Em busca de uma afinação justa: Relações entre harmônicos superiores e inferiores na performance com duas clarinetas

July 15, 2017 | Autor: R. Dourado Freire | Categoria: Music Cognition
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Em busca de uma afinação justa: Relações entre harmônicos superiores e inferiores na performance com duas clarinetas Ricardo Dourado Freire Universidade de Brasília [email protected]

Abstract Performance and cognition is an area of research that developed since the 1970s. Works of Helmholtz (1885), Révész (2001) e Roederer (2008) offered subsidies for the development of basic studies that allowed performance researchers to open up their theoretical framework for further investigations. This paper presents an investigation based on the physics of sound production and the psychoacoustics of undertones perception during the process of modeling clarinet voicing with two players working on intervals in the clarion register. The main objective was to identify acoustical theoretical factors that could enhance the production of clarinet tone with full harmonic spectrum of overtones and undertones. Keywords Just intonation, differential tones, clarinet sound production, harmonics, subharmonics. Autor Professor de Clarineta da Universidade de Brasília, com atuação tanto na área erudita como no Clube do Choro de Brasília. Obteve o Bacharelado em Clarineta (1991), pela UnB; Mestrado em Música (MM – 1994) e Doutorado em Artes Musicais (DMA – 2000) pela Michigan State University- EUA. Publicou mais de 50 artigos em periódicos brasileiros e também em congressos e revistas nos EUA, Grécia, Lituânia, China e Itália.

A performance de um duo de clarinetas oferece a oportunidade para ouvir com nitidez a relação entre os harmônicos superiores produzidos pela série harmônica e também a relação de sons resultantes advindos da diferença nas frequências de notas de um determinado intervalo. A partir de estudos de Helmholtz (1885), Révész (2001) e Roederer (2008), é possível estabelecer um referencial teórico para a análise dos espectros harmônicos e subharmônicos dos intervalos tocados por duas clarinetas. Este estudo foi motivado pela experiência de performance da peça Saruê de Dois, para duas clarinetas, do compositor baiano Paulo Costa Lima. A obra é estruturada a partir de uma constante interação de intervalos de 2ª maior que são transformados por meio de suspensões ou antecipações em intervalos de 2ª menor. Cada clarineta toca em partes métricas distintas, promovendo a constante transformação dos intervalos percebidos. No final da obra existe uma sequência ascendente que atinge o registro agudíssimo do instrumento, sendo que neste momento é possível identificar uma terceira voz que apresenta notas graves e subgraves de acordo com o intervalo apresentado. O efeito das notas resultantes cativou minha atenção e

serviu de motivação para investigação para o fenômeno acústico da produção dos sons diferenciais. O objetivo principal deste estudo foi identificar as notas resultantes dos intervalos musicais com duas clarinetas e verificar sua aplicabilidade dentro dos sistemas de afinação. A metodologia utilizada foi o estudo teórico dos sistemas de afinação, seguido da identificação e análise dos intervalos resultantes oriundos da performance com duas clarinetas. A clarineta possui um espectro harmônico característico por realçar os harmônicos ímpares devido ao seu tubo cilíndrico que atua como um tubo fechado na produção sonora. A produção dos harmônicos 3, 5, 7 e 9 permite a construção de uma escala de 19 semitons no registro fundamental (chalumeaux), 14 semitons no registro agudo (clarino) e 11 semitons no registro superagudo. O espectro harmônico de um instrumento será definido pela intensidade da nota fundamental em relação às intensidades dos harmônicos superiores. A combinação de frequências fundamentais e dos espectros harmônicos de duas clarinetas auxilia a definir a percepção dos timbres e cores dos instrumentos. Apesar das peculiaridades da clarineta na produção do espectro harmônico, o instrumento apresenta o mesmo comportamento na formação de subharmônicos dos demais instrumentos. A partir de uma nota aguda são geradas vibrações que correspondem a 1:2, 1:3, 1:4, 1:5 e suas demais proporções. Desta maneira é possível a geração de sons graves a partir de sons agudos. Helmholtz (1885) publicou originalmente em alemão o livro Sobre as sensações do som como base para a teoria da música165. As publicações de Helmholtz serviram de referência tanto para os estudos na área de acústica quanto na área de psicologia por abordarem os aspectos físicos e psicofísicos da percepção do material sonoro. Nesta publicação, o autor retoma conceitos de Pitágoras, Ptolomeu e Zarlino para analisar a construção das escalas e dos temperamentos e também lançar as bases para os estudos posteriores de acústica. Sons resultantes, sons combinatórios ou sons diferenciais são explicados por Révész (2001) como notas que ocorrem abaixo das notas de um intervalo original. Os sons resultantes são provenientes da diferença entre o número de vibrações de uma nota aguda e o número de vibrações da nota mais grave. De acordo com Rasch e Reiner (1999) existem algumas formas de sons resultantes que apresentam aplicações práticas. Podemos considerar três relações principais: os sons diferenciais (Nota 1 – Nota 2), sons diferenciais de segunda ordem (N2*2 – N1) e sons diferenciais de terceira ordem (N2*3 – N1*2). Roederer (2008) também aborda os aspectos psicofísicos dos sons resultantes e apresenta as notas que podem ser percebidas a partir da performance de dois sons agudos. A partir do modelo de Roederer foi elaborado um exemplo musical para duas clarinetas no qual foi possível identificar os seguintes sons resultantes (Figura1) :

165

Em alemão Die Lehre von den Tonempfindungen als physiologische Grundlage für die Theorie der Musik.

Figura 1- Sons resultantes (linha inferior) provenientes da performance de duas clarinetas (linha superior)

Barbour (2004) faz uma análise dos sistemas de afinação e propõe uma diferenciação entre afinação e temperamento. De acordo com o autor, afinação refere-se ao processo de identificar e analisar um intervalo de acordo com frações e proporções (ratio) que estabeleçam os harmônicos comuns para a definição de notas de referência que não apresentem batimentos. Temperamento é a organização das notas da escala a partir da modificação das proporções de afinação justa de determinados intervalos, em cada temperamento algumas notas são desviadas do padrão justo para compor um equilíbrio dentro da escala de 12 semitons. A afinação proposta pelo filósofo grego Pitágoras no séc. IV AC está baseada na utilização de quintas puras para a organização da escala musical. Nesta estrutura todas as quintas, quartas e oitavas são afinadas de maneira que não existam qualquer tipo de batimentos. No entanto, acordes com terças maiores ou menores apresentam uma afinação com número excessivo de batimentos. A afinação justa (just intonation), proposta originalmente por Ptolomeu, está diretamente relacionada à produção de intervalos nos quais os harmônicos coincidente superiores são ajustados sem batimentos. Neste caso, cada intervalo apresenta uma razão que representa os harmônicos coincidentes, e também uma proporção para encontrar as frequências comuns. Uma quinta é representada pela razão 2:3, ou seja, no caso do intervalo Lá2 (220 Hz) – Mi3 (330hz) o harmônico comum será a nota Mi4 (660 Hz). Barbour propôs a organização de um sistema de afinação justa a partir da seleção de terças e quintas que mantenham a proporção pura e sem batimentos. Barbour se baseou no monocórdio de Marpurg para sistematizar um modelo de afinação que privilegia os intervalos justos, principalmente as quintas e terças puras dos acordes principais nas tonalidades de Dó, Fá, Sol e Ré (Lewis, 2013).

Dó#

Sol#

Lá Fá

Mi Dó

Si

Fá#

Sol



Mib

Sib

Figura 2 – Relações entre intervalos puros

O diagrama demonstra por meio das linhas horizontais representam quintas puras (3:2), linhas verticais indicam terças maiores puras (5:4) e as linhas diagonais indicam terças menores puras (6:5). Baseado nas proporções matemáticas foi possível elaborar um quadro com as frequências correspondentes para cada nota da escala cromática com as alterações das notas Dó#, Mib, Fá#, Sol# e Sib (Figura 3).

Just Intonation - Barbour C

C#

D

Eb

16,50

17,19

18,56

19,80

20,63

0 33,00 34,38 37,13 1 66,00 68,75 74,25 2 132,00 137,50 148,50 3 264,00 275,00 297,00 4 528,00 550,00 594,00 5 1056,00 1100,00 1188,00 6 2112,00 2200,00 2376,00 7 4224,00 4400,00 4752,00

39,60 79,20

-1

E

F#

G

G#

A

Bb

B

22,00

23,20

24,75

25,78

27,50

29,70

30,94

41,25

44,00

46,41

49,50

51,56

55,00

59,40

61,88

82,50

88,00

92,81

99,00

103,13

118,80

123,75

158,40 165,00 316,80 330,00

176,00 352,00

185,63 371,25

198,00 206,25 396,00 412,50

110,00 220,00

633,60

704,00

742,50

792,00

660,00

F

825,00

440,00

237,60 247,50 475,20 495,00

880,00

950,40

990,00

1267,20 1320,00 1408,00 1485,00 1584,00 1650,00 1760,00 1900,80 1980,00 2534,40 2640,00 2816,00 2970,00 3168,00 3300,00 3520,00 3801,60 3960,00 5068,80 5280,00 5632,00 5940,00 6336,00 6600,00 7040,00 7603,20 7920,00

Figura 3- Quadro das frequências de Afinação Justa de acordo com Barbour (2004)

Torna-se possível então organizar planilhas com as relações entre as vibrações em Hz de acordo com o modelo de “Afinação Justa” proposto por Barbour (2004) e a identificação dos sons resultantes por meio da fórmula NR=F1- F2, sendo que F1corresponde a frequência da nota mais aguda e F2 indica a frequência da nota mais grave (Figura 4).

Intervalo Nota Superior Nota Inferior Vibração resultante

Nota relativa Batimentos Barbour

2 menor

E5

D#5

Resultante

G#-1

Hz

1320

1267,2

52,8

51,5625

2 Maior

E5

D5

Hz

1320

1188

3 menor

E5

C#5

1,2375

C2 132

132 A2

0

Hz

1320

1100

3a Maior

E5

C5

Hz

1320

1056

4a Justa

E5

B4

Hz

1320

990

4a Aum

E5

Bb4

Hz

1320

950,4

5a J

E5

A4

Hz

1320

880

6a menor

E5

G#4

Hz

1320

825

6a Maior

E5

G4

Hz

1320

794

7a menor

E5

F#4

Hz

1320

742,5

7a Maior

E5

F4

Hz

1320

704

220

220

0

C3 264

264

0

E3 330

330

0

F#3 369,6

371,25

-1,65

A3 440

440

0

B3 495

495

0

C4 528

528

0

D4 577,5

594

-16,5

Eb4 616

633,6

-17,6

Figura 4- Sons resultantes X Afinação Justa

No quadro de sons resultantes observa-se que os intervalos de 2ª Maior, 3ª menor, 3ª Maior, 4ª Justa, 5ª Justa, 6ª menor e 6ª Maior apresentam zero batimentos como produto da diferença entre as frequências dos intervalos e as notas correspondentes no sistema justo de Barbour. Apenas os intervalos de 2ª menor, 4ª aumentada, 7ª menor e 7ª Maior apresentaram discrepância entre as frequências dos intervalos agudos e as notas resultantes correspondentes. A análise do quadro dos sons resultantes X afinação justa permite observar que quando uma nota estacionária (Mi5) está formando intervalos com notas inferiores. Neste caso, a nota inicial serve como referência e os sons resultantes somente poderão ser identificados enquanto notas musicais quando a frequência da nota inferior obedece as proporções da afinação justa. Ou seja, somente quando as notas agudas estão afinadas, é possível ouvir um som resultante claramente identificável. Desta maneira, um intervalo de 4ª justa estará afinado quando a nota superior (Mi5 = 1320) e a nota inferior (Si4 = 990) produzirem o som diferencial (Mi = 330). Neste caso a nota resultante funciona como uma confirmação da afinação das notas superiores. A possibilidade da identificação dos harmônicos coincidentes e dos harmônicos resultantes oferece a oportunidade para uma execução polifônica com dois instrumentos que podem mostrar novas notas graves ou criar sensações de consonância ou dissonância nas notas agudas. Além disso a presença de sons resultantes afinados assegura que a afinação das notas agudas segue o sistema de afinação justa. A modelagem sonora a duas vozes permite uma audição ampliada dos intervalos a partir da combinação de notas graves que não estão presentes na notação original. A afinação destes intervalos, no entanto, é uma responsabilidade do intérprete que irá decidir como regular o

equilíbrio sonoro para valorizar a presença de determinadas notas que poderão enriquecer o contexto tonal/atonal da performance musical.

Referências Barbour, J. Murray. 2004. Tuning and Temperament: A Historical Survey. New York: Dover. Helmholtz, Hermann von. 1885. On the sensations of tone as a physiological basis for the theory of music, 2ª edição inglesa, traduzida por Alexander J. Ellis. London: Longmans, Green, and Co. Lewis, Pierre. 2013. Understanding Temperaments. http://leware.net/temper/temper.htm [acesso em 10/02/2013]. Rasch, Rudolf e Reiner Plomp. 1999. “Perception of Musical Tones”. In Psychology of Music, editado por Diane Deutsch, 104-106. San Diego: Academic Press. Révész, Geza. 2001. Introduction to the Psychology of Music. New York: Dover. Roederer, Juan. G. 2008. The Physics and Psychophysics of Music: An Introduction. Heidelberg: Springer-Verlag.

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