Em busca de uma esfera pública mundial? – debates sobre Emancipação, Cidadania e Reconhecimento em dois fóruns mundiais no ano de 2005

August 3, 2017 | Autor: George Coutinho | Categoria: World Social Forums, Globalização
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XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 01 de junho de 2007 UFPE – Recife GT: Emancipação, Cidadania e Reconhecimento Em busca de uma esfera pública mundial? – debates sobre Emancipação, Cidadania e Reconhecimento em dois fóruns mundiais no ano de 2005 Drª Adelia Maria Miglievich Ribeiro – LEEA/PPGPS/UENF George Gomes Coutinho – PPGPS/UENF e-mails: [email protected] ; [email protected]

Em busca de uma esfera pública mundial? – debates sobre Emancipação, Cidadania e Reconhecimento em dois fóruns mundiais no ano de 20051 - Mundo fora de controle - contextos pós-nacionais e a demanda por uma esfera pública mundial Domingues (2004) observa com algum grau de perplexidade que as produções no campo sociológico só ultimamente passaram a se deter, com mais parcimônia, no exame de duas dimensões fundamentais da vida em sociedade: “O tempo e o espaço, outrora temas negligenciados, tornaram-se recentemente questões centrais para certo número de teorias sociológicas.” (Ibid: 65). A emergência do maior interesse em torno das relações espaço-temporais não é gratuita. Ainda que não seja exatamente uma novidade posto que a percepção das relações espaço-temporais demarcam a eclosão da modernidade mesma (Giddens, 1991; Harvey, 1998), salta-nos aos olhos, neste momento, a mudança qualitativa na operacionalização do conceito em razão de novas formas de organização da produção material e simbólica em escala mundial e em ritmos frenéticos. O “boom” da globalização tem sido tratado exaustivamente na literatura especializada. Todavia, permanece a sensação de “inescapably side by side”, tal como se intitula a entrevista concedida por David Held (2007). No feixe ideológico que ainda opõe a direita e a esquerda, o entusiasmo do mercado contrasta com a resignação em face de seus efeitos perversos mas não se pode indicar algo diferente do que um “novo senso comum” que ainda apresenta a globalização como “inescapável” e exprime, mormente, a dificuldade inegável dos Estados-Nacionais no enfrentamento das abissais desigualdades sociais e econômicas que se aprofundam concomitantemente ao avanço dos complexos processos que têm a financeirização das economias apenas como uma de suas facetas. A opacidade e o clima de incerteza provenientes deste cenário global decorrem de mudanças aceleradas que não incidem somente sobre a última década do século XX mas remontam às profundas e inegáveis modificações que tomaram o mundo de assalto ainda nas franjas do Estado de Bem-Estar Social europeu em declínio e das ditaduras espalhadas pelo mundo, com presença mais notável no então “terceiro mundo”, o que nos obriga a uma remissão à década de 1970. Assim sendo, as modificações aceleradíssimas, que justificam a comparação com um “turbilhão” (Cf. Habermas, 2001), 1

Uma primeira versão, modificada e parcial, deste paper foi apresentada no II Seminário Nacional “Movimentos Sociais, participação e democracia” ocorrido entre 25 e 27 de abril de 2007 na cidade de Florianópolis- SC.

devem-se a dinâmicas pretéritas. O que destacamos aqui é o fato de que as operações macro-estruturais deram-se simultaneamente à evidência de discursos reivindicadores de reconhecimento (Fraser, 2000) presentes nos “novos movimentos sociais” (Offe, 1984) em meio à ampliação sem precedentes da democracia (formal) no mundo (Huntington, 1994). Autores do porte de Held (1995), Giddens (1999) ou Habermas dos chamados “escritos pós-nacionais” (Op. Cit.) passam a professar em seus diagnósticos modificações nos fundamentos da modernidade que exigem, no âmbito das teorias sociais, uma revisão conceitual profunda. Idéias-chaves como “nação”, “cidadania”, democracia, dentre outras, são revisitadas. Seus críticos, não por acaso, recebem a alcunha de “teóricos da segunda modernidade” (Giesen, 2001). Segundo Giesen, estes autores aos quais soma Ulrich Beck buscam a re-fundação do paradigma de modernidade em consonância com as modificações ocorridas e terminam por propor o definhamento do Estado-Nação em favor de uma “irreversível solução pós-nacional”.

Nasce assim a

defesa de uma democracia cosmopolita. Neste estado de ânimo, passa-se a debater uma “esfera pública mundial” que é o objeto deste paper. Pretendemos, ainda que sucintamente, apontar para o imbróglio que as demandas por reconhecimento, emancipação e cidadania provocam na concorrência por espaço nos discursos presentes na arena global. Temas clássicos são ressignificados nos fóruns globais com conseqüências para a teoria social contemporânea. Segundo a concepção tripartite de cidadania na leitura marshalliana (Cf. Marshall, 1967) devemos lembrar que o entendimento moderno de “cidadania” constrói-se a par da sedimentação do Estado-nacional e não a despeito deste. Direitos políticos, civis e sociais são afirmados constitucionalmente. O ícone da revolução francesa ainda que em sua projeção mundial, era clara ao afirmar a questão nacional como basilar na inauguração da modernidade. O tema da “emancipação” contido nos escritos de juventude de Karl Marx realizavam a distinção entre emancipação política e humana. Admitindo que as revoluções modernas haviam lutado pelo erguimento dos Estados Nacionais, a severa crítica de Marx estava precisamente no apontamento dos limites deste uma vez que haviam sido edificados como “palco” para o direcionamento burguês das então novas sociedades capitalistas. A substituição da emancipação política pela emancipação humana exigia, porém, um “novo homem”, o “ser genérico” que desprovido das amarras de uma sociedade fundada na apropriação privada dos meios de produção de riqueza e

vida, construiria a si mesmo em sua expressão máxima de liberdade que renunciava a qualquer forma de Estado. Tratava-se do indivíduo auto-mediado, aquele que superara o individualismo mesmo e se superara em seu egoísmo para expressar a si mesmo e ao outro como prolongamento de si. Não pudemos constatar nas experiências do “socialismo real” a ênfase na luta por emancipação humana. A emancipação política do “Estado Burguês” em nada respondeu à radicalidade da crítica marxiana sobre uma ordem social onde a repressão social é a tônica. Por sua vez, as lutas por reconhecimento ainda que se desenvolvam concretamente em fronteiras delimitadas, transnacionalizam-se sem, porém, tornarem-se universais. Seu princípio de adequação às demandas das chamadas subjetividades exige que o particularismo seja a sua base. Ora, o particularismo por princípio é uma forte antagonista quer das lutas por cidadania quer da utopia da emancipação humana. Nossa proposta é discutir em caráter preliminar duas experiências de espaços públicos transnacionais

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(Olesen: 2005) não institucionalizadas 3, a saber, o Fórum de

Davos (Fórum Econômico Mundial, doravante FEM) e o Fórum Social Mundial (doravante FSM) em suas edições de 2005, nas quais as tensões em torno das demandas de emancipação, cidadania e reconhecimento se fazem presentes. Perguntamos, por fim, acerca da possibilidade de se erigir uma “esfera pública mundial” na qual a idéia de emancipação possa estar eventualmente relacionada à idéia de justiça simbólica (Fraser, Op. Cit). Ainda que observando tal aproximação, isto apenas nos obriga a atenção de que se tratam de conceitos revistos e atualizados em acordo com significados emergentes nas teorias sociais contemporâneas a permitir olhares inéditos sobre antigas ou novas interações sociais.

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O conceito de espaços púbicos transnacionais proposto pelo cientista social dinamarquês Thomas Olesen é utilizado, primeiramente, para compreender movimentos “transnacionalizados” sob um prisma realista, como o estudo feito pelo autor do movimento (neo)zapatista (Cf. Olesen, 2004). O argumento desenvolve-se enquanto uma crítica contundente ao potencial heurístico, na verdade a ausência de capacidade explicativa, de conceitos como o de “sociedade civil global”. Para Olesen existem estruturas profundamente hierarquizadas de modo que apostarmos em uma esfera pública “mundial”, em uma acepção habermasiana ortodoxa, seria pouco producente dado que dentro dos espaços públicos transnacionais assistimos, de forma inegável, formatos de dominação que em última instância reproduzem as assimetrias presentes no mundo

contemporâneo. Sobre esta questão retomaremos adiante.

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Tratamos tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) ou a União Européia (UE) também enquanto espaços transnacionais, mas, como espaços institucionalizados. Portanto, estes não funcionariam para um de nossos objetivos que é o do testar o conceito de “sociedade civil global” (Cohen, 2003).

- Sobre o Fórum Econômico Mundial e o Fórum Social Mundial – notas breves O Fórum Econômico Mundial é a reunião anual mais antiga, datando a primeira do ano de 1971, tendo sido organizada pelo professor Klaus Schwab4. Parece, entretanto, ter adquirido maior visibilidade midiática apenas nos últimos anos, em função da criação em 2001 do seu “pólo antagônico”, o Fórum Social Mundial5, cuja gênese remete-se aos movimentos anti-globalização (Leite, 2003) ou à luta por uma globalização antihegemônica (Santos, 2005). Milton Santos (1997) em análise anterior à existência mesma do FSM ressalta que um dos papéis desempenhados por esta imponente reunião de “homens de negócios” era, em parceria com organismos multilaterais, definir o “World Competitiveness Index”, um índice de competitividade entre países mais ou menos competitivos que, em última instância, mereceriam recursos dos investidores internacionais. Silva (2005) vê, portanto, o FEM como um grande think tank na concepção de arranjos de ponta na economia mundial. Na Global Town Hall de 2005, uma das atividades do FEM, os 700 líderes mundiais presentes debateram em pequenos grupos seis temas prioritários da agenda global eleitos por um sistema de votação eletrônica: 1) Pobreza – 64, 4%; 2) Globalização justa – 54, 9%; 3) Mudanças climáticas – 51,2%; 4) Educação – 43,9%; 5) Oriente Médio – 43, 7%; 6) Governança Global – 43,2% 6.

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Klaus Schwab (1938-), de nacionalidade alemã, doutorou-se em engenharia mecânica e em economia. Atuou como professor na Universidade de Genebra do ano de 1972 ao de 2002, recebendo ao longo de sua carreira seis títulos de doutor honorário em diversas universidades dentre elas London School Of Economics. 5 Doravante refiro-me ao Fórum Econômico Mundial e ao Fórum Social Mundial respectivamente pelas siglas FEM e FSM. 6 Todas as estatísticas foram retiradas de WEF, 2005.

Fonte: World Economic Forum, 2005.

É de se notar a profunda desproporção entre representantes de distintos estratos sociais e mesmo países na Global Town Hall. Os países do “norte” aparecem nada menos que 70% mais representados do que o restante do mundo.

O continente africano,

asiático, o Oriente Médio e a América Latina detém apenas os outros 30% de representação. A distribuição por gênero dos participantes é, também, “anti-democrática”, sendo a maioria (66%) formada por homens. Sob a perspectiva geracional, 61% dos partícipes do Global Town Hall encontram-se no estrato de 50 (cinqüenta) anos de idade em diante. Quanto à inserção profissional, 50% são provenientes do mundo de negócios, e os demais personalidades destacadas do showbussiness, além de lideranças religiosas, nomes de relevância nas ciências e nas artes, dentre outros. Indivíduos, portanto, que angariaram prestígio e reconhecimento internacionais como empreendedores de seus talentos, capazes de revertê-los em dinheiro, são os “chamados” para representarem a “sociedade civil global” e, nos dias do fórum, experimentarem interações que resultem numa pauta de ações para a “solução” dos maiores problemas que afligem o Planeta Terra. Seus partícipes parecem ter aderido à “solução globalizada” como a melhor maneira de “improve the state of the world”, em alusão à “missão” (statement) do FEM “Committed to improving the state of the world”. Há, no ponto 6, o da “governança global”, uma clara opção pela baixa institucionalização dos mecanismos políticos, contido na

proposta de governança global 7. Na Global Town Hall, a adesão é clara: “Global leadership, not world government”. Por sua vez, o FSM - surgido na cidade de Porto Alegre no ano de 2001, apenas duas de suas edições saíram do solo brasileiro: na cidade de Mumbai, na Índia, em 2004; e em janeiro de 2007, com a experiência de Nairobi, no Quênia - vem sendo interpretado como a "grande inovação política" dos últimos anos. Francisco Whitaker (2005), membro do Comitê Organizador, apresentou-o como ponto de cruzamento entre a "nova" e a “velha” esquerda em âmbito mundial, um espaço de construção de novas práticas de sociabilidade, ao mesmo tempo, front da luta contra um modelo econômico desumano cunhado por “neoliberalismo”. Sua gênese confunde-se com a eclosão de movimentos de protesto, em escala “global”, como os eventos ocorridos em Seatlle (1999) ou Gênova (2001) que permitem a convivência de representantes do espectro político, não só da esquerda, em prol uma “outra globalização”. O discurso difuso marca a heterogeneidade do FSM. Daí a pertinência da questão formulada por Sousa Santos (2005): como pensar na formação de um público plurivocal com participantes que são, em muito, auto-financiados, pertencentes à diferentes locais do globo e que não possuem uma mesma cultura discursiva que os permita, faticamente, atingirem propostas consensuadas para um “outro mundo possível”? Tal qual o FEM, o Fórum Social Mundial busca saídas e inovações no campo da participação. Elaborou o ousado “Mural de Propostas” visando enfrentar o déficit participativo de militantes, movimentos, organizações não-governamentais, pessoas físicas e jurídicas de qualquer lugar do planeta que desejavam comunicar-se sobre “um outro mundo possível”. As sugestões vinham durante os dias do evento e, também, pela Internet. No ano em estudo, 2005, foram recebidas 306 propostas que foram classificadas em 11 temáticas, para além da 12ª para aquelas que não enquadrassem nos temas descritos, que são: 1) Afirmando e defendendo os bens comuns da terra e dos povos - Como alternativa à mercantilização e ao controle das transacionais; 2) Artes e criação: construindo as culturas de resistências dos povos; 3) Comunicação: práticas contra-hegemônicas, direitos e alternativas; 4) Defendendo as diversidades, a pluralidade e as identidades; 5) Direitos humanos e dignidade para um mundo justo e igualitário; 7

Não é ao acaso que o termo “soft power” seja normalmente apresentado como sinônimo de governança.

6) Economias soberanas por e para os povos - Contra o capitalismo neoliberal; 7) Ética, cosmovisão e espiritualidades - Resistências e desafios para um mundo novo; 8) Lutas sociais e alternativas democráticas - Contra a dominação neoliberal; 9) Paz, desmilitarização e luta contra a guerra, o livre comércio e a dívida; 10)

Pensamento

próprio,

reapropriação

e

socialização

dos

saberes,

conhecimentos e tecnologias; 11) Rumo à construção de uma ordem democrática internacional e a integração dos povos.

Tema 1

14

Tema 2

12

Tema 3

10

Tema 4 Tema 5

8

Tema 6

6

Tema 7

4

Tema 8 Tema 9

2

Tema 10

0 Contagem

Tema 11 Sem Espaço

Conforme se constata, prevalece a pulverização e a diversidade da pauta sem a apresentação de formas para a solução dos problemas expostos. Diversidade, porém, não é sinônimo de que todos tenham as mesmas oportunidades de participação e atuação naquele espaço. Thomas Olesen (Op. Cit.) já desmistificara a noção de equidade e de horizontalidade que estariam “naturalmente” subjacentes às “redes” transnacionais. O problema situa-se na constatação de que há “nós” que compõem esta rede, alguns melhor estruturados e contando com um número maior de contatos e de recursos do que outros numa mesma rede. Assim, é possível que algumas das propostas do FSM sejam concretizadas, dependendo da localidade na qual se situarão e das condições institucionais para tal. Fato é a diversidade louvável das 306 propostas não oferecem meios de institucionalização da vontade política em escala mundial. O consenso “forjado” no FEM, não encontra similar

no FSM, ao menos no evento de 2005.

Frustra-se a busca de soluções para os

problemas de uma democracia cosmopolita e se reafirma a aposta no local/nacional como instância contra-hegemônica às falácias da “sociedade civil global”. Não por acaso, entendemos, em 2007, o FSM interrompe suas atividades e propõe revigorar os fóruns em menor escala que, nem por isso, perdem em comunicação. Ao que se percebe, optase por fortalecer o maior número possível de “nós” da rede.

- Incitações finais: algumas dificuldades em torno de uma esfera pública global – sobre emancipação, cidadania e reconhecimento Após a década de 1970, de maneira decisiva, na torrente do refluxo do movimento sindical, assistimos à luta pelos direitos civis desaguar poderosamente em caminhos diversos que vão desde as grassroots (as precursoras das Ong´s) até a afluência plurivocal dos “excluídos da história” como ressalta a autora feminista francesa Michelle Perrot (s.d.). Até então estes debates situavam-se em esferas públicas alternativas (counterpúblics8) mas, cada vez mais, adquirem legitimidade na composição de discursos “oficiais”. A este movimento o frankfurtiano Axel Honneth (2003) chamou de luta por reconhecimento na qual se daria também o debate sobre a formação moral ocidental moderna que classificou atores e vozes em mais relevantes ou menos que passa, então, a ser confrontada por aqueles não incluídos até hoje nas gramáticas do reconhecimento. Trata-se de revolver tais ditames gramaticais e impor a visibilidade de identidades e conflitos sociais até então invisíveis porque inclassificáveis. Honneth detém-se com mais força na identificação dos “saltos” dados, no ocidente, durante a “era social democrata” 9 (Cf. Hartmmann & Honneth, 2006). Considera digno de nota o reconhecimento da legitimidade das reivindicações de justiça contidos

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O conceito de counterpublics é proposto por Fraser (apud Olesen, 2005) visando designar espaços de sociabilidade e elaboração discursiva que situam-se em paralelo ao desenvolvimento da esfera pública burguesa habermasiana (1984). O argumento, procedente, é sugerido visando apreender a sociabilidade burguesa “marginal” dado que os públicos informados que irão compor a esfera pública “tradicional” apresentada por Habermas teria sexo, etnia, valores, que não representam a absoluta totalidade de outros valores concorrentes que são simbolicamente sufocados ocultando, em verdade, profundas e densas relações de dominação. 9 A “era social democrata” para os autores é o período compreendido pelo pós segunda Grande Guerra e a década de 1970.

nos discursos clamando por justiça simbólica (Fraser, Op. Cit) ou ainda justiça cultural. Sobre este ponto que iremos nos ater. Concordando com Torres Junior (2005), boa parte da polêmica existente entre Fraser e Honneth, autores das propostas mais sofisticadas acerca da “teoria do reconhecimento”, consiste em debater se há ou não a possibilidade de se pensar a justiça distributiva e justiça simbólica como analiticamente separadas e, sobretudo, se poderíamos abordá-las a partir de uma única fonte explicativa, qual seja a fundamentação normativa destas justiças (ou injustiças). Para Torres Junior, em consonância com Honneth e com o filósofo canadense Charles Taylor, ambas as “justiças” devem ser discutidas a partir de um mesmo pano de fundo moral que legitima e aprofunda os processos de desigualdade social. Aproximando-nos, por nosso turno, de Nancy Fraser, afirmamos que a justiça distributiva e a justiça cultural antes de se oporem, complementam-se em sua distinção. A cientista política norte-americana resumiu da seguinte maneira os dilemas encontrados pela justiça em contextos pós-socialistas: se as políticas redistributivas tem por telos a busca pelo fim da diferenciação na sociedade classista, ou término das classes em um sentido marxiano clássico, alicerçadas em uma perspectiva que é igualitária, as políticas de justiça simbólica discutem justamente o direito à diferença10. Embora Fraser reconheça que se trata apenas de uma distinção analítica, observarmos que se tratam de demandas distintas obriga-nos a compreender a complexidade por trás do estabelecimento do que vir a se chamar “cidadania contemporânea”. A grande questão é: qual a possibilidade de equacionar as demandas de igualdade (dignidade humana) e de diversidade (autenticidade) num cenário transnacional? Habermas (2002) propõe uma metalingüística jurídica a fim de amparar o patriotismo constitucional como estratégia possível na sedimentação de uma esfera pública mundial. Parece subestimar, contudo, que as constituições, produtos de diferentes espaços públicos nacionais, são construídas de forma diversa, assim como os próprios espaços públicos, não sendo óbvia que delas emergisse o pressuposto comum a todas revelado no citado patriotismo constitucional. Como argumenta Costa (2006), a efetivação das promessas não cumpridas da modernidade (Habermas, 2000) mantém-se nas molduras do Estado-Nação em sua 10

Fraser nos indica que existem grupos que se situam em uma perspectiva de justiça “bivalente” em que suas reivindicações situam-se tanto sob critérios distributivos quando de justiça simbólica, como o caso da questão do negro ou das mulheres no ocidente, dado que as suas tem conseqüências distributivas e culturais.

combinação de racionalidade-legalidade e “sentimentos de pertencimento”. A construção mesma de um público-leitor transnacional ainda é uma realidade muito distante, em que pese a revolução informacional, haja vista que a discrepância na circulação de jornais na periferia e em países centrais: “A densidade de leitores (número de jornais em circulação por mil habitantes está (no Brasil) em torno de 40, um coeficiente que, comparado com aqueles apresentados pela Dinamarca (510), Alemanha (350), Estados Unidos (280) (...) é bastante modesto.” (Ibidem, 184), os parênteses são nossos). Pode-se afirmar que tal fenômeno afeta diretamente as duas experiências de espaços públicos transnacionais analisadas na seção anterior pois, como vimos, tanto o FEM quanto o FSM reproduzem estas diferenciações. Neste momento, portanto, parece-nos mais crível a aposta no incentivo e na criatividade dos movimentos mais voltados para os Estados-Nacionais do que para além deles dada a dificuldade de estabelecimento de uma vontade política em espaço pósfronteiriços que concilie a decantada participação com a exigida representação. A cidadania, mesmo a cosmopolita, não pode arriscar fragilizar as instituições tão francamente atacadas pelos rigores de uma desregulamentação apregoada pelos apologéticos no chamado neoliberalismo. Tratar-se-ia de, como no ditado popular, “jogar a água da bacia fora com o bebê dentro”. Em outros termos, um esforço de fortalecimento da sociedade dos cidadãos, da cidadania pois, requer o fortalecimento concomitante de nossas instituições democráticas em sua virtudes que não podem ser subsumidas por uma crítica mais feroz que acaba voltando-se contra si mesma. Num mundo de consumidores, toda representação que não baseada nas regras do Estado Democrático de Direito tem fortes chances de destruir as mesmas que poucas garantias de legitimidade política. A busca de novos arranjos políticos evidenciada no FSM, tal como na versão 2005, pode, pois, conter o seu oposto: a despolitização da economia e da sociedade. Enquanto isso, e não à toa, a versão do FEM, no ano de 2005, apostou na transnacionalização que não cria esfera pública global mas sim o aprofundamento da complexa rede de financeirização que interessa a diminutas e poderosas elites do globo. Por fim, e não menos importante, o exame dos Fóruns e da presença das demandas de emancipação, cidadania e reconhecimento nestes atestam a necessidade de aprofundamento da equação distribuição e justiça simbólica, tal como, a tão recorrente máxima da conciliação entre igualdade e liberdade, o que significa dizer que a cultura nacional longe de desaparecer revela ainda mais seu poder de agregação e de construção de identidades coletivas com competência de reivindicação dos direitos de

minorias. Nessa perspectiva, a emancipação humana pode ser repensada em sua ênfase à auto-mediação dos indivíduos não em sua negação da política mas em sua corroboração. Indivíduos auto-mediados, aqui, no sentido explícito de dotados de capacidade de expressão de suas demandas mais abstratas, as de autenticidade, fortemente

relacionadas

aos

critérios

de

subjetividade.

Nas

demandas

por

reconhecimento que entrecruzam dignidade e autenticidade, está pois contemplada também a busca da cidadania, em seu sentido universal. A retradução da concepção marshalliana de cidadania social com a chegada do novo milênio implica, portanto, a nosos ver a saudável incorporação dos pressupostos, de um lado, da emancipação; de outro, do reconhecimento. Referências Bibliográficas COHEN, Jean. Sociedade civil e globalização: repensando categoriais. In: Dados – Revista de ciências sociais. Rio de Janeiro: IUPERJ, vol. 46, n.3, 2003, p.419-459. COSTA, Sérgio. Contextos da construção do espaço publico no Brasil. In: Novos estudos. São Paulo: Cebrap, mar. 1997, n. 47, p.179-192. ______. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. DOMINGUES, José Maurício. Ensaios de sociologia: teoria e pesquisa. Belo Horizonte: Ediotra UFMG, 2004. FRASER, Nancy. De la redistribución al reconocimiento?- Dilemas de la justicia en la era “postsocialista”. New Left Review (en espanõl). Madrid, Akal, n.0, 2000. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991. ______. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da socialdemocracia. Rio de Janeiro: Record, 1999. GIESEN, Klaus-Gerd. Habermas, a segunda modernidade e a sociedade civil internacional. In: Novos estudos. São Paulo: Cebrap, jul. 2001, p.87-96. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984. ______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 (vol. I).

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