Em busca de justiça social ou o que é uma boa vida?

June 29, 2017 | Autor: Renato Duro | Categoria: Social Justice, Judith Butler
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Em busca de justiça social ou o que é uma boa vida?

Aproveitei as férias para colocar a vida em dia. Coisas simples, mas que na loucura do dia-a-dia não se tem tempo, um novo sabor a ser experimentado, uma caminhada sem rumo e claro, um bom texto. Sabe, sou daqueles apaixonados por livro de bolso, na leitura o que me atrai, também é a relação custo-benefício. Bem, lá me fui percorrer um destes "pocket", trata-se de "O que é uma boa vida?" (tradução feita por mim de "Qu'est-ce qu'une vie bonne ?" de Judith Butler, 2014), pensei, nada melhor do que ser interrogado nas férias...
O que é uma boa vida?
Esta pergunta que nos faz Butler, em seu discurso ao receber o Prêmio Adorno, questiona e nos indaga "como é possível levar uma vida boa em uma vida ruim?" Para dar uma resposta, que seria delimitar a priori uma definição universal da vida boa, Butler nos indica alguns temas que devem permear este conceito de vida boa. Ética, política e resistência são algumas das palavras-chaves que percorrem o magnífico texto.
Se a boa vida só pode existir para alguns em detrimento da vida dos outros, podemos considerar que se trata de uma vida realmente boa? Se a propriedade que é a boa vida não é universal, válida para todos, é um bem real? Se a minha vida requer o sofrimento dos outros, a negação de suas próprias vidas, isso pode ser chamado de vida boa?
O que é uma boa vida? destaca articulações mais gerais, apoia a sua potente crítica exercida contra um poder centrado na precarização e na negação da vida. Esta crítica de nossa realidade presente significa em si uma prova da necessidade de mudar o presente para outro presente, uma nova análise das relações de poder e uma redefinição de uma nova prática das relações entre a ética, a moral e a política. Enfim, para responder ao questionamento de Butler, é preciso pensar nas condições de vida humana, em sua precariedade e vulnerabilidade, é fundamental perceber a negação da própria vida.
Para Butler, dizer/propor aos outros o que é uma vida boa é como que negar a pluralidade das existências, desvalorizar algumas vidas em benefício de outras. Tratar-se-ia de um novo gerencialismo do "eu", de uma governamentalidade da alma, ou para quem opera no mundo dos dogmas numa nova versão compacta do Código da Boa Vida (CBV).
Parece óbvio, não é possível perceber quais os meus/seus critérios de uma boa vida sem avaliar criticamente o sentido da vida em coletividade. Assim, gradativamente, o texto aponta as limitações e deficiências (esterilidades) de nossas resistências individuais, indicando que elas contêm o risco de permanecer em caráter privado, ou de se esgotarem em significantes vazios, repletos de boas intenções, mas sem nenhum conteúdo prático.
Bem, ainda que não houvesse, a priori, uma resposta apta a saciar esta pergunta e mesmo que não seja possível um conceito universal de boa vida, a existência desta interrogação pode nos levar, no entanto, a reconhecer a necessidade de uma estrutura política em que todo mundo seja capaz de conduzir a sua vida de maneira boa. Isto poderia representar a cada um de nós uma possibilidade, a de ser capaz de viver a sua vida, de estar vivo e pressupõe, na medida ideal, que a vida de todos seja reconhecida como válida. necessária e possível, implicando em uma bidimensionalidade.
Para Fraser, outra importante feminista, o conceito de justiça social está associado à bivalência redistribuição e reconhecimento. "The definitions proposed here, in contrast, take account of such currents by treating redistribution and recognition as dimensions of justice that can cut across all social movements." Fraser argumenta que propor uma escolha entre as políticas de redistribuição e as políticas de reconhecimento é postular uma falsa antítese. Pelo contrário, para ela, a justiça hoje requer tanto redistribuição como reconhecimento. A necessidade de uma abordagem em duas vertentes (redistribuição e reconhecimento) é especialmente clara, dado as diferenciações bivalentes, como, por exemplo, sexo (e orientação sexual), que entrincheira ambas as injustiças econômicas e culturais.

Outra terminologia importante, manejada por Fraser, é a noção da paridade de participação como um núcleo normativo. Paridade (total) de participação é impossível, mas é fundamental que existam condições objetivas de distribuição. O conceito de justiça social exige, portanto, o reconhecimento de direitos participativos para grupos distintos (ações afirmativas), pois isso é que pode possibilitar a todos a plena participação na vida social.

Em outro sentido, o conceito de justiça social de Vincent centra-se na identidade como elemento fundante, o que requer, necessariamente, uma análise de poder e do papel da sociedade na construção das experiências vividas e de suas interseções como componentes formadores de uma identidade, aglutinando-se para (re) definir aquilo que compõe a experiência individual e coletiva.

Pode-se afirmar que justiça social, em um sentido mais amplo do que justiça, é a busca incessante para enfrentar o processo de desigualdade e uma ação constante contra a divisão e demarcação desigualizante. A justiça social necessita de iniciativas institucionais (governamentais ou não governamentais) que permitam redistribuir e reconhecer direitos, portanto o conceito de justiça social se constrói em espaços em que existe o livre desenvolvimento para a democracia.

Em resumo, o conceito de justiça social deve ir além do conceito de justiça, ou seja, deve compreender o direito à igualdade, entendida como igualdade formal, isto é, igualdade social diante (perante) da lei e igualdade material, promoção de condições sociais igualitárias, o que implica ações afirmativas, como, por exemplo, a política de cotas e de distribuição de renda. O conceito de justiça social, ainda deve considerar o direito à diferença, reconhecida como possibilidade dentro da pluralidade, seja de sexo, raça, orientação sexual, religiosa ou política, etc .

A modernidade produziu estes espaços de (ir)racionalidade, criando políticas de identidade cujas bases se fundam em critérios hegemônicos de normalidade e de legalidade. Nega-se o sentimento de pertença, de pertencimento, a todo aquele que não se enquadra nestes padrões normatizados. É preciso compreender que uma política de igualdade não necessita ser uma política de identidade única, posto ser fundamental o reconhecimento das diferenças. Negar o direito à diferença é forjar um falso direito à igualdade. Portanto, para além de simplesmente reivindicarmos 'novas' políticas de identidade, necessitamos atrelá-las a políticas de igualdade consubstanciada no reconhecimento das diferenças.

Ao que tudo indica O que é uma vida boa? de Butler nos propõe, sutilmente, uma mudança na percepção sobre qual o conceito de vida boa que manejamos, e mais, a obra questiona como as relações de poder, dominação, opressão, padrão e controle nos aprisionam em uma visão monocular de vida boa.
Muito do mais do que filosofar sobre o que é uma vida boa, Butler nos desacomoda e nos arma a lutar pela afirmação e valorização dessas vidas que são negadas, daqueles cuja voz nunca foi escutada ou cujo corpo nunca se tornou visível. Em suma, não há como responder o que é uma vida boa? sem pensar nas infindáveis vidas invisíveis de mulheres, negros/as, homossexuais, trans, sem-tetos, desempregados/as, refugiados/as. Esta invisibilidade das minorias avalizada por uma violência simbólica e material imposta muitas vezes pelo capital deve, sobretudo, nos fazer buscar novas práticas de resistência, principalmente centradas em uma visão plural de boa vida. Enfim, o texto problematiza questões de justiça social.
Depois de ler o texto da Butler e já regressando paulatinamente a rotina, elaboração de planos de aula, organização e planejamento do ano, leitura das infindáveis manchetes estampadas em nossa imprensa do tipo "Relatório da Anistia Internacional critica sistema carcerário brasileiro" "Mesmo com a Lei Maria da Penha, aumenta número de casos de violência contra a mulher" fico, junto com Butler, me questionando "como é possível levar uma vida boa em uma vida ruim?"
Por certo não tenho a resposta. Provavelmente, nem Butler teria. Quiçá uma pista, resistir. Uma resistência plural dos corpos, capaz de criar um novo modo de vida, um modo que faça valer a pena viver.




Tradução livre de Qu'est-ce qu'une vie bonne? Título da obra de Judith Butler publicada por Éditions Payot & Rivages, Paris, 2014.
Op.cit., p. 68.
FRASER, Nancy. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition and Participation. In: The tanner lectures on human values. Salt Lake City, Utah, U.S.A: The University Utah, 1996. p. 06.
Em tradução livre: "As definições propostas aqui, ao contrário, levam em conta tais correntes, tratando a redistribuição e o reconhecimento como dimensões da justiça, que pode recortar todos os movimentos sociais."
VINCENT, Carol. Social Justice, Education and Identity. New York: RoutledgeFalmer, 2003.
Ver Fraser, op. cit. e SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.
AYRES, Ricardo Henrique Aires; DIAS, Renato Duro. A imagem do corpo masculino erotizado como potência reflexiva no campo religioso. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. ANPUH. Natal, RN: 2013, p. 04.



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