abriram as suas portas, sem receios nem olhares indiscretos. Outras formas de culto cristãs (incluindo as vulgarmente designadas «seitas», com origem nos Estados Unidos e na América Latina) conheceram, em duas décadas, um êxito seguro, reclamam dezenas de milhar de fiéis, adquiriram edifícios de culto e realizam as suas reuniões em locais públicos. Nas ruas das cidades e até nas explorações agrícolas e nas pequenas vilas ouve -se falar uma grande variedade de línguas

13 8

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 138

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

(latinas, creoulas, africanas, eslavas, etc.), o que é uma novidade na história recente do país. Este clima de pluralismo linguístico e religioso, em grande parte resultado da descolonização e da imigração, acompanha a abertura política efetuada e a diversidade partidária inaugurada em meados dos anos de 1970. Ao mesmo tempo, as influências da cultura de massas de uma sociedade da era da globalização exercem-se quotidianamente e sem entraves através da televisão, do cinema, da música, das escolas, da imprensa, das férias no estrangeiro ou nas férias de estrangeiros em Portugal, da Internet, etc. Pertencem ao passado os tempos da sociedade fechada, homogénea, de informação controlada, de cultura tradicional e de etnia única. O novo clima democrático, estabelecido depois de 1974, e ultrapassado que foi um agitado período revolucionário, teve consequências em todos os planos da sociedade: alteraram-se as relações sociais e funcionais nas empresas, nas organizações e nas instituições. Pretendeu-se, ora com candura, ora com malícia, que toda a sociedade se regesse por princípios, regras e métodos democráticos (eventualmente colegiais) de decisão. Despertaram-se direitos e criaram-se hábitos de participação e consulta, por vezes de modo pacífico, por vezes em conflito. Em muitas instituições públicas, como as escolas, as universidades, os hospitais e outras, adotaram-se sistemas destinados a promover a participação e a consulta dos cidadãos e dos utentes. Desenvolveram-se gradualmente as relações sociais contratuais e negociadas. Assistiu-se ao declínio dos princípios da autoridade indiscutível do Estado e dos poderes constituídos, não sem que, muitas vezes, haja quem pense que mesmo a autoridade democrática é posta em causa. A reverência e a subserviência, que, por atavismo ou medo, estiveram tão presentes durante mais de metade do século XX, deram pouco a pouco lugar a uma sociedade, não necessariamente de igualdade de oportunidades, mas de condições iguais. A partir dos anos de 1970, sobretudo depois de instaurada a democracia, tornou-se visível o crescimento das ações, dos mecanismos e das instituições de defesa de direitos e de representação: sindicalismo, defesa do consumidor, proteção dos utentes, defesa de interesses específicos, etc.. Assinale-se que, depois de um crescimento muito significativo do sindicalismo (em número de associados, em atividades e em importância política), se assistiu, a partir do final dos anos de 1980, a um real declínio deste movimento. O que não é muito diferente do que vai acontecendo noutros países europeus e está relacionado com o desemprego crónico, a imigração, o emprego precário, os métodos da «economia paralela», a diversificação das classes trabalhadoras e a diminuição de importância da população operária industrial tradicional. Após um período de grande conflitualidade social e política (durante os anos da revolução e nos

139

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 139

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

que se seguiram imediatamente), a concertação social e a negociação coletiva têm-se imposto como métodos predominantes. As greves e outros conflitos laborais tornaram-se raros, fenómeno a que não deve ser estranho o declínio do recrutamento sindical. Além disso, os principais conflitos laborais ocorrem atualmente no sector público ou no que dele resta (transportes e Administração Pública, designadamente). Aliás, um indicador do ambiente de concertação é, por certo, o clima relativamente pacífico em que se processou a reprivatização das empresas e do sector público. A um sector público muito vasto e que já era do Estado antes da revolução, veio acrescentar-se, entre 1974 e 1976, um enorme volume de empresas que constituíam o mais importante da economia do país. A quase totalidade da banca, uma grande parte dos seguros, os transportes públicos (rodoviários, aéreos, marítimos, ferroviários), a produção e a distribuição de eletricidade, as telecomunicações, a siderurgia, a fundição, o cimento, os adubos, os petróleos, o gás, a televisão, a rádio, os principais jornais, uma parte importante da metalo-mecânica, uma fração considerável da construção e da reparação naval, etc. Ora, a partir do final da década de 1980 iniciou-se um vasto programa de reprivatização de empresas e de abertura ao capital privado de sectores anteriormente em monopólio estatal, o que foi levado a cabo pelos governos de dois partidos diferentes, sem que tal processo, mau grado polémicas intensas, tenha criado conflitos políticos ou aberto ruturas sociais. A reprivatização da economia e das empresas só foi possível depois de revista a Constituição, que a interditava. A revisão foi feita na segunda parte da década de 1980, graças à colaboração dos dois maiores partidos, um da esquerda e um da direita: o PSD (Partido Social Democrata), então no governo, e o PS (Partido Socialista), na oposição. As medidas práticas que tornaram a privatização efetiva foram iniciadas pelo PSD, de 1989 a 1995; e continuadas, sem quebra de ritmo, pelo PS, de 1995 a 2002. Este clima de relativo equilíbrio, baixa conflitualidade e de um razoável crescimento virá a ser posto em crise a partir do fim da primeira década do século XXI, com as dificuldades económicas e financeiras internacionais. Aquele clima e os dispositivos acima referidos não são, todavia, fonte de participação cívica e política. Pelo menos não parecem responder às expectativas que o legislador e as autoridades neles depositavam. É muito difícil obter a participação dos pais nas escolas básicas e secundárias. A associação das empresas e de outros interesses à condução da vida universitária é muito débil. A participação das autarquias e das associações privadas nos conselhos «consultivos» e «gerais» de várias instituições públicas (como os grandes hospitais, por exemplo) é praticamente inexistente, apesar de estarem preenchidas as condições legais para tal fim. A associação dos consumidores e dos utentes a toda a espécie de

14 0

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 140

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

serviços públicos é, quando existe, rara e frágil. A abstenção eleitoral é talvez um indicador do clima geral de participação. Depois de, nas décadas de 1970 e 1980, se terem registado em Portugal altíssimas taxas de participação eleitoral, a abstenção tem vindo a crescer significativamente: de modo mais rápido, aliás, do que em todos os outros países membros da União Europeia. Nas eleições mais competitivas, as legislativas e as municipais, a abstenção atingiu, nos últimos anos, os 40%. Nas presidenciais e nas europeias, situa-se, respetivamente, perto dos 50% e dos 60%. Com a fundação do Estado democrático, exerceram-se pressões em toda a sociedade para que a democratização fosse real em todas as atividades coletivas e não apenas na vida política. Com relativa rapidez, as formas de paternalismo, de despotismo burocrático, de secretismo da Administração Pública, de segregação social e de favoritismo foram sendo reduzidas. A consciência dos direitos de cada um e a certeza da igualdade perante a lei foram sendo reais. Comparando a situação de hoje com a de há quarenta anos, é fácil concluir que a participação política, cívica e social aumentou muito consideravelmente. Mas tal facto dever-se-á sobretudo aos efeitos da fundação do regime democrático. Se se olhar para um período mais recente, dez a vinte anos, então as conclusões deverão ser diferentes. Na verdade, tem-se assistido a um declínio muito marcado da participação social e cívica, designadamente nos clubes e associações locais e de bairro, incluindo agremiações culturais, de entreajuda e desportivas, assim como no associativismo profissional. A nova cultura de massas, o crescimento dos aglomerados suburbanos, a separação e o afastamento dos locais de trabalho e residência, a expansão da televisão e outros fatores terão, em grande parte, destruído um velho tecido associativo. Por outras palavras, comparando a atualidade com os tempos de há quarenta anos, assistiu-se a dois processos aparentemente contraditórios: um aumento da participação e das respetivas instituições e associações nas atividades e nos sectores relacionados com a vida política, a defesa de interesses profissionais e económicos, o sindicalismo e o associativismo patronal; e uma diminuição visível das formas de participação social e cultural, de carácter voluntário, repousando em tradições locais. Certas formas de participação cívica e social regridem igualmente, sendo o exemplo do sindicalismo o mais evidente. Pelo que se sabe hoje, a taxa de filiação sindical é muito menor do que no final dos anos de 1970. A capacidade de mobilização e de recrutamento dos sindicatos não tem cessado de baixar. Entre outros fenómenos que estarão na origem desta tendência, haverá a mencionar a privatização de empresas e sectores públicos que terá constituído fator de desmobilização sindical. Há uma correlação estatística, pelo menos: as mais

14 1

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 141

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

enérgicas ações sindicais, incluindo greves, têm lugar no sector público. Além disso, o muito considerável fluxo de imigrantes causou, como em muitos outros países, uma relativa retração sindical. Os mercados paralelos de força de trabalho e os empregos precários influenciam no mesmo sentido. Outras formas de participação cívica e social, incluindo religiosa, tanto no plano nacional como local, têm tido uma evolução diferenciada. São vários os domínios em que são nítidos os progressos do associativismo e das consequentes intervenção, tentativa de influência e defesa de interesses: certas formas de voluntariado, ajuda internacional, ecologia e ambiente, expressão cultural, defesa do consumidor e do utente, etc. É conhecida a dependência de muitas novas organizações e associações dos financiamentos do Estado e da União Europeia. Como estas entidades, Estado nacional e União Europeia, pretendem ver legitimada a sua atuação, estabeleceram múltiplos mecanismos destinados a promover o associativismo e a participação. Os subsídios e o financiamento de projetos são as vias mais frequentes. De igual modo, é também conhecida a crescente dependência das associações desportivas dos financiamentos oficiais. O mecanismo é idêntico: o Estado, à procura de legitimação (eventualmente de apoio eleitoral), criou uma rede densa de apoios financeiros aos clubes desportivos e às suas atividades associativas e federativas, o que por vezes envolve também atividades comerciais, económicas e imobiliárias. Mas muitas associações antigas viram terminar a sua vida. Nas cidades com alguma história e nos bairros antigos, a maior parte das associações está de portas fechadas e é difícil, aos últimos «resistentes», conseguir colaboração ou mesmo associados. A «cultura de massas» arrefeceu o ânimo associativo de muitas pessoas. CONCLUSÕES

Em meados do século XX e até ao fim dos anos de 1960, Portugal exibia vários títulos que o distinguiam da maior parte dos países europeus ocidentais. O mais antigo e durável império colonial ultramarino, o único, aliás, ainda existente. A mais longa ditadura pessoal moderna. O país onde eram mais elevadas as taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil. A mais jovem população, com a mais elevada natalidade e a mais baixa esperança de vida à nascença. O menor número de médicos e de enfermeiros por habitante. O mais baixo rendimento por habitante. A menor produtividade por trabalhador. A maior população agrícola e a menor taxa de industrialização. O menor número de alunos no ensino básico e de estudantes no ensino superior. O menor número de pessoas abrangidas

142

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 142

30/03/15 10:14

P O P U L AÇÃ O E SO CI E DA DE

pelos sistemas de segurança social. A todos estes títulos, ainda se acrescentaria um último, em meados dos anos de 1970: o do país que conheceu, tal como foi reconhecida pelos seus protagonistas e consagrada na Constituição, a última «revolução socialista» na Europa, que não tardou a ser derrotada e que acabou, simplesmente, por ser uma revolução democrática. É possível que, em qualquer ranking hoje elaborado, Portugal ainda ocupe o último lugar, num ou noutro indicador que sintetize o grau de desenvolvimento. Mas já não é assim em todos os casos. E, sobretudo, os indicadores sociais estão hoje muito mais próximos das médias europeias. A sociedade portuguesa conheceu um processo de mudança de extraordinária rapidez, a que não faltaram acontecimentos políticos de primeira importância, como a rutura com o tradicional ultramar, uma revolução política e a fundação de um regime democrático. Além de outros fatores que terão responsabilidades nesta mudança, a abertura ao exterior (comércio livre, emigração, turismo e integração europeia) está na origem das mais importantes transformações, incluindo o crescimento económico dos anos de 1960. A rapidez da mudança, associada à posição periférica de Portugal e à pobreza geral de recursos, está entre as primeiras causas dos desequilíbrios entretanto criados. Ao fim de quarenta anos de evolução acelerada e de aproximação constante dos níveis de desenvolvimento europeus, o país encontra-se, no início do século XXI, a braços com uma sempre muito baixa produtividade, a falta de capital e de organização empresarial e a escassez de recursos financeiros públicos. Ora, as expectativas e as aspirações dos Portugueses são hoje, numa sociedade aberta e plural, as de qualquer cidadão dos mais desenvolvidos e ricos países europeus. A distância entre as aspirações e as capacidades de as satisfazer é seguramente um traço comum a todas as sociedades. No entanto, em Portugal, essa clivagem é mais marcada do que em qualquer outro país da Europa Ocidental. Pela primeira vez na sua história recente, a vida económica, social e política portuguesa está profundamente ligada à da Europa Ocidental, com a qual partilha os modelos de instituições e os padrões de desenvolvimento. Neste sentido, o país e a sociedade deixaram de ser diferentes. Esta verdadeira mutação realizou-se em pouco tempo, num período concentrado da história contemporânea, durante o qual a sociedade revelou uma plasticidade muito superior à que seria de esperar, depois de longas décadas de paternalismo autoritário. Todavia, os desequilíbrios e as insuficiências são ainda muito evidentes: nas estruturas produtivas, na eficiência dos sistemas de proteção social e no capital humano e social. De qualquer modo, entre os fatores responsáveis pela mudança social, aquele que parece ter desempenhado o mais relevante papel de estímulo foi a abertura ao exterior.

143

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 143

30/03/15 10:14

PORMENOR DA IMAGEM DA PÁGINA 167

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 144

30/03/15 10:14

A CULTURA João Pedro George

OS INTELECTUAIS E A POLÍTICA (1960 -1974)

Na década de 1960 o Estado Novo continuou a olhar para a vida cultural portuguesa com grande desconfiança, privilegiando as manifestações que inequivocamente servissem para engrandecer os denominados «valores portugueses» e esforçando-se por desativar, ou mesmo anular e eliminar, as produções consideradas subversivas. Em 1960, ao mesmo tempo que comemorava, com um frenesi místico, a figura do Infante D. Henrique, símbolo por excelência da colonização portuguesa e ótimo pretexto para se afirmar a inalienabilidade dos territórios ultramarinos (os festejos do V Centenário da Morte do Infante decorreram entre 4 de março de 13 de novembro desse ano e legaram à paisagem lisboeta o Padrão dos Descobrimentos, em Belém), o regime continuava a mandar intelectuais para a prisão (dois anos antes, por exemplo, a 22 de novembro de 1958, a PIDE prendeu, entre outros, António Sérgio e Jaime Cortesão, elementos destacados da «oposição democrática», por terem colaborado na escrita e distribuição de documentos «subversivos» alusivos à proibição da vinda a Portugal de A. Bevan, político trabalhista inglês) e a expulsar outros das universidades. Na verdade, a cultura portuguesa da década de 1960, tendo sempre como pano de fundo a ausência de liberdade de pensamento, é essencialmente uma história de protestos e de proibições; de exigências e de intransigências; de transgressões e de repressões. É, por outras palavras, uma cultura em conflito e que vive ou se alimenta do conflito. Não só entre apoiantes e opositores ao regime, mas também entre os grupos constituídos no interior de cada uma dessas fações. Na realidade, é difícil perceber a cultura desse período sem ter em conta a sua fortíssima componente ou dimensão política, fosse como aparelho

1 45

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 145

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

propagandístico a favor do regime, fosse como instrumento de oposição contra o governo autoritário. Há dois acontecimentos que exemplificam nitidamente o ambiente então vivido (e que dão conta, também, de um certo predomínio do literário sobre as restantes manifestações culturais): o primeiro foi a polémica que, em 1962, envolveu um crítico neorrealista, Alexandre Pinheiro Torres, e um romancista dito existencialista, Vergílio Ferreira; o segundo foi o encerramento, em 1965, da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE). O contexto em que ambos os episódios devem ser entendidos não poderia ser mais complexo e turbulento: guerra colonial em três grandes frentes (Guiné, Angola e, em 1964, Moçambique), revoltas estudantis (com a proibição, em 1962, das comemorações do Dia do Estudante), encerramentos de universidades e associações, afastamento de professores, alguns deles com prestígio internacional (caso de Vitorino Magalhães Godinho, professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas entre 1960 e 1962, «convidado» a abandonar o cargo na sequência da posição adotada na crise académica de 1962), crescente emigração e exílio de intelectuais portugueses, manifestações de protesto (por exemplo, no 1.º de maio de 1962), greves por melhores salários, por melhor segurança social e pelo reconhecimento do direito à organização sindical, seguidas de confrontos violentos com as forças policiais, de espancamentos e de um agravamento da repressão, uma tentativa de golpe militar (o de Botelho Moniz), o assassinato de um ex-candidato à Presidência da República, Humberto Delgado, em fevereiro de 1965 (o corpo só viria a ser encontrado em abril desse ano). A polémica entre Pinheiro Torres e Vergílio Ferreira teve como rastilho a edição de Rumor Branco (1962), o romance de estreia de Almeida Faria, então um jovem totalmente desconhecido no meio literário. A obra, que ganhou um dos prémios da Sociedade Portuguesa de Escritores, inspirava-se no nouveau roman e beneficiava do alto patrocínio de um escritor de reconhecido prestígio, Vergílio Ferreira, que assinou o prefácio do livro. Assente numa linguagem experimentalista e defendendo implicitamente a autonomia da estética – o que significava, para a oposição mais aguerrida, um alheamento em relação à situação política e uma atitude complacente para com o colonialismo e com a ditadura –, o livro desagradou aos sempre atentos e vigilantes cultores do neorrealismo, que encaravam aquela literatura como um «parolar filosófico de alto nível», logo, ideologicamente «reacionária». Mais a mais, surgia em plena crise académica, a que maior repercussão teve na universidade (o que talvez explique o tom mais agressivo que a polémica a dada altura assumiu), e num período em que se estava a assistir ao desencadeamento dos movimentos de libertação nas

14 6

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 146

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

colónias africanas. O alvo principal, porém, não era o autor do livro: «O existencialismo nas letras portuguesas, sob a alta tutela de Vergílio Ferreira, está presentemente a viver um grande momento de euforia», escreveu Pinheiro Torres ao Jornal de Letras e Artes de 30 de janeiro de 1963, na crítica que dirigiu a Rumor Branco. Em vez de se debruçarem sobre os problemas coletivos da sociedade portuguesa, Vergílio Ferreira e Almeida Faria limitavam-se a falar das suas angústias pessoais, uma posição bastante mais cómoda que assumir os problemas do país e combater o fascismo. A acusação de indiferença (logo conivência) relativamente à «Situação» podia ter graves consequências para quem trabalhava no campo cultural. Como disse Luiz Pacheco no Diário Popular de 16 de agosto de 1979, escritor insuspeito de simpatizar com o regime, «quem não aderisse aos ditames da seita (uma mesa de café, quatro ou cinco pândegos a chuparem bicas, copos de água para olear a retórica, sempre a mesma conversa, e sempre os mesmos), era logo acusado de fascista, agente provocador, até pide». De facto, nas décadas de 1950 e 1960 verificava-se algo parecido a uma «hegemonia cultural da oposição», como, aliás, defendeu, ainda nesse período, Eduardo Lourenço, no livro Heterodoxia II (1967). Anos mais tarde, já depois do 25 de Abril, Lourenço reafirmaria a sua tese: «a partir da década de 1940, a esquerda intelectual domina culturalmente o panorama português. Será assim praticamente até à Revolução». Exemplo paradigmático dessa hegemonia marxista no campo intelectual era a extraordinária influência, nas universidades, da História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes, que estando «toda ela impregnada da visão marxista da cultura», não deixou, por causa disso, de se tornar o «livro de cabeceira da juventude estudantil de Portugal». Ainda segundo Lourenço, «o regime anterior, por mais orgânico que tenha sido na sua vontade de hegemonia cultural, não foi capaz, sequer, de impor ou de tornar aceitável para a maioria dos estudantes portugueses um manual da sua lavra» (a avaliar por uma nota da Comissão de Censura sobre a referida História da Literatura, datada de 17 de novembro de 1965: «[…] não hesitaríamos em propor a imediata proibição da sua circulação no País, tão grave se nos afigura que semelhante livro esteja, como está, a ser utilizado com fins didácticos nas nossas Universidades. Acontece, porém, que o livro vai já na sua 7.ª edição!!! Valerá a pena apreendê-lo e tomar ainda decisões drásticas sobre a sua difusão?»). A este respeito, Lourenço não estava sozinho. Também o escritor António Alçada Batista considerava que «estávamos perante uma ditadura política de direita e uma ditadura intelectual de esquerda»; o mesmo com Vasco Pulido Valente, segundo o qual «sob o salazarismo, a «Esquerda» dominou as páginas literárias, as revistas de «cultura» e as editoras»; ou com Vergílio

1 47

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 147

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Ferreira, para quem «o PCP, não tendo uma censura oficializada […], tinha a sua censura praticamente na redacção dos jornais e revistas, nas casas editoras e sobretudo no passa-palavra em cafés e livrarias com o correspondente insulto nos periódicos». Dito de outro modo, afirmar-se de esquerda era a forma mais rápida de escalar posições e de ter acesso às reduzidas oportunidades de trabalho. Em torno também desta convicção, mas não só, uniram-se muitos intelectuais que, não sendo pró-regime, também não se movimentavam na órbita do Partido Comunista Português (PCP). Alguns deles, como o referido António Alçada Batista, pertenciam ao que ficou convencionado chamar «grupo dos católicos progressistas», que na década de 1960 construíram, digamos assim, uma espécie de «mercado alternativo» a essa dominação cultural de esquerda. Graças ao controlo do Centro Nacional de Cultura (CNC), acolheram alguns dos elementos que pertenciam à recém-extinta SPE; fundaram as cooperativas Pragma e Confronto, onde organizaram vários colóquios e conferências (através das cooperativas culturais era possível contornar alguns dos obstáculos que o regime levantava à criação de associações, pois ao contrário destas, cuja formação estava dependente da aprovação prévia do Ministério do Interior, constituindo fator decisivo a lista com os nomes propostos para os respetivos corpos gerentes, no caso daquelas não era necessário submeter os nomes dos seus órgãos sociais a esse controlo, bastando, para o efeito, a escritura notarial); lançaram a revista O Tempo e o Modo, em 29 de janeiro de 1963, e criaram a editora Moraes, onde colaboraram, publicaram ou se movimentaram vários autores que o período democrático consagraria, como Sophia de Mello Breyner Andresen, Pedro Tamen ou Nuno Bragança, entre muitos outros. Este grupo de católicos, impulsionado pela ação de João XXIII, pelo Concílio Vaticano II e pela encíclica Pacem in Terris, que tanto incomodaram Salazar, cometeu a proeza de juntar à sua volta individualidades de diversa proveniência, além da oposição católica (inspirada na democracia-cristã italiana), gente do Movimento de Acção Revolucionária (MAR), que nascera à sombra da «crise académica» de 1962 e que incluía homens como Manuel de Lucena, João Cravinho, Jorge Sampaio, Nuno Bragança, Vítor Wengorovius, Trigo de Abreu, Lopes Cardoso, Nuno Brederode Santos, Vasco Pulido Valente, Medeiros Ferreira; do futuro Partido Socialista (PS), como Mário Soares, Salgado Zenha, Jaime Gama e Jorge Sampaio; ou ainda escritores como Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, José Régio, que, por rejeitarem o neorrealismo e o realismo socialista, eram considerados «cúmplices da reacção» pelos comunistas e pelos republicanos jacobinos mais empedernidos (em termos literários, a rutura com o neorrealismo foi encabeçada por dois

148

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 148

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

romancistas centrais na literatura portuguesa da segunda metade do século XX: Vergílio Ferreira e Agustina Bessa-Luís, o primeiro com uma escrita metafísica e moral, influenciada por Malraux, Sartre e Camus, a segunda com uma literatura psicológica próxima do romantismo alemão, de Dostoievski e de Proust). Polémicas como aquela em que se envolveram Pinheiro Torres e Vergílio Ferreira, desde que restringindo-se ao âmbito do literário ou do artístico, raras vezes despertavam os instintos censores do regime, preocupado sobretudo em conter as referências ou alusões de natureza mais diretamente política, em particular as respeitantes à Guerra Colonial. Foi isso, aliás, que esteve na base do encerramento da SPE, que em 1965 atribuiu um importante prémio literário – o Grande Prémio de Novelística – ao escritor Luandino Vieira, na altura a cumprir uma pena de prisão de catorze anos no Campo do Tarrafal, por alegado envolvimento em atividades terroristas em Angola. O prémio gerou a indignação dos salazaristas, que acusaram os membros do júri – Alexandre Pinheiro Torres, Manuel da Fonseca, Fernanda Botelho, João Gaspar Simões e Augusto Abelaira (este último enquanto presidente do júri, que só votava em caso de empate) – de traição à pátria. Na sequência disso, a 21 de maio de 1965, os elementos do júri que tinham votado em Luandino foram presos e interrogados por agentes da PIDE, entres os quais o inspetor José Sachetti. Enquanto isso, as instalações da SPE eram invadidas e vandalizadas (todo o mobiliário foi completamente destruído, as portas e as janelas danificadas e os ficheiros inutilizados), tendo os assaltantes deixado afixado numa das portas da entrada um dístico onde se podia ler «Agência dos terroristas na Metrópole» e nas salas e paredes várias frases, como esta: «MPLA Sucursal». Na sequência da polémica em torno da SPE, o Jornal do Fundão, um dos mais importantes órgãos da imprensa regional (mas com projeção nacional), esteve suspenso seis meses por ter publicado a notícia da atribuição do prémio e uma fotografia de Luandino Vieira, e a Casa dos Estudantes do Império, que tinha distribuído e divulgado o livro, foi encerrada (a Casa dos Estudantes do Império foi um pólo de contestação do colonialismo português e um espaço de sociabilidades onde se formaram alguns dos principais quadros e dirigentes dos movimentos de libertação que tinham irrompido em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique). Salazar e o ministro da Educação Nacional, Inocêncio Galvão Teles, lançaram então um ultimato à SPE: ou a direção dava por nula a decisão do júri ou a Sociedade era encerrada. O júri, porém, não revogou a decisão e a SPE foi mesmo extinta, argumentando o ministro que aquele prémio ofendia profundamente «o sentimento nacional, quando soldados portugueses tombam no Ultramar vítimas do terrorismo de que o premiado foi averiguadamente agente».

14 9

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 149

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Para muitos, a SPE já estava na mira do governo antes mesmo da atribuição daquele prémio, é o que se depreende da leitura dos jornais afetos ao regime, como o Diário da Manhã, que no dia 30 de março de 1960 afirmava que a SPE «fazia coro com as emissões de Moscovo», pelo que estaria em curso «uma tentativa de assalto à vida intelectual – que tem sido uma das mais hábeis manobras da ofensiva vermelha entre nós», tendo como «ponto de apoio da SPE». Mais tarde, em 1962, numa informação que a PIDE enviou ao ministro de Estado Adjunto sobre a Assembleia Geral da SPE, onde se discutiram as listas dos novos corpos gerentes para o triénio de 1962/64, dizia aquela polícia que «analisados os nomes que constituem a referida lista, verifica-se que a serem eleitas as pessoas constantes da mesma, os respectivos cargos ficarão entregues a indivíduos que em grande parte e dados os seus antecedentes políticos, se aproveitarão daquela circunstância para conduzirem, segundo a sua maneira, as actividades da SPE, embora dos seus Estatutos conste uma cláusula que diz que a mesma será alheia a todas as manifestações de carácter político ou religioso e, como tal, às ideias políticas ou religiosas dos seus associados». Além disso, desde que fora criada, em 1956, a SPE vinha consolidando-se como a instituição central da vida literária portuguesa, muito mais importante, desde logo, que o Secretariado Nacional de Informação (SNI), que não conseguia seduzir os «grandes escritores» (tirando algumas exceções, como António Quadros, Agustina Bessa-Luís ou Vitorino Nemésio), pondo assim em causa os objetivos traçados pela salazarista «política do espírito». Antes de ser aniquilada, a SPE atribuíra oito prémios (de onde se destacava o Prémio Camilo Castelo Branco, então considerado o mais alto galardão das letras portuguesas e que distinguira na sua primeira edição, em 1959, o romance Aparição, de Vergílio Ferreira), integrando os seus júris nomes de peso como Mário Dionísio, João Gaspar Simões, Óscar Lopes, David Mourão-Ferreira ou Jacinto do Prado Coelho, sendo as suas iniciativas e atividades bastante participadas e amplamente noticiadas nas principais páginas literárias. Neste contexto, tudo indica que Salazar quisesse apenas um pretexto para extinguir a SPE (e a Casa dos Estudantes do Império). Tomada a decisão, começaram a circular vários manifestos, abaixo-assinados, comunicados e artigos de jornal protestando contra aquela decisão, muitos deles publicados no estrangeiro, nos jornais portugueses onde colaboravam alguns intelectuais no exílio, como o Diário de Notícias de New Bedford, o Portugal Democrático de S. Paulo, ou O Imigrante Democrático de Paris. Muitos daqueles que participaram nessas iniciativas sofreram represálias do governo, caso dos professores Orlando Vitorino e Luís Filipe Lindley Cintra: como os seus nomes constavam de um documento de

150

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 150

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

protesto endereçado ao ministro da Educação Nacional, ambos foram impedidos de participar num Congresso de História a realizar no Brasil (em solidariedade, Maria de Lourdes Belchior Pontes apresentou a sua demissão do cargo de Adido Cultural da Embaixada do Brasil no Rio de Janeiro). Documento esse que serviu ainda de referência à Comissão de Censura para a partir daí proceder a algumas perseguições, nomeadamente à produção intelectual dos signatários, o mesmo acontecendo com os membros do júri que atribuiu o prémio, os quais, logo após a sua libertação, ficaram proibidos de colaborar na imprensa e esta de pronunciar os seus nomes. As amplas repercussões que o acontecimento teve na época obrigaram a uma separação clara das águas, forçando aqueles intelectuais cujas posições eram mais ambíguas a assumir a sua posição. Foi o caso de David Mourão-Ferreira, que se viu obrigado a pedir a demissão da televisão (RTP), onde era responsável por alguns programas literários: instado a preparar um programa onde teria que assumir posição pelo governo, o escritor demitiu-se. Mesmo uma instituição como a Fundação Calouste Gulbenkian, cuja dimensão e estatutos lhe garantiam alguma autonomia financeira, política e administrativa, foi pressionada a demarcar-se dos protestos pelo encerramento da SPE (Pedro Teotónio Pereira, antigo ministro, diplomata e um dos possíveis candidatos à sucessão de Salazar, ameaçou demitir-se do cargo de administrador da Gulbenkian caso esta não afirmasse publicamente o seu repúdio pela atribuição do prémio). Possivelmente para limpar a sua imagem (e mostrar que nem todos no campo intelectual lhe eram adversos), o regime promoveu, nos dias 7, 8 e 9 de outubro de 1965, o 1.º Encontro de Escritores Portugueses, organizado pelo Círculo Almeida Garrett, no Porto. Entre os participantes contavam-se, segundo o Diário de Notícias de 8 de outubro, «as individualidades mais representativas da cultura e da política portuense», e nos lugares de honra estavam sentados Fonseca Jorge (chefe do distrito), Manuel Lopes de Almeida (antigo ministro da Educação Nacional), Baltasar Rebelo de Sousa (ex-subsecretário da Educação Nacional), Correia de Barros (reitor da Universidade do Porto) e Nuno Pinheiro Torres (presidente da edilidade portuense), Monsenhor Miguel Sampaio (em representação do Administrador Apostólico da diocese), Manuel de Lemos (Presidente da Comissão Distrital da União Nacional), Pereira da Costa (Presidente do Sindicato Nacional dos Jornalistas), Carlos Vale (Presidente da AJHLP, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto) e representantes dos comandos da PSP e da GNR. Na assistência estavam alguns escritores angolanos, que enviaram ao ministro do Ultramar um «expressivo telegrama de saudações».

151

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 151

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Numa das discussões ocorridas durante o encontro, defendeu-se que «à trilogia Deus, Pátria e Família prestará culto o escritor português que se lhe subordina», tendo-se rezado uma Ave-Maria. Por fim, no último dia, para que não restassem dúvidas quanto ao posicionamento dos intelectuais ali reunidos, saudou-se «respeitosamente o Chefe do Estado como augusta personificação da Pátria Portuguesa», concluindo-se depois da necessidade de criar uma associação «em que se congreguem todos os escritores portugueses que o desejem». Depois, no discurso de encerramento, Carlos Eduardo de Soveral (que fora premiado pelo SNI) fez voto de que «o I Encontro de Escritores Portugueses fosse inequívoco testemunho colectivo de fidelidade à Pátria». E tendo como referência implícita a extinção da SPE, falou da guerra, «a nossa guerra, de que muitos parecem sistematicamente distraídos como se não navegassem connosco no mesmo mar e na mesma barca. Ao escritor português incumbe […] a infusão do espírito que, avigorando a determinação que desde 61 se ditou a nossa retaguarda metropolitana, assegure a maior eficiência militar nas batalhas sem quartel do território ultramarino. Através do exército literário […] mas também através dos actos e das atitudes em que dia a dia de cada um de nós se desentranhe». É neste contexto de politização da vida cultural que devemos entender as diferentes manifestações artísticas na última década e meia do Estado Novo. No teatro, quase todas as peças levadas à cena eram previamente sujeitas a censura (total ou parcial), estando grande parte dos dramaturgos conotados com a oposição – Bernardo Santareno, Luís de Sttau Monteiro, Romeu Correia, Alves Redol, Manuel Granjeio Crespo, Jaime Salazar Sampaio – impedidos de trabalhar. Havia exceções, claro, como O Render dos Heróis (1964), encenada por Fernando Gusmão no Teatro Moderno de Lisboa (criado em 1961) a partir de um texto de José Cardoso Pires que, apesar das suas óbvias influências brechtianas, escapou à censura. Ainda na atividade teatral ligada à resistência, destaque para o movimento de teatro universitário, como o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), onde desempenhou papel de primeira magnitude o professor universitário, tradutor e encenador Paulo Quintela, e o Grupo de Teatro de Letras, criado em 1965 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (GTL) após a realização do Ciclo de Teatro de Letras, procurando assim eludir a proibição de fundar associações de estudantes. Entre os primeiros responsáveis por esta última companhia, que interveio ativamente na crise académica de 1969, encontramos nomes como Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Gastão Cruz, José da Silva Louro, Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo ou Eduarda Dionísio (mais tarde, em 1973, estes últimos três fundaram

1 52

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 152

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

o Teatro da Cornucópia, ainda hoje em atividade e uma das companhias mais importantes de Portugal). AS ARTES E O PAPEL DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

Falar de artes plásticas em Portugal na década de 1960 é fazer a história dos inícios da Fundação Calouste Gulbenkian, a maior instituição cultural do país – em muitos aspetos, sobretudo nos últimos anos do Estado Novo, compensou mesmo a ausência de um «ministério da cultura» (as áreas culturais estavam então integradas no Ministério da Educação) – e uma das maiores do mundo. O primeiro acontecimento patrocinado pela Gulbenkian foi uma exposição de artes plásticas, realizada na Sociedade Nacional de Belas-Artes e inaugurada no dia 7 de dezembro de 1957 (passou depois pelo Porto, em 1958). O grande investimento que foi disponibilizado, então inédito em Portugal, explica, em grande medida, a enorme participação de artistas (148), o número de obras expostas (251, entre pintura, escultura, desenho e gravura), a ampla receção jornalística e a grande afluência de público. Apesar de o regime ter perdido o poder de atração conquistado nos tempos de António Ferro (quando este dirigia o SPN, em cujos Salões de Arte Moderna tinham participado vários dos principais artistas portugueses), principalmente entre os mais novos, que não queriam ficar associados a uma ditadura. Ainda assim, os prémios distribuídos nessa I Exposição de Artes Plásticas da Gulbenkian limitaram-se a reproduzir as hierarquias artísticas instituídas pelo Estado Novo: Dórdio Gomes, Abel Manta, Júlio Resende e Guilherme Camarinha (pintura); António Duarte, Joaquim Correia e Jorge Vieira (escultura); Bernardo Marques (aguarela); Almada Negreiros (prémio extraconcurso). Quase todos eles tinham caucionado, direta ou indiretamente, a política do Estado Novo: Almada Negreiros, simpatizante das ideias fascistas via futurismo italiano, assinou algumas das grandes obras do regime, concebeu um cartaz de propaganda à Constituição salazarista, colaborou intimamente com o SPN, que lhe atribuiu o Prémio Columbano em 1942, o ano em que foi ao Rio de Janeiro representar o país na exposição Artistas Portugueses; e Eduardo Viana, Abel Manta e Dórdio Gomes (juntamente com Carlos Botelho) tinham estado na Bienal de São Paulo, em 1955, em representação de Portugal. Na II Exposição, realizada em dezembro de 1961 na Feira Internacional de Lisboa, que passou a admitir a concurso «todas as formas e meios de expressão em arte», inclusive a arquitetura, a lista de premiados apresentava já alguns nomes da «geração dos novíssimos», como Menez (2.º Prémio de Pintura),

153

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 153

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Lagoa Henriques, Jorge Vieira e João Cutileiro (prémios de escultura). Esta exposição (onde também participou a jovem Paula Rego, que concluíra nesse ano o quadro, significativamente intitulado, Salazar a Vomitar a Pátria) simbolizou uma rutura definitiva com os cânones estéticos das décadas pretéritas, os quais se estilhaçaram em inúmeras tendências de vanguarda. Como defende João Pinharanda, a década de 1960 caracterizou-se artisticamente por uma «grande abertura formal e temática» e por uma «pulverização de nomes e tendências, de acções e agentes». Outro dos fenómenos significativos da arte portuguesa dessa época foi também a emigração em massa dos artistas, que abandonaram o país ou por questões políticas ou apenas para abrir os horizontes, crescer artisticamente – uns patrocinados por famílias endinheiradas, outros graças às bolsas de estudo, sobretudo da Gulbenkian –, escapando assim a um meio cultural estagnado e pouco atualizado. Por Inglaterra movimentaram-se, entre outros, Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, António Areal, António Sena, Bartolomeu Cid dos Santos, Eduardo Batarda, Graça Pereira Coutinho, João Cutileiro, João Penalva, Mário Cesariny, Menez, Paula Rego, Rolando Sá Nogueira, Ruy Leitão; por Paris passaram António Dacosta, Manuel Batista, Jorge Martins, Júlio Pomar, bem como os elementos do grupo KWY (três letras que não existem no alfabeto português e que costumavam ser desdobradas, para descrever sarcasticamente a situação pantanosa do país, em «Ká Wamos Yndo»), Lourdes Castro, João Vieira, René Bértholo, Costa Pinheiro e José Escada, que em 1960 organizaram uma exposição coletiva na Sociedade Nacional de Belas-Artes. As exposições de artes plásticas da Gulbenkian tiveram repercussões muito concretas nas oportunidades de criação e de formação dos artistas portugueses, já que a Fundação não só adquiriu as obras exibidas, dando assim início à sua coleção de arte moderna (que seria integrada no futuro Centro de Arte Moderna), como também criou, a partir daí, uma série de bolsas de estudo, «no país ou fora dele», para artistas, críticos e historiadores de arte (por exemplo, Hogan foi duas vezes bolseiro, em 1958 e 1961, e Menez três vezes, em 1960, 1965 e 1969). De resto, ao longo de toda a década de 1960, a Gulbenkian foi o grande motor de dinamização da arte portuguesa, atribuindo diversos prémios, como o Prémio da Crítica de Arte, que distinguiu nomes como Mário de Oliveira (1962), Rui Mário Gonçalves (1963), Nuno Portas (1964) e Fernando Pernes (1965); promoveu, a partir de 1962, exposições itinerantes por diversas cidades do país; realizou exposições internacionais (por exemplo, a «Exposição de Arte Britânica», em 1962, ou «Um Século de Pintura Francesa, 1850-1950»); abriu ao público, em 1969, o Museu Calouste Gulbenkian, que integrava a coleção de arte do fundador, composta por 6400 peças; criou, em 1971, a então única revista

15 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 154

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

nacional de arte, Colóquio-Artes, tendo como primeiro diretor José -Augusto França (o único espaço, na década de 1960, que publicava regularmente textos de crítica de arte era o Jornal de Letras e Artes, fundado em 1961 e extinto em 1970, e onde escreviam Rui Mário Gonçalves, Alfredo Margarido, Fernando Pernes, Areal ou Rocha de Sousa). Na verdade, parte importante da atividade cultural desenvolvida neste período passou pela Gulbenkian, em muitos casos substituindo-se ao próprio Estado. E não apenas no âmbito das artes plásticas: a partir de 1961 começou a atribuir bolsas de estudo no sector do cinema; nesse mesmo ano criou o Instituto Gulbenkian de Ciência; em 1962 fundou a Orquestra Gulbenkian; em 1964 foi a vez do Coro Gulbenkian; em 1965 surgiu o Grupo Gulbenkian de Bailado (hoje Ballet Gulbenkian); em 1968, a partir da biblioteca particular de Gulbenkian, foi criada a Biblioteca Geral de Arte (hoje Biblioteca de Arte); em 1969 inaugurou a sede, os jardins e o Museu da Fundação, projetados por Alberto Pessoa, António Viana Barreto, Pedro Cid, Ruy Jervis Athougia e Gonçalo Ribeiro Telles (a obra foi galardoada em 1975 com o Prémio Valmor de Arquitetura, um dos mais importantes do país, atribuído desde 1902 aos melhores edifícios da cidade de Lisboa); na sequência do relatório O Ofício do Cineasta em Portugal, assinado por 18 realizadores e propondo à Fundação a criação de um «Centro Gulbenkian de Cinema», financiou o Centro Português de Cinema (CPC), uma cooperativa autónoma de cineastas fundada em 1969 com o objetivo de gerir o apoio financeiro da Fundação para a realização de uma série de filmes – os dois primeiros estrearam em 1971: O Passado e o Presente, de Manoel de Oliveira, e A Pousada das Chagas, de Paulo Rocha –, abrindo assim caminho a novos cineastas como Alfredo Tropa (Pedro Só), José Fonseca e Costa (O Recado) e António-Pedro Vasconcelos (Perdido por Cem), onde subtilmente tentou passar-se, sobretudo nos primeiros dois títulos, a imagem de um Portugal obsoleto e deprimido; em 1970 realizou exposições retrospetivas da obra de Raul Lino e Maria Helena Vieira da Silva (naturalizada francesa em 1956 e uma das artistas portuguesas mais reconhecidas internacionalmente, Vieira da Silva foi a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Artes, em 1966, e em 1979 tornou-se cavaleira da Legião de Honra francesa). No entanto, o feito que mais contribuiu para melhorar o nível cultural da população portuguesa, em particular os hábitos de leitura, foi seguramente a criação, logo em 1958 (por influência de Branquinho da Fonseca), das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, tendo sido adquiridos, para esse efeito, mais de sete milhões e meio de livros (o que significou uma injeção importante de capital nas editoras e nos escritores portugueses). No início, havia apenas 15 bibliotecas

1 55

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 155

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

itinerantes, que cobriam sobretudo a região de Lisboa e o litoral, mas o sucesso foi tal que, em 1961, já percorriam as estradas do país (incluindo as zonas do interior) 47 carrinhas da marca Citroën. Entre os funcionários responsáveis pelo empréstimo gratuito (tal como a inscrição, igualmente gratuita) dos livros encontravam-se grandes figuras da literatura portuguesa, como os poetas Herberto Hélder e Alexandre O’Neill (em 1992, estas bibliotecas possuíam cinco milhões de livros, chegavam a cerca de 3800 povoações, tinham registados cerca de um milhão e 800 mil «utilizadores atendidos» e faziam 4,5 milhões de empréstimos, sobretudo de literatura infantil e juvenil; mais tarde, estes números começaram a cair, até que, em dezembro de 2002, o serviço foi extinto). Ao mesmo tempo que a Gulbenkian tentava fomentar as práticas de leitura, o regime procurava cercear o livre acesso das populações a determinadas obras «perigosas», levando-os a tribunal, como foi o caso, em 1965, da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade), organizada pela escritora Natália Correia e com chancela da Editora Afrodite (criada nesse ano por Fernando Ribeiro de Mello). De imediato retirado de circulação, o livro foi apreendido e alvo de processo judicial e alguns dos autores ali incluídos (Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ernesto de Melo e Castro e José Carlos Ary dos Santos), bem como a organizadora e o editor, foram posteriormente condenados em tribunal por crimes de ofensa à moral pública (as penas de prisão eram substituíveis por igual tempo de multa). Deu também que falar, na época, o processo judicial instituído, em 1966, a um dos livros canónicos das leituras interditas, A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, considerado pela política salazarista «abertamente pornográfico, o protótipo da desmoralização» (também editado pela Afrodite). O livro foi apreendido e os implicados – Fernando Ribeiro de Mello (editor), António Manuel Calado Trindade, Herberto Helder de Oliveira (tradutores), Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco (autor do prefácio) e João Batista Martins Rodrigues (ilustrador) – pronunciados pelo 2.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa por abuso de liberdade de imprensa e por atentar contra a decência, os bons costumes e a moralidade pública. Anos depois, em 1972, dez anos depois da criação do Movimento Nacional Feminino (1961), sinal de que a insatisfação de algumas mulheres começava a vir à superfície, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta (também conhecidas como «As Três Marias»; foi esse, aliás, o título da tradução para inglês, The Three Marias), publicaram o livro Novas Cartas Portuguesas (o título e o conteúdo são inspirados no clássico francês, Lettres Portugaises, do século XVII), onde abordavam assuntos interditos como a repressão fascista, a iniquidade da guerra em África, o patriarcado católico e a condição feminina

1 56

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 156

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

(alienada pelos valores masculinos), incluindo a questão do prazer sexual da mulher (razão pela qual o livro passou a ser considerado um marco na história do feminismo português). Naturalmente, o governo de Marcello Caetano não tolerou a afronta: a obra foi retirada das livrarias e instaurado um processo contra as autoras por abuso de liberdade de imprensa, que acabou por ser suspenso devido à repercussão internacional do caso. AS TERTÚLIAS EM LISBOA

Paralelamente à atividade institucional, a cultura portuguesa da década de 1960 assentava também nas múltiplas tertúlias que decorriam nos cafés e nas livrarias de Lisboa e Porto. Na capital, sobretudo, desde a Praça do Comércio ao Largo do Saldanha, com maior incidência no eixo Rossio/Restauradores, faziam parte da paisagem cultural da época as tertúlias das livrarias Bertrand (liderada por Aquilino Ribeiro), Portugália (onde se destacava, por exemplo, Armindo Rodrigues) ou Sá da Costa (formada sobretudo por advogados, quase todos de esquerda); e dos cafés Martinho da Arcada, Royal, Palladium, Pastelaria Veneza, Café Portugal, Nicola, Brasileira, Café Chiado, Bénard, Herminius, Restauração, Nacional, Alvarez e Café Gelo. Quase não havia intelectual lisboeta que não tivesse uma tertúlia para expressar a sua opinião ou discutir assuntos da vida intelectual e política. Apesar da proximidade geográfica (estamos a falar de um espaço relativamente reduzido da cidade), em termos sociais, ideológicos, estéticos e comportamentais a distância era enorme. Se à pastelaria Bénard iam as filhas do Presidente da República, no Palladium e, principalmente, no Martinho (perto do Teatro Nacional D. Maria II, hoje um banco) reuniam-se os neorrealistas, como Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio ou Augusto Abelaira; no Restauração, na Rua 1.º de Dezembro, havia a tertúlia de Edmundo de Bettencourt, Mário Saa, António Navarro, José Régio, Branquinho da Fonseca (pertencentes à geração da Presença), onde também apareciam, por vezes, Jorge de Sena e Herberto Hélder; no café Portugal (Rossio) havia a tertúlia de Manuel Mendes, Armindo Rodrigues, Gustavo Soromenho, Adão e Silva e outros democratas ativistas do Movimento de Unidade Democrática (MUD); no café Gelo (Rossio) tanto paravam os surrealistas (sobretudo uma segunda geração de surrealistas) ou próximos deles, como Mário Cesariny de Vasconcelos, Raul Leal, Florentino Goulart Nogueira, Pedro Oom, Manuel de Lima, António Gancho, António José Forte, Manuel de Castro, Virgílio Martinho, João Rodrigues, Ernesto Sampaio ou Fernanda Alves, como alguns pintores do

15 7

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 157

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

grupo KWY – João Vieira, René Bertholo, José Escada, Gonçalo Duarte, Eurico Gonçalves –, que partilhavam ateliê no prédio do café. À noite, quando estes cafés encerravam, alguns deles mudavam-se para o restaurante Mimi ou para o «Cantinho dos Artistas», no Parque Mayer, à Avenida da Liberdade, que fechava mais tarde e onde se reunia a malta do teatro. Além de locais de camaradagem, definida por afinidades estéticas ou políticas, e de socialização cultural, estas tertúlias serviam também, tratando-se de um meio pouco profissionalizado, para estabelecer redes de contactos e diversificar as oportunidades de trabalho (à mesa do café tanto surgiam convites para colaborar num jornal ou numa revista, como para traduzir livros ou fazer revisões tipográficas). O CINEMA, A MÚSICA, A TELEVISÃO E A RÁDIO

Na sétima arte, a década de 1960 ficou marcada pela vaga do «novo cinema», que vinha na sequência, por um lado, do movimento cineclubista português (maioritariamente hostil ao regime – alguns dos seus dirigentes tinham mesmo ligações ao PCP – e de onde saiu, como disse Eduardo Geada, «a maior parte dos críticos e dos cineastas que iriam ter um papel decisivo no panorama do cinema em Portugal até ao 25 de Abril»), e, por outro lado, da abertura, em 1961-1962, do primeiro curso de cinema em Portugal, dirigido por António da Cunha Telles, o qual veio revolucionar não só as técnicas de realização como também os próprios métodos de produção. O «novo cinema», assim designado pela sua recusa do velho cinema (muito conotado com a propaganda do regime e assentando numa visão paroquial e consensual da sociedade portuguesa, focando temas como os amores estudantis, o estilo de vida pequeno-burguês, etc.), procurava conciliar a componente estética e o compromisso social de cariz ideológico, algo que ficou patente logo nos primeiros filmes, como Dom Roberto, de José Ernesto de Sousa, que estreou no cinema Império (então a maior sala de Lisboa) em 30 de maio de 1962. Com este filme, Ernesto de Sousa, fundador em 1946 do primeiro cineclube em Portugal, Círculo de Cinema (o qual seria assaltado, dois anos depois, em 1948, pela PIDE, que prendeu todos os membros da direção, incluindo o futuro realizador, devido às suas atividades político-culturais), estabelecia uma fusão inovadora entre o neorrealismo e a Nouvelle Vague (entre 1949 e 1952, o realizador vivera em Paris, onde frequentara o Cineclube du Quartier Latin e os cursos de cinema da Cinemateca Francesa, da Sorbonne e do Institut des Hautes Études Cinematographiques, tendo convivido com André Bazin, François Truffaut, Alain Resnais, Agnès Varda ou Jean Michel, o presidente da Federação

1 58

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 158

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

dos Cineclubes Franceses). Dom Roberto, filmado em Alfama e com poemas de Alexandre O’Neill, narrava os trabalhos e as paixões de um vagabundo, João Barbelas, que deambulava pelas ruas de Lisboa com um teatro ambulante de fantoches. Em 1963, no Festival de Cannes, o filme recebeu a Menção Especial do Júri do Melhor Filme para a Juventude, porém, a PIDE não permitiu que Ernesto de Sousa saísse do país e voltou a prendê-lo. Ao cânone deste «novo cinema» pertence também o filme Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, igualmente influenciado pelo neorrealismo italiano, quer pelos temas (problemas de adaptação social do protagonista, oriundo da província e a tentar ganhar a vida na cidade de Lisboa), quer pela classe social retratada (o povo: o protagonista é sapateiro e a protagonista uma criada de servir). Além da forma inovadora como descrevia a cidade, em particular as avenidas novas, o filme contou com a colaboração de nomes importantes do campo cultural: a adaptação do argumento era de Nuno Bragança (que, anos mais tarde, em 1969, publicaria um dos romances mais emblemáticos daquela década, A Noite e o Riso, reconstituição do clima opressivo vivido no «Portugal-prisão»), a banda sonora era do guitarrista Carlos Paredes, que anos antes tinha sido preso pela PIDE sob a acusação de pertencer ao PCP (de que era efetivamente militante) e expulso, por decisão do tribunal, da função pública (era funcionário administrativo do Hospital de São José, em Lisboa); e a letra das canções era do poeta e tradutor Pedro Támen. Referência ainda para Belarmino (1964), de Fernando Lopes, documentário sobre a vida de uma velha glória do boxe, Belarmino Fragoso, que depois de ter sido explorado pelos grandes empresários do meio se viu condenado a uma existência de marginal nas ruas de Lisboa, vivendo precariamente como engraxador e pintando fotografias. Na música, enquanto a ópera do teatro São Carlos, onde predominavam as companhias estrangeiras, servia para a «estetização do regime» e como instrumento de distinção das classes altas, a Fundação para a Alegria no Trabalho (FNAT) organizava no Teatro da Trindade – entre 1963 e 1975 – temporadas populares de ópera para as pequenas burguesias (acessíveis a todos, eram «o inverso do São Carlos»): apesar de «intrinsecamente ligada à política social do regime» e de «bastante conservador», a ópera do Trindade «iniciou uma incontestável democratização social e geográfica da ópera, retirando-a do quase monopólio do São Carlos». Neste mesmo período, o compositor e musicólogo Fernando Lopes Graça editou a Antologia da Música Regional Portuguesa (1960), produto do seu trabalho (em colaboração com Michel Giacometti) de recolha de música tradicional portuguesa, e o músico Jorge Peixinho, depois de ter sido galardoado com o Prémio de Composição do Conservatório Nacional, que lhe

1 59

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 159

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

valeu uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para estudar no estrangeiro, e com o Prémio Sasseti de Composição, iniciou a sua carreira internacional, estreando em Nápoles, em 1961, uma obra para orquestra, Políptico, e trabalhando com Luigi Nono, Stockhausen e Pierre Boulez. Ao mesmo tempo, o fado – reconvertido em «tradição nacional» em resultado de um processo de moralização (proibição dos fados noturnos e das serenatas, para defender os «cidadãos pacíficos e laboriosos, frequentemente acordados a altas horas por vozes roucas e avinhadas»), de profissionalização (obrigação de posse de carteira profissional para atuar em público), de aburguesamento (das tabernas, dos ambientes de prostituição, de marginalidade e de boémia – passou também a ser cantado nos salões das elites e nas grandes salas de espetáculo, graças ao impulso da Grande Noite do Fado, realizada anualmente desde 1953) e de aproveitamento político – era cada vez mais um produto de exportação turística de Portugal, com Amália Rodrigues como sua grande representante internacional (o seu primeiro LP, Amalia Rodrigues Sings Fado and Flamenco From Spain, foi editado nos Estados Unidos em 1954, em Inglaterra em 1957 e em França em 1958). As posições que Amália Rodrigues tomou em relação à política eram, no mínimo, ambíguas. Se por um lado deixou que o Estado Novo a utilizasse para fins de propaganda (viajou pelo mundo ao serviço do regime, chorou no funeral de Salazar e foi condecorada pelo novo presidente do conselho, Marcello Caetano, em 1969, na Exposição Mundial de Bruxelas), por outro lado, as suas ligações ao músico e compositor de esquerda, Alain Oulman (que esteve preso e foi torturado pela PIDE, antes de ser deportado para França), tornaram-na suspeita aos olhos daquela polícia política (por exemplo, um dos seus fados, «Abandono», também intitulado «Fado de Peniche», composto para ela por Oulman e com poema de David Mourão-Ferreira, foi proibido) e já depois do 25 de Abril, altura em que foi acusada de colaborar com o antigo regime, soube-se que fizera, em segredo, alguns donativos ao PCP (através da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos). Porém, o maior acontecimento musical, na década de 1960, era o Festival RTP da Canção (realizado pela primeira vez em 1964), do qual sairia o representante de Portugal no Concurso Eurovisão da Canção, organizado pela União Europeia de Radiotelevisão. Tal como no caso do fado, o Festival da Canção foi aproveitado pelo regime para construir a nível internacional uma imagem do país, onde jamais se fazia referência à Guerra Colonial ou ao nosso atraso estrutural (as letras das canções – a primeira que representou Portugal na Eurovisão foi «Oração», de António Calvário – exaltavam invariavelmente os valores morais veiculados pelo regime: Deus, o amor platónico, a solidariedade cristã,

1 60

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 160

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

a pacata vida na comunidade aldeã ou nos bairros populares de Lisboa e Porto). Nessa imagem cabia na perfeição uma figura como Eduardo Nascimento (Angola, 1944), o primeiro negro que subiu ao palco de um festival da Eurovisão, interpretando em Viena o tema «O Vento Mudou» (conquistando o 12.º lugar em 17 países), depois de ter vencido o Festival RTP da Canção em 1967. Tal como fizera com Eusébio, no futebol, o Estado Novo instrumentalizou Eduardo Nascimento, incluindo-o na sua retórica integracionista: o facto de ter conquistado um lugar social na metrópole era a prova de que a sociedade portuguesa era multirracial, que respeitava a diferença e praticava a igualdade entre raças, que o nosso colonialismo privilegiava a assimilação. Era esta a imagem que o regime, na sua obsessão por preservar as suas colónias africanas, queria desesperadamente fazer passar nos fóruns internacionais (onde se incluíam o Festival Eurovisão da Canção e os estádios de futebol, espaços por excelência para moldar o imaginário da cultura popular). Por outras palavras, Eusébio e Eduardo Nascimento não eram o reflexo de uma mudança cultural profunda, antes símbolos da propaganda salazarista. Dois anos depois, em 1969, provocou comoção nacional, nesses festivais eurovisão, a «Desfolhada Portuguesa», interpretada por Simone de Oliveira (e letra de Ary dos Santos) em Madrid. A canção, cujo tema era o amor pátrio, ficou em penúltimo lugar (15.º), tendo recebido apenas quatro pontos, o que motivou vários protestos por parte da delegação portuguesa (em desacordo com o sistema de votação, Portugal recusou participar na edição de 1970 do Festival). No regresso de comboio a Lisboa, Simone tinha à sua espera, na Estação de Santa Apolónia, 20 000 pessoas, que a aclamaram com vibração nacionalista. Ao lado deste predomínio do fado e da música ligeira, nesta década de 1960 começava a despontar, com contornos ainda pouco definidos, o rock’n’roll português (e com ele uma cultura juvenil ainda inexistente). Entre esses pioneiros, inspirados em músicos como Little Richard, Chuck Berry, Bill Haley, Roy Orbison, Buddy Holly ou Elvis Presley, encontramos os nomes de Joaquim Costa (de alcunha o Elvis de Campolide), que terá gravado o primeiro disco de rock em Portugal, em 1959, intitulado Rip it up; de Daniel Bacelar, que com 17 anos, em 1960, venceu, na categoria de artista a solo, a primeira edição do concurso «Caloiros da Canção», organizado pela Rádio Renascença, tendo então ficado conhecido como o Ricky Nelson português; dos Conchas (constituídos pelo duo José Manuel Aguiar e Fernando Gaspar), que ganharam esse concurso na categoria de grupos e tocavam versões de músicas dos Everly Brothers ou de Paul Anka; de Zeca do Rock, nome artístico de José das Dores, que apesar de ter gravado apenas um disco, Zeca do Rock e o Conjunto de Manuel Viegas (1961) – hoje um dos mais raros vinis da música moderna portuguesa, que incluía

1 61

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 161

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

o tema Sansão foi Enganado (o primeiro onde se ouviu, em Portugal, o grito yeah!, que representava a rebeldia associada a esta cultura musical nascida nos Estados Unidos) –, e de ter tido uma carreira curta (foi chamado ao serviço militar e destacado para a Guerra Colonial), conheceu durante algum tempo uma popularidade invulgar, tocando em clubes recreativos, teatros, ginásios de liceus e universidades (sobretudo nos bailes de formatura) e praças de touros (onde aparecia no seu descapotável Triumph Herald), e distribuindo autógrafos entre os fãs; ou ainda de Victor Gomes, considerado o James Dean português pela rebeldia e pelo frémito que atravessava o público feminino quando pisava um palco, que depois de viver em Moçambique, onde já era famoso, chegou a Portugal, em 1963, para formar Os Gatos Negros, banda da Trafaria ao estilo Shadows que conseguiu encher o Cine-Teatro Monumental, em Lisboa, fazendo-o estremecer ao som dos ritmos que vinham do outro lado do Atlântico (e dos famosos saltos «à Tarzan» de Victor Gomes). Sem esquecer as bandas femininas, que também as havia, onde sobressai o pioneirismo de Zurita Oliveira, com o álbum Bonitão do Rock, Teresa Pinto Coelho (que em 1962 editou o álbum A Voz de Teresa, com acompanhamento do Thilo’s Combo e uma versão de «Fever»), Helena Rocha, Mafalda Sofia, Natércia Barreto ou Tonicha (que colaborou nos discos do Quarteto 1111). Contra toda uma série de obstáculos – as editoras discográficas investiam pouco nesse novo género musical (comparativamente com a quantidade de discos de fado ou de música ligeira gravados nessa altura), a rádio não lhe concedia muito tempo de antena (os artistas mais ouvidos na rádio, em meados desta década, em programas como o «23.ª hora», da Rádio Renascença (RR), o «Sintonia 63», o «Meia-Noite» e o «A Noite é Nossa», estes do Rádio Clube Português (RCP), ou ainda «No Calor da Noite», da Rádio Comercial (RC), eram Madalena Iglésias, António Calvário, Simone de Oliveira, Tony de Matos, António Mourão ou Maria da Fé), o dinheiro para comprar instrumentos ou bons gravadores era escasso, a que se juntava a existência de censura, que controlava os conteúdos das letras, daí que muitos optassem por cantar em inglês (ao ponto de preferirem ir contra as imposições das editoras, que queriam que os músicos cantassem mais rock no idioma de Camões), e o serviço militar em plena Guerra Colonial (que destruiu talentos e desfez muitas bandas) –, o rock foi lançando progressivamente raízes nos hábitos e costumes do país, sinal de que a cultura popular não estava alheada das novidades difundidas do estrangeiro, sobretudo de Inglaterra e dos Estados Unidos. Pelo contrário, esta década de 1960 mostra que a juventude assimilou, com grande avidez até, o que de mais significativo era produzido no exterior (por exemplo, através dos discos que alguém trazia

162

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 162

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

de Inglaterra, França ou Suíça, ou através das emissões da Rádio Caroline, uma estação pirata inglesa que era ouvida por muitos jovens ligados ao meio musical). Isso era visível em diferentes domínios: nos artistas e nas bandas, que imitavam os modelos vindos de fora, a começar pelo idioma (quase todos cantavam em inglês ou versões portuguesas de temas ingleses ou norte -americanos, como o grupo Diamantes Negros, criado em 1964, cujo repertório se baseava em músicas dos Shadows, Beatles e Beach Boys), pelo penteado (poupas e cabelos gelatinosos) e pelo vestuário (depois da explosão dos The Beatles, espalhou-se a moda dos elementos das bandas vestirem todos de igual); e nos concertos, onde predominavam as calças à boca de sino, as camisolas de gola alta, as camisolas curtas acima do umbigo (no caso das raparigas) e as camisas floridas (no caso dos rapazes, compradas na loja Porfírios), e onde os jovens gritavam eufóricos (por vezes histéricos), por momentos imaginando-se livres e rebeldes, como os jovens de Londres ou de São Francisco. Alguns desses concertos realizavam-se à tarde, no Cine-Teatro Monumental, nos concursos de grupos «Yé-Yé» organizados por Vasco Morgado. Nesses eventos tocaram várias dezenas de bandas, de que a memória fixou apenas meia dúzia, como os Chinchilas e os Sheiks. Estes últimos, considerados os «Beatles portugueses» e os reis do «Yé-Yé», foram um dos grupos mais populares na época. Formados em 1963 por Carlos Mendes (vocalista e guitarrista), Paulo de Carvalho, Fernando Chaby e Jorge Barreto, venceram a 7.ª eliminatória desse concurso, em outubro de 1965, ficando à frente dos Tubarões (Viseu), dos Galãs (Porto), dos Czares (Aveiro) e dos Jovens do Ritmo (Amora-Seixal). Em 1966, depois de Summertime (com uma versão da música de George Gershwin com o mesmo título), o primeiro disco (1965), editaram Tell me Bird, que continha o tema «Missing You», o mais conhecido dos Sheiks, e que também saiu no Brasil, em Espanha, Inglaterra e França (atingiu o 8.º lugar de vendas em Paris, cidade onde gravaram o disco Sheiks em Paris). Apesar do cartaz com a frase «A juventude pode ser alegre sem ser irreverente», colocado à entrada do Monumental, a multidão compacta de jovens recreava-se por vezes a atirar tomates e ovos às bandas que revelavam pouco ou nenhum talento para o rock, obrigando, por vezes, à intervenção das autoridades. Polícia que seria novamente chamada a intervir, em 1969, para impedir a realização de um festival de rock nos Salesianos, no Estoril (um dos organizadores, José Cid, tinha pertencido ao grupo Babies, banda que tocava versões de Chuck Berry, Fats Domino, etc.), onde estavam previstas as atuações dos dos Chinchilas, dos Sindikato, do Quarteto 1111, de Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso, tendo sido agredidas várias pessoas que ali se tinham deslocado para assistir ao evento.

163

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 163

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

Alguns destes músicos terão passado pelo famoso Porão da Nau, discoteca numa esquina da Rua Pinheiro Chagas com a Avenida Fontes Pereira de Melo (hoje Cervejaria Maracanã), fundada em fevereiro de 1965 por Ruy Castelar (o apresentador do conhecido programa radiofónico da madrugada «A noite é nossa», que transmitiu música em direto a partir dessa discoteca), onde era presença assídua o grupo Thilo’s Combo (constituído por Vítor Santos, Jorge Pinto, José Luís, Fernando Rueda e Thilo’s Krasmann) e por onde passaram músicos estrangeiros como Ella Fitzgerald, Duke Ellington, Art Blakey (músicos de jazz que o país aprendeu a ouvir através de programas como «Cinco Minutos de Jazz», criado em 1966 por José Duarte), ou ainda cantores franceses como Gilbert Bécaud, Charles Aznavour, Sylvie Vartan ou Rita Pavone. No horizonte musical português dessa época começava a impor-se, também, o movimento da música de intervenção – em forma de canção ou de balada, «em oposição a um status quo que nos dava letras de tipo evasivo, tendentes a alhearem as pessoas dessas realidades [a realidade portuguesa de então]», como explicava Adriano Correia de Oliveira –, no início a partir da cidade e universidade de Coimbra. Para as letras das suas melodias, esses músicos, com destaque para Adriano Correia de Oliveira, José Afonso (também conhecido como Zeca Afonso) e José Mário Branco, foram buscar alguns textos dos poetas portugueses, desde clássicos como Luís de Camões a contemporâneos como Manuel Alegre (exilado na Argélia, onde era locutor da Rádio Argel). Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, em 1963, com uma tese sobre Jean-Paul Sartre, Zeca Afonso assumiu frontalmente o seu empenhamento político com a edição do disco Baladas de Coimbra (1963), em particular em temas como «Os Vampiros» (crítica implícita ao sistema capitalista) e «Menino do Bairro Negro» (que denunciava a miséria do Bairro do Barredo, no Porto). Consequentemente, o disco foi proibido pela censura (em 1968, Zeca Afonso foi expulso do ensino, quando estava colocado em Setúbal, e depois disso tornou-se músico profissional). Em 1971, considerado um dos anos mais importantes da denominada «Nova Canção Portuguesa», saíram os discos Cantigas do Maio (Zeca Afonso), Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (José Mário Branco), Os Sobreviventes (Sérgio Godinho) e Gente d’aqui e d’agora (Adriano Correia de Oliveira), todos contendo alegorias ao clima de opressão política e à Guerra Colonial. Todavia, foi do álbum de Zeca Afonso que saiu a canção mais emblemática da resistência ao regime salazarista: «Grândola, Vila Morena» (era a quinta faixa do LP, que fora gravado em França entre 11 de outubro e 4 de novembro de 1971). Primeiro, porque foi cantada no encerramento do Primeiro Encontro da Canção Portuguesa, realizado em

16 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 164

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

março de 1974 no Coliseu dos Recreios (o edifício estava cercado por carrinhas da PIDE, entre outras razões, para comprovar que Zeca Afonso não desobedecia à proibição de interpretar canções como «Venham mais cinco», «Menina dos Olhos Tristes», «A Morte Saiu à Rua» ou «Gastão era Perfeito», proibição a que escapara, curiosamente, «Grândola, Vila Morena»); segundo, porque alguns dos militares do futuro Movimento das Forças Armadas, que tinham assistido a este espetáculo, a escolheram como senha para dar início ao golpe revolucionário do 25 de Abril de 1974. Na divulgação da música de intervenção a rádio desempenhou um papel determinante, em particular através do programa «Página Um» (criado em janeiro de 1968 na Rádio Renascença, com produção, realização e apresentação de José Manuel Nunes), cujo empenhamento social era uma novidade no éter português. Progressivamente, introduzidas no meio dos textos de doutrina social da Igreja, dos relatos da Assembleia Nacional transmitidos em direto e das crónicas retiradas de estações como a BBC, a Voz da América ou a Deutsche Welle, o programa começou a passar as músicas de Luís Cília, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Francisco Fanhais e Fausto (considerado a «Revelação do Ano 69»), tendo estado inclusivamente presente em três sessões de gravação de Venham mais Cinco, de Zeca Afonso. No final da década de 1960, a contestação à ditadura chegou também à música rock (e por sua vez à moda da juventude, com os seus cabelos compridos, as calças justas e as botas de salto alto), como foi o caso do Quarteto 1111 (formado por Miguel Artur da Silveira, José Cid, António Moniz Pereira e Jorge Moniz Pereira), cujo álbum de estreia, de 1970, foi retirado de circulação pela Comissão de Censura, por causa de temas com conotação política, como «Lenda de Nambuangongo» e «Pigmentação». Antes disso, o primeiro EP (extended player) deste grupo, intitulado A Lenda de El-Rei D. Sebastião (1967), conseguira a proeza de ser o primeiro disco a tocar no programa «Em Órbita», do RCP, num período – últimos anos do salazarismo e inícios da era marcelista – em que a rádio portuguesa começava a despertar e a ganhar consciência social, deixando gradualmente para trás os tempos em que se limitava sobretudo a ler notícias de jornais (como o Diário de Notícias ou o Novidades, ao ponto de serem consideradas o «diário sonoro do Governo», como a Emissora Nacional), poemas e excertos de obras literárias, a transmitir música tocada ao vivo em estúdio ou em espetáculos (sobretudo ópera e concertos de música erudita). Algo que se começava a sentir nos programas noticiosos – como o «PBX» (pela primeira vez no ar em 1967) ou o «Tempo Zip» (1970) – quer nos programas de entretenimento, como o «Em Órbita» (1965), que passava discos de música de

1 65

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 165

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

expressão inglesa, onde se incluíam canções de protesto, como as de Bob Dylan ou de Donovan (sobretudo a sua versão do «Soldado Universal»). O caldo de cultivo deste espírito de rutura foi acompanhado pelo surto de casas comunitárias, nos anos de 1969 e 1970, movimento inspirado pelos meios católicos progressistas, que defendendo posições críticas no interior da instituição católica pretendiam encontrar formas alternativas à família. Influenciados pelo Maio de 68 e pelo movimento hippy, os jovens preferiam agora ler, na literatura, Allen Ginsberg e Jack Kerouac, na filosofia Herbert Marcuse (sobretudo O Fim da Utopia), Wilhelm Reich, Rudi Dutschke, ou ainda os discursos de Daniel Cohn-Bendit, e na música descobriam os ritmos marroquinos e orientais (espírito comunitário que se dissolveu progressivamente após o 25 de Abril). Este início dos anos de 1970 ficou também marcado por dois acontecimentos musicais dignos de nota. Por um lado, o festival de música de Vilar de Mouros (agosto de 1971), apelidado por muitos como o «Woodstock português», onde músicos e público (que atingiu o número impensável, para a época, de 30 000 pessoas, entre as quais muitos hippies provenientes de vários pontos da Europa) viveram um clima inaudito de liberdade de expressão. Organizado por António Augusto Barge, pelo festival passaram grupos de diferentes géneros musicais, desde a música tradicional ao rock, passando pelo fado, pelo hard rock e pela música psicadélica, como Pop Five Music Incorporated, Beatnicks, Quinteto Académico, Objetivo, Quarteto 1111, Pentágono, Psico, Elton John e Manfred Mann). Por outro lado, o Festival de Jazz de Cascais, durante o qual, em 20 de novembro de 1971, o contrabaixista norte-americano Charlie Haden acabaria por ser detido no final da sua atuação com o quarteto de Ornette Coleman e posteriormente levado à Direção-Geral de Segurança, por ter dedicado uma das suas interpretações aos movimentos de libertação em Angola e Moçambique (depois de ter sido «convidado» a declarar o seu arrependimento num documento que assinou, Haden foi expulso do país levando consigo a gravação da peça em questão – Song for Che – escondida no bolso da gabardina, que depois seria editada no disco Closeness). A CULTURA E O 25 DE ABRIL DE 1974

A Revolução do 25 de Abril de 1974, que impôs o fim do Estado Novo, foi anunciada na rádio através de duas músicas, que serviram de sinal sonoro para avisar as unidades aderentes que as operações para derrubar a ditadura tinham sido iniciadas e, depois, que estavam a desenrolar-se conforme o planeado: a primeira

16 6

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 166

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

Eduardo Gageiro Vieira da Silva e Arpad Szénes, 1970 © Eduardo Gageiro, SPA, 2015

167

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 167

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

senha foi transmitida no programa «1-8-0», dos Emissores Associados de Lisboa, às 22h55m, quando começou ouvir-se «E depois do adeus», a música interpretada por Paulo de Carvalho no Festival Eurovisão de 1974; a segunda senha foi transmitida na Rádio Renascença, através do programa «Limite», às 00h25m, quando tocou «Grândola, Vila Morena», de Zeca Afonso, antecedida e seguida da leitura dos versos da canção (algumas horas depois, «Grândola» seria cantada pela multidão que encheu as ruas de Lisboa). Durante a governação de Marcello Caetano, o campo cultural manteve-se subordinado à lógica política, continuando a verificar-se uma transposição dos conflitos ideológicos (nomeadamente entre PCP e PS) para o interior da criação artística. E isso apesar da existência de um inimigo comum, que em certos momentos (como nos meses quentes que se seguiram à extinção da SPE) conseguiu remeter para segundo plano as divisões políticas, estéticas e profissionais que atravessavam a vida cultural. Com o derrube do regime, na sequência do golpe revolucionário de 25 de Abril de 1974, esta interpenetração entre cultura e política tornou-se ainda mais óbvia. Por exemplo, logo no 1.º de Maio, dias depois do golpe, na manifestação que percorreu diversas ruas cidade, enchendo-as de extremo a extremo, os escritores, convocados pela Associação Portuguesa de Escritores (a APE fora criada em 1973, no seguimento de um longo processo de diligências levadas a cabo por diversos escritores junto das instâncias oficiais), acorreram em grande número à manifestação que encheu as ruas de Lisboa, transportando um dístico onde se podia ler «Escrever é Lutar» e outro onde se podia ler «A Poesia está na rua». O objetivo era claro: chamar a atenção para o papel desempenhado na luta antifascista e, legitimados por esse passado de resistência, reivindicar uma participação ativa na dinâmica revolucionária, colocando-se totalmente à disposição do Movimento das Forças Armadas (MFA) para este utilizar os préstimos dos escritores. No fundo, a APE estava a responder ao apelo do MFA para que «todos os sectores da vida cultural se organizem e assumam perante o país as responsabilidades inerentes a uma normal vida cultural». A 14 de maio de 1974, a Junta de Salvação Nacional (JSN), através da Comissão de Cultura e Espectáculos do MFA, emitiu um comunicado onde anunciava a criação de uma comissão ad-hoc de carácter transitório para «controle» da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema (que seria incluída no Programa do MFA), ao mesmo tempo que declarava a necessidade urgente de não permitir a continuidade de uma «política cultural asfixiante» e informava ter contactado várias individualidades «de reconhecida competência» (entre escritores, atores, dramaturgos, cineastas, críticos, professores universitários Sophia de Mello

16 8

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 168

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

Breyner, Fernanda Botelho, Vergílio Ferreira, Álvaro Guerra, David Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Rogério Paulo, José Fonseca e Costa, Bernardo Santareno, Lima de Freitas, Óscar Lopes, Lindley Cintra, Joaquim Namorado, Rogério de Freitas, Fernando Lopes Graça, Fernando Namora, Luís Francisco Rebelo, Barahona Fernandes, Mário Vieira de Carvalho, etc.), em vários sectores da vida cultural com o objetivo de constituir uma Comissão Consultiva para estudar um Projeto de Política Cultural a instaurar no país. De imediato, a APE enviou um comunicado à imprensa declarando a necessidade e urgência de «esclarecer e concretizar uma política cultural», ao mesmo tempo que manifestava a sua estranheza pela forma precipitada como se pretendera constituir o grupo consultivo de individualidades para esse efeito, entre as quais se encontravam «flagrantes casos de oportunismo político» (como seus únicos e legítimos representantes para dialogar com a Comissão, a APE designava os seguintes escritores: Sophia de Mello Breyner, Maria Velho da Costa, José Gomes Ferreira, Fernando Namora, José Cardoso Pires e José Saramago). De igual modo, fazia saber que se considerava a única entidade com competência para ajuizar em assuntos que tivessem que ver com a atividade literária, ao mesmo tempo que invocava a sua «tradição progressista e democrática» demonstrada pela extinção da SPE. Com a «abolição do exame prévio» e a consagração da «liberdade de expressão e pensamento» deu-se o regresso dos intelectuais e artistas exilados, como Aurélio Quintanilha, Rodrigues Lapa, António José Saraiva, Manuel Alegre, Mário de Carvalho, António Barreto, Valentim Alexandre, José Augusto Seabra, Fernando Echevarría, etc. (o aeroporto das Pedras Rubras, no Porto, onde desembarcaram alguns deles, estava decorado com cravos vermelhos); a 11 de maio de 1974, o professor Emídio Guerreiro, o mais antigo exilado português (saíra do país 42 anos antes), a lecionar em Paris, onde recebera a cidadania francesa, regressou ao Porto. A 14 de maio, na cerimónia de inauguração da sede da APE, alguns escritores e intelectuais regressados do exílio encontraram-se «para falar do presente e do futuro do País e da classe», entre os quais se encontravam Fernando Piteira Santos (que um mês depois seria nomeado diretor-geral da Cultura Popular), Manuel Alegre, Mário Soares, Magalhães Vilhena e Joaquim Barradas de Carvalho, entre outros. Conscientes de estar a viver um momento de grande dimensão histórica, os intelectuais e artistas, «amordaçados durante a longa noite do fascismo», como se costumava dizer na época, deixaram-se levar pela euforia libertadora do 25 de Abril, afadigaram-se no lançamento de comunicados saudando o MFA e a Junta de Salvação Nacional (JSN), multiplicaram-se em telegramas de apoio

1 69

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 169

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

à Revolução e em debates sobre o necessário saneamento, arejamento e reorganização das estruturas dos diferentes sectores da cultura, declararam a sua disponibilidade para participar ativamente na mudança política e reivindicaram um papel na definição das novas políticas culturais. Logo em maio, sucederam-se as reuniões, as tomadas de posição, as saudações, algumas das quais merecem ser enumeradas, para dar conta da intensa participação cívica vivida na época: 1) um grupo de músicos enviou à JSN um manifesto – «Manifesto dos Cantores Líricos da Companhia Portuguesa de Ópera» – sobre a situação da música em Portugal e onde apontavam para a necessidade de dar início a um processo de saneamento e democratização da música portuguesa, visto que «todos os órgãos de direcção da política musical continuam a ser geridos pelas mesmas pessoas que, ao serviço do fascismo agiram contra o desenvolvimento de uma verdadeira cultura musical no nosso país e reprimiram compositores, intérpretes e agrupamentos» (por exemplo, pedia-se a demissão do responsável pelo sector da música na RTP, o maestro Manuel Ivo Cruz, que também dirigia a Orquestra Filarmónica de Lisboa, desde 1971); 2) os escritores para crianças e jovens, entre os quais Alice Gomes, Ilse Losa, Luísa Dacosta, Maria Lamas, Matilde Rosa Araújo, Sidónio Muralha e Sophia de Mello Breyner, enviaram um telegrama de saudação à JSN; 3) na sede da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) realizou-se uma reunião convocada pelo maestro Frederico de Freitas, presidente da respetiva Assembleia Geral, com a finalidade de serem estudados em conjunto diversos problemas de interesse para a classe «que no actual momento político se revestem de urgente acuidade»; 4) foi criada uma Comissão Consultiva para os Assuntos de Cinema, que começou logo por estudar as medidas tendentes à proteção do cinema nacional, à elaboração do anteprojeto de uma futura lei de cinema e à definição de uma política de atribuição de subsídios ao cinema português; 5) os cineclubistas de Lisboa reuniram na Sociedade Nacional de Belas-Artes para discutir o tema «Movimento Cineclubista e o actual momento político»; 6) o Sindicato dos Trabalhadores do Filme publicou um texto contra a ditadura e a persistência de certos resíduos da «organização fascista»; 7) os cineastas portugueses agrupados na Cooperativa Centro Português de Cinema (entre outros: Artur Ramos, Alfredo Tropa, António de Macedo, Gérard Castello Lopes, José Fonseca e Costa, Manoel de Oliveira, António da Cunha Telles, João César Monteiro, Fernando Lopes, Alberto Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos, Paulo Rocha) reuniram em Assembleia e lançaram um documento onde pediam para ser consultados sobre as medidas a ser tomadas nos vários sectores de atividade cinematográfica; 8) uma comissão eleita entre os trabalhadores dos diversos sectores da atividade teatral enviou

17 0

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 170

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

à JSN um documento enunciando as medidas mais urgentes a adotar pelo governo em matéria de política teatral; 9) o professor Vitorino Magalhães Godinho, afastado do ensino pelo antigo regime e que ainda em 1974 seria ministro da Educação e Cultura, foi proposto para diretor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU); 10) a assembleia de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa aprovou, por aclamação, a proposta do professor Orlando Ribeiro, para imediata integração, naquela faculdade, de António José Saraiva, Magalhães Godinho e Oliveira Marques (em complemento, aprovou-se também a integração de Urbano Tavares Rodrigues e a expulsão, entre outros, dos professores Veríssimo Serrão e Jorge Borges de Macedo, por conivência com a ditadura); 11) os funcionários do Ministério da Educação aprovaram um documento onde condenavam os critérios de escolha de livros escolares, por estarem sujeitos a critérios de divulgação ideológica fascista; 12) Fernando Balsinha anunciou no telejornal da RTP a suspensão de uma série de programas emitidos do anterior regime, entre os quais, «Danças e Cantares», «Motivos de Poesia», «O Livro à Procura do Leitor» e «Livros e Autores»; 13) a Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas propôs criar um plano nacional de leitura que levasse o livro a todos os pontos do país; os tradutores literários elegeram uma comissão para se debruçar sobre os problemas da classe; 14) os trabalhadores da SPA deliberaram nomear uma comissão de saneamento e reclassificação do pessoal, «a fim de expurgar a empresa de elementos comprometidos com o regime deposto em 25 de Abril»; 15) a Comissão Executiva dos Trabalhadores da Fundação Calouste Gulbenkian leu um comunicado em conferência de imprensa sobre a importância da reestruturação da Fundação, nomeadamente a democratização das suas estruturas (nesse mês de maio apareceram nos jornais vários protestos assinados por grupos de intelectuais contra a «atividade reacionária» da Gulbenkian). A propósito da Gulbenkian, a 3 de junho de 1974 os jornais publicaram um comunicado de um grupo de escritores (onde constavam nomes como Fernando Assis Pacheco, José Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, José Saramago, Maria Velho da Costa ou Pedro Tamen) manifestando o seu desagrado pela nomeação de Azeredo Perdigão, Presidente da Fundação Gulbenkian, para o Conselho de Estado, segundo eles por ter sido «responsável pela retrógrada política cultural exercida pela Fundação Gulbenkian» e por ter dado «o seu apoio pessoal e o da instituição que administra ao regime fascista derrubado». Nos meses subsequentes ao golpe, os diferentes sectores da vida artística desdobraram-se em assembleias magnas para apreciar os seus problemas, tendo em conta a conjuntura política e as novas circunstâncias, e em reuniões plenárias

171

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 171

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

para apreciar e debater questões relacionadas com as sindicalizações, os salários, a liberdade de reunião e o direito à greve, etc. Constituíram-se inúmeros movimentos, como o Movimento de Libertação das Mulheres e o Movimento Democrático de Artistas Plásticos (para assinalar o dia de Portugal, em 10 de Junho, o Movimento Democrático dos Artistas Plásticos organizou em Belém um festival artístico e popular no recinto do Mercado da Primavera, juntando 48 artistas – por exemplo, Sá Nogueira, João Abel Manta, Palolo, Ângelo de Sousa, Nuno San-Payo, René Bertholo, João Vieira, Jorge Martins, Querubim Lapa, Eduardo Nery, Helena Almeida, Costa Pinheiro, Júlio Pomar, Fernando Azevedo, Marcelino Vespeira, José Escada, António Domingues, Menez, Nikias Skapinakis – que elaboraram em conjunto um enorme painel de homenagem ao MFA, à revolução de Abril e ao povo português). Organizaram-se comissões culturais, multiplicaram-se as iniciativas, as conferências, as exposições, as evocações, os tributos e as homenagens a lutadores antifascistas (como a 25 de junho de 1974, ao professor Bento de Jesus Caraça, uma das maiores figuras da cultura portuguesa do século XX, e ao professor Pulido Valente, ambos perseguidos e silenciados pelo regime anterior, com uma romagem aos seus jazigos no cemitério dos Prazeres, onde discursaram o professor Rodrigues Lapa, ex-diretor da Seara Nova, Dias Lourenço, do Comité Central do PCP, e Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros e secretário-geral do PS). Realizaram-se dezenas de debates sobre a relação entre revolução e cultura, ou entre povo e intelectuais, discutiram-se amplamente questões como a ideia de arte militante e a tomada de consciência do artista, a democratização da cultura e a educação das massas através da difusão e inculcação da arte «revolucionária» ou «genuinamente popular». Em alguns desses debates emergiram, naturalmente, novas interpretações da História – por exemplo, os acontecimentos de 1383 foram apresentados como um «revolução popular» onde o povo (ou as massas lançadas na senda revolucionária) teve uma intervenção decisiva – e uma valorização de certos autores clássicos da literatura, como Fernão Mendes Pinto e Gil Vicente, cujas obras captariam o sentido mais profundo da expressão popular. O mesmo acontecendo com Camões, o grande símbolo da memória coletiva nacional, que começou naturalmente a ser analisado sob outro ponto de vista: não já como um poeta nacionalista, o cantor da epopeia que servira para justificar o imperialismo guerreiro e a política colonialista do regime, mas como um poeta «interveniente e progressista» (visível em sonetos como «Cá nesta Babilónia, donde mana…»). No palco do 25 de Abril houve sectores especialmente ativos, como a música (sobretudo de intervenção, a que mais se ouvia, ao vivo, na rádio e em disco),

172

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 172

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

o cinema (em particular os documentários) e o teatro. A 5 de maio, promovido e transmitido pela Emissora Nacional, realizou-se o I Encontro Livre da Canção Popular, na sala do Pavilhão dos Desportos do Porto, com atuações de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino, Francisco Fanhais, José Jorge Letria, Barata Moura, Carlos Paredes (no dia 18 de maio, igualmente promovido pela Emissora Nacional, realizou-se um espetáculo similar – «Canto Livre» – no Teatro São Luiz de Luiz, com alguns destes participantes); a 25 de maio, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, em forma de homenagem a Fernando Lopes Graça, «exemplo de verticalidade e combatividade intelectual» (por exemplo, em 1972, recusara o convite que lhe fora endereçado para professor do Conservatório Nacional de Música), foram cantadas as suas «Canções Heróicas», que até então só tinham sido interpretadas clandestinamente; discutiu-se a atuação da Ópera de São Carlos durante o fascismo, impassível e alheada dos problemas sociais, ao mesmo tempo que o traje de gala era abolido nos espetáculos; no IV Festival de Jazz de Cascais (novembro de 1974), Jorge Lima Barreto dedicou o seu concerto a todos os presos políticos, civis, militares e psiquiátricos. No cinema, a supressão da censura possibilitou desde logo a exibição dos filmes produzidos pelo CPC anteriormente proibidos (porque apresentavam uma visão política e crítica da moral convencional burguesa) como O Mal-Amado, de Fernando Matos Silva, ou ainda Sofia e a Educação Sexual, de Eduardo Geada, que estreou a 30 de julho de 1974 na Casa da Imprensa, integrado no ciclo de «Cinema Proibido», e que foi longamente ovacionado pelos espectadores. Além destes, destaque para a obra Adeus, até ao Meu Regresso, de António Pedro-Vasconcelos, e para a estreia, em 2 de maio de 1974 (no cinema Império, a anteceder a exibição de O Couraçado Pontemkin), da obra central do «novo cinema» no género documentário, a curta-metragem Jaime, de António Reis e da psiquiatra Margarida Cordeiro, um olhar sobre a vida do doente mental Jaime Fernandes, internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa, que seria premiado no Festival de Cinema de Locarno desse ano como melhor de curta-metragem. No seguinte, em 1975, estes dois realizadores assinaram também o documentário Trás-os-Montes, numa tentativa de registar elementos da cultura popular de uma das zonas mais isoladas do interior de Portugal, o qual integrava uma onda de cinema de levantamento etnográfico ou de antropologia visual (na linha de Jean Rouch), que já vinha sendo trabalhada desde antes do 25 de Abril (por exemplo, Vilarinho das Furnas, de 1971, realizado por António Campos, e Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada, de 1973, realizado por Manuel Costa e Silva, sobre as festas do Natal de Grijó de Parada, uma aldeia

173

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 173

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

transmontana), mas que marcou também o período revolucionário, com obras como Falamos de Rio de Onor (1974), de António Campos. No teatro, quase todas as companhias alteraram os seus programas para a temporada de 1974 e anunciaram a encenação de obras ou textos de Sartre, Manuel da Fonseca, Manuel Alegre, Bernardo Santareno e, sobretudo, Brecht (por exemplo, Terror e Miséria do III Reich, que esteve em cena na Cornucópia entre julho de 1974 e janeiro de 1975); no teatro de revista, subiu à cena a peça Uma no Cravo outra na Ditadura. No bailado, a temporada ficou marcada pela atuação de grupos do Leste e pelo regresso a Portugal do bailarino e coreógrafo belga Maurice Béjart (anos antes, na abertura de um espetáculo que ia apresentar no Coliseu dos Recreios, Béjart atacara violentamente «todos os fascismos do mundo», razão pela qual a PIDE o expulsou do país). Nas artes plásticas, José de Guimarães expôs na Galeria Dinastia e Ângelo de Sousa na Galeria Quadrum. Na literatura, a 8 de maio de 1974, as autoras do livro Novas Cartas Portuguesas foram absolvidas da anterior acusação; tentando contrariar os saneamentos literários, Jorge Sena publicou e apresentou um poema inédito de Fernando Pessoa, «Sim, é o Estado Novo, e o Povo», provando assim documentalmente que o poeta «pertencia à «Oposição» ao regime» e que era «antiautoritário»; na imprensa, o Diário Popular investigava o destino do espólio da Sociedade Portuguesa de Escritores e descobria que várias centenas de livros se encontravam na biblioteca da Casa Pia, em Belém, e que vários documentos, cartas e outros objetos de valor tinham sido enviados para a Torre do Tombo, em 1967; o único prémio literário que a APE atribuiu neste período foi o Prémio Adolfo Casais Monteiro (instituído pela família do escritor, mas administrado pela APE), a Fiama Hasse Pais Brandão. Em termos de consumos culturais, entre o 25 de Abril de 1974 e o verão de 1975 verificou-se genericamente um aumento em quase todos os sectores. Em 1975 compraram-se mais sete milhões de livros do que em 1974, como resultado da moda das obras de ciências sociais e de política, como os clássicos do marxismo, os livros sobre sindicalismo e os textos dos movimentos de libertação africanos, os depoimentos pessoais, cujas vendas praticamente duplicaram: os livros mais vendidos em 1974 eram O Capital, de Karl Marx (primeiro lugar), seguido de Do Estado Novo à Segunda República, de José António Saraiva; Portugal Amordaçado, de Mário Soares; O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril, de Avelino Rodrigues, Cesário Borga e Mário Cardoso; Mentiras de Marcello Caetano, de António Cruz e Vitoriano Rosa; Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed (aos poucos, as temáticas políticas foram sendo substituídas pela literatura erótica). De 1974 para 1975 aumentaram também as idas ao cinema, com mais

1 74

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 174

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

seis milhões de bilhetes vendidos, mais sessões (impondo-se progressivamente os filmes eróticos e de violência) e mais 80 estreias (apesar de os cinemas não terem privilegiado os filmes nacionais, entre o 25 de Abril e setembro de 1975 produziram-se mais de 40 obras portuguesas, entre longas-metragens, curtas-metragens, reportagens e documentários, muitos deles coletivos); a assistência nos teatros também aumentou, assim como aumentou o teatro gratuito nas ruas e na televisão (este foi aliás um período muito positivo para o teatro, que em 1974 recebeu vários subsídios, atingindo-se uma situação em que quase todos os atores, encenadores e dramaturgos tinham trabalho; o dinamismo deste sector era tal que nessa época chegou a ser discutido um projeto de lei que previa a passagem do teatro a serviço público). Em agosto de 1974, em resultado de uma primeira tentativa no sentido de definir uma política cultural, o II Governo Provisório instituiu as Campanhas de Dinamização Cultural, com o vasto objetivo de democratizar a cultura, colocando-a ao alcance de todos, nomeadamente nas zonas rurais do interior do país (através, sobretudo, do teatro militante e da canção de intervenção). Estas campanhas, levadas a cabo por militares auxiliados por alguns intelectuais, normalmente com filiação partidária, geraram apreensões críticas, foram apodadas de tentativas de dirigismo e manipulação, e cavaram um fosso entre algumas individualidades da cultura, em particular entre as que eram próximas do Partido Socialista e do Partido Comunista. No fundo, vieram apenas confirmar uma evidência, ou seja, que as divisões entre as pessoas da cultura eram uma consequência direta da transposição dos conflitos políticos para o interior da vida cultural. A rutura tornou-se pública a 7 de dezembro de 1974, quando um grupo de intelectuais e artistas, na sua maioria ligados ao PS, fez publicar no semanário Expresso um documento onde denunciava a falta de liberdade de expressão, nomeadamente na imprensa (o texto, intitulado «Apelo com Resposta – Liberdade de Escrita» – era assinado por Eduardo Lourenço, José-Augusto França, Liberto Cruz, José Augusto Seabra, João Palma-Ferreira, Fernando Echevarría, Vergílio Ferreira e José Sasportes), e os subscritores defendiam a autonomia da cultura. Consideravam os signatários que a censura oficial do Estado Novo estava a ser substituída por outra censura, «interna à maioria dos órgãos da imprensa», o que terá levado muitos daqueles que tinham apoiado o movimento de Abril a questionar-se sobre quais as reais mudanças que o golpe trouxera em termos de uma «liberdade autêntica de expressão do pensamento». De caminho, declaravam ainda a existência de grupos de «obediência partidária» que pretendiam impor uma ortodoxia do pensamento, «um neo-jdanovismo larvar», corporizado, entre outras coisas, nas campanhas de dinamização cultural. De modo

175

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 175

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

a preservar as condições da liberdade de expressão, exigiam a todos os sectores da cultura, em particular os escritores, que tomassem uma posição firme contra o projeto de lei de imprensa apresentado pelo poder saído da revolução (ao longo do ano de 1975, o PS conseguiu capitalizar este descontentamento causado pelas campanhas de dinamização, congregando à sua volta um grupo considerável de escritores que, além da sua discordância em relação às campanhas, estava contra a ingerência do PCP em diversos órgãos de comunicação social). Ao «Apelo com Resposta» aderiram 58 escritores, alguns deles de filiações ideológicas divergentes (ainda assim, a grande maioria das manifestações de apoio era de intelectuais próximos do PS). Um dos aspetos que sobressai desta narrativa da cultura durante o PREC é, naturalmente, a subalternidade ou subordinação da cultura à política. De facto, o 25 de Abril captou a atenção da sociedade para os factos políticos, de premência mais aguda que os problemas da criação artística: a cultura era a última das preocupações dos políticos e estava longe de ser uma prioridade revolucionária. A principal consequência foi o extremar dos conflitos e das polémicas, que decalcavam, na maior parte dos casos, as clivagens esquerda/direita ou PCP/ PS. Vendo-se enredados na teia dos conflitos político-partidários – na APE, por exemplo, os corpos gerentes tinham de refletir um equilíbrio entre escritores próximos do PS e do PCP, como aconteceu quando Sophia de Melo Breyner e Maria Velho da Costa eram respetivamente presidentes da Assembleia Geral e da Direção, a primeira pelo PS, a segunda pelo PCP –, os sectores da cultura não conseguiram estabelecer uma frente comum com força suficiente para pressionar o poder a definir e a aplicar uma política cultural que protegesse os seus interesses. As campanhas de dinamização cultural continuaram durante 1975, até serem extintas na sequência do Verão Quente e da queda do V Governo Provisório, em setembro. Nesse mês, um movimento organizado de intelectuais – o Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais (MUTI), que incluía nomes como Fernando Lopes Graça, João de Freitas Branco, Bernardo Santareno, Luso Soares, Luiz Francisco Rebello, E. M. de Melo e Castro, Maria Lamas, José Gomes Ferreira, Isabel da Nóbrega, Urbano Tavares Rodrigues, Batista-Bastos ou Manuel de Lima – lançou um manifesto na Sociedade Nacional de Belas-Artes com o objetivo de denunciar as «manobras contrarrevolucionárias» que estavam a pôr em causa as «conquistas da Revolução» (como as nacionalizações e a reforma agrária). Após a viragem de agosto de 1975, os intelectuais ligados ao PCP pareciam regressar, como defende Eduarda Dionísio, à instrumentalização da cultura como «estratégia de resistência» contra o poder.

176

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 176

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

A partir do VI Governo Provisório, que tomou posse a 19 de setembro de 1975, os subsídios à cultura diminuíram drasticamente e começou a formar-se a ideia de que a cultura é um «luxo» – nesta época nasceu o debate sobre os públicos da cultura – e que os dinheiros dos contribuintes devem ser canalizados, sobretudo, para as reformas do país. Em toda a segunda metade da década de 1970, a produção e o consumo cultural decaíram, em particular no teatro, que começou a perder espectadores (em 1978, pela primeira vez, houve menos de um milhão de espectadores de teatro) e fecharam salas (de 106, em 1975, passou-se para 84, em 1977), e no cinema (em 1979 há menos 11 milhões de idas ao cinema do que em 1976), muito por culpa da televisão e das telenovelas brasileiras (Gabriela, a primeira que passou na televisão portuguesa, foi um dos grandes acontecimentos culturais da década); apesar de haver salas a fechar, estreiam cada vez mais filmes (sobretudo norte-americanos e poucos são os filmes portugueses exibidos). Os diferentes lugares que a cultura foi ocupando na orgânica dos governos dão-nos conta de uma certa indeterminação ou indefinição da política para este sector: no I Governo Provisório, estava integrada no Ministério da Educação, aí permanecendo até agosto de 1975, altura em que passou, ainda no IV Governo Provisório, para a dependência do Ministério da Comunicação Social; depois, com a extinção desse ministério durante o I Governo Constitucional (1976-1978), a recém-criada Secretaria de Estado da Cultura (SEC) ficou na direta dependência da Presidência do Conselho de Ministros, para a desvincular, segundo os seus responsáveis, das anteriores «intenções estreitamente didáticas e de conotação de propaganda imediata»; até 1983, altura em que foi criado (no IX Governo Constitucional) um ministério exclusivo para a cultura, a tutela da SEC foi alternando entre a Presidência do Conselho de Ministros e o Ministério da Educação. A constante mudança dos responsáveis políticos durante a segunda metade da década de 1970 – entre 1978 e 1979, sucederam-se quatro governos – parece ter dificultado a prossecução de uma política cultural. Excetuando a abolição da censura (a grande referência para a cultura), os governos limitar-se-iam a desbloquear, pontualmente, alguns problemas financeiros (leia-se «a atribuir subsídios» de forma não sistemática). De resto, tratava-se sobretudo de discursos e declarações de intenções: democratização e descentralização cultural, estímulo à criação, defesa e conservação do património, etc. Caso paradigmático desta inconsistência em termos de política cultural foi a promessa de revisão do Código do Direito de Autor assumida pelo I Governo Constitucional em 1976: depois de sucessivos adiamentos, só em 1978 foi nomeado um grupo

177

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 177

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

interministerial com a incumbência de proceder a essa revisão, tendo decorrido quase cinco anos sem que a comissão tivesse dado por concluídos os seus trabalhos (mais do que isso, nem a APE nem a SPA foram admitidas a participar nesse grupo, sinal do fraco reconhecimento social e político das instituições da cultura). A CULTURA NA CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA: O PATRIMÓNIO, AS COMEMORAÇÕES, OS PRÉMIOS, A INTERNACIONALIZAÇÃO

No essencial, a segunda metade da década de 1970 ficou marcada por sucessivos desencontros entre os discursos dos governantes e os discursos dos «agentes culturais», que se consideravam marginalizados pelo poder. Ao entusiasmo e à esperança dos meses imediatamente posteriores ao 25 de Abril seguiu-se a «desilusão», o «desencanto», a «frustração» e as «desistências» (muitos intelectuais e artistas começam a sair dos partidos). Com a subida do PS ao poder, os sectores que antes defendiam o total comprometimento da arte na lógica revolucionária regressam à instrumentalização da cultura como contrapoder; por sua vez, aqueles que se recusaram a gravitar em torno do PCP adquiriram maior peso no pós-25 de Novembro, ou seja, ocuparam cargos e posições, receberam homenagens e condecorações. As posições invertiam-se: os outrora acusados de «dirigistas» e «gonçalvistas» passaram a acusar os «democráticos e pluralistas» de «totalitários e dirigistas», dito de outro modo, os anteriores adversários da autonomia da arte eram agora (retoricamente) os seus maiores defensores. A intervenção governativa na área da cultura, no final da década de 1970 e início da seguinte, saldou-se também pela reabilitação dos valores nacionais. No dia seguinte à sua tomada de posse como novo primeiro-ministro, a 24 de setembro de 1976, Mário Soares afirmou: «Há que reabilitar igualmente os valores nacionais e a cultura portuguesa. Não poderá ter um futuro democrático um país que não for capaz de honrar e dignificar os seus valores tradicionais, de respeitar as suas obras de arte e de cultura, de valorizar sem preconceitos ideológicos os seus centros de investigação científica. Ao tempo da propaganda obsidiante e pseudocultural, ao serviço de certo totalitarismo ideológico, tem que suceder a reintrodução crítica, serena, e livre dos valores caracteristicamente portugueses.» Um dos primeiros passos dados nesse sentido foi o surgimento de um novo modelo do 10 de Junho (Dia de Portugal) e a recuperação do conceito de Pátria com um passado glorioso. Para este efeito, o poder contou com a colaboração

178

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 178

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

de alguns nomes de prestígio que se tinham oposto à conceção marxista da cultura. Homenageados, comemorados e condecorados pelos governos, estas individualidades – algumas consideradas reacionárias pelo PCP – assumiram-se como «intelectuais do regime». Em 1977, por exemplo, foram convidados a proferir o discurso do Dia de Camões os escritores Vergílio Ferreira e Jorge de Sena, este último distinguido na ocasião com a Ordem do Infante D. Henrique; em 1980 seria a vez de David Mourão-Ferreira e de Eduardo Lourenço; no ano seguinte, o lugar foi ocupado por Agustina Bessa-Luís. Escritores que, diga-se, tiveram uma relação conflitual com o processo revolucionário, opondo -se ao empenhamento político da cultura. O IV Governo Constitucional (de direita), que entrou em funções em novembro de 1978, declarou explicitamente, como eixo da sua política para o sector, a defesa da herança cultural do passado e o regresso aos «valores humanísticos de oito séculos de história». Nascia assim a tendência, através da homenagem aos nomes do passado (e do presente), para conceber a cultura não como um lugar de confronto mas sim de consenso – a cultura como fator de unidade e de coesão nacional –, assente na ideia de «cultura pura», uma cultura sem causas e sem militância (leia-se: uma propaganda que se apresentava como apartidária). Regressava em força, à sociedade portuguesa, a cultura «comemorativa», nomeadamente através da reativação do tema dos Descobrimentos portugueses e da reintrodução, nos discursos, dos conceitos de «portugalidade», «valores caracteristicamente portugueses» e «identidade nacional». Um ciclo que atingiu um dos seus pontos altos com a criação, em 1986, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, visando a celebração de efemérides como a passagem do cabo da Boa Esperança, a chegada à Índia e ao Brasil (ao contrário do que aconteceu em Espanha, no V Centenário do Descobrimento da América, estas comemorações não deram origem a grandes polémicas). Em 1980 decorreu o IV Centenário da Morte de Camões, o mesmo ano em que Amália Rodrigues voltou a ocupar o estatuto de «símbolo nacional» (ou seja, o fado recuperou o prestígio perdido, bem como a sua função política), tendo-lhe sido atribuída nesse ano (juntamente com Alfredo Marceneiro) a Medalha de Ouro da Cidade de Lisboa (além de ter sido homenageada no Teatro Municipal São Luís). Reflexo desses tempos foi o enorme sucesso editorial do livro História Concisa de Portugal (1978), de José Hermano Saraiva, ex-ministro de Salazar (que aproveitou esse período para editar Elementos para Uma Nova Biografia de Camões, de 1978; Vida Ignorada de Camões, de 1980). Ou a afirmação, na vida pública, do historiador e catedrático da Universidade de Lisboa José Mattoso, o grande

179

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 179

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

dinamizador dos estudos da «identidade nacional» durante a década de 1980. Na sequência destes trabalhos, José Mattoso foi galardoado, em 1985, com o Prémio de História Alfredo Pimenta, pela obra Quinas e Castelos – Identificação de Um País (1096-1325). Este período ficou também marcado pelo incentivo a uma «política global de prémios», o qual deu início a uma autêntica proliferação (houve quem lhe chamasse «banalização» ou «vulgarização») de prémios literários, que substituíram, em certo sentido, o papel outrora desempenhado pelos movimentos estéticos e pelas tertúlias: Prémio de Ensaio Vitorino Nemésio, Prémio de Ensaio Jorge de Sena, Prémio de Ensaio José Rodrigues Miguéis, Prémio Carlos de Oliveira, Prémio Ruy Belo, Prémios de Ficção, de Poesia e de Ensaio do PEN Clube, Prémios do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, Prémios da APE (com destaque para o Grande Prémio de Romance e Novela), Prémio D. Dinis (da Fundação Casa de Mateus, em Vila Real), Prémio Ler (do Círculo de Leitores), etc. Em 1985 havia sete instituições literárias que atribuíam prémios (cerca de dezasseis com expressão nacional, não contando com os inúmeros atribuídos por câmaras municipais) e onde intervieram como júris mais de seis dezenas de escritores e de ensaístas. Entre os escritores que conseguiram sobressair no meio dessa febre de prémios, não só pelo número de galardões como pela quantidade de livros vendidos, encontram-se os nomes de Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, José Saramago, António Lobo Antunes ou Vergílio Ferreira. Esta multiplicação de prémios acompanhava, no fundo, uma tendência europeia: no final da década de 1970, a Holanda registava mais de oitenta prémios, um acréscimo substancial relativamente às décadas anteriores; na década de 1980 foram criados mais de cem prémios nos países germanófilos; e a Inglaterra contava, em 1984, com qualquer coisa como 184 prémios literários. Isso explica, em parte, a consagração internacional, nesse período, de alguns escritores portugueses: em 1977, Natália Correia ganhou o prémio francês La Fleur de Laure, atribuído pelo Centre International de Poésie Néo-Latine e pelo Comité des Prix Pétrarque de Poésie Néo-Latine; em 1979, Fernando Namora, Sophia de Mello Breyner Andresen e Jacinto do Prado Coelho foram distinguidos também em França, o primeiro com a medalha de ouro da Societé d’Encouragement au Progrès de France, e os dois últimos com as medalhas Vermeil; David Mourão-Ferreira recebeu a Legião de Honra Francesa em 1980; no ano seguinte, Miguel Torga foi distinguido na Alemanha com o Prémio Montaigne. Entretanto, a política cultural assente na preservação do património e na promoção da identidade nacional manteve-se no VI Governo Constitucional (formado pela Aliança Democrática e liderado por Francisco Sá Carneiro, tomou

18 0

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 180

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

posse em 1980 e designou como secretário de Estado da Cultura o historiador Vasco Pulido Valente). O elemento de continuidade nas políticas culturais dos governos da década de 1980 (aproveitando os financiamentos externos) foi, sem dúvida, a aposta no património monumental e museológico, bem como na difusão da língua e cultura portuguesas no mundo, claramente as áreas prioritárias e para onde foram canalizadas mais verbas. Em nome da identidade nacional e da memória coletiva, os governos apoiaram a conservação e restauro do património degradado, nomeadamente os monumentos, os museus e os centros históricos das cidades, muitos deles classificados e integrados em candidaturas a Património Mundial da UNESCO. Ao longo dos anos de 1980, Portugal obteve sete classificações de Património Mundial: o Centro Histórico de Angra do Heroísmo, o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Mosteiro da Batalha, o Convento de Cristo, o Centro Histórico de Évora e o Mosteiro de Alcobaça. Foi o contexto idóneo para se desenvolver a ideia da cultura como instrumento de promoção turística, estabelecendo-se uma ligação estreita entre património e lazer, por exemplo, com a reabilitação de fortalezas e conventos e a sua transformação em pousadas (uma das primeiras foi a fortaleza de Vila Nova de Cerveira, que em 1983 ganhou um diploma no concurso Europa Nostra, organizado pela Federação Internacional das Sociedades de Conservação do Património). Em paralelo à defesa do património, procurou-se também privilegiar a difusão e internacionalização da cultura portuguesa, claramente uma das estratégias centrais da política deste sector nas duas últimas décadas do século XX. A criação, em Madrid, a 27 de março de 1979, do Instituto de Cultura Portuguesa, talvez tenha marcado o início desta fase de progressiva internacionalização da cultura nacional. Daí para a frente, fruto de uma enorme necessidade de reconhecimento do estrangeiro, Portugal apostou na multiplicação dos contactos internacionais. Alguns exemplos: em 15 de outubro de 1980 foi criado, em Viena, o Centro Português de Cultura; em dezembro de 1980 comemorou-se em Espanha, em diversas universidades, o IV Centenário de Camões, de que resultou a edição bilingue de Os Lusíadas, com tradução de Aquilino Duque; entre meados de 1981 e fevereiro de 1982, a exposição «Vida e Obra de Fernando Pessoa» percorreu várias cidades espanholas; a 7 de maio de 1983 arrancou em Lisboa a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, sob os auspícios do Conselho da Europa e subordinada ao tema «Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento»; a 7 de dezembro de 1983 foi inaugurado na Fundação Juan March, em Madrid, um ciclo de homenagem pública da capital espanhola a Almada Negreiros, com conferências de José-Augusto França, Eugénio Lisboa, Lima de Freitas e Eduardo Lourenço; em 1984, Portugal participa pela primeira vez na ARCO de Madrid;

181

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 181

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

depois do Colóquio de Royaumont dedicado a Fernando Pessoa – «Rencontre autour de Fernando Pessoa» –, realizado em 1986, a sua obra começou a ser amplamente traduzida em França; em 1985, o então ministro da Cultura Jack Lang condecorou Amália Rodrigues com a Ordem das Artes e das Letras e foi escolhida, em Paris, como «Personalidade Internacional do Ano». Na música, a segunda metade da década de 1970 – com o 25 de Abril desapareceu a maioria dos grupos de música – coincidiu com o início do chamado «novo rock português». Entre bandas menos conhecidas como Arte & Ofício, Perspectiva, Tantra, Aqui D’El Rock, Ananga-Ranga ou Go Graal Blues Band, nos meados dessa década assistiu-se ao nascimento dos UHF e dos Xutos & Pontapés (que deram o primeiro concerto em janeiro de 1979, na sala lisboeta Alunos de Apolo, numa festa de comemoração dos 25 anos do Rock & Roll), conjuntos musicais que simbolizam bem uma época que testemunhou a entrada do consumo de drogas na cultura popular. Nas letras das músicas multiplicavam-se as referências às drogas, como em «Jorge Morreu» (1979), dos UHF, em memória de um amigo que morrera por consumo de drogas duras; «Patchouly», do Grupo de Baile, onde se fala das miúdas que já fumam «ganzas» nas paragens do elétrico; ou o «Chico Fininho», de Rui Veloso, que andava «Aos sss pela rua acima/Depois de mais um shoot/nas retretes/Curtindo uma trip de heroína» (letra de Carlos Tê). Ao lado de Rui Veloso, considerado por alguns o pai do rock português (com o lançamento, em 1980, do seu álbum de estreia Ar de Rock), surgiu toda uma miríade de nomes que constituíram o boom do novo rock português – Roxigénio, Trabalhadores do Comércio, Táxi, Roquivários, António Variações (um dos grandes renovadores da cultura musical da década de 1980 e uma das primeiras figuras públicas portuguesas a morrer vítima de SIDA, aos 39 anos de idade), Salada de Frutas, Rádio Macau, BAN, Mão Morta ou GNR (surgido no Porto em 1982, tornou-se popular com o single «Portugal na CEE» e foi a primeira banda portuguesa, em 1992, a encher um estádio de futebol para um concerto ao vivo, reunindo cerca de 40 000 espectadores) – e que ajudou a criar um mercado de massas para este tipo de música. Nesta época surgiram ainda dois projetos musicais que se encaixaram perfeitamente com o contexto anteriormente referido de «reabilitação dos valores nacionais», os Heróis do Mar e a Sétima Legião, os primeiros liderados por Pedro Ayres de Magalhães (e de cujo repertório faziam parte algumas letras de Miguel Esteves Cardoso, muito conhecido então pela coluna «A Causa das Coisas» que assinava no principal semanário português – Expresso –, misto de análise humorística e excursão antropológica e exótica em torno das particularidades e peculiaridades da «maneira portuguesa de estar no mundo»).

1 82

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 182

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

Com propósitos aparentemente mais comerciais mas não isento de conteúdo político – exposição ousada do corpo feminino, explicitação do desejo e do prazer físico da mulher, algo que poucos anos antes seria objeto de censura e mesmo de criminalização – foi o fenómeno da banda Doce, uma das primeiras girls group da Europa. Em setembro de 1979, Fátima Padinha, Teresa Miguel, Lena Coelho e Laura Diogo formaram um quarteto de música pop que conheceu um enorme êxito de vendas, tendo conquistado diversos discos de platina e de ouro. O primeiro single, intitulado Amanhã de Manhã, saiu em 1980 – ainda hoje é um dos temas da canção popular portuguesa que mais vendeu – e conferiu-lhes imediatamente um lugar destacado no mundo da televisão, da rádio e dos espetáculos ao vivo, e catapultou-as para as capas das revistas e as primeiras páginas dos jornais. A forma como as Doce se apresentavam em palco não deixou de escandalizar um país que continuava, nas suas bases, a ser intolerante, puritano e provinciano: em março de 1981, no Festival RTP da Canção, as Doce apresentaram-se vestidas de odaliscas e interpretaram uma coreografia «demasiado» sensual ou erótica, enquanto cantavam o tema Ali-Babá, um Homem das Arábias (o mesmo país que em junho de 1988 censurou e pôs termo ao programa de Herman José, o mais famoso cómico português da época, Humor de Perdição, devido à rubrica «Entrevistas Históricas», defendendo -se então os responsáveis da RTP com a sua «obrigação de defender os valores históricos e culturais de Portugal»). Apesar ou por causa do escândalo, a música foi um sucesso de vendas e o disco mais vendido daquele ano, e em 1982 venceram o mesmo Festival, com o tema «Bem Bom». Graças à participação no Eurovisão desse ano, as Doce conheceram algum reconhecimento internacional, o que lhes permitiu editar discos em espanhol e inglês, e as levou a percorrer vários países, sobretudo aqueles com grandes comunidades lusófonas, como França. Com a chegada de Aníbal Cavaco Silva ao poder, durante dez anos primeiro-ministro de Portugal (entre 1985-1995), a política continuou a atribuir primazia ao património (e ao impresso/leitura) e ao reconhecimento internacional (ou construção de uma imagem cultural do país), por um lado, através da divulgação e defesa da língua portuguesa no mundo, por outro lado, por via da realização de grandes eventos internacionais (que implicariam a construção de grandes equipamentos culturais). Os fundos europeus (Portugal entrou na CEE em 1986), aliás, apontavam nesse sentido: investimentos em «infraestruturas» (salas de espetáculos, etc.), defesa do património e incremento da leitura. Apesar de Cavaco Silva ter retirado o estatuto de ministério à cultura (até então, apenas entre 1983 e 1985 foi a cultura tutelada por um ministério), os primeiros anos

183

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 183

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

da sua governação, graças às verbas comunitárias, registaram um aumento considerável no orçamento para a cultura, da ordem dos 50%. Em agosto de 1986, numa primeira tentativa de começar a privatizar a cultura, surgiu a Lei do Mecenato. Segundo a secretária de Estado da Cultura, Teresa Patrício Gouveia, pretendia-se diminuir a intervenção do Estado na cultura e estimular o «patrocínio particular e empresarial». Surgia assim uma nova função para as políticas governativas neste sector – conseguir convencer os privados a investir na cultura, ou seja, obter financiamentos (em troca, o Estado oferecia benefícios fiscais) – e começava a instalar-se uma perspetiva essencialmente economicista na cultura, que se deveria adaptar às leis do mercado. A evolução da política dos governos de Cavaco Silva, porém, mostra que esta tendência para privatizar a cultura – através do mecenato privado (que passava pela atribuição de benefícios fiscais às empresas) e da criação de fundações (cerca de metade das fundações criadas eram financiadas pelo sector público) – foi pouco consistente e pouco expressiva. Em parte devido à conceção de cultura adotada, em parte devido ao impacto perverso dos fundos comunitários. A necessidade de internacionalização e a perspetiva da cultura como um dos grandes fatores de integração do país na CEE (e no mundo) levaram os governos a conceber a cultura como uma espécie de «embaixada» ou como um instrumento político de prestígio externo e, simultaneamente, de propaganda interna. Consubstancial a esta orientação política foi a promoção da língua e da literatura portuguesas – enquadrada na ideia de lusofonia, para incrementar as relações com as comunidades e os países de língua oficial portuguesa –, levada a cabo em acontecimentos como as comemorações do Centenário de Fernando Pessoa, em 1988 (anos antes, em 1985, tinham decorrido as cerimónias de trasladação dos restos mortais do poeta para o Mosteiro dos Jerónimos, a máxima consagração em termos oficiais); a criação do Prémio Camões, em 1989, ao abrigo de um protocolo entre o Estado português e o Estado brasileiro, com o objetivo de «consagrar anualmente um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum» (os escritores portugueses premiados foram: Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago, Eduardo Lourenço, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Maria Velho da Costa, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes e Manuel António Pina); ou a criação, em junho de 1992, do Instituto Camões (significativamente tutelado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros), de cujos objetivos fundadores faziam parte a coordenação e execução da política cultural externa de Portugal, nomeadamente a difusão da língua portuguesa (através, por exemplo, da criação de uma rede de

184

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 184

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

docência da língua portuguesa no estrangeiro; do apoio à investigação e intercâmbio de professores universitários e investigadores portugueses e estrangeiros; concessão de bolsas de estudo; realização de acontecimentos culturais em instituições portuguesas no estrangeiro, etc.). Prova de que a política cultural dos governos de Cavaco Silva tinha uma forte natureza propagandística foi a exclusão da candidatura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prémio Europeu de Literatura, por decisão do subsecretário de Estado da Cultura, António Sousa Lara, que considerou que o livro «atacava os princípios que têm que ver com o património religioso dos cristãos e, portanto, longe de unir os portugueses desunia-os naquilo que é o seu património espiritual». Um acontecimento que motivou as mais enérgicas reações de diferentes sectores culturais e fez estalar, de algum modo, o verniz da imagem internacional do país que o governo andava a tentar construir (por exemplo, tanto o presidente da Comissão dos Assuntos Culturais da União Europeia, como o Presidente do Parlamento Europeu condenaram a decisão do governo português). Em resultado de uma política muito centrada numa lógica de homenagens e de atribuição de prémios, que obviamente tendem a valorizar a dimensão individual da criação artística e intelectual, impôs-se a moda das listas das figuras mais influentes ou mais importantes da cultura portuguesa, onde passaram a ser presenças obrigatórias os nomes de Fernando Pessoa, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes (literatura), Cármen Miranda, Amália Rodrigues, Carlos Paredes, Maria João Pires, Madredeus (música), Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Maria de Medeiros (cinema), Siza Vieira, Tomás Taveira (arquitetura), Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo (teatro), Ana Salazar (moda), Almada Negreiros, Vieira da Silva, Paula Rego (arte), etc. Outra grande estratégia levada a cabo pelos governos de Cavaco Silva, sempre nesta perspetiva da cultura como fator de integração de Portugal na Europa e sua projeção no mapa-mundo da cultura, foi a organização de (ou participação em) grandes eventos internacionais (para um país com as dimensões de Portugal, não deixa de ser curiosa esta obsessão pelo «grande» e pelo «gigantesco»). Recém-integrado na Comunidade Europeia, Portugal queria fazer figura, queria mostrar serviço, queria mostrar competência e capacidade de concretização. Foi neste contexto que decorreram, ao longo da década de 1990, vários acontecimentos que agitaram e dinamizaram o meio e que contaram com o apoio e a adesão entusiásticos de intelectuais e artistas, intensificando-se assim uma tendência iniciada na década anterior: a estatização da cultura (no sentido em que a cultura passou a depender grandemente da política do Estado para o sector, por exemplo,

185

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 185

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

através de uma avalanche de encomendas de espetáculos de teatro, música, cinema, dança, de livros, de discos, etc.). Uma das consequências desta passagem de um Estado que controla a informação (durante o salazarismo) para um Estado cultural (de matriz francesa) foi a integração da vida cultural, cada vez mais, na dinâmica das instituições oficiais, o que implicou também uma maior dependência dos produtores em relação aos orçamentos estatais (preocupados em manter os seus cargos e em garantir subsídios, muitos artistas e intelectuais abdicaram de uma parte significativa da sua autonomia). Em 1991, a Europália – Festival Bienal de Arte e Cultura realizado na Bélgica – foi dedicada a Portugal (ampliando assim as oportunidade de os produtores culturais estabelecerem contactos e integrarem-se nos circuitos internacionais). A Europália facilitou a internacionalização de alguns artistas portugueses, como o grupo de música Madredeus, que foi convidado para dar uma série de concertos na Bélgica (alguns anos depois, o grupo chegou a estar no primeiro lugar das tabelas de vendas em Espanha, o que ajudou a criar as condições para fazer algumas digressões internacionais, com atuações, por exemplo, no Brasil, e em alguns países do Extremo Oriente; a projeção mundial dos Madredeus aumentou com o filme de Wim Wenders, Lisbon Story, protagonizado pelo grupo, que também assinou a respetiva banda sonora). Em 1992, Portugal participou ativamente na Expo’92, em Sevilha, para onde levou artistas e obras, organizou reconstituições históricas e desfiles. Depois, em 1994, o ano das comemorações dos 600 anos do nascimento do Infante D. Henrique e dos 500 anos da assinatura do Tratado de Tordesilhas (para contrariar esta febre comemorativa, a editora Antígona lançou o livro Ministros da Noite, com organização de Ana Barradas, uma antologia de textos que mostram a violência dos Descobrimentos e da colonização), Portugal procurou projetar-se internacionalmente através do evento «Lisboa, Capital Europeia da Cultura», cujos grandes objetivos, segundo o seu comissário, o economista Vítor Constâncio (ex-governador do Banco de Portugal e ex-secretário-geral do PS) eram fazer de Lisboa «uma montra da cultura portuguesa» e «promover a imagem de Lisboa como cidade cultural e posicioná-la no contexto europeu em termos diversos, melhorar o clima de criação cultural – os apoios a iniciativas de criadores nacionais, as encomendas, inserem-se nesse objetivo – e tentar criar novos públicos para as diferentes manifestações. Ao mesmo tempo, posicionar as manifestações culturais portuguesas nas redes internacionais de eventos culturais». Já em 1995, graças à ação conjunta dos ministérios da Cultura e da Economia, Portugal regressou à Bienal de Veneza, onde sobressaíram as presenças de Julião Sarmento, Jorge Molder, João Penalva e Cabrita Reis. No final

18 6

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 186

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

dessa década, em 1997, a 49.ª Feira do Livro de Frankfurt teve Portugal como país-tema, e em 1998, Lisboa acolheu a Exposição Internacional-Expo’98, sob o lema «Os oceanos, um património para o futuro» (a inauguração decorreu no dia 10 de Junho de 1998, Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas); e ainda nesse ano, a ARCO teve Portugal como país-tema, o que terá ajudado a difundir e dinamizar a arte portuguesa. Acontecimentos de grande escala que vieram revolucionar a vida cultural, social e empresarial do país. Desde logo, recuperaram-se ou reconverteram-se museus e salas de espetáculos: em 1989 foi criada a Fundação de Serralves, no Porto, que a partir de 1999 albergaria um Museu Nacional de Arte Contemporânea, projetado por Siza Vieira, sendo hoje um dos espaços culturais mais visitados do país; em 1992 o Estado adquiriu o São João Cine, no Porto, e no final desse ano reconverteu-o em Teatro Nacional São João; em 1993 foi fundada a Casa-Museu Fernando Pessoa; em 1994, o Museu do Chiado foi inteiramente reconstruído e transformou-se em Museu Nacional de Arte Contemporânea; em 1994 foi inaugurado o Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva. Depois, as encomendas a artistas e intelectuais multiplicaram-se, a oferta cultural diversificou-se, as iniciativas culturais inundaram os jornais e as televisões, os gestores e os comissários tornaram-se profissionais de prestígio (foi a época de ouro dos gestores, dos curadores e dos programadores de cultura), a hotelaria, as construtoras, os engenheiros e os arquitetos lucraram como nunca, graças a importantes projetos de reabilitação urbana – tendo em vista a Capital de Cultura, promoveu-se a reabilitação de habitações degradadas em zonas antigas da cidade de Lisboa, através do programa RECRIA, que se intensificou entre 1988 e 1992; reconstruiu-se o Chiado, que tinha sido destruído por um incêndio em 1988, a parte oriental da cidade foi completamente reconfigurada, destruíram-se alguns bairros de barracas, a rede de metro foi alargada, etc. Para receber tanta atividade cultural, os governos investiram uma parte apreciável dos orçamentos do Estado na construção de novos equipamentos culturais (obras faustosas e propagandísticas, na opinião de uns, reforço do tecido artístico e cultural, na opinião de outros), com destaque para o Centro Cultural de Belém (curiosamente localizado perto do mesmo espaço onde 50 anos antes Salazar tinha organizado a Exposição do Mundo Português). Construído «para potenciar e difundir a criação artística e acontecimentos culturais de grande repercussão», o CCB custou perto de 40 milhões de contos (muito mais que o orçamento da Secretaria de Estado da Cultura desse ano) e abriu ao público a 21 de março de 1993. Meses depois, em julho, foi inaugurado (também em Lisboa) o edifício novo da Caixa Geral de Depósitos, «o maior complexo bancário europeu», que, através da Culturgest, a sociedade gestora do espaço e da programação cultural

187

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 187

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

do edifício, passou a constar do roteiro dos grandes espetáculos. Infraestruturas monumentais que dominam a paisagem à volta e que, conjuntamente com outros edifícios emblemáticos – por exemplo, as novas instalações da Torre do Tombo – alcandoraram a arquitetura ao topo da hierarquia dos valores culturais e fizeram dos arquitetos figuras nacionais de grande prestígio (Álvaro Siza Vieira, que, em 1988, recebera o Prémio Europeu de Arquitetura, foi distinguido, em 1992, com o Prémio Pritzker). Um dos momentos altos da cultura portuguesa nestas décadas foi, sem dúvida, a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, em outubro de 1998. Ganhar o Nobel tornara-se uma obsessão para os Portugueses, daí provavelmente o entusiasmo com que a notícia foi recebida. Desde que as suas obras começaram a ser traduzidas em todo o mundo (incluindo a Suécia), José Saramago era um dos nomes mais falados. Durante muito tempo, falou-se de Miguel Torga, de Vergílio Ferreira, de Sophia de Mello Breyner e de Agustina Bessa-Luís como os candidatos mais prováveis à lotaria dos milhões. Na década de 1990, porém, os nobelizáveis da literatura portuguesa reduziram-se a Saramago e a António Lobo Antunes (o que, aliás, serviu para alimentar, na imprensa, a rivalidade entre os dois). O livro que verdadeiramente lançou a obra de Saramago nos circuitos literários internacionais foi Memorial do Convento (1982), graças às traduções para inglês e francês, publicadas em 1987 (na altura da notícia da entrega do Nobel, Saramago já estava traduzido em mais de trinta línguas). Depois do episódio de O Evangelho segundo Jesus Cristo – que levara o escritor a «exilar-se» em Lanzarote –, Saramago foi recebido na pátria como o «filho pródigo». Nas ruas de Lisboa, nos placares de publicidade e em cartazes pendurados nos candeeiros, «Parabéns, José Saramago», «Obrigado, José Saramago». Triunfal, Saramago foi envolvido em banhos de multidão, os discursos e as homenagens sucederam-se a um ritmo alucinante, a Biblioteca Nacional atribuiu-lhe a medalha de Leitor Emérito, acabada de criar para esse efeito, os jornais e as revistas dedicaram-lhe extensíssimos suplementos (no do Diário de Notícias, por exemplo, Álvaro Cunhal, o histórico e misterioso líder do PCP, assinou um depoimento referindo-se ao camarada de partido como «a alegria dos comunistas portugueses»), nas livrarias, as prateleiras, os expositores e os espaços nobres das montras vestiram-se de amarelo, a cor inconfundível das capas dos seus livros, todos editados na Caminho. Saramago juntava-se assim ao núcleo dos artistas que, a partir da década de 1990, começaram a gozar de grande reconhecimento internacional, como Paula Rego (que em 2010, por exemplo, recebeu da Rainha Isabel II a Ordem do Império Britânico com o grau de Dama Oficial, sendo hoje considerada um dos grandes nomes da pintura mundial).

18 8

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 188

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

A FESTIVALIZAÇÃO DA CULTURA

Outra das tendências que se começou a desenhar neste período foi aquilo que se poderia designar por festivalização da cultura. Depois de uma política de prémios e de homenagens, que dispersou e atomizou a vida cultural, passou-se a uma política dos festivais e dos encontros, dos ciclos, das mostras e das bienais, das retrospetivas e dos balanços, não só na capital mas também na província, onde também começaram a ser organizados inúmeros festivais (o que levou a uma proliferação de pequenos e médios centros culturais nas cidades do interior). Sazonalmente, os criadores e produtores culturais passaram a concentrar-se em festivais de música (como o Paredes de Cousa, em 1993, e o Super Bock Super Rock, em 1995, realizado na Gare Marítima de Alcântara, os primeiros dessa nova fase de festivais; a que se seguiram o Festival Sudoeste, Andanças – Festival Internacional de Música e Dança Tradicional, Delta Tejo, Festival Marés Vivas, Optimus Alive, Rock in Rio, Seixal Jazz), de cinema (Curtas de Vila do Conde, DocLisboa, Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa, Festival de Cinema Luso-Brasileiro, Festival de Cinema Latino-Americano, Indie Lisboa), de banda desenhada (Festival Internacional de BD da Amadora ou Festival de BD de Beja), de artes (Festival de Artes Performativas de Vila do Conde), etc. A lista é infindável e revela-nos que a cultura, em particular na área da música, passou a ser encarada sobretudo como um espaço de diversão e de evasão, de bem-estar e de prazer. Se antes a cultura estava associada principalmente à informação e à intervenção ou militância cívica e política, interessava agora (na sequência da grande massificação do ensino da década de 1980) ocupar os tempos livres dos Portugueses, em particular os jovens (a década de 1990 foi, aliás, a década da «entrada dos jovens na cultura», se pensarmos que antes a cultura era quase toda direcionada para os públicos adultos). Se antes os festivais de música tinham aspirações a ser vistos como acontecimentos de contracultura, sobretudo para atrair os jovens que se consideravam desalinhados e que ali podiam afirmar e celebrar um sentimento de diferença, a partir da década de 1990, com a sua «profissionalização», os festivais passaram a ser a norma, foram invadidos pela publicidade e tornaram-se, em resultado da crise da indústria discográfica e da diminuição acentuada dos direitos de autor provenientes das vendas de discos, indispensáveis para o financiamento e a sobrevivência das bandas e dos músicos. Com isto chegou também, inevitavelmente, a especialização: aos festivais dirigidos às grandes massas juntaram-se depois os festivais dirigidos a públicos específicos (em particular ligados à chamada world music ou à dita música étnica) ou realizados fora das grandes cidades, em ambiente rural, sustentados na defesa

189

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 189

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

de valores culturais alternativos e na recusa da dependência em relação ao sistema comercial (como o Boom Festival, realizado bienalmente em Idanha-a-Nova desde 1997). Desde então, os festivais tornaram-se inseparáveis da forma como as pessoas se relacionam com a música. Esta festivalização contribuiu também para a afirmação de um outro género musical, a música «pimba», adjetivo criado pelas elites culturais para designar o culto do mau-gosto e da brejeirice (com o qual os próprios não se identificam, preferindo a designação de «música romântica»). À boleia das múltiplas festas académicas (onde o consumo de álcool e de haxixe se tornaram práticas estruturantes das sociabilidades) e dos bailes de verão nas aldeias do país ou em sociedades recreativas, os concertos de, entre muitos outros, Ágata, Emanuel (o seu disco intitulado, precisamente, Pimba vendeu perto de 80 000 exemplares) ou de Quim Barreiros (só em 1994, vendeu 800 000 discos, tendo-se tornado, graças sobretudo às festas universitárias, o artista português que mais espetáculos faz em Portugal), esgotavam bilheteiras (mais tarde seriam também requisitados para comícios partidários) e alastravam pelas rádios, televisões, romarias, feiras, etc. Finalmente, a festivalização é o triunfo da comercialização ou da visão economicista da cultura, que tendo sido incluída na retórica oficial dos governos de Cavaco Silva, fora por sistema adiada (ou relativizada) devido à política dos grandes acontecimentos e das grandes construções. Passada essa fase, esvaziadas as arcas públicas – o que obrigou o Estado investir menos na cultura – havia que rentabilizar esses espaços ou infraestruturas, por exemplo, entregando-os cada vez mais à iniciativa privada e ocupando-os com múltiplos acontecimentos efémeros. O sector privado diversificou-se na cultura, através do mecenato – a cultura passou a ser a forma das empresas se apresentarem no mercado – e de outros patrocínios, sujeitando assim a atividade cultural à obsessão com a rentabilidade e com a minimização dos custos de trabalho (e maximização da eficácia produtiva). No final, apetece perguntar: será que os Portugueses passaram a valorizar mais as atividades culturais? Será que passou a existir um público (ou públicos) mais sensibilizado e mais motivado para a cultura? Apesar de a oferta ter crescido, o Instituto Nacional de Estatística tem registado diminuições significativas no número de frequentadores de espetáculos, museus, cinemas e teatros, e não se pode dizer, com propriedade, que a leitura se tenha generalizado como um hábito cultural dos Portugueses (em 1993, o país registava o índice de leitura mais baixo da União Europeia). Apesar dos grandes investimentos na conservação e recuperação do património, Portugal continua a ser um país que cuida

190

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 190

30/03/15 10:14

A C ULT U RA

pouco dos seus monumentos (e que os vandaliza, destruindo ou assistindo, indiferente, à degradação de estradas e pontes romanas, de igrejas e solares, de cinemas e cineteatros históricos). Ao contrário do pretendido, a aposta na internacionalização não colocou os artistas portugueses – com algumas exceções – na rota dos grandes acontecimentos culturais espalhados pelo mundo. Como conclui o estudo O Sector das Actividades Artísticas Culturais e de Espetáculo em Portugal (2006), «apesar da importância que reconhecidamente a cultura tem vindo a alcançar em vários domínios da sociedade portuguesa e que os dados relativos ao aumento da despesa se encarregam de confirmar, certo é que a situação geral ainda se caracteriza por acentuadas carências, desequilíbrios e assimetrias, que ainda nos mantêm numa situação de desnivelamento face aos demais países da União Europeia». Reflexo das perspetivas e esperanças de mobilidade ascendente dos cidadãos, a cultura foi, ainda assim, um dos sectores que mais contribuiu para a liberalização dos costumes e para um maior pluralismo social, tornando a sociedade portuguesa mais aberta e inclusiva.

191

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 191

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 192

30/03/15 10:14

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

AA.VV, Camões e a Identidade Nacional, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1983. AAVV, A Economia Portuguesa no Contexto da Integração Económica Financeira e Monetária, Banco de Portugal, Lisboa, 2009. ALÍPIO, Elsa, Salazar e a Europa: História da Adesão à EFTA, Livros Horizonte, Lisboa, 2006. AMARAL, Luciano, Economia Portuguesa. As Últimas Décadas, Fundação Francisco Manuel dos Santos /Relógio d’Água, Lisboa, 2010. BARBOSA, António Pinto (org.), O Impacto do Euro na Economia Portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999. BARRETO, António, A Situação Social em Portugal, 1960-1999, 2.º Vol., Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2000. ———, Anatomia de uma Revolução – A Reforma Agrária no Alentejo, 1974/76, Publicações Europa-América, Lisboa, 1986. BENTO, Vítor, Perceber a Crise para Encontrar o Caminho, Bnomics, Lisboa, 2009. BRITO, José Maria Brandão de, A Industrialização Portuguesa no Pós-Guerra (1948-1965). O Condicionamento Industrial, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1989. CABRAL, Manuel Villaverde (org.), Saúde e Doença em Portugal, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2002. CASANOVA, José Luís, 10 Anos de Mecenato Cultural em Portugal, Observatório das Actividades Culturais, Lisboa, 1998. CASTILHO, José Manuel Tavares, Marcello Caetano. Uma Biografia Política, Almedina, Coimbra, 2012. CERVELLÓ, J. Sánchez, El Último Imperio Occidental: La Descolonización Portuguesa (1974-1975), UNED, Centro Regional de Extremadura, Mérida, 1998.

19 3

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 193

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

DIONÍSIO, Eduarda, Títulos, Acções, Obrigações (Sobre a Cultura em Portugal, 1974-1994), Salamandra, Lisboa, 1993. EFTA, The Effects of EFTA on the Economies of Member States, Genebra, 1969. FREIRE, André e MAGALHÃES, Pedro, A Abstenção Eleitoral em Portugal, 1975-2001, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2002. GEORGE, João Pedro, Puta que os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco, Tinta da China, Lisboa, 2011. ———, O Meio Literário Português (1960-1998), Difel, Lisboa, 2002. JERÓNIMO, Miguel Bandeira, e PINTO, António Costa (Coord.), Portugal e o Fim do Colonialismo. Dimensões Internacionais, Edições 70, Lisboa, 2014. LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro Ferreira da (coord.), História Económica de Portugal, 1700-2000, Vol. III – O Século XX, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2005. LAMEIRA, Sandra, O Sector das Actividades Artísticas, Culturais e de Espectáculo em Portugal, Instituto para a Qualidade na Formação, Lisboa, 2006. LEITÃO, Nicolau Andresen, Estado Novo, Democracia e Europa, 1947-1986, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2007. LOPES, José da Silva, A Economia Portuguesa desde 1960, Gradiva, Lisboa, 1996. LUCENA, Manuel de, A Evolução do Sistema Corporativo Português – I – O Salazarismo, Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1976a. ———, A Evolução do Sistema Corporativo Português – II – O Marcelismo, Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1976b. MACQUEEN, Norrie, A Descolonização da África Portuguesa, Ediorial Inquérito, Mem Martins, 1998. MATEUS, Abel, Economia Portuguesa – Crescimento no Contexto Internacional (1910-2006), Verbo, Lisboa, 2006. PEREIRA, Paulo (dir.), História da Arte Portuguesa, Vol. III, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995. PINTADO, Valentim Xavier, Structure and Growth of the Portuguese Economy (2.ª edição), Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2002. PINTO, António Costa, O Fim do Império Português, Livros Horizonte, Lisboa, 2001. ——— (Org.), Portugal Contemporâneo, D. Quixote, Lisboa, 2005. ———, e Nuno Severiano Teixeira (eds.), A Europa do Sul e a Construção da UE, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2003. REIS, António (coord.), Portugal. 20 Anos de Democracia, Temas & Debates, Lisboa, 1996. RODRIGUES, Luís Nuno, Salazar-Kennedy: a Crise de uma Aliança, Editorial Notícias, Lisboa, 2002.

19 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 194

30/03/15 10:14

BI B L IO G RA F I A R E CO ME N DA DA

ROYO, Sebastian (ed.), Portugal, Espanha e a Integração Europeia. Um Balanço, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2005. SÁ, Tiago Moreira de, Os Americanos na Revolução Portuguesa (1974-1976), Editorial Notícias, Lisboa, 2004. SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), Portugal: Um Retrato Singular, Afrontamento, Porto, 1995. SANTOS, Maria Lourdes Lima dos (coord.), As Políticas Culturais em Portugal, Observatório das Actividades Culturais, Lisboa, 1998. TELO, António José, História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Actualidade, 2 Vols., Ediorial Presença, Lisboa, 2008.

195

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 195

30/03/15 10:14

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 196

30/03/15 10:14

ÍNDICE ONOMÁSTICO

ABELAIRA, Augusto ABREU, Trigo de AFONSO, Zeca ÁGATA AGUIAR, José Manuel ALEGRE, Manuel ALEXANDRE, Valentim ALMEIDA, Helena ALMEIDA, Manuel Lopes de ALVES, Felicidade ALVES, Fernanda AMARAL, Diogo Freitas do ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner ANTUNES, António Lobo ARAÚJO, Matilde Rosa AREAL, António ARRIAGA, General Kaúlza de ATHOUGIA, Ruy Jervis AZEVEDO, Fernando BACELAR, Daniel BAPTISTA, António Alçada BAPTISTA, Manuel BARGE, António Augusto BARREIROS, Quim BARRENO, Maria Isabel BARRETO, António Viana BARRETO, Jorge BARRETO, Jorge Lima BARRETO, Natércia BARROS, Correia de BASTOS, Baptista BATARDA, Eduardo BAZIN, André BÉJART, Maurice BÉRTHOLO, René

197

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 197

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

BESSA-LUÍS, Agustina BETTENCOURT, Edmundo de BEVAN, Anthony BIRMINGHAN, David BORGA, Cesário BOTELHO, Fernanda BOULEZ, Pierre, BRAGANÇA, Nuno BRANCO, João de Freitas BRANCO, José Mário BRANDÃO, Fiama Hasse Pais BRECHT, Bertolt BUSH, George W. CABRAL, Amílcar CABRAL, Vasco CAETANO, Marcello CALVÁRIO, António CAMARINHA, Guilherme CAMPOS, António CAMUS, Albert CARAÇA, Bento de Jesus CARDOSO, Lopes CARDOSO, Mário CARDOSO, Miguel Esteves CARNEIRO, Alberto CARNEIRO, Francisco Sá CARVALHO, Joaquim Barradas de CARVALHO, Mário Vieira de CARVALHO, Paulo de CASTELAR, Ruy CASTRO, Ernesto de Melo e CASTRO, Lourdes CASTRO, Manuel de CEREJEIRA, Gonçalves CESARINY, Mário CHABAL, Patrick CHABY, Fernando CHIPENDA, Daniel CID, José CID, Pedro CÍLIA, Luís CINTRA, Luís Filipe Lindley CINTRA, Luis Miguel CLINTON, Bill COELHO, Jacinto do Prado COELHO, Lena COELHO, Teresa Pinto COHN-BENDIT, Daniel CORDEIRO, Margarida CORREIA, Joaquim CORREIA, Natália CORREIA, Romeu CORTESÃO, Jaime

19 8

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 198

30/03/15 10:14

Í ND I C E O NO M Á ST I C O

COSTA, Joaquim COSTA, José Fonseca e COSTA, Maria Velho da COSTA, Pereira da COUTINHO, Almirante Rosa COUTINHO, Graça Pereira CRAVINHO, João CRESPO, Manuel Granjeio CRUZ, António CRUZ, Gastão CRUZ, Liberto CRUZ, Manuel Ivo CUNHAL, Álvaro CUTILEIRO, João DACOSTA, António DACOSTA, Luísa DE GAULE, Charles DELGADO, Humberto DIOGO, Laura DIONÍSIO, Eduarda DIONÍSIO, Mário DOMINGUES, António DOSTOIÉVSKI, Fiódor DUARTE, António DUARTE, Gonçalo DUQUE, Aquilino DUTSCHKE, Rudi ECHEVARRÍA, Fernando EMANUEL ESCADA, José FANHAIS, Francisco FARIA, Almeida FAUSTO FÉ, Maria da FERNANDES, Barahona FERNANDES, Jaime FERNANDO, Namora FERREIRA, João Palma FERREIRA, José Gomes FERREIRA, Medeiros FERREIRA, Vergílio FERRO, António FONSECA, Branquinho da FONSECA, Jorge FONSECA, Manuel da FORTE, António Jose FRAGOSO, Belarmino FRANÇA, José-Augusto FRANCO, General Francisco FREITAS, Frederico de FREITAS, Lima de FREITAS, Rogério de

199

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 199

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

GAMA, Jaime GANCHO, António GASPAR, Fernando GEADA, Eduardo GIACOMETTI, Michel GINI, Corrado GINSBERG, Allen GODINHO, Sérgio GODINHO, Vitorino Magalhães GOMES, Alice GOMES, Dórdio GOMES, Victor GONÇALVES, Eurico GONÇALVES, Rui Mário GONÇALVES, Vasco GONELHA, António Maldonado GOUVEIA, Teresa Patrícia GRAÇA, Fernando Lopes GUERRA, Álvaro GUERREIRO, Emídio GUIMARÃES, José de GUSMÃO, Fernando HAMARSKJOELD, Dag HASTINGS, Adrian HÉLDER, Herberto HENRIQUES, Lagoa HOLLAND, R. F. HORTA, Maria Teresa IGLESIAS, Madalena JARDIM, Jorge JORGE, Luiza Neto JOSÉ, Herman KENNEDY, John KENYATA, Jomo KEROUAC, Jack KISSINGER, Henry KRASMANN, Thilo’s LAMAS, Maria LANG, Jack LAPA, Querubim LAPA, Rodrigues LARA, António Sousa LARA, Lúcio LEAL, Raul LEITÃO, Ruy LEMOS, Manuel de LETRIA, José Jorge LIMA, Manuel de LINO, Raul LISBOA, Eugénio LOPES, Fernando LOPES, Gérard Castello LOPES, Óscar LOSA, Ilse LOURENÇO, Dias

200

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 200

30/03/15 10:14

Í ND I C E O NO M Á ST I C O

LOURENÇO, Eduardo LOURO, José da Silva LUCENA, Manuel de LUÍS, José MACEDO, António de MACEDO, Jorge Borges de MACHEL, Samora MACQUEEN, Norrie MAGALHÃES, Pedro Ayres de MALRAUX, André MANTA, João Abel MARCENEIRO, Alfredo MARCUSE, Herbert MARGARIDO, Alfredo MARQUES, Bernardo MARQUES, Oliveira MARTINHO, Virgílio MARTINS, Jorge MATOS, Tony de MATTOSO, José MAXWELL, Kenneth MEDEIROS, Maria de MELLO, Fernando Ribeiro de MELO, Jorge Silva MENDES, Carlos MENDES, Manuel MENEZ MICHEL, Jean MIGUEL, Teresa MIRANDA, Berta Alvarez MOLDER, Jorge MONIZ, Botelho MONIZ, general Botelho MONTEIRO, João César MONTEIRO, Luís de Sttau MORLINO, Leonardo MOURA, Barata MOURÃO-FERREIRA, David MOURÃO, António MURALHA, Sidónio NAMORADO, Joaquim NASCIMENTO, Eduardo NASCIMENTO, Eusébio NAVARRO, António NEGREIROS, Almada NEHRU, Jawaharlal NEMÉSIO, Vitorino NERY, Eduardo NETO, Agostinho NIXON, Richard NÓBREGA, Isabel da NOGUEIRA, Florentino Goulart NOGUEIRA, Rolando Sá

201

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 201

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

NOGUEIRA, Sá NONO, Luigi NUNES, José Manuel O’NEILL, Alexandre OLIVEIRA, Adriano Correia de OLIVEIRA, Carlos de OLIVEIRA, Juceliny Kubichek de OLIVEIRA, Manuel de OLIVEIRA, Mário de OLIVEIRA, Simone de OLIVEIRA, Zurita OOM, Pedro OULMAN, Alain PACHECO, Fernando Assis PACHECO, Luiz PADINHA, Fátima PALOLO PAPA JOÃO XXIII PAPA PAULO VI PAREDES, Carlos PATRÍCIO, Rui PAULO, Rogério PEIXINHO, JOrge PENALVA, João PERDIGÃO, Azeredo PEREIRA, António Moniz PEREIRA, Jorge Moniz PEREIRA, Pedro Teotónio PEREZ-DIAS, Vitor PERNES, Fernando PESSOA, Alberto PESSOA, Fernando PINA, Manuel António PINHARANDA, João PINHEIRO, Costa PINTO, Jorge PIRES, José Cardoso PIRES, Maria João PIRES, Mario Lemos POMAR, Júlio PONTES, Maria de Lurdes Belchior PORTAS, Nuno PROUST, Marcel QUADROS, António QUINTANILHA, Aurélio QUINTELA, Paulo RAMOS, Artur REBELLO, Luiz Francisco REDOL, Alves RÉGIO, José REGO, Paula

202

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 202

30/03/15 10:14

Í ND I C E O NO M Á ST I C O

REICH, Wilhelm REIS, Cabrita RESENDE, Júlio RESNAIS, Alain RIBEIRO, Aquilino RIBEIRO, Orlando ROCHA, Helena ROCHA, Paulo RODRIGUES, Amália RODRIGUES, Armindo RODRIGUES, Avelino RODRIGUES, João RODRIGUES, João Baptista Martins RODRIGUES, Lapa RODRIGUES, Urbano Tavares ROSA, Vitoriano RUEDA, Fernando SAA, Mário SALAZAR, Ana SALAZAR, António de Oliveira SAMPAIO, Ernesto SAMPAIO, Jaime Salazar SAMPAIO, Jorge SAMPAIO, Monsenhor Miguel SAN-PAYO, Nuno SANTARENO, Bernardo SANTOS, Alberto Seixas SANTOS, António de Almeida SANTOS, Bartolomeu Cid dos SANTOS, Fernando Piteira SANTOS, José Carlos Ary dos SANTOS, Marcelino dos SANTOS, Nuno Brederode SANTOS, Vítor SARAIVA, António José SARAIVA, António José SARAIVA, José Hermano SARAMAGO, José SARMENTO, Julião SARTRE, Jean-Paul SASPORTES, José SCHMITTER, Philippe, SEABRA, José Augusto SELASSIE, Haile SENA, António SENA, Jorge de SÉRGIO, António SERRÃO, Veríssimo SILVA, A. E. Duarte SILVA, Adão e SILVA, Aníbal Cavaco SILVA, Fernando Matos SILVA, Manuel Costa e SILVA, Maria Helena Vieira da SILVEIRA, Miguel Artur da SIMÕES, João Gaspar

20 3

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 203

30/03/15 10:14

A BU SC A DA D E M OC RAC I A

SKAPINAKIS, Nikias SOARES, Luso SOARES, Mário SOFIA, Mafalda SOROMENHO, Gustavo SOUSA, Ângelo de SOUSA, Baltasar Rebelo de SOVERAL, Carlos Eduardo de SPÍNOLA, General António de STOCKHAUSEN TAMEN, Pedro TAVEIRA, Tomás TELES, Inocêncio Galvão TELLES, António da Cunha TELLES, Gonçalo Ribeiro TONICHA TORGA, Miguel TORRES, Alexandre Pinheiro TORRES, Nuno Pinheiro TRINDADE, António ManuelCalado TROPA, Alfredo TRUFFAUT, François VALE, Carlos VALENTE, Vasco Pulido VARIAÇÕES, António VASCONCELOS, António-Pedro VESPEIRA, Marcelino VIANA, Eduardo VIEIRA, João VIEIRA, Jorge VIEIRA, Luandino VIEIRA, Siza VILHENA, Magalhães VITORINO, Orlando WENGOROVIUS, Vítor ZENHA, Salgado

20 4

2-HIST_PORT v5_013-198_3as.indd 204

30/03/15 10:14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.