EM BUSCA DE CRITÉRIOS PARA O ESTUDO OBJETIVO DA RELIGIÃO

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EM BUSCA DE CRITÉRIOS PARA O ESTUDO OBJETIVO DA RELIGIÃO[1]




Afrânio Patrocínio de Andrade[2]



Resumo:

Religião e Religiosidade são distintas. A primeira, objetiva, consiste em
um sistema de crenças sustentado por uma comunidade de fé e exercitado
através de atos religiosos. A segunda, subjetiva, é entendida como uma
qualidade do sujeito de fé e é caracterizada pela sua disposição para
aderir a determinado sistema de crenças e praticar os atos ali
configurados. A religião se insere na cultura, que por sua vez se insere na
sociedade, aqui entendida como efetiva convivência dos seres humanos, como
parte da vida em geral e, por conseguinte, da natureza. Apresento as fontes
diretas e indiretas da religião. Na natureza encontramos os fatos e, na
natureza humana, os atos, inclusive os religiosos. Atos são acontecimentos
que dependem da atuação direta do ser humano. Aponto que os fatos se
caracterizam como religiosos à medida que determinada comunidade reconhecer
que um evento objetivo tem para ela significação religiosa. Este
reconhecimento se dá através do seu sistema de crenças. Este mesmo sistema
de crenças filtra os atos da conduta humana e os reconhece ou não como
religiosos. O sistema de crenças é, ao mesmo tempo, incorporador e
interpretativo. Forma-se assim um tripé indissociável: comunidade de fé,
sistema de crenças e atos religiosos. Tipologia do ato religioso: a)
perfeito – é aquele praticado em consonância com o sistema de crenças,
visando o fim estritamente religioso e respaldado pela comunidade de fiéis;
b) imperfeito – despido dos elementos essenciais, é nulo; desprovido de
alguns destes, é parcial; c) aleatório – tem apenas fim religioso, mas lhe
faltam os demais elementos essenciais.

Palavras-chave: sistema de crenças; comunidade de fé; atos religiosos.




Considerações Iniciais



Esta pesquisa foi desenvolvida por ocasião de meu doutoramento em
Ciências da Religião, na UMESP – Universidade Metodista de São Paulo, sob a
orientação do saudoso professor Antônio Gouvêa Mendonça. Este trabalho é
extraído daquela tese que tem por título "Ciência da Religião –
contribuição à sua definição, delimitação e autonomia."


Optei pela terminologia "ciência da religião", no singular, apontando
que a ciência da religião, inserida como está no contexto de outras
ciências da cultura, não dispensa a colaboração de qualquer outro ramo do
conhecimento no tocante ao seu objeto e métodos. Ou seja, serve-se dos
conhecimentos fornecidos por aquelas para a construção de seu próprio corpo
científico. Ou, em outras palavras, ela não "reinventa a roda", não começa
tudo do "zero", do ponto de partida. Mas, tendo objeto próprio, específico,
é ciência autônoma, com método próprio de abordagem.


Defendi a tese de que a religião deve ser objeto único e exclusivo
desta ciência da religião. Defini seu campo de atuação no contexto da
natureza e da cultura, indicando as fontes diretas e indiretas da religião.
Propus as linhas gerais desta ciência, delimitada entre a filosofia, a
fenomenologia, a antropologia, a sociologia e a psicologia da religião,
tendo a teologia como uma abordagem especial.


Propus, por fim, os critérios que a ciência da religião deve utilizar
para o estudo objetivo da religião. Neste artigo, vou trabalhar estes dois
pontos: a) a religião como objeto de estudo e b) uma proposta de critérios
específicos para o estudo objetivo da religião. O propósito está em trazer
para discussão esta abordagem da religião que leva em consideração o tripé
composto pela comunidade de fé, o sistema de crenças por ela desenvolvido e
os atos religiosos que pratica.










1. A Religião como objeto de estudo

Uma definição para o termo Religião pode ser encontrada em quase
todos os autores que trabalham com esta temática. Entretanto, é oportuno
ser aqui retomada, já que este termo se torna essencial para este trabalho
e especialmente porque vou utilizá-lo em uma perspectiva especial, a da
objetividade.
Entendo religião como o conjunto dos sistemas simbólicos que, em suas
diversas manifestações, apresentam pontos em comuns capazes de torná-la
passível de investigação objetiva. Estes pontos em comum podem ser
identificados no seu lastro objetivo, verificável no tripé: sistema de
crenças, comunidade de fiéis e prática de atos religiosos. A religião
representa os sentidos e os significados criados pelo ser humano nas
relações que estabelece com o mundo, com os outros e consigo mesmo. Por
isso, produz e incorpora efeitos e correlações em interface com a natureza,
a sociedade, a cultura, a economia, a política e as mentalidades em geral.
De início, surge a necessidade de distinguir, por um lado, a
religiosidade, aqui entendida como a experiência subjetiva de cada
indivíduo perante o numinoso, o sagrado, o divino ou, em fim, perante
aquilo que o desperta para a adoração, a veneração, a obediência etc.; e
por outro lado, a religião aqui entendida como objetividade ou fato social,
manifesta, por meio de um sistema de crenças delimitado pelos fiéis e por
estes praticadas através de seus rituais, seus ritos e cerimônias. Segundo
Dilthey:

A Religião é um conjunto psíquico, que, como a filosofia, a
ciência e a arte, constitui um elemento dos indivíduos e
objetiva-se nos modos mais diversos em seus produtos.
Assim, esse conjunto é-nos dado duplamente: como
experiência religiosa e como sua objetivação. A experiência
permanece sempre subjetiva: só a inteligência das criações
religiosas baseada na experiência retrospectiva torna
possível um conhecimento objetivo da religião. (...) A
religião existe, na verdade, em formas variadas, cada uma
das quais representando um conjunto concreto particular.[3]


Deste conceito, aqui dotado sem restrição, deflui minha concepção de
que a religião, situada no contexto da cultura, consiste em uma moeda de
duas faces: uma subjetiva, que podemos chamar de religiosidade, e outra
objetiva, que podemos chamar de religião positiva. Em termos de
subjetividade temos a religião enquanto elemento interior ao indivíduo,
oriunda em grande parte da cultura na qual ele se acha inserido; no segundo
caso, objetivo, temos a religião como algo historicamente verificável,
interpretável, isto é, como um fato social. Por se tratar de dois lados da
mesma moeda, são inseparáveis, posto que a subjetividade se estende à
objetividade e vice versa, já que, apenas didaticamente, podemos
vislumbrar esses dois lados. Neste trabalho, adoto o termo religião apenas
na segunda acepção, uma vez que estou interessado na sua abordagem
objetiva, isto é, enquanto objetividade social. Nas pisadas de Durkheim,
diria que:



A religião é coisa [fato] eminentemente social. As
representações religiosas são representações coletivas que
exprimem realidades coletivas; os ritos são maneira de agir
que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se
destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados
mentais desses grupos. Mas então, se as categorias são de
origem religiosa, devem participar da natureza comum a
todos os fatos religiosos: também elas seriam coisas
sociais, produtos do pensamento coletivo. No mínimo (...) é
legítimo supor que elas sejam ricas em elementos
sociais.[4]





Assim, a definição que acima adotei de Dilthey não estaria completa,
se não pudesse se harmonizar come esta de Durkheim. Com efeito, em
Durkheim, além do que se encontra na definição de Dilthey, temos essa
fundamental ideia de crença e práticas que unem todos os que a ela aderem
na mesma comunidade, isto é, no mesmo corpus. Este corpus consiste no
conjunto composto de comunidade de fiéis, sistema de crenças e prática
religiosa desmembrada em atos religiosos. Esta sua conclusão permitiu o
advento de sua definição de religião, aqui adotado, segundo a qual:


Uma religião é um sistema solidário de crenças e de prática
relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas;
crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral,
chamada igreja, todos os que a ela aderem. [5]

Ressalta-se, porém, que Durkheim, mesmo com todo cuidado, viu o
"outro" como a lente da cultura europeia. Por isto, na sua definição de
religião entra a palavra "igreja", com certeza estranha aos australianos.
Daqui o meu cuidado de substituí-la por "comunidade de fiéis" encontrável
em todos os segmentos religiosos. Desta sorte, quando me refiro à religião
neste trabalho estou tratando prioritariamente do seu aspecto objetivo,
manifesta através de uma comunidade de fieis, independente de sua extensão
social; comunidade de fé esta que se guia por seu sistema de crenças e, com
base neste, exerce suas práticas e seus ritos em formas de atos tipicamente
religiosos.

A religião se insere na cultura, que por sua vez se insere na
sociedade, aqui entendida como efetiva convivência dos seres humanos, como
parte da vida em geral e, por conseguinte, da natureza. Por isto, o estudo
da religião deve levar em consideração as suas fontes, isto é, o que dá
origem à religião. Ou, ainda, o que proporciona a existência da religião.
Com a utilização da palavra "fonte" rechaço a palavra "origem", utilizada
largamente por antropólogos, psicólogos e sociólogos da religião. Isto
porque esta última palavra é dúbia e pode ser entendida tanto no sentido de
começo como de procedência. De outro lado, a palavra "fonte", além de
abranger a palavra "origem", não pressupõe uma história linear, coroada com
um tipo especial de cultura e religião, como queriam os antigos
pesquisadores das metrópoles que iam à periferia à procura da "origem" da
razão de ser da religião, mas imbuídos do espírito de evolução e
progresso.[6] A palavra "fonte" designa algo atual, presente, constante. As
fontes da religião jorram-na constantemente e se acham em todo tempo e
lugar. Não tem que ir a lugar nenhum buscar seu nascedouro, porque ela
nasce em todo lugar, como bem já observou Plutarco (45-120 d.C.):

Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios,
sem ginásios, sem leis, sem uso de moedas como dinheiro,
sem cultura das letras. Mas, um povo sem Deus, sem orações,
sem juramentos, sem ritos religiosos, sem sacrifícios, tal
nunca se viu.[7]

Distinguem-se as fontes da religião em diretas e indiretas. Por
fontes diretas, entendo aquelas forças que tornam possível a existência da
religião, influenciando diretamente o indivíduo ou a coletividade na qual
este se acha inserido. As fontes diretas são a) a sociedade, ou, mais
precisamente, a vida social, b) a cultura interiorizada; c) a natureza, d)
o sentimento de finitude[8] e a consciência de fragilidade e ignorância, e)
a doutrina e f) os costumes. Vejamos, no quadro abaixo, suas
características e funções na formação da religião.

I - Fontes diretas
"Tipos de "Características/Função "
"fontes " "
"A Sociedade "Exerce coerção sobre o individuo que nela tem algum"
" "tipo de interesse. A religião pode ser de apoio ou "
" "protesto frente a esta sociedade. "
"A Cultura "Interiorizada no indivíduo, filtra os elementos de "
" "interesse religioso a partir de seus valores "
" "relevantes. "
"A Natureza "Causa temor ou fornece beleza inspiradora em "
" "indivíduos ou coletividades. Tem a função de "
" "suscitar o sentimento profundo de pertença ao "
" "universo. "
"O trio "Caracteriza-se pela postura do indivíduo diante do "
"subjetivo: a) "tempo e do espaço. Sua influência sobre o indivíduo"
"sentimento de "independe de fatores como a cultura, a tradição ou "
"finitude; b) a"a coerção social. É a fonte da concepção de uma "
"consciência de"divindade necessariamente forte e onisciente. A luz"
"fragilidade e "religiosa se opõe às trevas da ignorância.[9] "
"c) a "Influencia também a magia com seus poderes e "
"consciência de"explica certos fenômenos que o crente não conhece. "
"ignorância "São fontes por excelência do louvor e da prece. "
"A doutrina "Caracteriza-se pela pregação do "dever-ser" "
" "religioso, a partir do seu sistema de crenças. Tem "
" "a função de manter e recriar a religião em novos "
" "espaços sociais e momentos, ancorada em seu "
" "significado e interpretação. "
"Os costumes "Avaliados coletivamente como bons se caracterizam "
" "pela prática dos atos virtuosos no seio da "
" "sociedade e influenciam o indivíduo e a "
" "coletividade, contribuindo na formação do sistema "
" "crenças religiosas. "


As fontes indiretas são: a) a economia, b) a política e o direito, c)
a educação e d) a linguagem. Vejamos, no quadro abaixo, suas
características e funções na formação da religião.

I - Fontes indiretas
"Tipos de "Características/Função "
"fontes " "
"A Economia "Estabelece as regras de reconhecimento do status do "
" "indivíduo no grupo, apontando em que tipo de "
" "religião ele melhor se enquadra. Exerce influencia "
" "no mercado de bens religiosos, fomentando-lhes "
" "valores econômicos.[10] "
"A Política e "Em seu jogo com o poder a política pode favorecer, "
"o direito "ou, pelo contrário, sacrificar, determinadas "
" "concepções religiosas. O Direito não é propriamente "
" "fonte da religião, porque é, antes, instrumento de "
" "concretização da política, reconhecendo ou não a "
" "atuação social da religião. Vale dizer: a política "
" "estabelece a vontade geral e o direito sistematiza "
" "esta vontade em forma de mandamentos jurídicos. A "
" "política não é fonte direta porque joga diretamente "
" "com o poder instituído e somente indiretamente com a"
" "religião. "
"A Educação "É fonte da religião na medida que educa para a vida."
" "Vale dizer, toda religião tem sua catequese. "
" "Caracteriza-se por um processo de socialização do "
" "indivíduo, em diálogo com os valores correntes na "
" "sociedade. A religião é um destes valores que "
" "influencia na maneira de sentir e pensar. Através do"
" "processo educacional, a religião se apresenta ao "
" "indivíduo como valor. "
"A Linguagem "Todo o discurso da religião é dirigido por uma "
" "linguagem específica, a linguagem religiosa, que "
" "traz seus símbolos e ritos. Só a religião é capaz de"
" "falar de "profundeza da alma", como assinalou Rubem "
" "Alves. "


Essas fontes trabalham de forma dinâmica. De um lado a coletividade
interfere no indivíduo, fornecendo-lhe os valores socioculturais e, com
estes, a religião. De outro lado, o indivíduo interfere na coletividade
participando dela com sua visão de mundo. A visão individual e a
experiência coletiva são construídas a partir de múltiplas experiências
diárias com estas fontes diretas e indiretas. E é esta visão de mundo que
forma uma coletividade específica, a saber, a comunidade religiosa. E é
esta comunidade que forma seu sistema de crenças e com base nele pratica os
atos aqui chamados de atos religiosos.


2. Proposta de Critérios para o estudo objetivo da religião



Os seguintes critérios devem ser levados em conta, quando se quer
fazer um estudo objetivo da religião, tal como aqui proposto:

1. A ciência da religião deve se propor a garantir um conhecimento
dirigido exclusivamente para à religião, seu objeto. Munida deste
propósito e inserida como está no contexto de outras ciências da
cultura, não dispensa a colaboração de qualquer outro ramo do
conhecimento capaz de elucidar seu objeto.

2. A ciência da religião não é isenta nem do senso comum nem das
ideologias. Seguindo Rubem Alves, "a ciência é uma metamorfose do
senso comum. Sem ele, ela não pode existir. É esta a razão por que não
existe nela nada de misterioso ou extraordinário.[11]


3. A ciência da religião deve limitar-se ao estudo do seu objeto no
contexto específico da cultura. Contrariando Paul Tillich, segundo
quem "revelação tem a ver com aquilo que está além da cultura"[12]
esta ciência deve considerar como parte de uma cultura específica
elementos como redenção, revelação, purificação e iluminação.

Para estudar seu objeto, a ciência da religião deve, além de
estabelecer as fontes da religião, como acima assinalado, estudar o sistema
de crenças e os atos que são praticados no seio da comunidade de fiéis. O
ato humano com sentido e, por conseguinte, o ato religioso, é captável com
maior precisão que a experiência subjetiva, tão diversa como o são as
individualidades.

Entendo por sistema de crenças o conjunto de diretrizes que uma
comunidade estabelece em torno daquilo que entende servir de sua orientação
religiosa e com o qual consegue distinguir o sagrado do profano. Assim,
exemplificando, quando o crente da Congregação Cristã no Brasil não
reconhece o batismo do metodista realizado quando criança, ele está
deixando de reconhecer, antes do ato religioso, o sistema de crenças
alimentador daquele ato. Trata-se na realidade de um desencontro entre dois
sistemas de crenças em torno de um mesmo ato religioso, o batismo. Assim,
invariavelmente, o sistema de crenças antecede ao ato religioso,
interpretando-o. E da mesma forma, a comunidade precede ao ato religioso
que pratica, munida do seu sistema de crenças.

Toda celebração ritual religiosa, sob os nomes diversos que recebe
caracteriza-se por uma sucessão de atos religiosos ordenados pelo sistema
de crenças específico e dirigido pela comunidade religiosa a si própria ou
para fora de si. Os fiéis são, por definição, aqueles que praticam os atos
religiosos de acordo com o sistema de crenças da comunidade a que
pertencem. Desta sorte, o sistema de crenças é a divisa que delimita os
contornos do curral das ovelhas, distinguindo os fiéis e as práticas de uma
e outra tradição religiosa.

Quer por questões de convicção religiosa, quer pelo próprio caminhar
da carruagem da história, que força uma tradição religiosa a substituir
outra ao longo dos séculos, a realidade que resulta é que somente a
comunidade é capaz de precisar exatamente os limites do seu credo e, assim,
somente o sistema de crenças pode expressar em que ela efetivamente
acredita e, de forma precisa, externar tal crença em forma de atos
religiosos, o que propicia seu estudo objetivo.

Sabe-se que atos são acontecimentos que dependem da atuação direta do
ser humano. Os atos religiosos, por seu turno, são aqueles que determinada
comunidade de fiéis, através de seu sistema de crenças, filtra da realidade
natural, social e cultural e os reconhece como tais. Assim, pode-se
estabelecer uma tipologia dos atos religiosos, caracterizando-os como
perfeitos, imperfeitos e aleatórios.

O ato religioso pode ser dito perfeito quando praticado em
consonância com o sistema de crenças, visando o fim estritamente religioso
e respaldado pela comunidade de fiéis. Assim, o batismo da criança na
Igreja Metodista é um ato religioso perfeito para a comunidade metodista. E
o batismo do adulto para o crente da Congregação Cristã no Brasil é um ato
perfeito para aquela comunidade. Embora neste caso se mostre como
excludente, pelo menos da parte desta última que não reconhece o batismo
metodista, há possibilidade de não o ser, de forma que uma comunidade pode
reconhecer como válido o batismo realizado por outra comunidade, mas isto,
quando ocorre, se dá no âmbito do poder discricionário do seu sistema de
crenças. É o que se vê, por exemplo, no caso da Igreja Católica Latina, que
admite como válido o batismo de diversas outras comunidades religiosas,
inclusive da Congregação Cristã no Brasil.[13]

O ato religioso pode ser dito imperfeito, quando não satisfaz total
ou parcialmente aos pré-requisitos extrínsecos ou intrínsecos da religião.
Assim, a imperfeição pode ser total ou parcial. Se não satisfizer
totalmente tais pré-requisitos por ser despido dos elementos essenciais,
isto é, faltar-lhe o respaldo da comunidade, se não estiver de acordo com o
sistema de crenças, nem tiver fim religioso, é ato nulo. Um exemplo de tal
absurdo seria o batismo de um animal de estimação, ato que, por ser
absolutamente imperfeito, não chega, por isto mesmo, a ser religioso. Um
ato deste não surte qualquer efeito religioso.

Se, por outro lado, estiver apenas desprovido do sistema de crenças e
do respaldo da comunidade, mas tiver fim religioso, o ato é parcial ou
parcialmente imperfeito. O ato religioso imperfeito total ou parcialmente
pode ser convalidado pela comunidade, mediante a adequação do seu sistema
de crenças, o que acontece com frequência nas comunidades religiosas,
especialmente durante a fase de seu estabelecimento institucional.

Pode-se, ainda, identificar o que se pode chamar de ato aleatório.
Este se caracteriza por ter apenas fim religioso, mas faltar-lhe os demais
elementos essenciais, isto é, o respaldo da comunidade de fé e o amparo no
sistema de crenças. É o que ocorre, por exemplo, no caso da benzedura. O
benzedor, quando pratica o ato com fim religioso, não tem um sistema de
crenças sustentado por uma comunidade de fiéis. Pratica, portanto, ato
aleatório. Mas, se, ao benzer, exige recompensa, visa fim estritamente
econômico, ocorre o fenômeno da simulação daqui que o ato praticado é
meramente econômico.

Pelo exposto, pode-se vislumbrar que a distribuição de água "trazida
do rio Jordão" para cura não é ato religioso, ainda que tal distribuição
seja feita no âmbito do culto, pois este ato visa fim mágico e não
religioso. Já a celebração de um batismo com tal água é ato religioso, pois
é irrelevante á água que se utiliza, sendo relevante o fim que se pretende
com o ato de batizar. A venda de "pedados da cruz de Jesus" igualmente não
é ato religioso, pois visa a objetivo econômico e não religioso.

Da mesma forma que filtra os atos da vida humana, a comunidade
religiosa, através do seu sistema de crenças, filtra os fatos da natureza,
os quais podem se caracterizar como religiosos quando reconhece que um
evento objetivo tem para ela significação religiosa. Por exemplo, a chuva é
um evento da natureza, um fato natural. À medida que determinada comunidade
vê nela mais que uma chuva qualquer, uma chuva de bênção para sua lavoura,
caracteriza-a como um fato religioso. E assim, temos lugares sagrados e
tantos outros fenômenos da natureza incorporados a determinados sistemas
religiosos.

Por fim, poder-se-ia perguntar se uma comunidade de fé, munida de
seu sistema de crenças, poderia praticar quaisquer atos religiosos, como
sacrifícios humanos. A isto respondo que os fins a que se propõe na
comunidade religiosa não podem contrariar a ordem pública, isto é, o bem
comum. Em contrariando, a religião pode ser impedida pelo Estado, não
porque seja ou não religião, mas sim porque sua prática, religiosa ou não,
interfere de forma negativa na ordem pública. É o caso, por exemplo, das
religiões de sacrifício humano, que não são permitidas pelo Estado. De
fato, na lição de CARRAZA, graças a separação entre Religião e Estado,

O Estado tolera todas as religiões que não ofendem a moral,
nem os bons costumes, nem, tampouco, fazem perigar a
segurança nacional. Há, no entanto, uma presunção no
sentido de que a religião é legítima, presunção, esta, que
só cederá passo diante de prova em contrário, a ser
produzida pelo Poder Público.[14]


Considerações Finais



A ciência da religião pode constatar que as experiências religiosas,
embora diversas, tem como fundo o imaginário simbólico como elo profundo
que as aproxima, quer através de narrativas míticas fundantes com seus
símbolos quer através de sua prática. Narrativas presentes nos diversos
sistemas religiosos e praticados das mais diversas formas pelas diferentes
comunidades, através de atos totalmente desconexos entre si, convergem para
a única realidade, que é a da universalidade do ser humano.


Assim, os sistemas de crença podem até divergir e entrar em conflito
entre si, mas convergem neste ponto: todos guardam relação direta com o
mundo que o cerca, com a política, a economia, a natureza e, em fim, a
experiência humana com o sagrado. E por isto, dado que tem um lastro
necessário, podem ser identificados na comunidade de fé e especificados
pelos atos que esta pratica, munida pelo seu sistema de crenças.


O diálogo entre os diversos sistemas de crenças, ou religiões, deve
começar pelo conhecimento deste ponto de convergência. A partir do
conhecimento do que efetivamente existe em comum em todas as formas
religiosas é que se pode, por exemplo, tratar de diálogo inter-religioso,
ecumenismo, ensino religioso e outros temas relevantes atualmente tão bem
discutidos.

Referências bibliográficas

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e suas regras. 4.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 23ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2007.

Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 2008.

DILTHEY, Wilherm. Ermeneutica e Religione. Milano: Morra, 1971.

DURKHEIM, E. As formas elementares da Vida Religiosa (sistema totêmico da
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HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes,
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RICOEUR, Paul, Finitud y Culpabilidad, II. La simbolica del Mal. Madrid:
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TILLICH, Paul. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Megápolis, 1973.

WACH, Joachim. Sociologia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1990.

ZILES, Urbano. In: "fenomenologia", disponível em
seminariomaiordeviamao.com.br/formacao2.php?37, consultado em 06.09.13.

-----------------------
[1] Publicado originalmente em BOBSIN, Oneide et alii. "Cartografias do
Sagrado e do Profano: Religião, Espaço e Fronteiras". São Leopoldo:
ABHR/EST, Ebook, PDF. ISBN 978-85-89754-30-9, 2014, p. 25-35.
[2] Licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, bacharel em Direito,
advogado, doutor em Ciências da Religião e doutor em Direito, pós-
doutorando em Teologia na EST, bolsista CAPES/PNPD. E-mail:
[email protected], curriculum Latte
http://lattes.cnpq.br/4624360511449234.
[3] Wilherm DILTHEY, Ermeneutica e Religione. Milano: Morra, 1971, p. 142.
[4] DURKHEIM, E. As formas elementares da Vida Religiosa (sistema totêmico
da Austrália). São Paulo: Paulinas, 1989, p. 38.
[5] DURKHEIM, E. 1989, p. 79.
[6] E. E. EVANS-PRITCHARD. Antropologia Social da Religião. Rio de Janeiro:
Campus, 1978, p. 141.
[7] Citado por ZILES, Urbano. In: "fenomenologia", disponível em
seminariomaiordeviamao.com.br/formacao2.php?37, consultado em 06.09.13.
[8] RICOEUR, Paul, Finitud y Culpabilidad, II. La simbolica del Mal.
Madrid: Taurus, 1982, sustentou que a finitude e a culpabilidade derivam da
própria hermenêutica do mal enquanto símbolo.
[9] Veja a respeito HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p.184. Ele sustenta que o medo e a experança
são duas paixões que, em ocasiões diversas, excitam o espírito humano e
cada uma destas constrói o tipo de divindade que lhe é mais conveniente.
[10] O estudo de economia e religião de modo algum é idêntico a uma
sociologia da religião, conforme já advertiu WACH, Joachim. Sociologia da
Religião. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 13.
[11] ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e suas regras.
4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 14.
[12] TILLICH, Paul. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Megápolis,
1973, p.9.
[13] Veja a respeito a nota de rodapé referente ao Cânone 869, do Código
de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 208, que aborda os casos aceitos de
rebatismo válido.
[14] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário.
23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 730s.
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