Em busca do mundo exterior: sociabilidade no Rio de Machado de Assis

July 31, 2017 | Autor: V. Rezende Borges | Categoria: History, Cultural History, Machado de Assis, Sociabilidad
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Em busca do mundo exterior: sociabilidade no Rio de Machado de Assis Valdeci Rezende Borges

Durante o século XIX, sobretudo a partir de seus meados, a sociedade fluminense experimentou variadas mudanças, entre elas, uma crescente trans­ formação do espaço físico da cidade, de seu suporte material, de seus utellsílios melllais, formas de interaçao e vivências públicas e privadas. Em tal contextO, as pessoas estabeleceram, socialmente, tanto novas possibilidades de convivência e de vínculos sociais quanto significados a tais práticas. Neste artigo, abordo algumas dimensôes da tessitura de urna teia de sociabilidade e de sentidos 1 atribuídos às suas práticas constituintes observadas na obra machadiana. Em suas malhas, as experiências cotidianas dos cariocas, diurnas e noturnas, ligam-se entre si por meio da circulação e interação dos indivíduos, assim corno da comunicabilidade da esfera privada com o mundo exterior, com a vida fora da casa e para além das relaçôes mais imediatas como as familiares e vicinais. Sobre essas práticas culturais apresento urna leitura de alguns aspectos

Estudos His,óricoJ. Rio de Janeiro, nO 28, 2001. p. 49·69.

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da visão de Machado de Assis desse universo e de seu imaginário, recorrendo a um diálogo com outros autores que estudaram a vida social da cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. No código urbano público fluminense tradicional estava convencionado que "a rua fez-se para o homem, não para a mulher" e, assim, aquela das classes abastadas que devia e podia acatá-lo, não tinha o hábito comum de freqüentar esse espaço. Recebia-se pouco em casa, e a família restringia sua sociabilidade às festas públicas, principalmente, religiosas. Neste sentido, Machado aponta tam­ bém que, por volta de 1813, as festas religiosas eram boas e consistiam em "todo o recreio público e toda a arte musical" do tempo. Mas, já por volta de 1840 a 1860, como ressalta W. Pinho (1970: 117), a sociedade foi tomada por uma" febre das reuniões, dos bailes, dos concertos, das festas" e para Machado, na década de 1850, "a vida externa era festiva, intensa e variada. (...) Tudo bailes e teatros. ( ...) Além deles, muitas sociedades coreográficas", cassinos, corridas de cavalos e 2 ainda as festas eclesiásticas. Aspectos da sociabilidade "al/tiga"

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As velhas formas de sociabilidade modificaram-se consideravelmente junto com a configuração da nova realidade cultural. Os indivíduos inseriram-se em outras formas de convivência social, e outros laços irromperam em ini­ magináveis espaços e tempos, em modos variados, adequados à sociedade bur­ guesa e capitalista, que se consolidava e avançava, adotando parâmetros consi­ derados mais modernos em sua existência dinâmica. As práticas tradicionais de conviver e interagir socialmente foram sendo desprestigiadas nessa sociedade que se secularizava, restringia as datas festivas religiosas e entrava em contato com outras visões de mundo, formas de expressão, modos de ser e agir, produzindo novas subjetividades. Essas transformações ocorriam ainda inseridas num contexto amplo e complexo de interação dos indivíduos com os novos produtos do desenvolvimento tecnológico, como os diversos tipos de meios de transporte e de comunicação, a exemplo das embar­ cações a vapor, os trens, os bondes, os jornais e revistas, os telégrafos, a fotografia, o kinetoscópio, o cinematógrafo ... (Borges, 2000). Atrelada a isso, a vida econômica e política dinamizava-se, exigindo outros espaços e ocasiões de contatos. Nessa conjuntura, uma"nova sociabilidade, feita de hábitos mundanos, encontra terreno para expandir-se nas novas avenidas, praças, palácios e jardins" (Saliba, 1998: 318). Os indivíduos das classes médias e altas foram tomados por um gosto crescente pela "vida externa", e a cidade o propiciava ao ser reurbanizada, aformoseada e higienizada, seguindo os parâmetros das capitais européias. Foram

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implementados melhoramentos de infra-estrutura pública, como pavimentação, iluminação a gás e transporre coletivo, e ações de embelezamento, como jardins, parques, estátuas de bronze, alargamento de ruas... além de outras inovações, as quais eram consideradas "frutos do progresso" e possuidoras de ares europeizan­ tes (Borges, 2000: 13-40). Assim, o espaço urbano, de acordo com D'Incao (1997: 226), transfOJmava-se "num lugar de interesse público". Nesses tempos de "galas novas", como disse Machado, seus habitantes abandonaram, aos poucos, seus antigos hábitos e costumes comuns, aquelas "boas festas antigas", "numerosas" e "eclesiásticas", fazendo avançar outros modos. As igrejas, muitas vezes, eram freqüentadas, por serem lugares de encon­ tro, de reunião, de mostrar-se e de ostentar opulência e distinção social. O casal Santos, de Esaú e Jacó, não querendo expor-se na sua roda social, mandou dizer missa por alma de um parente pobre na igreja de São Domingos, porque essa não dava "relevo ao ato; não era vistosa, nem buscada, mas velho ta, sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo, adequada à missa recôndita e anônima". Por meio do conteúdo e da forma como os anúncios e convites eram divulgados nos jornais, podia-se chamar a atenção pública ou não, para o lugar e para si, ao trazer o nome de quem encomendou a cerimônia e a hora. Se à celebração dos Santos, por um lado, "ninguém lá foi", pois tudo foi organizado de maneira que "nenhum conhecido daria com eles", por outro, o casal gozou do "assombro loca!", diante da "publicidade na carruagem, lacaio e libré" e na 3 espórtula vultosa, sendo "objeto de curiosidade". A igreja era local de sociabilidade, embora estivesse perdendo o posto de sê-lo por excelência. Se participar das celebrações dominicais fazia parte do costume, Virgília, de Memórias póstumas . , por volta de 1840 e 50, já "não ouvia missa aos domingos" e "só ia às igrejas em dia de festa, e quando havia lugar vago em alguma tribuna". Maria Olímpia, por sua vez, de A Senhora Galvão, que também "tinha a vocação da vida exterior", mais ou menos por essa mesma época, em ocasiões de celebrações religiosas, gostava, nas procissões e nas missas cantadas, "principalmente do rumor, da pompa", tendo devoção tfbia e distraída. "A primeira coisa que ela via na tribuna das igrejas era a si mesma." Tinha gosto em "fitar a multidão das mulheres ajoelhadas ou sentadas, e os rapazes, que por baixo do coro ou nas porras laterais, temperavam com atitudes namoradas as cerimônias latinas. Não entendia os sermões; o resto, porém, orquestra, canto, flores, luzes, sanefas, ouros, gentes, tudo exercia nela um singular feitiço". Se sua devoção era magra, "escasseou ainda mais com o primeiro espetáculo e o primeiro baile", pois passou a dançar muito e ganhou fama de elegante. Os salões tor­ navam-se o novo espaço da convivência social abastada, da elegância, do encontro e do divertimento. Atitude semelhante já tinham vários homens, os quais, ..

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segundo D. Fernanda, de Qui/lcas Borba, eram, "em geral, uns ímpios". Seu marid' Os indivíduos implementaram práticas inovadoras, uma espécie de "sociabilidade desenraizada" (Saliba, 1998: 319), alterando e substituindo seus hábitos sócio-culturais comuns e tl"ddicionais, como os religiosos, e estabele­ cendo outras formas de convivência e entretenimento. Um costume comum do tempo dos vice-reis, altemdo, era o de ingressar em confrarias e irmandades religiosas, por "amor às coisas pias", que passou a ocorrer por ser simples busca de "recompensas" imediatas, advindas do "desejo de tornar matéria pública a importância do sujeito e seu espírito caritativo", mediante a instalação de "retrato na sacristia", a emissão da notícia aos jornais sobre "os benefícios que praticava" e a divulgação feita pelo "beneficiado". Assim, o "benfeitor" entrava "nas cogitações públicas", tornava-se conhecido e tinha o nome sempre "lembrado" 5 na sociedade As itmandades de "damas" também eram usadas para dar brilho às suas "juízas", pela publicidade das disputadas festas por elas organizadas para levantar suas associações e a si mesmas. Além da "notícia minuciosa" nos jornais com os nomes das organizadoras, estas mandavam ainda "transcrever a notícia nos outros jornais". O anúncio nas folhas era um "troco da glória". O mesmo ocorria com as associações filan trópicas erguidas para socorrer a crescente pobreza e mendicidade. Essas associações eram, geralmente, organizadas por senhoras que colhiam donativos e repartiam aos necessitados. Sofia, de Qui/lcas Borba, usou uma comissão de caridade para pôr-se em evidência ao criar vínculos com pessoas de destaque na sociedade, as quais lhe dessem um empurrão para cima como 6 queria, na busca de ascensão social. Já nas camadas sociais populares católicas, destacava-se o "gosto das procissões", que vinha de longe, sendo também um momento de convívio e de espetáculo social. Era, para os an tigos, "uma tradição de infância", costume da primeira metade do século, do "tempo do rei" e, já em 1865, essas procissões podiam "dar idéia de tudo, menos de um culto sério e elevado". Ao lado dos anjinhos e andores floridos, os homens iam em filas; uns com tochas na mão, outros com disputadas "varas do pálio", que davam "distinção especial" a quem as trazia; alguns "dizendo pilhérias à esquerda e à direita", enquanto os assistentes comentavam as graças juvenis do anjo cantor, que era sempre moça feita. Segundo Machado, as procissões tradicionais estavam sendo suprimidas. Para ele, avaliando um cortejo, em 1893, "ordem, número, pompa, tudo o que havia quando era ( ...) menino, tudo desapareceu ...,,7 As festas das igrejas e dos santos eram igualmente populares e reuniam muita gente, mas sofriam também a ação dos novos tempos, perdendo seu interesse. Possuíam maior destaque a festa da Glória, da Penha, da Conceição, de 52

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Reis, de São Sebastião, do Espírito Santos e de São Benedito, Nessas, tinham lugar tanto a religião, com missa que poderia ser cantada e até um Te-Del/m, quanto o recreio, com fogos de artifício, barracas, coretos, leilões de prendas.., A festa da Glória, segundo Machado, era "elegante, de vestido escorrido, da comenda e do claque"; já a da Penha era "da rosca, garrafão ao lado, ramo verde na carruagem e turca no cérebro," No seu dizer, havia "umas festas só populares, outras só elegantes", mas a da Glória tinha "o dom de reunir os diversos aspectos" e, "ao cabo de tudo", era "a mesma alegria e a mesmíssima diversão... ", pois "o fogo de artificio da Glória e o garrafão da Penha [chamavam] mais fiéis que o objeto essencial da festividade", Na festa da Glória, trepavam "a ladeira, a roçar um por outro, o vestido de seda e de chita"; lá se via "o toucado da moça fasheonable, levando atrás de si a trunfa da preta baiana, Uns ( .. ,) de cupê, outros de bonde, outros de pé..," Todavia, já em 1878, Machado dizia que acabava essa e "muitas outras devoções populares, meio religiosas, meio recreativas", pois "o elemento estrangeiro" transformava os costumes com "muita patinação, muita opereta, muita coisa peregrina, que tirou à nossa população a rusticidade e o 8 encanto de outros tempos,, As festas juninas, por sua vez, que reuniam amigos e parentes em volta de uma fogueira no quintal, assando batatas e tirando "sortes", havendo ainda "ceia, às vezes, dança, e algum jogo de prendas, tudo familiar", também pareciam ter fim próximo, Com base em postura de 1856, todos os anos a polícia editava a supressão dos fogos de artifício, das fogueiras e dos balões, fazendo ainda "circular pelas ruas e praças os seus agentes implacáveis" para coibir tais práticas, Assim, Machado dizia que São João na cidade era "como carnaval na roça: (.. ,) deslo­ cado,(..,) falsificado..," Já em 1894, tratou da morte dessa festa e rememorou os "anos passados", 1841, no tempo "em que havia São João e a sua noite"; quando reunia "gente moça em volta da mesa, um copo de marfim e dous ou três dados" e, "fora, ardiam as últimas achas da fogueira", Era momento de ir-se "à consulta do futuro", e um "Iedor abria o livro das sortes e dizia o título do capítulo", indo ao encontro da quadrinha indicada pelo número, sibilando-a 9 Desta forma, esses festejos eram espaços de sociabilidade e de religiosi­ dade, que se interpenetravam, conjugando as esferas do sagrado e do profano, da fé e do recreio, do estabelecimento de vínculos com o divino e com os outros homens, Eram ocasiões que serviam para promover a interação pessoal e O convívio social. Da mesma maneira que essas festas públicas estavam modifi­ cando e mesmo desaparecendo, o tradicional entrudo era suprimido em favor do carnaval, diante da imposição de uma visão de mundo moderna e europeizante, considerada civilizada, A medida que a cidade se transformava, segundo D'Incao (1997: 226-7), "todas as antigas formas de uso foram ou banidas ou ajustadas à nova ordem", entre elas, "as formas de diversão de raízes populares e grupais", ,

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estudos históricos . 2001 - 28 às quais se "impôs uma espécie de restrição tanto à espontaneidade tradicional e

culrural de certos grupos quanto à sua sociabilidade correspondente". Machado conta que houve época "em que ao camaval se chamava entrudo; tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d'água, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras..." As famílias reuniam-se, entregando-se aos "trabalhos de fabricar limões de cheiro". Moças, mucamas, rapazes e moleques sentavam "à volta de uma grande mesa, compunham as laranjas e limões que deviam, no domingo próximo, molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa". Chegado o dia do entrudo, às 15 horas e meia, "estavam as moças vestidas e prontas à janela" e, a partir daí, "constante fogo de água trazia a rua agitada. Os gamenhos, munidos de limões iam atirando às senhoras que estavam às janelas, e estas correspondiam . 0 1 ataque com ... vigor ... . ao " ( ) Porém, os prazeres da interação dos indivíduos no entrudo resultavam ainda de outras brincadeiras. Eram guerras de polvilho, de rapazes que metiam os outros em "banhos", dentro de gamelas e barris, despejando de surpresa caldeiradas e baldadas d'água por cima, assim como esguichando água pela cara uns dos outros, armados de grandes seringas de folha-de-flandres ou pregando rabos de papel e quebrando ovos nas costas do próximo, quando toda gente ao redor dava gargalhadas. Esses folguedos de rapazes, muitos desaprovavam, como o banho, achando �ue deveriam acabar, pois "a civilização nao comporta[va] ... " tal prática rústica. 1 Tal costume foi também alvo das posturas municipais preocupadas em extirpar a selvageria e implantar a civilização em moldes europeus. Em nome de uma convivência civilizada, pautada em consentimentos dados, o código de posturas proibia jogar entrudo e seus infratores deveriam "pagar multa" e sofrer, caso não pudessem pagá-la, dias de retenção. Segundo Machado, várias graças do tempo do entrudo foram sendo substiruídas por outras, ficando a seringa, o limão, as tinas e baldes d'água afastados da nova brincadeira. Mas a sociedade carioca pouca atenção deu ao edital e, ainda por muito tempo, entregou-se a essa diversão, deixando-a mais devido ao hábito europeu do carnaval com bailes e cordões de mascarados, como "as mascaradas de Paris". Com a oposição ao rústico folguedo, o carnaval nasceu "um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo"; para dar 2 1 "à arte da loucura uma nova feição". Portanto, a proibição encontrou resistência na população. Segundo Machado, apesar dos editais que vedavam esse divertimento, viam-se "seringas respeitáveis" além das "Crioulas e molequinhos/ Carregando em tabuleiro/ Prontinhos e arrumadinhos/ Infindos limões-de-cheiro". Para ele, a lei se en­ ganava, se cuidava ter "no destino alguma ação soberana", pois se "o entrudo/ Desapareceu um dia / Entre calções de veludo,! Carnavalesca folia", "Reapareceu 54



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mais tarde;/ Vingou por bastantes anos,! Com estrondo, com alarde,! Triunfos grandes e ufanos". Para o cronista, a postura era "inútil" e a vitória da lei não era definitiva, pois via a "orelha do desterrado" apontar"entre bisnagas" do carnaval, 13 que espirravam água-de-cheiro e encharcavam roupas. Nesse contexto, por um lado, ocorreu com os bailes de máscaras a privatização dos festejos, que passaram a acon tecer nos salões, como os dos teatros Provisório e D. Pedro n. Ao lado das máscaras, eram usuais as fantasias de veludo e cetim, que caracterizavam personagens históricos e coisas consideradas pitores­ cas, como um dominó, 11m mosqueteiro, um doge.... Conferes e serpentinas davam o tom da nova festa dançada ao som de pandeiro e do lundum, com requebros, chocalhos, guizos, "vozes tortas e finas". Por outrO lado, nasceram as sociedades carnavalescas, que saiam às ruas centrais, como da Quitanda, Ourives, Gonçalves Dias e Uruguaina. Depois das 16 horas, aí só passavam as sociedades de mascarados, que saíam "com seus carros cobertos de flores e mulheres". Encantada com a novidade, "toda a fina flor da capital entrou na dança" em nome 14 do "deus Momo". Multiplicaram-se as sociedades carnavalescas, e "o gOSto carnavalesco invadiu todos os espíritos, todos os bolsos, todas as ruas", sobretudo a do Ouvidor. No carnaval de 1895, essa rua esteve "esplêndida", havendo "ali janela que se alugou por duzentos mil-réis", por três ou quatro horas, para "ver passar" os "máscaras". A diversão era "farta", com batalha de confetes e de serpentinas. Em 1896, segundo os jornais, aproximadamente trezentas mil pessoas vieram dos arrabaldes e dos subúrbios à cidade na terça-feira de carnaval, "tudo isso no meio da mais santa paz. Uma polícia bem feita e a alegria coroando a festa". Os periódicos consagravam a nova festa civilizada, pautada em convi vência co letiva 15 ordeira, que substituia o desrespeitoso e traiçoeiro entrudo. Era a promoção da "dignificação do carnaval organizado"(Araújo, 1993: 379). Assim, foram sendo alteradas as práticas tradicionais de sociabilidade e lazer. As rústicas festas antigas, aos poucos, deram lugar à polidez dos salões e dos teatros, ou mesmo modificaram-se nesse sentido. Para Saliba (1998: 292), os indivíduos desamarravam-se "dos modos provincianos e das sociabilidades causadas pela sociedade escravista", e essa "atitude ansiosa de cosmopolitismo, ( ..) inspirada nos modelos de sociabilidades européias", exerceu "seu domínio sobre a imaginação da sociedade ... " .

Aspectos da nova sociabilidade

A europeização do espaço urbano, da utensilagem simbólica e das sensi­ bilidades abriu lugar aos indivíduos, e, principalmente, à mulher, em novos domínios, privados e públicos, como nos salões e na rua, ampliando os círculos 55

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sociais. Por um lado, a "rainha" da casa "presidia aos serões familiares", por outro, "fora de casa", tinha "os teatros, as partidas das amigas, mil outras distrações", como as oferecidas pelas ruas de comércio e o consumo, que davam à "vida certas alegrias exteriores". Ela rompia o confinamento doméstico, liberava-se para o convívio social mais amplo, para novas formas de interação e entretenimento, passando a ter papel importante, de colaboradora do marido, na edificação e manutenção das relações sociais necessárias a seus empreendimentos econõmi­ cos e financeiros, em momentos como recepções e outras aparições públicas. Desta forma, além de fazer funcionar a vida privada da família, tinha o encargo de relações públicas da casa com o mundo exterior, devendo possuir tanto as "virtudes domésticas" - como entender de "toda sorte de trabalhos femininos" - quanto as "maneiras elegantes" - como "algumas prendas de sociedade", a saber: cantar, tocar piano, falar alguma língua estrangeira, mesmo que fosse apenas o mínimo indispensável ao trato dos salões (Borges, 1997: 141 e 151-3). Com a europeização dos hábitos e do espaço citadino, a exteriorização em casa ou fora, nas recepções, nos teatros, cafés, clubes musicais, cassinos, ruas centrais 16 de comércio etc. expandiu-se numa sociabilidade urbana e cosmopolita. Se os aburguesados ultrapassavam os limites dos ambientes privados, do espaço doméstico, rompendo os círculos restritos de convivência, Machado produziu imagens desse "processo de abertura" e "de exteriozação da família em uma nova sociabilidade", o qual alterou-lhe "profundamente a identidade, de­ terminando-lhe um novo modelo de organização" (Muricy, 1988: 53-7). Nesse universo em configuração, de abertura aos outros, de formação de agrupamentos sociais diversos e de estabelecimento de outros diálogos coletivos, o comércio e a moda, os trajes e adereços e, logo, os modos como empregá-los, tiveram papel e significação especial atrelados à inserção e adaptação dos indivíduos à vida pública e seus códigos (Borges, 1996). Embora ainda persistisse, de algum modo, no imaginário coletivo citadino, a idéia de que "a rua fez-se para o homem, não para a mulher", isso ocorria por herança do período anterior, pois sua presença na rua do Ouvidor tornava-se nOt11la. Já em 1908, o escritor dizia: "O nosso Rio mudou muito, até de costumes. (...) Há mais senhoras a passeio. Há um corso em Botafogo, às quartas-feiras". A Ouvidor era a rua do ponto de encontro, centro de todos os boatos e da elegância da cidade, e seu costumeiro movimento dava a ela a característica de "ser uma espécie de loja única, variada, estreita e comprida", sendo celebrada por esse aspecto de loja de departamento, com um nas grandes capitais do mundo. Segundo NeedelI (1988: 44-5), no Rio, o protótipo mais antigo desse tipo de loja talvez seja a Norre Dame de Paris, fundada aí na Ouvidor na l7 metade do século. 56

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Freqüentavam-na "a elegância fluminense", a "flor da sociedade, como as senhoras que vinham escolher jóias ao Valais ou sedas à Notre Dame," e os rapazes que vinham "conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres." Tal rua oferecia um espetáculo convidativo ao consumo àqueles que saíam em passeios, a "ver as lojas" com suas "vidraças rutilantes". Mas não era só a "sociedade mais ou menos elegante" que ali comparecia. O operário também podia "ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilantes de riqueza e consolar com a simples vista", o que a tornava "a via dolorosa dos 18 maridos pObres". Nesse "salão ao ar livre" (Pinho, 1970: 273), os indivíduos passea�, compravam, reviam conhecidos, faziam política, infolIllavam-se, eram apresen­ tados a pessoas de destaque e de interesse, estabelecendo novos laços. Aí, encon­ trava-se "gente parada em frente ou sentada dentro das lojas, gente que descia, que subia, homens, senhoras..." Tudo isso dava "à principal rua do Rio de Janeiro um aspecto animado e luzido." Ali, viam-se "deputados, trocando notícias políticas ou conquistando as senhoras que passavam", assim como também "uma grande parte da áurea juventude, la jellnesse dorée, comentando o acontecimento do dia ou encarecendo a beleza da moda". 19 Nessa "gazeta viva do Rio de Janeiro", estava-se no "lugar seguro para saber notícias." A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier eram "verdadeiras estações telegráficas" por onde veiculavam as noticias, principalmente, políticas, o que dava àquele pedaço um aspecto também de salão político. Desta forma, ganhava-se "mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação", pois ali se podiam ver os deputados aruais com os deputados que foram, "o ministro defunto e às vezes o ministro vivo". Nela, faziam-se "planos políticos e candidaruras eleitorais"; corriam as notícias e se discutiam "as grandes e as pequenas coisas", sabia-se das "noticias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis". Era "a rua própria do boato", onde estavam os homens de letras e os principais . 20 negocIantes da praça. Essa via "resume o Rio de Janeiro" da segunda metade do século e, a "certas horas do dia", se "a fúria celeste" destruisse a cidade, mas conservasse a Ouvidor, preservaria "a família e o mais." Para Machado, o "rosto da cidade fluminense é esta rua". Ela era vista como o lugar público da moda e possuia horários estabelecidos para freqüentá-Ia, que eram respeitados por muitos. De­ pois do meio-dia, o movimento intensificava-se até as quatro horas, sendo "de mau gosto andar na rua do Ouvidor às 5 horas da tarde", mas já, quando anoitecia, voltavam os elegantes, pois era "lindíssima à noite". Com rudo já iluminado, os rapazes postavam-se "às portas das lojas, vendo passar as moças" e a rua pertencia "exclusivamente à fashi07!, que é menos dada aos negócios do Estado que os /"

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freqüentadores de dia". Porém, a qualquer horl ela propiciava os namoros e r aventuras, o "culto do belo sexo" pelos homens. Aí moças, senhoras honradas e distintas, e mesmo "damas de Citera" cortesãs-, passeavam, namoravam, compravam, freqüentavam os cafés, tomavam chá e sorvete, gastavam fortunas, principalmente, nas lojas das modistas france­ sas. A língua e cultura francesas estavam presentes nas conversações, nos nomes das lojas, nos artigos comprados e, inclusive, no jeito de andar de muitas senhoras, que "imitavam as francesas" com um "tique-tique afrancesado", abandonando a maneira "corno sempre andaram" com "vagar e paciência", passando a "pisar leve e rápido". Encontravam-se nessa rua ainda os dândis, que aí ficavam horas em seus salões, cafés, lojas, uma vez que julgavam que ali poderiam ter nascido, ali 22 poderiam talvez morrer, tendo-a como o "seu país natal", logo merecendo culto. Nesse novo mundo que se estabelecia, do consumo, do espetáculo, do lazer, do encontro e de obrigações sociais, a implementação do sistema de transportes públicos foi decisiva. Cumprir as obrigações e a agenda social, para aqueles que não tinham seu carro, custava-lhes o arranjo de um de'alyguel ou o recurso aos bondes. Com o desenvolvimento desses modernos e relativamente "democráticos" meios de locomoção coletivos, e mesmo na moderna confusão das gentes nas ruas de comércio centrais, os aburguesados misturavam-se com outros segmentos sociais. No entanto, esses "laços de sociabilidade que começavam a cristalizar-se em novos espaços de convivência coletiva sofreram o impacto diluidor do "inchamento" das cidades e da introdução de novos equi­ pamentos urbanos" CSaliba, 1998: 329). Embora certa interação ocorresse, os indivíduos de classes diferentes cruzavam-se na rua e sentavam-se no bonde, muitas vezes lado a lado, não raro sem trocar olhar ou cumprimento. Na busca da publicidade proporcionada pela exposição pública viveram os abastados, e aqueles que podiam, adquiriram carros para fazê-lo, corno Fulano Beltrão, que "comprou uma linda vitória" para que a mulher e a filha, que "não gostavam de sair de carro C ...), fossem a toda a parte e até a parte nenhuma", conquanto que saíssem para serem notadas publicamente. Os distintos passaram a achar "na vida exterior" novo gosto, prazer e mesmo utilidade, tornando-se a rua novo palco, no qual desenvolviam muitas ações. A partir daí, novas portas poderiam ser abertas aos indivíduos, as quais viabilizaram a realização de um 23 programa de vida traçado. Entretanto, os cariocas, que tanto gosto apanharam pela "vida externa", expandiam-se também em visitas, em serões domésticos, nos cassinos, nos clubes musicais ou sociedades coreográficas, nos jóqueis e nos teatros que tornavam parte essencial dos círculos sociais. Era crescente "o gosto do espetáculo" e dos "prazeres" propiciados pelas várias atividades lúdicas e sociais. De acordo com os ritos da vida privada burguesa na França oitocentista, segundo Martin-Fugier 58

Em busca do It"mdo exttrior

(1991: 205-6), cada dama tinha um "dia" de recepçao e, assim, no rol das atividades sociais domésticas da elegante vida mundana carioca havia também a temporada de "reuniões semanais", com dias estabelecidos de receber seus convidados e aqueles de fazer visitas, como indica Aires em seu Memorial.... Os momentos de efemar os contatos sociais eram os serões, festas, bailes, pequenas recepções, como reuniões para jogar voltarete, gamão, pôquer, xadrez etc., que eram constantes e rotineiras, ou como os saraus, em que as pessoas retinidas buscavam entreter a si mesmas contando histórias, lendo em voz alta uma novela, tocando piano, tomando chá, cantando, dançando e declamando, dependendo se fossem musicais ou literários ou simples brincadeira. Tal como na Europa (Martin-Fugier, 1991: 213-5), existiam salões particulares nos quais se pro­ moviam, inclusive, sessões de teatro amador, representando pequenos provér­ 24 bios, charadas, comédias e até ópera. Nessas ocasiões de convivência social, quando o espaço privado abria-se ao público, devido ao avanço das noções de individualismo, privacidade e intimidade, buscou-se segregar os estranhos do seio doméstico e restringir os convidados. O convite eliminava os indesejados c produzia certa homogeneidade no ambiente, pellllitindo um certo nivelamento das diferenças entre aqueles que o recebia. Por meio dele, inseria-se o convidado num círculo de relações ou dava-se continuidade a elas, quando seus membros ofereciam suas casas uns aos outros, dispondo a receberem-se de acordo com as regras da etiqueta, cortesia, solidariedade e reciprocidade. Ser convidado, recebido e apresentado pelo an­ fitrião aos da mesma roda tornava a pessoa um novo conviva, que deveria atentar aos protocolos sociais, como enviar cartões de visita, de cumprimentos e con­ fraternização em momentos comemorativos de nascimentos, nomeações elC. ou cartas de participação de casamento, ocasiões, geralmente, anunciadas nas gazetas. Cumprindo as convençôes, um indivíduo ia "penetrando na sociedade que convinha ao seu � osto" e não tardava "que lhe chovessem em casa os convites de bailes e jantares". 5 No cultivo das relações, os serões e partidas domésticos podiam ser reuniões para tomar chá ou festas de batizado, de noivado, de casamento e de aniversário natalício ou de bodas, podendo conter jantar e baile ou apenas um ou outro. No ritual dos jantares, os brindes e os discursos tinham lugar de destaque; bebia-se à saúde do homenageado, e os oradores, geralmente de fala rebuscada, que pareciam até "um dicionário", destacavam os talentos, os feitos daquele, assim como o prazer do encontro, sob o olhar atento de todos. Dessas festividades, as comemorações de aniversário natalício e até de casamento eram bem restritas, e a lista dos convidados "não devia compreender senão amigos intimos, por ser festa do coração, alegria doméstica...", às vezes, só parentes, requerendo do 59

estudos históricos . 2001 - 28 anfitrião "jeito e sagacidade para discernir os que se prendiam pelo afeto dos que 26 aderiam pelo costume". Entretanto, as danças e os bailes, particulares ou oficiais, como aquele da Ilha Fiscal, o último do Império, vistO "como um sonbo veneziano", irromperam com força distinta nessa esfera, abarcando um número maior e menos resrrito de pessoas. Eram tão numerosos, em 1853, que pareciam acontecer "trezentos e sessenta e cinco bailes por ano". Eles se davam também nos cassinos, clubes e sociedades musicais. "Salões particulares à porfia", e "além deles, muitas so­ ciedades coreográficas, com seus títulos bucólicos ou mitológicos, a Campestre, a Sílfide, a Vestal e outras muitas chamavam a gente moça às danças, que eram todas peregrinas, algumas recentes. A alta classe tinha o Cassino Fluminense. Tal era o amor ao baile, que os médicos organizaram uma associação particular deles, 27 a que chamaram Cassino dos Médicos". No Cassino Fluminense, os bailes eram habituais. A eles iam os elegan­ tes, sendo mesmo de bom-tom as famílias da alta roda tOrnarem-se sócias da casa. Muitos que "achavam na vida exterior (... ) a sensação de uma grande carícia pública", sempre aí iam "recolher nova cópia de admirações". A "fina flor" da sociedade ajuntava-se também sob "aqueles lustres brilhantes", que viram tantos "colos e braços", "tanta moda de toucados e vestidos", para "outros divertimen­ tos" como bilhares, conversações, leituras, partidas familiares e os concertos de 28 Nesse cassino, com os música clássica, que "pegaram" no gOSto público. concertos musicais, os homens de posse reuniam-se para ouvir "a palavra clássica dos mestres" da "grande arte" em "horas magníficas", marcadas pela "sensação do belo e do gozo". Entre tais concertos, tiveram destaque os oferecidos pelo Clube Beethovem, além das apresentações em que "algumas senhoras e bomens de sociedade" promoviam "ópera, comédia e pantomima", frente ao "salão repleto", com fins filantrópicos. Por volta de 1895, a cidade passou a contar com "mais uma sociedade recreativa, o Cassino Brasileiro", inaugurado com muita dança. Os clubes musicais proliferavam na cidade e o cronista Lélio dizia, em

1885, que não havia "rua digna deste nome" que nâo possuísse uma ou duas sociedades de música, como o Clube Terpsícore, a Sociedade Musical Prazer da 29 Glória ou o Clube Politécnico, com seus saraus dançantes. Em um século que se representava como "grave", em que as pessoas ofereciam-se às ourras à distância, a dança propiciou momentos de grande aproximação. Assim, quem não sabia dançar recorria a "um curso de danças" e eram vários na cidade - aprendendo "a dançar por mestres", pois a dança "era (...) uma prenda, igual ao piano". Tornava-se indispensável ser bom dançarino para encetar um romance de salão, do qual poderia surtir até um casamento ou um caso amoroso como aquele da casada Virgília e Brás Cubas, de Memórios

Póstumos... , os quais, à valsa, puseram-se apaixonados e perdidos. A valsa, prin60

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cipalmente, permitia que o casal se aproximasse fisicamente, por um lado, e, por ourro, se isolasse das pessoas, constituindo momentos de certa privacidade meio ao extremo da publicidade. Enrre as músicas e suas respectivas danças, a valsa foi 30 a sensação dos salões, e mesmo a quadrilha francesa era muito dançada Nos salões, encontravam-se também os "apreciadores da polca". Esta música e a dança tomaram conta da cidade, alastrando-se rapidamente. Segundo Machado, não havia no Rio botequim que se respeitasse que não tivesse um piano e um pianista para consolar os fregueses tocando polcas, pois elas eram a "vocação pública". Quando num salão se ouviam, ao piano, os primeiros compassos desse ritmo, derramava-se por aquele "uma alegria nova"; os cavalheiros corriam às damas e os pares enrravam a "saracotear" ao som das polcas da moda. Estas possuíam títulos "destinados à popularidade", eram decoradas facilmente e convidavam a dançar, sendo executadas nas orquestras dos tearros, nos bailes e cantaroladas e assobiadas pelas ruas. Mesmo o lundum para piano, embora não figurasse enrre as danças próprias de salão, sendo mais adequado para bailes de 31 máscaras, acabou tornando-se moda. No entanto, se tais rirmos executados ao piano tomaram conta dos salões iluminados pelo gás e aproximavam as pessoas, lá pela época da infância de Brás Cubas, por volta de 1814, as moças tocavam cravo e cantavam modinhas, minuetes e solo inglês, sob a luz de um lampião de azeite, enquanto as marronas bailavam um oitavado de compasso. Segundo Alencasrro (1997: 45-7), houve "uma virada na música e nas danças imperiais" por volta dos "anos de 1850 com o aumento das importações de pianos" e a "mercadoria-fetiche dessa fase econômica e cultural" foi o piano, que se apresentava como "objeto de desejo dos lares", ao 32 introduzir no salão um móvel aristocrático. O convívio e a confraternização mundana, sobretudo, da intelectuali­ dade e dos políticos, aconteciam em jantares nos restaurantes dos vários hotéis e também nas sociedades literárias, que promoviam reuniões lítero-musicais. A sociedade "Ensaios Literários" desenvolvia suas atividades no salão de concertos da "Phil'Eurerpe", e, a partir de 1864, suas reuniões foram acrescidas da "novi­ dade da presença de algumas senhoras". As mulheres conquistavam espaços dantes puramente masculinos, e o "ruge-ruge" das saias estava, cada vez mais, na Câmara dos Deputados, nas ruas, nos salões, nos tearros... Já a "Sociedade Petalógica", de Paula Brito, igualmente, teve lugar de destaque na sociabilidade fluminense por época da juventude de Machado. Segundo ele, ali "ia toda a gente, os políticos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os simples amadores, amigos e curiosos, onde se conversava de tudo, desde a retirada de um minisrro até a pirueta da dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó de peito do Tamberlick até os discursos do marquês de Paraná, verdadeiro campo 61

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neutro onde o estreante das letras se encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava com o ex-ministro.,, O Clube Beethovem, por sua vez, foi também "uma sociedade restrita" aos homens, promovendo "seus saraus íntimos", os quais foram, por muito "tempo, o centro das ha([nonias clássicas e modernas" da cidade. Com seu sucesso, "o nome do clube cresceu, entrou pelos ouvidos do público" e como as senhoras não podiam "penetrar naquele templo", resolveram "dar alguns con­ certos especiais no Cassino", até que o Clube construiu no jardim outro edifício, onde se "deram concertos a todos..." A associação cresceu e "entrou a ser mau gosto não ir àquelas festas mensais." Mas, já em 1896, esse Clube havia acabado, e "um grupo de homens de boa vontade" reunia-se para dar à cidade música por meio de uma série de "Concertos Populares". Na ampliação dos espaços de encontro social ao redor das manifestações arústicas, as exposições da Academia de Belas Artes também deram sua contribuição, apresentando trabalhos de artistas esrranfeiros, nacionais e dos alunos, como quadros, esculturas e mostras 3 fotográficas Nas possibilidades de momentos de reunião social e diversão, incluíam­ se, ainda, as "corridas de cavalos". Se, na década de 50, existia "um clube apenas, que chamava [a si] a flor da cidade" - o "Jóckey Club Fluminense" -, já na década de 90, havia também o "Derby-Club". As corridas, de cavalos ou de touros, sobretudo, as primeiras, eram verdadeiras festas e "todos os domingos e dias feriados, centenas de pessoas atira[va]m-se aos prados de corridas", na busca de lazer, de horas agradáveis a passar e de contatos sociais. Já para as camadas sociais inferiores, "a briga de galos era uma de suas paixões" e as rinhas, seus jóqueis­ clubes. Mas os cavalos agradavam ainda em passeios, inclusive, pelas praias e pela 35 Tijuca, um dos passeios e das atividades físicas preferidas pelos elegantes Porém, para além disso, se "a Europa mandava para cá as suas modas, as suas artes e os seus cluwns", os espetáculos de teatro também eram marcados por sua tutela, sendo esperados e recebidos como "grandes novidades". Assim, "a Opera Italiana tinha, desde muito, os seus anuais" na Corte e, na década de 40, "mais de uma cantora entontecera a nossa população maviosa e entusiasta", como a Candiani. Já no decênio de 50, "desfilava uma série de artistas mais ou menos célebres, a Stoltz, o Tamberlick, o Mirate, a Charton, a LaGrua." Ao lado dos 36 espetáculos líricos italianos, viam-se também os franceses e nacionais Os teatros também eram espaços excepcionais para diversão e esta­ belecimento de relações, inclusive, por interesse. Neles, as mulheres davam-se em espetáculo, expondo-se a olhos curiosos e, às vezes, importantes. Por isso, Palha, de Quincas Borba, "ia muita vez ao teatro sem gostar dele"; indo mais para aparecer com a mulher belamente decotada, cujos seios andavam já "tão acostu­ mados ao gás" dos salões, a qual, normalmente, todos viam sem mesmo usar ,

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binóculos, recorrentes na revista dos camarotes. O teatro era uma atração para os abastados, possuindo destaque o Teatro Provisório (Lírico Fluminense), o São Januário(Ateneu Dramático), o D. Pedro II (Lírico), o Ginásio e o Alcazar Lírico. O Teatro Lírico dava a seus freqüentadores maior lustre, sendo, aos elegantes, de bom-tom ter uma casa em Petrópolis, um carro, um camarote nessa casa, na 37 categoria de assinante, e ir aos bailes do Cassino Fluminense No camarote, desenvolvia-se um espetáculo paralelo e alternativo ao palco, configurando um salão no teatro. Dos camarotes, as damas assistiam ao espetáculo, "sendo vistas" por cavalheiros, que esperavam os intervalos para falar-lhes, inclusive e:l:pressando críticas ao espetáculo. Nos entremeios se davam os encontros com os conhecidos; as "senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens iam fumar", conversar e fazer visitas a outros compartimen­ tos. Elas recebiam as pessoas de suas relações e eram apresentadas a novas por alguém de sua roda. Como indica Martin-Fugier (1991: 208) o camarote era "um 8 mundo fechado e protegido, o lar reconstruído no teatro". Ao fim do espetáculo, um homem podia ficar à porra do teatro assistindo à saída das senhoras e, se conhecido, até acompanhá-Ias à carruagem, como braceiro. Depois, era costume tomar chá ou cear com amigos, podendo prolongar a noite em sociabilidade suspeita, como no "maldito" Alcazar Lírico e seus espetáculos a estilo parisiense, que escandalizavam a cidade, com cancãs, dançari­ nas e estrelas como Mlle. Aimée, o "demoninho louro". Nas noitadas desse "teatrinho" os boêmios ficavam até de madrugada, com "o charuto na boca, a gallafa de cerveja ao lado" e muitas "raparigas, lindas como os amores sentadin­ has em derredor da mesa", ou dançando ou cantando. Daí, "a horas mortas", saíam ainda, algumas vezes, para "ceatas" de "rapazes e mulheres" em hotéis, no . ' . 39 J ard·Im BOtalllco • ou em casa d as propnas moças. Portanto, teatros, cassinos, clubes musicais e de dança proporcionavam aos fluminenses, sobretudo, os abastados, inúmeras oportunidades de diversão, de convivência e de estabelecer relações. Mas, se era nova essa profusão de casas e o hábito de freqüentá-Ias, não foi diferente com o costume dos banhos de mar e o gosto por desfrutar da sua beira, que representaram também a ampliação dos momentos e espaços lúdicos e de convivência. Os banhos de mar e as viagens para as cidades serranas significaram, meio a essas transformações, a abertura de outras portas para o mundo exterior e, logo, de oportunidades para o esta­ belecimento de vínculos entre os indivíduos. Se na França, segundo Martin­ Fugier (I 991: 231), a descoberta dos banhos de mar datam da Restauração, no Rio, eles tiveram nos membros da recém-chegada família real o seu primado inicial, embora, só por volta de 1850, de acordo com Cruls (1965: 363), foi que começaram a tornar-se voga e despertar o desejo coletivo pelas praias. Mas, como nos chama a atenção Corbin (1989: 294), as prálicas populares ou pequeno-bur63

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guesas não engendravam a sociabilidade finamente codificada, que caracterizava, então, a vilegiatura marítima da nobreza. As pessoas iam a banhos, antes do sol nascer, "à meia luz da manhã nascente", tanto na praia de Botafogo e do Flamengo quanto no Boqueirão, no Caju, na Gamboa, nas Flechas em São Domingos, entre outras. Porém foi o Flamengo o ponto preferido para os banhos, e Copacabana era ainda um "areal intérmino", um lugar longínquo e de dificil acesso, classificada no rol dos "bairros excêntricos". Somente em 1 892, inaugurou-se um túnel de passagem para essa praja, permitindo estender até ali uma linha de bondes, e a Companhia Ferro Carril passou a anunciar nos jornais a promessa de um "passeio agradável e refrigerante" às "Graciosas senhoritas" e "moços chiques" em "lugares para piqueniques corno em Copacabana". O desenvolvimento do sistema de trans­ porte coletivo facilitou o espraiar da cidade e o acesso das gentes citadinas às praias, tanto como banhistas quanto como moradores de áreas mais afastadas 4d corno Botafogo e Flamengo, que possuiam lugar de relevo nessa prãtica socia1. No entanto, se a moda do banho terapêutico permeava as práticas das classes abastadas, num banho popular, dominava, muitas vezes, o oposto à sua nOIlllalização. Dava-se já com o sol alto ou ainda nas noites de luar, sendo mais espontâneos e rompendo com os códigos ditados pelos médicos. Além disso, mesmo entre os endjnheirados, "a maioria das senhoras que se banhavam o faziam por moda ou por bom-tom". Porém, não era só o banho em si que atraía os indivíduos à praia; veros banhistas tornou-se também um espetáculo atraente, criando os espectadores que preferiam "ver as damas banharem e rir do susto pueril que elas tivessem", ficando, às vezes, sentados em uma pedra ali por perto. Entre os usuários da praia, existiam ainda "maridos, pais e irmãos, que não tomavam banho", ficando a conversar, ou a ler, ou a olhar o tempo, até que as banhistas voltassem. Nesse contexto das novas práticas sociais, de lazer e con­ vívio, marcado pela violação indiscreta dos olhares públicos, os banhistas bus­ caram construir alguma privacidade à beira-mar, trazendo baIlacas para se 41 trocarem. Aconteciam ainda os passeios à beira mar, nos quais andar e conversar constituiam atividades apreciáveis além de cavalgar "praia afora". Entre outros esportes inseridos nesse universo, as regatas, "à maneira inglesa", tiveram grande interesse, e em Botafogo, a "festa" era "completa", pois os escaleres corriam próximos à praja, para que todos pudessem ver os remadores. Segundo Machado, a população carioca estava "ameaçada de morrer de uma indigestão de prazeres" ao ler, no mesmo período, nova companhia eqüestre, fazendo apresentações artísticas; o teatro lírico, com apresentações musicais; mais uma regata em BOlafogo, além da patinação no Skating-Rink, que tinha "um auditório distinto, 42 numeroso e curioso,, 64

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Na praia, fugia-se ainda das obrigações, sendo bom lugar de se brincar, principalmente para as crianças que faltavam às aulas, pois aí podiam enconrrar várias ourras e divertir-se. Nela, grupos de meninos brincavam e sociabilizavam­ 43 se (Borges, 1999) Para espairecer, muitas pessoas sentiam prazer especial em ficar olhando o mar de perto no terraço do Passeio Público, onde muitos iam namorar, ouvir música ou olhar o tempo e deixá-lo passar, lendo gazetas, enquanto ourros mendigavam. Além disso, os cariocas sociabilizavam-se e exteriorizavam-se em novos ambientes e paisagens quando a passeio em outros parques, como o Jardim Botânico e o Jardim Zoológico. A esses recorriam homens, mulheres e crianças e, em 1895, 45.086 pessoas visitaram o Jardim 44 Botamco. Mas, na esfera dessa nova sociabilidade que se configurava, no que se refere ao lúdico, ao terapêutico e às formas de interação, por volta de 1 850, a família real tornou-se precursora de novo hábito muito difundido enrre as classes abastadas, a estação de veraneio passada em Petrópolis. Foi a partir de 1 848, segundo Cruls ( 1 965: 5 1 9), que se tornou moda ir lá passar os verões, pois o imperador D. Pedro II ali o fizera. Além disso, a febre amarela deu uma boa injeção de vida a esse novo costume, pois observava-se que havia incidência menor do " vômito-negro" sobre aqueles que dormiam nas montanhas. Assim era que, no "verão molhado e trovejado" da Corte, a febre amarela disseminava-se, e "o Rio de Janeiro apatacado corria, mudava-se para Perrópolis", o seu " ninho 45 sUíço". -

'

Da mesma forma como ocorria na Europa uma migração para a mon­ tanha por época da temporada de verão, como mostra Martin-Fugier ( 1991 : 229-3 1), os fluminenses buscavam mudar de ares e "lá se iam de serra acima" os endinheirados. Ir para Perrópolis virou uma verdadeira moda, sendo a cidade altamente visitada por época da estação de veraneio. Anunciavam-se festas, programavam-se a data de subida e os passeios, como a cavalo à Quitandinha. Criou-se um verdadeiro " frisson" ao redor dessa cidade de vida elegante e risonha, "nossa capital internacional de recreio". " Conquanto Pcuópolis não banhasse os pés no mar (... ) as serras aqui valiam (. . ) ; ficavam mais perto do sol". Fugindo do verão, nessa recente moda da sociedade elegante carioca, ia-se ainda às serranas Nova Friburgo e Teresópolis, como também a Pati do Alferes. Portanto, o primado e a soberania do uso e do costume cabiam mesmo à imperial Petrópolis. Toda gente endinheirada voava com "o rrem de Mauá, serra acima, até à cidade do repouso, do luxo e da galanteria". Todos arraídos por sua vida 46 social e por seus poderes terapêuticos, indicados pelas prescrições médicas .

Deste modo, ao redor de espaços, ambientes e paisagens recentemente incorporados ao imaginário social fluminense, configurou-se nova forma de sociabilidade, a partir de práticas incipientes de diversão e lazer edificadas para 65

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além dos limites domésticos e privados. Adequando-se ao momento, os in­ divíduos expuseram-se publicamente, criando e vendo crescer o gosto, nunca dantes igualmente experimentado, pela vida exterior. Nesse contexto, as antigas formas tradicionais de sociabilidade foram alteradas, entrando em declínio ou sendo extintas ao perderem suas raízes sócio-culturais. A rua tornou-se lugar de encon tro, de exposição pública, de diversão, de satisfação dos desejos consumistas e de iDleração social. Contudo, foi o salão sítio por excelência da sociabilidade e do entretenimento, ao lado dos teatros, clubes musicais e cassinos, embora, na beira-mar e na formosa Petrópolis, tais objetivos também se concretizassem. Nesses novos espaços de convivência e interação, experimentou-se rica economia de comportamentos, de regras de estar junto, de atitudes, sentimentos e gestos cuidadosamente apreendidos e representados. Estar em público e expor­ se a ele tornou-se imposição, e quem se afizesse aos hábitos quietos e reclusos de isolamento, de ser "metido consigo", marcas de distinção e nobreza próprias do período anterior, seria chamado de "bicho do mato"j ceum casmurro" ou "Dom Casmurro", sendo que o Dom vinha "por ironia", para atribuir-se "fumos de fidalgo", por manter-se distante, inacessível, não efetuando novos contatos e nem dando continuidade àqueles já estabelecidos nos círculos sociais 47 •

N o tas 1. Recorro a duas edições das obras de Machado de Assis. Uma, denominada de Obras Comple/lJ!i, de agora em
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