Em defesa da tese das fontes: o positivismo jurídico exclusivo de Joseph Raz

June 30, 2017 | Autor: Horacio Neiva | Categoria: Legal Theory, Legal positivism, Joseph Raz
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EM DEFESA DA TESE DAS FONTES: O POSITIVISMO JURÍDICO EXCLUSIVO DE JOSEPH RAZ

1.1 CONTEXTO

TEÓRICO E ANTECEDENTES DOS ARGUMENTOS DE

RAZ

A FAVOR DO

POSITIVISMO EXCLUSIVO

1.1.1 As críticas iniciais de Dworkin ao positivismo hartiano

O debate entre positivistas exclusivos e inclusivos tem sua origem nas reações de autores positivistas às primeiras críticas de Ronald Dworkin desenvolvidas no artigo The Model of Rules I (TMoR I)1. Nesta seção, apresento essas críticas. Meu objetivo é oferecer o contexto teórico em que Raz desenvolveu seus argumentos a favor da chamada “tese das fontes” ou “tese social forte”. A tese positivista dura é, em parte, reação a alguns argumentos elaborados por Dworkin. É importante, portanto, conhecer esses argumentos. Além de uma crítica geral ao positivismo (especialmente ao positivismo hartiano), Dworkin ofereceu, em TMoR I uma caracterização do positivismo bastante conhecida. De acordo com ele, o positivismo teria algumas "proposições gerais e organizadoras" que funcionariam como seu “esqueleto”2. A despeito de algumas diferenças menores, subjacente às diversas teorias positivistas há um conjunto de teses comuns e definidoras desta posição teórica. Para Dworkin, elas são as seguintes: Tese do pedigree: o direito de determinada comunidade pode ser identificado a partir de critérios específicos que o distinguem de outros tipos de regras sociais. Esses testes dizem respeito não ao seu conteúdo, mas ao modo como essas regras foram adotadas e desenvolvidas -- em resumo, ao seu pedigree. Esses testes de pedigree permitem distinguir, a partir de critérios específicos, normas juridicamente válidas de normas juridicamente inválidas, bem como normas jurídicas de normas morais ou pertencentes a outro tipo de sistema normativo social3. Danny Priel, “Farewell to the Exclusive-Inclusive Debate,” Oxford Journal of Legal Studies 25, no. 4 (2005): 675, doi:10.1093/ojls/gqi033. 2 Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (Cambridge: Harvard University Press, 1978), 17. 3 Ibid. 1

Tese da discricionariedade: o conjunto das regras jurídicas validadas de acordo com testes de pedigree específicos exaure o que é o "direito" em uma comunidade. Assim, se determinado caso não se enquadra numa das regras validadas de acordo com o teste, então não há lei ou direito que se aplique ao caso. Nessa hipótese, ele deve ser decidido por um oficial (geralmente um juiz) que exerça seu poder discricionário4. Tese da obrigação: afirmar que alguém tem determinada "obrigação jurídica" equivale a dizer que a situação enquadra-se em determina regra juridicamente válida de acordo com um teste de pedigree. Na ausência de tal regra jurídica, não há obrigação jurídica5. De acordo com Dworkin, livre de detalhes e especificidades de cada autor, o positivismo jurídico pode ser adequadamente resumido nas três teses acima. Austin e Hart, por exemplo, discordam de qual seja o teste de pedigree relevante, mas ambos concordam que deve existir (e que, de fato, existe) tal teste.6 Segundo a primeira tese -- tese do pedigree -- é necessário que toda regra juridicamente válida satisfaça dois critérios: (a) que ela passe num teste de validade; (b) que o teste de validade que lhe confere o caráter de “jurídica” faça referência somente ao seu pedigree, e não a algum tipo de conteúdo moral. Para Dworkin, a tese do pedigree não afirma somente que as regras juridicamente válidas devam passar num teste de validade; ela também afirma que esse teste de validade somente diz respeito à origem ou pedigree da regra em questão (e não a sua adequação moral). A tese da discricionariedade afirma, por sua vez, que, não existindo uma regra jurídica (i.e., uma regra que satisfaça os critérios previstos na tese do pedigree), os juízes devem exercer sua discricionariedade e ir "além" do direito. Essa situação é inevitável porque, na hipótese descrita, não há direito que regule o caso (nenhuma das partes tem, assim, uma obrigação jurídica até que o juiz, exercendo sua discricionariedade, decida o caso). Parece óbvio que, na hipótese de não existir uma regra jurídica aplicável ao caso, o juiz, para decidi-lo, deve usar sua discricionariedade. Se entendermos que há uma equivalência entre direito, obrigação jurídica e regras validadas de acordo com um teste de pedigree, é uma conclusão lógica que, não existindo regra, não haverá direito regulando a

Ibid. Ibid. 6 Ibid., 18–19. 4 5

situação. Não há erro lógico na conclusão positivista de que os juízes possuem poder discricionário em casos não regulados por regras validadas por um teste de pedigree. O problema do raciocínio positivista, segundo Dworkin, não está na sua validez lógica, mas sim na sua solidez. O argumento positivista de que os juízes possuem discricionariedade em casos não regulados por regras só é verdadeiro se aceitarmos as premissas positivistas, especialmente aquela que afirma que o conjunto de regras validadas por um teste de pedigree esgota o “direito”. A questão, portanto, é se devemos aceitar essas premissas. Os positivistas afirmam que o direito é composto por normas jurídicas, e essas normas são de um único tipo: regras jurídicas. Se não há uma regra jurídica regulando determinada situação, não há uma norma jurídica aplicável à hipótese. Se não há norma jurídica aplicável, a hipótese não é regulada pelo direito (não há direito aplicável ao caso). Esse é, em resumo, o raciocínio positivista a partir do qual decorre, logicamente, a tese da discricionariedade. Dworkin inicia seu argumento contra o positivismo atacando a tese que equipara normas jurídicas a regras jurídicas. De acordo com ele, o positivismo é um modelo de “regras”, mas ao assumir que todas as normas jurídicas são regras jurídicas, os positivistas ignoram (injustificadamente) o importante papel desempenhado pelos chamados princípios jurídicos no raciocínio judicial. Minha estratégia [de argumentação] será organizada em torno do fato de que quando advogados argumentam e debatem sobre direitos e obrigações jurídicas, particularmente naqueles casos difíceis em que nossos problemas com esses conceitos parecem mais agudos, eles fazem uso de padrões que não funcionam como regras, mas operam de maneira distinta, como princípios, políticas, e outros tipos de padrões. O Positivismo, irei argumentar, é um modelo de e para um sistema de regras, e sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos faz perder de vista os importantes papeis destes padrões que não são regras7.

Para demonstrar a importância dos princípios jurídicos, Dworkin reconstrói o raciocínio utilizado em dois casos (Riggs v. Palmer e Henningsen v. Bloomfield Motors, Inc.) em que os tribunais justificaram suas decisões com base em padrões normativos distintos das regras jurídicas. Irei me concentrar em apenas um deles. No caso Riggs v. Palmer, um tribunal de Nova York teve de decidir, em 1889, se um herdeiro listado no testamento de seu avô teria direito à sua parte da herança mesmo tendo-

7

Ibid., 22.

o assassinado com o intuito de receber a quantia que lhe seria devida. Dworkin cita um trecho importante da decisão do tribunal: É bem verdade que as leis que regulam a elaboração, a apresentação de provas e os efeitos dos testamentos, e a transferência de propriedade, se construídas literalmente, e se sua eficácia e efeitos não puderem, de nenhuma maneira e em nenhuma circunstância, ser controlados ou modificados, dão essa propriedade ao assassino8.

O tribunal prosseguiu, no entanto, afirmando que, a despeito da admissão anterior, "todas as leis, bem como todos os contratos, podem ser controlados, na sua operação e nos seus efeitos, por máximas gerais e fundamentais de direito costumeiro"9. Uma dessas máximas, citada pelo tribunal, afirmaria que a ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude, tirar vantagens de seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação em sua própria iniquidade, ou adquirir propriedade por meio de seu próprio crime. O tribunal decidiu, em virtude disso, que o herdeiro não teria direito à herança. Padrões desse tipo também foram citados na decisão do caso Henningsen v. Bloomfield Motors, Inc. em que um tribunal de Nova Jérsei decidiu que, mesmo existindo cláusula de garantia num contrato de compra de automóvel que limitava a responsabilidade do fabricante ao conserto de peças defeituosas, ele deveria ser responsabilizado pelas despesas médicas e de outros tipos de pessoas feridas em colisão. A decisão foi tomada não com base em regras jurídicas específicas (que sequer foram citadas por Henningsen), mas em padrões do mesmo tipo daquele que justificou a decisão no caso Riggs10. Esses padrões podem ser encontrados facilmente em outras decisões jurídicas e sua presença é bastante conhecida por estudantes e profissionais do direito. Eles não são, no entanto, regras jurídicas. Há, segundo Dworkin, uma distinção lógica entre esses padrões, que ele chama de princípios jurídicos, e as regras jurídicas11. Estas seriam aplicáveis de uma maneira “tudo-ou-nada”12: se estiverem presentes os fatos estipulados em uma regra, então (a) ou a regra é válida, e a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou (b) a regra é inválida e não contribui de nenhuma forma para a decisão. Os princípios não operam desta forma. O padrão normativo que afirma que ninguém pode beneficiar-se de sua própria torpeza não estabelece consequências jurídicas

Ibid., 23. Ibid. 10 Ibid., 23–24. 11 “The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction”. Ibid., 24. 12 “Rules are applicable in an all-or-nothing fashion”. Ibid. 8 9

que se seguem automaticamente uma vez que estão presentes as condições de aplicação do princípio. Na verdade, como nota Dworkin, princípios “sequer pretendem estabelecer condições que tornam sua aplicação necessária”13. Os princípios estabelecem razões que pesam a favor de uma decisão, sem, contudo, tornarem essa decisão necessária. É possível que outros princípios possam favorecer uma decisão contrária, e o juiz deverá decidir quais deles tem mais “peso” (e não qual deles é válido e qual deles é inválido). Uma vez que reconhecemos a existência e o uso de padrões normativos com as características dos princípios jurídicos, precisamos situá-los dentro de nossas análises dos conceitos de obrigação jurídica e de direito. Dworkin cita duas maneiras com as quais podemos lidar com os princípios jurídicos: (i) podemos tratá-los da mesma maneira que tratamos as regras jurídicas, e dizer que os princípios obrigam os juízes tanto quanto as regras, e que o direito é formado tanto por regras quanto por princípios; (ii) ou podemos negar que os princípios sejam vinculantes da mesma maneira que as regras o são e que, nos casos em que foram citados, os tribunais não aplicaram o direito, mas foram "além" do direito14. Os positivistas adotam a segunda explicação, o que está relacionado com a segunda tese característica do positivismo, que afirma que em casos não regulados por regras os juízes possuem discricionariedade, isto é, eles não estão vinculados a algum padrão normativo emanado da autoridade a que se subordinam (no caso, do direito). Dworkin chama isso de discricionariedade em sentido forte. Se dissermos, então, que em casos não regulados por regras os juízes possuem discricionariedade em sentido forte, segue-se que os princípios (que não são regras) invocados pelos tribunais não são juridicamente vinculantes. “É a mesma coisa dizer que quando um juiz esgota as regras à sua disposição ele possui discricionariedade, no sentido que ele não está vinculado por qualquer padrão da autoridade do direito, e dizer que os padrões jurídicos que os juízes citam além das regras não os vinculam”15. O problema é saber se os princípios que os juízes citam em casos como Riggs e Henningsen controlam ou não suas decisões. Dworkin cita alguns argumentos que os positivistas poderiam oferecer para defender sua doutrina da discricionariedade judicial nessa situação: (a) um positivista poderia afirmar que princípios não podem logicamente ser obrigatórios16; (b) que eles não podem determinar um resultado concreto17; (c) que, por serem

Ibid., 26. Ibid., 29. 15 Ibid., 34. 16 Ibid., 35. 17 Ibid. 13 14

controversos seus pesos relativos, não podem contar como direito18; ou ainda (d) que por haver em todo sistema jurídico uma regra de reconhecimento que estabelece critérios sociais de validade, princípios (que não passam nesse teste) não são direito19. Os três primeiros argumentos são facilmente respondidos. Em primeiro lugar, não há nada na estrutura lógica dos princípios que os impedem de ser obrigatórios. Em segundo lugar, afirmar que princípios não determinam resultados é apenas repetir, como afirma Dworkin, que princípios não são regras. Além disso, ainda que um princípio não possa determinar um resultado, um conjunto de princípios pode fazê-lo. Por fim, o fato de um padrão ser controvertido não significa necessariamente que este padrão não vincule um juiz ou outra pessoa para o qual se aplica20. A objeção mais importante à afirmação de que princípios fazem parte do direito é a última (d). Princípios são incompatíveis com a teoria positivista da regra de reconhecimento. Como os princípios não possuem pedigree, eles não são parte do direito. Dworkin observa, corretamente, que há um problema nessa objeção: ela assume a verdade da teoria positivista. Se a existência de princípios jurídicos coloca em xeque a teoria positivista da regra de reconhecimento, essa própria teoria não pode ser usada como argumento contra o caráter juridicamente vinculante dos princípios21. Dworkin, aliás, acredita que, num confronto entre ambas, temos boas razões para optar pelo caráter jurídico dos princípios. Neste ponto, não é necessário prosseguir na análise dos argumentos de Dworkin. Temos já um quadro suficientemente detalhado do seu argumento central: a existência de princípios jurídicos vinculantes refuta a teoria positivista, especialmente a tese da discricionariedade (pois, mesmo quando não há regras, os juízes estão vinculados a princípios) e a tese do pedigree (pois os princípios não se tornam parte do direito em virtude de um teste social de validade estipulado em uma regra de reconhecimento). A divisão entre positivistas inclusivos e exclusivos, e os posteriores argumentos de Raz a favor do que chamou de “tese das fontes”, serão reações a essa crítica inicial de Dworkin.

1.1.2 A resposta inicial de Raz às críticas de Dworkin

Ibid., 36. Ibid. 20 Ibid., 35–36. 21 “The incompatibility of principles with the positivist’s theory can hardly be taken as an argument that principles must be treated any particular way. That begs the question”. Ibid., 36. 18 19

As primeiras críticas de Dworkin ao positivismo apontavam para o uso frequente de padrões normativos, distintos das regras jurídicas, no raciocínio dos tribunais. Casos como Riggs são comuns, e os juízes frequentemente recorrem a princípios para justificar suas decisões. No entanto, esses padrões não são validados por uma fonte social, como afirma a tese do pedigree positivista. Sua origem repousa numa compreensão, por parte de oficiais e da própria comunidade, do que seja “apropriado” em situações similares às que os juízes enfrentam. Diante dessas críticas, restavam aos positivistas duas alternativas básicas: eles poderiam reconhecer o uso dos princípios e seu caráter jurídico, mas negar que eles não tivessem origem em fontes sociais, ou insistir que, mesmo o discurso judicial indicando o contrário, os princípios não fazem parte do direito da mesma forma que regras jurídicas validadas por um teste social previsto numa regra de reconhecimento. Não há espaço, nesta dissertação, para analisar e comentar todas as respostas positivistas oferecidas ao primeiro desafio dworkiniano. Meu foco será somente uma dessas respostas: a de Joseph Raz. Contudo, era importante termos conhecimento do contexto teórico que disparou a reação positivista de Raz, e por isso apresentei a crítica inicial de Dworkin na seção anterior. Meu objetivo, como já expliquei anteriormente, é entender a natureza do argumento de Raz a favor do positivismo jurídico exclusivo (que tipo de afirmação ele faz, que argumentos oferece em favor de suas teses, que tipo de contra-argumento ou contra-exemplo poderiam refutá-las etc.). Antes de entender a natureza do argumento, no entanto, é importante conhecer os detalhes do seu conteúdo. A crítica de Dworkin ao positivismo baseou-se no uso de padrões com a forma de princípios nos tribunais, e na distinção lógica entre princípios e regras. A primeira resposta de Raz ao desafio dworkiniano procura avaliar a pertinência dessa distinção. Dworkin estava correto na sua caracterização dos padrões utilizados pelos juízes, e na sua distinção entre princípios e regras? A primeira resposta de Raz que irei analisar encontra-se no artigo Legal Principles and the Limits of Law. De acordo com Raz, antes de podermos distinguir logicamente tipos de leis, é preciso enfrentar um problema anterior que o precede e de cuja solução a distinção depende. Trata-se do problema da individuação das leis: como identificar o que é uma lei completa? Utilizando o princípio da individuação das leis, Raz ataca dois pontos do argumento de Dworkin: (i) a caracterização adequada dos padrões, aparentemente distinto de regras, utilizados pelos tribunais; (ii) a impossibilidade de conflito de regras. Para entender como o

problema da individuação das leis precede o problema da distinção lógica entre elas, vejamos o exemplo citado por Raz. Imaginemos que um filósofo do direito nos diga que todas as leis são comandos (uma tese austiniana clássica)22. Diante dessa afirmação, produzimos três contra-exemplos: (i) um trecho da Constituição que afirme que o Parlamento tem competência (poder) para legislar sobre direitos e deveres de propriedade; (ii) uma lei que estipule que qualquer pessoa plenamente capaz pode dispor de seus bens em testamento para depois de sua morte; (iii) uma declaração judicial estabelecendo que todas as pessoas tem o direito à segurança pessoal23. Nenhuma das leis citadas nos exemplos são "comandos", em qualquer sentido relevante do termo. Se há leis que não são comandos, a afirmação de nosso filósofo estaria refutada. Mas não podemos dizer que os três contra-exemplos citados refutam a afirmação de nosso filósofo a menos que estejamos seguros de que as leis citadas são, de fato, leis completas24. Nosso filósofo imaginário poderia afirmar, como afirmou Austin, que a lei citada em (i) é, na verdade, um comando: o comando para que todos obedeçam as leis emanadas do Parlamento concernente a direitos e deveres de propriedade. Não importa que essa não tenha sido a linguagem utilizada na lei. O que importa é que essa é a descrição correta da lei promulgada. Em relação à lei citada em (ii) ele poderia afirmar que não temos, nessa hipótese, uma lei completa, mas apenas parte de várias leis diferentes, as quais são comandos. Esse fragmento de lei, assim como vários outros com a mesma forma, funcionaria como especificação das condições de aplicação dos comandos. Nosso filósofo imaginário poderia prosseguir, sempre afirmando que as leis que consideramos como contra-exemplos à sua definição de leis como comandos são, na verdade, fragmentos de leis, ou apenas a dedução feita a partir de um conjunto completo de leis. No caso III, por exemplo, a afirmação de que "todos tem direito à segurança pessoal" seria apenas a dedução feita a partir de um conjunto de leis que proíbem assassinato, roubo, violência física etc. e que são, por sua vez, comandos. Contudo, não precisamos aceitar as respostas do nosso filósofo imaginário. Mas precisamos enfrentar a questão de se os critérios de individuação aplicados por ele são ou não corretos. “Toda teoria sobre os tipos lógicos de leis”, afirma Raz, “pressupõe uma doutrina da individuação de leis, e na maior parte das vezes ela só pode ser atacada ou defendida atacando-se ou defendendo-se sua doutrina subjacente da individuação”25. Joseph Raz, “Legal Principles and the Limits of Law,” The Yale Law Journal 81, no. 5 (1972): 823. Ibid. 24 “Have we refuted the theory of our philosopher friend? We have done so only if the three statements we produced are each a statement of one complete law”. Ibid. 25 Ibid., 827. 22 23

Com as observações acima em mãos, Raz chama a atenção para a possibilidade de que alguns princípios citados por Dworkin nos casos Riggs e Henningsen não sejam, de fato, princípios jurídicos. É possível que um juiz ou tribunal cite determinado princípio como se fosse uma lei completa quando, na verdade, ele é apenas uma alusão resumida a um conjunto de regras. Quando alguém diz que no Brasil ou nos Estados Unidos existe o princípio da liberdade de expressão, pode querer dizer simplesmente que as únicas restrições à liberdade de expressão são leis que proíbem injúria, calúnia e difamação, e que há leis que proíbem a censura, que garantem o acesso das pessoas aos meios de comunicação além de assegurar o direito de resposta. A ampla proteção à liberdade de expressão e o caráter excepcional das regras que a limitam justificam a afirmação de que no Brasil ou nos Estados Unidos há um princípio que protege a liberdade de expressão26. No entanto, outra pessoa poderia querer dizer, quando faz a mesma afirmação, que nesses países há uma lei que determina que os juízes defendam e protejam a liberdade de expressão em todos os casos, mesmo aqueles não regulados por uma regra jurídica. Na primeira situação, o princípio é utilizado como mero sumário de um conjunto de normas. Na segunda, ele tem, de fato, os contornos de um princípio jurídico nos moldes propostos por Dworkin. Portanto, a simples afirmação de que existe determinado princípio ou que os tribunais frequentemente se referem a padrões que não são regras não é suficiente para determinarmos se se trata de uma lei completa ou de um sumário breve a um conjunto de outras leis. Assim, a depender do princípio de individuação adotado, podemos caracterizar de maneiras distintas os padrões que Dworkin chamou de "princípios jurídicos". Além disso, a depender do princípio de individuação adotado, poderemos ou não afirmar que é possível um conflito de regras27. Esta é a segunda etapa do argumento de Raz. Dworkin afirmou que regras, ao contrário de princípios, não podem entrar em conflito. Essa afirmação depende da maneira pela qual identificamos uma regra completa. É possível, contudo, que adotemos um princípio de individuação distinto do de Dworkin, e que abra espaço lógico para o conflito de regras. Portanto, a distinção entre princípios e regras que afirma que apenas os primeiros, mas não os segundos, podem entrar em conflito depende do princípio de individuação de leis utilizado. Bentham e Austin acreditavam que leis válidas (independentemente de seus tipos lógicos) não poderiam entrar em conflito. A posição de Dworkin é mais moderada do que esta: para ele, apenas as regras jurídicas, mas não os princípios jurídicos, não podem conflitar.

26 27

Ibid., 28. Ibid., 829–830.

Princípios jurídicos podem entrar em conflito e, por consequência, possuem o que Dworkin chamou de "dimensão de peso". Contudo, regras jurídicas não possuem essa dimensão de peso e o conflito entre elas é logicamente impossível. Portanto, se uma regra estipula que determina ação deve ser feita, dado que as condições previstas na regra estão presentes, aquela ação de fato deve ser feita. Não podemos dizer que apesar da previsão contida na regra, aquela ação não deve ser feita nessas circunstâncias por conta de uma segunda regra que qualifica a primeira. Na caracterização de Dworkin, uma regra completa incluiria todas as suas exceções e qualificações. Assim, se uma regra estipula x e outra regra cria uma exceção p para a aplicação de x na circunstância c, a regra que estipula x, isoladamente considerada, não é uma regra completa. A regra completa seria a regra que estipula x combinada com a que estipula a exceção p na circunstância c. Como regras não podem entrar em conflito, elas não possuem dimensão de peso. Princípios, ao contrário, possuem essa dimensão, que permite que em casos em que princípios conflitantes sejam aplicáveis, um julgador possa decidir, com base no peso relativo de cada princípio naquela situação concreta, qual deles deve prevalecer (portanto, regulando a decisão do caso). Contudo, Raz acredita que, ao contrário do sugerido por Dworkin, regras possuem pesos relativos e podem entrar em conflito. A questão, mais uma vez, passa pelo problema da individuação das leis, e qual princípio de individuação deveríamos adotar. É importante entendermos as razões de Raz abordar esse ponto: Dworkin afirmou que existem padrões, logicamente distintos de regras, que juízes e tribunais frequentemente usam quando decidem casos (especialmente casos controversos). Esses padrões (os princípios jurídicos) desafiariam teses centrais do positivismo e seu uso forneceria razões para o rejeitarmos. O objetivo de Raz é contra-argumentar valendo-se de uma crítica ao princípio da individuação utilizado por Dworkin para a caracterização dos padrões normativos utilizados pelos tribunais. Se for possível refutar a distinção entre princípios e regras utilizada por Dworkin em sua primeira crítica, seria possível salvar o positivismo da crítica de que ele é incapaz de explicar os princípios jurídicos. Neste ponto, o que Raz procura mostrar é que a distinção entre princípios e regras baseada nas características da "possibilidade de conflito" e "dimensão de peso" baseia-se num princípio equivocado de individuação de leis. Se tivermos boas razões para adotar um critério de individuação que permita o conflito de regras, não teremos mais à disposição uma das principais distinções entre estes dois tipos normativos.

A tese de que regras não podem entrar em conflito baseia-se num princípio de individuação que garante que toda regra inclui todas as suas qualificações e exceções. Assim, não há conflito entre a regra que proíbe o assassinato e aquela que permite a legítima defesa, porque (i) elas não são regras completas; (ii) ambas fazem parte de uma mesma regra completa (a segunda sendo uma qualificação da primeira). De acordo com Raz, Dworkin adota esse princípio de individuação e, por consequência, afirma a não possibilidade de conflito entre regras. Contudo, temos boas razões para rejeitar esse princípio. Raz explora um argumento para justificar a rejeição desse princípio de individuação. O argumento inicia-se com um exemplo: o direito penal possui uma regra que proíbe lesões corporais. Contudo, esta regra é qualificada por várias outras leis, que criam exceções em que a lesão corporal é justificada (por exemplo, em legítima defesa, para cumprimento de decisões judiciais, em casos de necessidade etc.) e também por leis mais gerais que determinam a extensão territorial de validade da lei. Poderíamos afirmar que nenhuma descrição da lei sobre lesão corporal será uma descrição completa da lei a menos que inclua todas as qualificações existentes no ordenamento jurídico. Estas qualificações não seriam leis separadas, mas apenas partes de uma lei completa que proíbe lesões corporais nos casos não excepcionados nas leis qualificadoras. Entretanto, aceitar um princípio de individuação como o descrito acima seria, de acordo com Raz, um erro. Raz oferece um argumento geral, dividido em dois subargumentos, em favor dessa afirmação: em primeiro lugar, aceitar o princípio de individuação descrito acima levaria a consequências absurdas; em segundo lugar, a aceitação deste princípio implicaria numa compreensão equivocada da função dos princípios de individuação. Vejamos cada um destes sub-argumentos separadamente. Em relação às consequências absurdas, Raz afirma que ao aceitarmos que uma regra completa inclui todas as suas qualificações, seríamos obrigados admitir que o nosso sistema jurídico possui menos leis do que aparentemente possui (por exemplo, a doutrina da legítima defesa não seria considerada uma lei independente, mas apenas parte de uma multiplicidade de outras leis), e as leis completas restantes seria enormemente complexas. Elas seriam também bastante repetitivas, já que teriam grande parte do seu conteúdo em comum (a legítima defesa seria parte de praticamente todas as leis penais). Além disso, o princípio de individuação que afirma que uma regra completa inclui todas suas exceções compreende mal a função de um princípio de individuação. Para Raz, devido à grande quantidade de materiais jurídicos que constituem um sistema jurídico complexo, é preciso dividi-los em unidades menores, chamadas de "leis", para que seja

possível nos referimos separadamente a partes do sistema jurídico total. Assim, os princípios de individuação são o método de delimitar unidades menores e manejáveis do sistema jurídico total, permitindo nossa compreensão do direito a partir da classificação das leis em vários tipos lógicos e da demonstração de como esses tipos diferentes de lei se relacionam. Escreve Raz: Nós deveríamos adotar uma doutrina da individuação que mantém as leis em um tamanho manejável, evita repetição, minimiza a necessidade de se referir a uma grande variedade de estatutos e casos como fontes de uma única lei, e não desvia desnecessariamente da noção (admitidamente difusa) de senso comum de uma lei. Tal doutrina da individuação resultará numa quantidade maior de leis que irão interagir umas com as outras, modificando e qualificando umas às outras. Essa abordagem é mais próxima da maneira como os advogados ordinariamente pensam sobre o direito, e também ilumina conexões importantes entre as leis. Ela foca sua atenção no fato de que certos grupos de leis são afetados por certas outras leis que estipulam doutrinas como a legítiam defesa, necessidade etc, enquanto outros não são. Em resumo, tal doutrina da individuação explica melhor as interrelações sistemáticas entre as várias partes de um sistema jurídico28.

Se aceitamos que as leis podem interagir e qualificar umas às outras sem que as leis qualificadoras tornem-se meros fragmentos de leis, devemos aceitar (como consequência lógica) que é possível que regras entrem em conflito. Raz conclui: "o Professor Dworkin está errado em sustentar que princípios podem ser distinguidos de outras leis porque apenas eles podem conflitar" (823). Contudo, ainda seria possível argumentar que, não obstante a possibilidade de conflito de regras, os princípios possuem uma dimensão de peso, e as regras não. Conflitos de regras são resolvidos de maneira geral, a partir de um critério de prioridade que determina que regra terá prevalência em todos os casos (por exemplo, a legítima defesa sempre irá prevalecer, quando presente, sobre a regra que proíbe a lesão corporal). Já os conflitos entre princípios devem ser resolvidos levando-se em conta o peso relativo de ambos no caso concreto, tendo em vista, especialmente, o bem ou o dano aos fins que cada princípio procura promover. Essa avaliação irá variar caso a caso, de modo que não é possível afirmar que um princípio possui peso relativo superior a outro de maneira abstrata. Raz aceita esse ponto, mas afirma que ele não representa uma diferença "lógica" entre princípios e regras. Na verdade, o tratamento diferente de regras jurídicas e princípios jurídicos em casos de conflito não é resultado de uma diferença lógica (que é questionável), mas sim de política legal (legal policy). Isso não significa que não haja diferença lógica entre 28

Ibid., 832.

princípios e regras. Contudo, essa diferença, segundo Raz, não é aquela apontada por Dworkin (e que ele procurou refutar valendo-se de um princípio de individuação de leis alternativo). Segundo Raz, há uma semelhança entre princípios e regras que impõem obrigações: ambos estabelecem razões que favorecem determinada ação. Tanto princípios quanto regras, nesta caracterização, estabelecem deveres prima facie que podem ser superados por outras regras e princípios ou mesmo por outras razões. A possibilidade de conflitos deixa de ser um fator decisivo já que, de acordo com o critério de individuação de leis adotado por Raz, tanto regras quanto princípios podem entrar em conflito. Contudo, enquanto as regras prescrevem atos relativamente específicos, os princípios prescrevem ações altamente genéricas. Uma ação é altamente genérica se puder ser praticada pela execução de vários e heterogêneos atos em cada ocasião (838). Assim, a distinção entre os dois tipos de normativos passa a ser uma simples distinção de grau (e não mais uma distinção de tipo lógico), com as regras estando no menor nível de generalidade, e os princípios, no maior. Isto permite vários casos intermediários, em que não é claro se estamos diante de um princípio ou regra. Contudo, a existência de casos "fronteiriços" não altera a distinção. Poderíamos objetar que a distinção de grau entre princípios e regras não explica adequadamente o papel que cada um desses tipos normativos desempenha no raciocínio jurídico. Princípios e regras têm papeis diferentes no raciocínio de juízes e advogados, e a distinção baseada no grau de generalidade das condutas não explicaria esses papeis. Raz aceita parte dessa objeção. Para ele, princípios e regras têm papeis distintos no raciocínio jurídico. Contudo, a distinção que ele propõe seria capaz de explicá-los. Raz escreve: na medida em que atos altamente genéricos podem ser praticados pela execução, em ocasiões distintas, de uma variedade de atos mais específicos, as oportunidades para a prática deles engloba as oportunidades para a prática de atos mais específicos e são mais gerais que as últimas. Normas prescrevendo atos altamente genéricos, consequentemetne, devem ser justificadas por considerações ainda mais gerais que repousam numa área mais ampla de atividade humana. Na medida em que nós justificamos as considerações que se aplicam a uma gama limitada de situações e ações por meio de considerações mais gerais, princípios podem ser usados para justificar regras, mas não vice-versa. Esta é, talvez, a mais importante diferença no papel de regras e princípios no raciocínio prático em geral, e ela pode ser explicada por meio da distinção que sugeri29.

29

Ibid., 838–839.

As explicações acima não esgotam as distinções entre princípios e regras, mas outras distinções dependem delas. Para Raz, mesmo se considerarmos o papel de ambos os tipos normativos na estrutura do raciocínio jurídico, temos boas razões para aceitar que a diferença entre princípios e regras explica-se pela diferença de generalidade das condutas previstas. Além disso, esse critério diferenciador também explicaria, segundo ele, a diferença entre princípios e regras de outros campos normativos (por exemplo, a diferença entre regras morais e princípios morais), o que fornece uma razão adicional a seu favor. As demais distinções, que dependem de aceitarmos esta primeira, estão relacionadas não ao aspecto lógico das normas, mas sim a considerações gerais de objetivos e políticas legais. A presença de princípios e o tratamento diferenciado dado a princípios e regras se explicariam, então, a partir de considerações políticas baseadas nos objetivos das autoridades do sistema. Raz analisa cinco diferentes propósitos que explicam o uso de princípios no direito: (a) princípios como fundamentos para a interpretação das leis. Os princípíos são usados para interpretar leis (incluindo princípios de aplicação mais restrita). Em geral, presume-se que uma interpretação é melhor, tudo o mais sendo igual, se ela conformar-se mais a determinado princípio que uma interpretação concorrente. Além disso, é possível explicar diferenças entre sistemas jurídicos com regras similares a partir dos diferentes princípios que guiam a interpretação dessas regras. (b) Princípios como fundamentos para alterações no direito. Princípios podem funcionar como guias e fundamentos para alterações em leis ou precedentes estabelecidos. Esse uso dos princípios inclui não só a justificação para alterações efetivas, mas também considerações que justifiquem a manutenção (portanto, a não-alteração) da lei ou do precedente em questão; (c) princípios como fundamentos para exceções particulares em leis. Os princípios podem ser utilizados para justificar exceções específicas em leis que normalmente seriam aplicadas àquela situação particular. Assim, criase uma exceção de aplicação com base em princípios sem que com isso se modifique ou altere a lei geral. (d) princípios como fundamento para a criação de novas leis. Segundo Raz, quando apenas princípios aplicam-se a um caso, juízes e tribunais regulam a situação através da criação de uma nova lei. Essa nova lei será, no mais das vezes, elaborada com base em princípios estabelecidos e aplicáveis ao caso. (E) Princípios como fundamento exclusivo de ação em casos particulares. Nessa última hipótese, os princípios servem como guias diretos para a decisão em casos concretos, sem a necessidade de intermediação de outras leis. Assim, não se fala em interpretação, modificação etc. de regras já existentes, mas da aplicação direta de um conjunto de princípios ao caso.

Raz observa que a hipótese "e" é menos frequente, e é uma política legal "sábia" optar, tanto quanto possível, por regras e não pela aplicação direta de princípios. Eles ainda podem ser usados para as funções listadas em a, b, c e d. Porém, em virtude de seu caráter altamente genérico, é recomendável que o uso de princípios seja limitado (ainda que não totalmente excluído). Além disso, princípios conferem flexibilidade, enquanto regras garantem a estabilidade do sistema. Assim, é razoável utilizar métodos simples de resolução de disputas no casos de conflito de regras, de modo a não corroer a previsibilidade do direito. Contudo, como os princípios são utilizados para garantir um certo nível de flexibilidade, as mesmas razões não se aplicam para os métodos para a resolução de seus conflitos. Segundo Raz, essa (e não suas estruturas lógicas) é a explicação para o tratamento diferenciado dos conflitos entre regras e princípios. Ainda resta saber como a crítica da distinção dworkiniana entre princípios e regras afeta o argumento mais geral feito por Dworkin contra o positivismo. O argumento de Dworkin não se resumia a defender uma distinção entre princípios e regras, mas sim a estabelecer que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e é incapaz de explicar o uso recorrente de princípios jurídicos. A conclusão mais geral do argumento era que o teste hartiano para definir os limites do direito (conforme estabelecido na regra de reconhecimento) deve ser inteiramente rejeitado. Parte importante do argumento de Dworkin baseia-se na negação da discricionariedade judicial. De acordo com ele, o direito inclui tanto regras quanto princípios e, quando um caso não é claramente regulado por regras, ainda assim os juízes encontramse juridicamente vinculados a princípios que, isolados ou em conjunto, determinam uma decisão. Como as regras não esgotam o "direito", não há espaço lógico para discricionariedade em sentido forte (já que os casos não regulados por regras, ainda assim são regulados por princípios). A partir disso, Raz infere que, para Dworkin, todas as razões que juízes e tribunais estão autorizados a utilizar para a solução de disputas fazem parte do direito. Esta seria a única maneira de excluirmos a possibilidade lógica do exercício da discricionariedade. Contudo, há pelo menos uma exceção a esta proposição: as leis de jurisdições estrangeiras que os juízes utilizam para resolver casos envolvendo questões de direito internacional. Apesar de serem razões pertinentes ao caso (e que vinculam os juízes), elas não são parte do direito daquele país.

Além disso, a existência de princípios, por si só, não exclui a possibilidade de discricionariedade judicial. Raz concede o ponto de que vários teóricos exageram a margem de discricionariedade judicial por não dar atenção ao papel dos princípios. O fato de uma regra jurídica ser vaga não significa que um juiz tenha discricionariedade, já que princípios que guiem a sua interpretação podem determinar uma única decisão para o caso. No entanto, o fato de que isso é possível, não significa que isso seja sempre necessário. Uma das principais fontes de discricionariedade (a vagueza) é inerente à própria linguagem, e se é possível afirmar que princípios podem excluir a discricionariedade em casos de vagueza de regras, também é possível afirmar que os próprios princípios podem ser vagos. Também o peso relativo dos princípios, usualmente definido em cada caso (e não em abstrato), também permitem discricionariedade em sentido forte para os juízes. Há, ainda, princípios que conferem discricionariedade aos juízes, definindo apenas as considerações que eles não devem levar em consideração, mas dando-lhes liberdade de decidir uma vez que essas considerações são excluídas. Princípios como "os tribunais não farão cumprir contratos injustos" pressupõem a discricionariedade dos juízes. Segundo Raz, nesta hipótese, os tribunais são orientados pelo direito a agir conforme3 aquilo que eles consideram ser "injusto". "O direito não impõe sua própria visão da justiça ou do bem comum. Ao invés disso, ele deixa a questão à discricionariedade dos oficiais" (847). Raz chama esses princípios de "princípios de discricionariedade": nesses casos, o direito orienta os juízes a agirem com base em determinadas razões, mas deixa a eles a discricionariedade para determinar o que essas razões requerem, de acordo com seu melhor julgamento. A discricionariedade é, assim, "limitada ou direcionada" (847). Outro ponto importante do argumento de Dworkin (talvez o mais importante), é que os princípios, ao contrário das regras, não se tornam "válidos" por conta de um teste de pedigree. Entretanto, se aceitamos que os princípios são padrões similares a regras e distintos apenas quanto ao seu nível de generalidade, não temos razões para supor que eles não possam ser promulgados, repelidos ou criados da mesma forma que regras jurídicas. Isso não significa que todos os princípios tenham essa origem definida numa fonte social. Raz analisa a possibilidade de que os princípios se tornem parte do direito por conta de uma senso de adequação compartilhado na comunidade que estabelece que aquele princípio aplica-se ao caso. Para que essa proposição possa refutar a tese positivista do pedigree é necessário estabelecer que "todas as normas sociais são automaticamente (e sem reconhecimento judicial ou legislativo prévio) juridicamente vinculantes"30. 30

Ibid., 849.

Raz entende que a afirmação de que os princípios tornariam-se parte do direito em virtude de sua adequação equivale à afirmação de que sua origem estaria em regras sociais da comunidade (portanto, em sua moralidade convencional). Para que este seja o caso, seria necessário um princípio que orientasse juízes e tribunais a decidirem os casos com base na moralidade convencional da comunidade. Contudo, esses princípios não excluem a discricionariedade dos juízes, já que não determinam quais normas dentre aquelas pertencentes à moralidade convencional de uma comunidade devem ser aplicadas. Elas limitam a discricionariedade (exigindo um tipo específico de justificação), mas não a excluem. Além disso, quando juízes se valem desses princípios, eles o fazem, no mais das vezes, de maneira retórica, para reforçar a decisão que eles julgam ser a melhor. Para Raz, Dworkin toma esses pronunciamentos judicias pelo seu valor de face, o que o obriga a endossar dois "mitos": o primeiro, de que há um conjunto considerável de valores compartilhados em determinada comunidade (o mito da moralidade comum); e o segundo, que supõe que os valores mais gerais podem assegurar um fundamento suficiente para conclusões práticas. Assim, já que todos temos um desejo comum e compartilhado de prosperidade, progresso, cultura etc., todos queremos as mesmas coisas e temos os mesmos ideais. Entretanto, não devemos endossar esses mitos nem aceitar os pronunciamentos judiciais pelo seu valor de face. Na maior parte das vezes, segundo Raz, o que os juízes afirmam ser a moralidade convencional da comunidade (e que seria, na leitura de Dworkin, parte do direito) é apenas um reforço retórico para uma decisão discricionária. Além disso, quando autorizados a decidir um caso com base na moralidade convencional, os juízes preservam sua discricionariedade e as normas sociais não se tornam, automaticamente, parte do direito (elas funcionam como as normas de um país estrangeiro aplicadas num tribunal local). Raz oferece, ainda, outra crítica (mais fundamental). Para Dworkin, nenhuma regra de reconhecimento (e consequentemente, nenhum teste para a identificação do direito) seria capaz de explicar como os princípios jurídicos tornam-se vinculantes. Além disso, quando juízes argumentam a favor de um princípio, exemplificando sua aplicação em outros casos judiciais, eles estão tentando estabelecer a aceitação (e não propriamente a validade) do princípio. Isso desafia a tese hartiana de que a regra de reconhecimento é aceita enquanto as demais normas são simplesmente validadas por ela. Se modificássemos o critério contido na regra de reconhecimento para estabelecer que "qualquer norma aceita pela comunidade (ou pelos oficiais) é parte do direito", não teríamos mais um critério para diferenciar aquilo que é direito daquilo que faz parte simplesmente do conjunto de normas sociais da comunidade.

Raz objeta a esse importante argumento de Dworkin afirmando que mesmo nos casos em que se aceita que costumes da comunidade possam ser fonte do direito, exige-se que esses costumes, além de aceitos satisfaçam outros testes relevantes. Isso garante que a regra de reconhecimento possa ainda cumprir sua função identificadora, pois não será qualquer norma "aceita" pelos pela comunidade que será parte do direito, mas somente aquelas que, além de aceitas, passarem num teste relevante. Contudo, esse argumento, como Raz nota, não se aplica ao caso dos costumes judiciais (já que a regra de reconhecimento é, ela própria, uma regra costumeira aceita pelos oficiais). Já que a própria regra de reconhecimento é uma espécie de costume judicial, ela não pode conferir um estatuto especial a outros costumes judiciais31. A conclusão que se segue é que o teste hartiano da regra de reconhecimento deve ser modificado: um sistema jurídico consiste não só de uma regra costumeira dos oficiais (a regra de reconhecimento) e das demais leis reconhecidas por ela, mas de todas as regras e princípios costumeiros dos oficiais, e das demais leis reconhecidas por eles (853). Para Raz, essa modificação não implica a rejeição da tese do pedigree e dos limites do direito. Ela preserva o caráter institucional do direito e a distinção entre padrões jurídicos e não-jurídicos. Neste caso, a distinção se basearia no fato de os tribunais terem ou não uma obrigação de aplicar o padrão, seja porque o padrão é ele próprio um costume judicial, seja porque costumes judiciais tornam sua aplicação obrigatória32. Dworkin tem ainda um argumento contra a possibilidade de um teste para diferenciar padrões jurídicos de padrões não-jurídicos. Se fôssemos argumentar que determinado princípio é um princípio jurídico, precisaríamos demonstrar determinado nível de suporte institucional a esse princípio (citando casos anteriores em que ele foi citado ou aplicado, ou que foi utilizado na argumentação). Se não conseguirmos demonstrar esse nível de suporte institucional, não conseguiremos demonstrar o estatuto jurídico do princípio. No entanto, não conseguimos imaginar um teste ou fórmula que nos permita determinar quanto apoio institucional é necessário para que um princípio torne-se jurídico. Não há uma explicação geral do que conta como apoio institucional adequado na prática dos tribunais. Consequentemente, não há um critério geral que permita diferenciar padrões jurídicos de padrões não-jurídicos.

31 32

Ibid., 852. Ibid., 853.

De acordo com Raz, há um exagero no argumento feito por Dworkin. Costumes judiciais são uma espécie de costumes sociais. Para determinarmos se um costume judicial existe ou não (i.e., para determinarmos se ele possui o apoio institucional necessário) precisamos demonstrar a existência do costume, que equivale a determinar a existência de costumes sociais em geral. Nós precisamos, assim, de uma explicação plausível para o conceito de norma costumeira (e costume social). O fato de que precisamos fornecer tal explicação, e que ela não é trivial, não torna a possibilidade de oferecê-la um absurdo. Escreve Raz: O que precisamos é de uma explicação adequada do conceito de uma norma costumeira. Uma vez que nós a tenhamos, nós saberemos o que um costume judicial é e teremos uma critério completo de identidade. Hart forneceu tal explicação. Sem dúvidas é possível melhorá-la, mas não há razão para supor que o conceito de norma costumeira desafia [qualquer] análise. É verdade que uma análise do conceito não nos dá uma procedimento de decisão para determinar para todo princípio ou regra se ele tem ou não o apoio suficiente para ser considerado um costume judicial. Casos fronteirições permanecerão. Mas o argumento de Dworkin é bastante fraco, rejeita uma distinção porque admite a existência de casos fronteiriços33.

Portanto, o fato de ser questionável ou difícil oferecer uma análise do conceito de costume judicial (e, consequentemente, estabelecer um critério que determine o nível de apoio institucional necessário), não implica que essa análise seja impossível. Admitindo que é possível oferecer esse critério, o argumento de Dworkin perde uma de suas premissas básicas: a de que não seria possível estabelecer um critério que nos permitisse identificar, de maneira geral, se um princípio tem ou não apoio num costume judicial subjacente. Um teste para os limites do direito e para diferenciar princípios e regras jurídicas de princípios e regras que não fazem parte do sistema jurídico continuaria a ser possível.

1.1.3 Problemas do argumento inicial de Raz Raz ofereceu as respostas acima às primeiras críticas de Dworkin ao positivismo. Estas respostas procuravam contornar alguns problemas identificados por Dworkin no positivismo hartiano sem o correspondente abandono de teses centrais do positivismo. Uma vez que reconhecemos que juízes e advogados frequentemente invocam padrões normativos distintos de regras e para os quais Hart não deu a devida atenção, é preciso questionar em 33

Ibid., 854.

que medida o positivismo pode ainda oferecer uma explicação adequada de uma prática que inclui o uso desses padrões. Antes de avaliarmos a correção dos argumentos anteriores de Raz, é importante notar sua defesa do positivismo jurídico tomará contornos distintos nos seus trabalhos posteriores. O apelo a princípios de individuação de leis para responder às críticas de Dworkin, por exemplo, ocupa um espaço modesto (se é que ocupa algum espaço) nos desenvolvimentos subsequentes da teoria de Raz. Uma explicação possível para isso é a própria mudança dos argumentos centrais que os críticos do positivismo passaram a usar, o que poderia sugerir que Raz e outros positivistas foram capazes de responder satisfatoriamente às críticas iniciais de Dworkin. Contudo, pelo menos em relação aos argumentos de que apresentei acima, veremos que este não é o caso. Parte importante do argumento inicial de Raz baseou-se na premissa de que, muitas vezes, princípios jurídicos podem ser utilizados como referência sumária a um conjunto de outras regras jurídicas. Assim, quando um juiz afirma que há em sua jurisdição um princípio que protege a propriedade privada, ele pode estar utilizando o termo apenas para se referir ao conjunto de regras válidas daquela jurisdição que protegem e garantem os direitos de propriedade. Se existem regras que garantem o direito de ação do proprietário em casos de turbação, esbulho ou ameaça, que asseguram a ele o direito de utilizar todos os meios necessários para preservar sua propriedade em casos de invasão ilegal, que excluem reivindicações de propriedade opostas em casos de prova definitiva de propriedade e que permitem, dentro de certos limites, que ele use como bem entender sua propriedade, o juiz pode referir-se a este conjunto de regras através do uso do termo “princípio da propriedade privada”. O uso do termo não significa, neste caso, que se trata um padrão normativo diferente e independente das regras a que se refere. O reconhecimento do fato acima, contudo, não é uma objeção persuasiva ao argumento de Dworkin: do fato de que alguns padrões invocados por tribunais são uma referência sumária a um conjunto de regras, não se segue que todos sejam. Mesmo que os princípios citados por Dworkin nos casos Riggs e Henningsen não fossem princípios jurídicos “independentes”, ainda restaria provar que este sempre é o caso, i.e., que sempre que juízes citam princípios jurídicos eles estão usando o termo da forma que Raz descreveu acima. Mesmo que a ampla maioria dos princípios utilizados pelos tribunais tenham esta estrutura, ainda precisaríamos lidar com aqueles padrões que não a tem ou então provar, através de argumentos independentes, que os juízes nunca usam o termo princípio em contextos em que não estão se referindo a sumários de regras. Sobre este ponto, Dworkin escreveu:

Raz está certo que algumas afirmações que começam com ‘é um princípio do nosso direito que…’devem ser entendidas como meros sumários de outros padrões. Mas ele está errado em supor que a referência de um tribunal ao princípio da liberdade de contrato, por exemplo no caso Henningsen que eu discuti, deve ser entendidas deste modo. Pelo contrário, essas referências reconhecem a força de um princípio em determinar direitos e deveres jurídicos particulares, e tentam avaliar e algumas vezes limitar essa força34.

O próprio Raz reconhece em Legal Principles que princípios jurídicos podem também ser “leis completas”. Esse reconhecimento, no limite, retira toda a força da objeção de quem nem sempre o que tribunais chamam de princípios são a princípios jurídicos independentes. Afirmar que alguns princípios são meros sumários de regras é desnecessário quando a essa afirmação segue-se o reconhecimento de quem nem tudo aquilo que consideramos um princípio tem essa estrutura. Podem existir princípios que são meros sumários de regras, mas não é deles que trata o argumento de Dworkin. Raz também afirma que, ao contrário do sugerido por Dworkin, regras podem entrar em conflito, e isso seria uma objeção importante à sua crítica do positivismo. A impossibilidade de conflito de regras (defendida por Dworkin) estaria baseada num princípio de individuação segundo o qual uma regra só é completa se contiver todas as suas exceções e qualificações. Este princípio de individuação, todavia, deve ser rejeitado, pois leva a consequências absurdas e pressupõe uma concepção equivocada sobre as funções dos princípios de individuação. Há dois problemas fundamentais nesse argumento. O primeiro é que não é claro em que medida ele poderia refutar a crítica de Dworkin. Mesmo se concedermos totalmente o ponto e admitirmos que regras, assim como princípios, podem entrar em conflito, ainda resta o fato de que princípios, ao contrário de regras, não se tornam jurídicos em virtude de uma fonte social ou pedigree. A alegação de que a distinção de Dworkin é falha porque, ao contrário do que ele sugere, regras também podem conflitar, só seria uma refutação do seu argumento se esta fosse a única distinção entre princípios e regras, o que não é o caso. O segundo problema é que o próprio princípio de individuação utilizado por Raz parece levar a resultados absurdos. Não é comum chamarmos a relação entre a doutrina da legítima defesa e as leis penais que proíbem, por exemplo, a lesão corporal, de uma relação de “conflito”. Um juiz que decida pela inocência de um acusado de lesão corporal baseado no fato de que ele agiu em legítima defesa não parece ter resolvido um “conflito de regras”.

34

Dworkin, Taking Rights Seriously, 79.

Ele simplesmente reconheceu a existência de uma exceção à proibição geral prevista na lei que proíbe lesões corporais. Escreve Dworkin: Advogados utilizam regras e princípios para reportar informações jurídicas, e é errado supor que qualquer destas afirmações particulares é canônica. Isto é verdade mesmo para o que chamamos de regras legais, porque é um lugar comum que advogados frequentemente deturparão as regras que uma lei decretou se eles simplesmente repetirem a linguagem utilizada na lei. Dois advogados podem resumir o efeito de uma lei particular usando palavras distintas, e um pode usar mais regras do que o outro; eles podem ainda estar dizendo a mesma coisa. Meu ponto não era que “o direito” contem um número fixo de padrões, alguns dos quais são regras e outros princípios. De fato, eu quero me opor à ideia de que “o direito” é um conjunto fixo de padrões de qualquer tipo. Meu ponto, ao invés disso, era que um resumo preciso das considerações que advogados devem levar em conta, ao decidir uma questão particular de direitos e deveres jurídicos, incluiria proposições tendo a forma e força de princípios, e que os juízes e advogados, ao jusitificar suas conclusões, frequentemente usam proposições que devem ser consideradas deste modo. Nada disso, creio eu, compromete-me com uma ontologia jurídica que assume uma teoria particular da individuação35.

A forma como determinamos o que é uma regra completa é irrelevante para a distinção entre aquilo que juízes e advogados devem levar em consideração para decidir questões jurídicas controvertidas. Podemos descrever uma exceção a determinada regra como uma regra distinta, ou através de uma descrição revisada da regra excepcionada (que incluirá, agora, a sua exceção). Para Dworkin, a opção por uma ou outra destas duas alternativas é essencialmente expositiva. Contudo, mesmo que não fosse, ela não afetaria em nada o fato de que juízes e advogados utilizam, além de regras validadas por uma fonte social, padrões vinculantes que não possuem pedigree. A forma como individuamos esses padrões nos permitiria, hipoteticamente, determinar o seu número, mas não altera o fato do seu uso. Restaram a Raz, ainda, três argumentos principais. Um deles, contudo, depende da verdade de outro, que tem prioridade no esquema argumentativo. Para Raz, a diferença no tratamento dado a princípios e regras (bem como o método para a resolução de seus potenciais conflitos) é uma opção político-legislativa e, portanto, variável de jurisdição para jurisdição. A verdade dessa afirmação depende, no entanto, de admitirmos que os princípios, assim como as regras, tornam-se válidos (e, portanto, jurídicos) em virtude de atos legislativos ou judiciais que poderiam ter sido diferentes do que são. Quando assumimos que a opção pelo uso de princípios é variável e dependente de questões político-legislativas, assumimos também que são os atos específicos das autoridades políticas que determinam a pertença ou 35

Ibid., 76.

não de um princípio putativo a determinado sistema jurídico. Contudo, essa afirmação é o núcleo da crítica de Dworkin, e ela não pode ser simplesmente “admitida” como premissa verdadeira para a elaboração de outro argumento. Isso nos deixa, então, com os dois argumentos de Raz que considero mais importantes: o primeiro, segundo o qual princípios não excluem a discricionariedade judicial; e o segundo, que afirma que é possível imaginar um teste social para distinguir entre princípios jurídicos e não-jurídicos. Dos dois, o último é o mais importante. Mesmo que aceitemos as diferenças enumeradas por Dworkin entre princípios e regras, se for possível afirmar que ambos os padrões normativos possuem fontes sociais (ainda que em níveis de complexidade distintos), é possível preservar a tese fundamental do positivismo (que Dworkin chamou de tese do pedigree). Comecemos com o argumento da discricionariedade. De acordo com Dworkin, a existência de princípios jurídicos eliminaria a tese positivista da discricionariedade judicial. Raz objeta que isso não é necessariamente verdade: mesmo admitindo o uso de padrões com a forma de princípios, ainda é possível afirmar que juízes possuem discricionariedade, em virtude de (a) vagueza inerente à linguagem; (b) existência de princípios que conferem discricionariedade. O ponto sobre a vagueza é óbvio, e é o mesmo ponto já levantado por Hart quando tratou da textura aberta da linguagem. Quanto à existência de princípios que conferem discricionariedade, Raz afirma que há princípios que simplesmente excluem determinados tipos de considerações que os juízes poderiam levar em conta, sem, contudo, definir em quais considerações eles deveriam basear-se para decidir determinado caso; e há princípios que deixam a determinação do significado de um termo relevante (por exemplo, o significado de “injusto”) a cargo dos juízes, sem impor-lhes uma visão específica de justiça ou moralidade para o caso. Em casos em que princípios usam termos como “justo”, “injusto” etc., juízes devem usar de seus julgamentos razoáveis para determinar o significado e a extensão de aplicação do standard. Mas esse tipo de discricionariedade é o que Dworkin chama de discricionariedade em sentido “fraco”, e não é a existência desse tipo de discricionariedade que ele refuta. Mesmo quando casos controversos envolvem a determinação do que é ou não é justo, juízes e advogados continuam argumentando sobre qual decisão deve ser tomada e é devida no caso. O fato de ser necessário algum tipo de “julgamento” não implica que os juízes tenham, automaticamente, discricionariedade em sentido forte (que só ocorreria nos casos em que os juízes não estão vinculados a nenhum padrão normativo específico). Uma

discricionariedade “limitada ou direcionada” (termo utilizado por Raz) não é discricionariedade em sentido forte. Não é, portanto, o alvo das críticas de Dworkin. O mesmo raciocínio aplica-se ao argumento de que a vagueza tornaria a discricionariedade judicial incontornável: a menos que demonstremos que a vagueza dos princípios é de tal nível que torne qualquer afirmação sobre qual o dever dos juízes nos casos em que se aplicam um nonsense, ela envolverá somente discricionariedade em sentido fraco, e não em sentido forte. Além disso, é importante notar que o argumento de vagueza precisam enfrentar a possibilidade de que apenas a formulação verbal de um princípio seja vaga, sem que o próprio princípio o seja (já que sua formulação verbal é um acidente linguístico) ou que um conjunto de princípios não forneça uma solução determinada para o caso (eliminando, assim, a discricionariedade em sentido forte). O argumento de Raz assume que em casos controversos, a dúvida sobre qual decisão deve ser tomada implica, automaticamente, em discricionariedade em sentido forte. No entanto, isso só é verdade se admitirmos que deveres não podem ser controversos. Do fato de que existem controvérsias sobre direitos e deveres não se segue, logicamente, que direitos e deveres não possam ser controversos. É necessário fornecer um argumento independente para preencher o espaço entre essas duas proposições. Raz, porém, não o fornece. Raz também não oferece um argumento para afirmar a existência de discricionariedade judicial em sentido forte. Ao contrário, ele a assume como posição “default”36. No entanto, diante de um caso jurídico, um juiz tem pelo menos três opções: o direito pode obrigá-lo a decidir em favor do autor, em favor do réu, ou pode não requerer nenhuma decisão particular, mas permitir qualquer uma das duas. Num caso difícil, não é óbvio que opção o direito, por meio do conjunto de materiais jurídicos relevantes, determina. Mas essa incerteza, como observa Dworkin, aplica-se tanto para as duas primeiras hipóteses como para a terceira. Se é possível afirmar que em casos difíceis é incerto se o direito requer uma decisão a favor do autor ou do réu, também é possível afirmar que é incerto se o direito não requer nenhuma decisão específica e autoriza o juiz a decidir de uma forma ou de outra. Raz assume que a incerteza quanto às duas primeiras opções torna automaticamente verdadeira a terceira, mas isso é um non sequitur. Se o juiz tem ou não discricionariedade é uma questão a ser determinada pelo conjunto de materiais jurídicos, que podem igualmente não ser claros quanto à sua existência.

36

Ibid., 70–71.

Resta-nos, então, a segunda objeção de Raz. Para ele, e ao contrário do sugerido por Dworkin, podemos imaginar um teste social para determinar a juridicidade dos princípios. O fato de esse teste não ser óbvio só mostra que temos trabalho a fazer na análise dos conceitos de “costume judicial” e “costume social”, e não que essa análise seja impossível. Mais uma vez, no entanto, esse argumento não nos leva muito longe: em primeiro lugar, Raz considera que quando Dworkin refere-se à dimensão moral dos princípios, ele está utilizando o termo “moral” para referir-se à moralidade “convencional” de determinada comunidade. Contudo, muitos dos princípios citados e utilizados pelos tribunais não foram estabelecidos por nenhum tipo de prática judicial costumeira. O apelo a eles é feito com base não numa prática reiterada, mas com base em seu conteúdo. Além disso, muitos dos princípios citados na argumentação jurídica são controversos (seja em seu conteúdo, seja em seu peso relativo), de maneira que o conceito de moralidade convencional não seria capaz de explicar o seu uso e a persistência de disputas argumentativas a seu respeito. Assim, mesmo que tivéssemos uma análise definitiva do conceito de “costume social”, não seria possível, através dela, explicar todos os usos dos princípios na argumentação judicial. Apelar para a noção de “apoio institucional” também não é uma alternativa promissora, já que é possível que o próprio teste de apoio envolva considerações morais que desafiem a tese positivista das fontes. Imaginemos um teste de apoio institucional com a forma proposta por Dworkin: “um princípio é um princípio de direito se ele figura na teoria do direito mais razoável que pode ser fornecida como uma justificação para as regras institucionais e substantivas explícitas da jurisdição em questão”37. Um teste com esse conteúdo está de acordo com a tese do pedigree? Se pensarmos que cada juiz, tribunal ou advogado deverá elaborar uma teoria do direito capaz de determinar quais princípios são jurídicos, a resposta é negativa, já que não teremos, nesta hipótese, uma regra social de reconhecimento. Além disso, a dimensão normativa e a exigência de justificação presentes no teste não se ajustam às ideias positivistas de “pedigree” e de “critérios específicos”. Não é uma prática social que irá fornecer um teste específico para a determinação da juridicidade dos princípios, mas sim argumentos em favor de uma teoria que seja capaz de explicar e justificar um conjunto de materiais jurídicos. Se dois advogados ou juízes discordam sobre determinado princípio, a disputa entre eles não poderá ser resolvida com base no apelo à quantidade de decisões ou regras que eles podem enumerar, mas aos argumentos morais que eles serão capazes de fornecer em favor de suas posições. Esse teste não ignora o aspecto institucional dos princípios, mas ressalta que o seu conteúdo e a sua dimensão moral também 37

Ibid., 66.

importam. Por óbvio, se fazemos a juridicidade de uma norma depender de considerações morais a respeito do seu conteúdo e da justificação do direito, devemos rejeitar a tese positivista do pedigree. “O teste do apoio institucional”, afirma Dworkin, “não fornece uma base mecânica, histórica ou moralmente neutra para a afirmação de uma teoria do direito como a mais razoável”38. Afirmar que a existência ou necessidade de um teste de apoio institucional refutaria a crítica de Dworkin só é verdade se (i) esse teste tiver, necessariamente, a forma de um teste de pedigree baseado em fontes sociais e (ii) não for possível a existência de um teste nos moldes propostos por Dworkin. Raz não conseguiu estabelecer a verdade de nenhuma dessas duas proposições.

1.1.4 Um roteiro para os argumentos futuros A exposição acima mostrou que os primeiros argumentos de Raz, oferecidos em Legal Principles não foram persuasivos o suficiente para refutarem as críticas iniciais de Dworkin, mas isso não deve nos fazer concluir que não existiriam outras saídas para o positivismo. A partir dos erros do argumento inicial Raz é possível identificar novos caminhos para uma defesa mais robusta do positivismo jurídico. Raz buscou responder às críticas de Dworkin por meio de uma fenomenologia alternativa da decisão judicial e descrições alternativas da prática dos juízes. Raz afirmou, também, que o discurso de juízes e tribunais pode, muitas vezes, ser enganador, e que Dworkin cometeu um erro ao tomá-los pelo seu valor de face. Esses argumentos mostraramse pouco promissores porque se basearam em contraexemplos isolados, e não em uma objeção mais geral e exaustiva ao argumento de Dworkin. Dworkin pôde reconhecer vários pontos levantados por Raz sem precisar de modificações em suas objeções iniciais. Além disso, Raz não ofereceu argumentos que pudessem apoiar o argumento do erro ou disfarce do discurso judicial. Para que afirmemos que o discurso judicial é um disfarce ou um erro, precisamos de um critério independente que permita a análise adequada do que é o direito e a discriminação entre declarações judiciais autênticas e não autênticas. De outra forma, não seria possível afirmar que um padrão que juízes e advogados consideram ser parte do direito na verdade não é.

38

Ibid., 68.

Raz precisaria enfrentar a questão de como discriminar, supondo-se que essa discriminação seja possível, entre os padrões jurídicos e os padrões não-jurídicos utilizados pelos juízes. A afirmação de que “nem todas as razões utilizadas pelos juízes são razões jurídicas”, por exemplo, assume essa posição como default. Todavia, se essa afirmação contradiz o discurso judicial, não podemos assumi-la por princípio, mas sim argumentar a seu favor. Raz também precisaria responder qual é a relação entre uma teoria do direito e uma teoria dos deveres dos juízes (ou, de maneira mais geral, uma teoria da decisão judicial), para que possa separá-las e estabelecer um critério independente do discurso judicial para determinar o que é o direito. Além de estabelecer qual é a relação entre uma teoria do direito e uma teoria da decisão judicial, seria necessário que Raz fornecesse argumentos independentes para mostrar não só que alguns padrões com a forma de princípios possuem fontes sociais, mas que a própria ideia de juridicidade com base em critérios morais é incompatível com algum elemento que consideramos essencial ao direito. Mesmo que alguns princípios jurídicos possuam fontes sociais na forma de um teste de apoio institucional moralmente neutro e específico, é um fato que juízes se valem de padrões que julgam adequados e obrigatórios em virtude de seu conteúdo, e não de seu pedigree. Ao invés de tentar negar esse fato aparentemente incontroverso, Raz poderia reconhecê-lo e afirmar que esses padrões não são padrões propriamente jurídicos em virtude de uma impossibilidade conceitual. Neste caso, Raz retiraria a discussão do plano puramente fenomenológico, passando-a para um plano conceitual, o que forneceria um argumento para desconsiderar declarações judiciais que afirmem que princípios são parte do direito em decorrência do seu conteúdo. Raz afirmaria, neste caso, que quando alguém diz que um padrão se torna jurídico em virtude do seu conteúdo (ou do teste de apoio institucional sugerido por Dworkin), ele comete um erro conceitual. Novamente, seria preciso que Raz respondesse em que medida as práticas e o discurso judicial impactam o que consideramos ser o conceito de direito relevante, mas permanece válido o ponto de que essa é uma saída possível para Raz. Os caminhos sugeridos acima para contornar os problemas do argumento inicial de Raz podem ser perseguidos de diversas maneiras. Andrei Marmor, por exemplo, defenda a tese das fontes a partir de uma análise complexa do conceito de “convenção social”. Raz, contudo, segue um caminho distinto. Sua alternativa será baseada na doutrina da autoridade do direito, reforçada, ainda, por outros dois argumentos: um argumento baseado em distinções intuitivas presentes na nossa compreensão do direito, e outro baseado em sua função.

1.2 A TESE SOCIAL E OUTRAS CONTROVÉRSIAS EM TORNO DO POSITIVISMO JURÍDICO As principais controvérsias sobre o positivismo jurídico giram em torno de três eixos: a identificação do direito, o seu valor moral e o significado dos seus termos. Raz referese à posição positivista em cada um desses três eixos listando três teses: a tese social, a tese moral e a tese semântica.39 Destas, a tese social é a mais importante. O debate anterior entre Raz e Dworkin girou em torno dela. O que Raz identificou como tese social, Dworkin chamou de tese do pedigree. Na formulação genérica de Raz, ela afirma que “o que é o direito e o que não é uma questão de fato social”40. Essa tese esteve no centro da crítica inicial de Dworkin em TMoR I, a qual Raz tentou responder inicialmente em Legal Principles. O argumento inicial de Raz mostrou-se falho, no entanto, pois lhe faltavam, além de objeções isoladas a pontos específicos da crítica dworkiniana, argumentos positivos em favor da tese social. Ao colocar em xeque que tese positivista da identificação do direito, não nos é mais dado assumir, sem argumentos adicionais, a verdade dessa tese. O próprio Raz reconhece que é preciso refletir sobre as “razões que apoiam a tese social”41. Dworkin ofereceu diversas razões pelas quais deveríamos rejeitá-la. Os positivistas devem responder oferecendo, eles próprios, argumentos que nos levem à conclusão oposta. Veremos a seguir que razões Raz oferece em favor da tese social em geral, e de uma versão específica dessa tese (a tese das fontes), em particular. Antes, contudo, devemos analisar a diferença entre a tese social e as demais teses positivistas listadas por Raz, já que ele não argumentará em favor de todas. Além da tese social, Raz afirma que as controvérsias em torno do positivismo jurídico também ocorrem nos casos da tese moral e da tese semântica42. A tese moral afirma que o valor ou mérito moral do direito é um fato contingente, dependente do seu conteúdo e das circunstâncias concretas da sociedade na qual ele se aplica. Não existiria, assim, uma obrigação moral geral de obedecer ao direito, já que não podemos determinar, em abstrato e sem uma análise do conteúdo do direito e das circunstâncias de sua aplicação, se ele é moralmente legítimo ou não. O caráter jurídico de uma norma não lhe confere, automaticamente, legitimidade moral.

Joseph Raz, The Authority of Law: Essays on Law and Morality, 2nd ed. (Oxford: Oxford University Press, USA, 2011), 37. 40 Ibid. 39

41 42

Ibid., 41. Ibid., 37–38.

A tese semântica positivista, por sua vez, afirma que termos como “direito” e “dever” não podem ser usados com o mesmo significado em contextos jurídicos e nãojurídicos. Sabemos que termos normativos como esses não são usados exclusivamente em contextos jurídicos. Assim como falamos de um “dever jurídico”, também falamos de “deveres morais”. O que o positivista defensor da tese semântica ressalta é que, a despeito da coincidência, os significados de tais termos nesses diferentes contextos são distintos. Esta é uma formulação propositadamente vaga da tese semântica já que, nos detalhes, há diversas diferenças importantes entre as variadas teses semânticas defendidas por autores positivistas. Embora possamos caracterizar as três teses acima como teses “positivistas”, a relação entre elas não é uma relação de implicação lógica, já que da verdade de uma delas (por exemplo, da tese social), não se segue, necessariamente, as demais. Caso existisse essa relação, a distinção entre as teses seria uma questão meramente didática ou expositiva: ela apenas marcaria diferenças de conteúdo de teses que não podem ser logicamente isoladas e defendidas de maneira independente. Ao avançar a tese social, por exemplos, estaríamos comprometidos com as teses moral e semântica (que seriam decorrência direta e necessária daquela). A afirmação de que há uma relação lógica entre as três teses é falaciosa43. Para Raz, dizer que o que é ou não é o direito é uma questão de fato social deixa em aberto a questão de (i) se os fatos sociais que nos permitem identificar o direito dotam-no ou não de mérito moral e (ii) se termos como “direito” e “dever” são utilizados ou não com significados distintos em contextos jurídicos e morais. A natureza social do direito e o fato de ele possuir fontes sociais publicamente identificáveis podem dotá-lo de valor moral intrínseco. Poderíamos dizer, nesse sentido, que ao permitir que disputas sejam resolvidas com base em critérios claros e passíveis de verificação empírica, o direito garante a segurança, diminui conflitos sociais, fornece um padrão acessível para a solução de disputas morais insolúveis e torna possível a cooperação e coordenação social, dois valores que consideramos essenciais a qualquer comunidade política. Nesta hipótese, não seria correto concluir que a tese moral positivista se seguiu, logicamente, da verdade da tese social. Na verdade, ela foi estabelecida por um argumento moral independente. Não é um absurdo lógico dizer que a tese das fontes é verdadeira mesmo que o fato de direito ter um fundamento social não lhe confira nenhum valor moral independente. Além disso, do fato de considerarmos desejável e moralmente valioso termos padrões públicos e estáveis para a resolução de conflitos sociais, não se segue que a tese social positivista seja verdadeira. Uma defesa da tese social pode, portanto, se 43

“Neither the moral nor the semantic theses follow from the social one”. Ibid., 38.

adequar uma tese jusnaturalista sobre a relação entre direito e moral (desde que essa tese não diga respeito à identificação do direito). Ela pode também se adequar a uma tese jusnaturalista sobre a análise semântica de termos normativos. Nada na tese social, de acordo com Raz, deve nos fazer concluir que um compromisso com teses semânticas e morais positivistas seja necessário. Os argumentos de Raz que veremos a seguir são uma defesa específica da tese social e seria um erro encará-los como uma defesa geral do positivismo, i.e., como uma defesa de todas as três teses positivistas apresentadas acima. Dentro do esquema argumentativo proposto por Raz, a defesa da tese social possui certa precedência explicativa: antes de avaliarmos se o direito possui ou não valor moral intrínseco, devemos ser capazes de identificá-lo, e é à questão da identificação do direito que a tese social oferece uma resposta. A discussão sobre a legitimidade ou mérito moral do direito ocorrerá em momento posterior. Isso não significa, no momento, que argumentos morais não possam estar envolvidos na identificação do direito. Raz acredita que não estão. O ponto é que a relevância de argumentos morais para a identificação do direito é uma questão distinta daquela sobre sua legitimidade ou valor moral. Isso, é claro, se a distinção e independência das teses (especialmente das teses social e moral) puder ser mantida como sugerido por Raz. Argumentarei no capítulo 3 que ao recorrermos a argumentos baseados na função do direito e ao rejeitarmos argumentos baseados em critérios ou intuições compartilhadas, a distinção entre as teses moral e social positivistas perde muito de sua força: para que possamos decidir entre as diversas concepções a respeito de correta identificação do direito, devemos recorrer a argumentos sobre o que tornaria o direito uma prática dotada de sentido e valor moral.

1.3 DUAS VERSÕES DA TESE SOCIAL: TESE SOCIAL FORTE X TESE SOCIAL FRACA Na formulação da tese social positivista, Raz afirmava que “o que é o direito e o que não é é uma questão de fato social”44. Esta formulação é bastante genérica e abrange diversas concepções distintas sobre a relação entre o direito e os fatos sociais a que ela faz referência. É possível que esses fatos sociais forneçam apoio e argumentos para determinar a verdade de uma proposição jurídica sem excluir a possibilidade ou necessidade de que outras considerações possam ter algum peso para a determinação do que é o direito. “É uma questão de fato social” é uma expressão vaga que permite até mesmo que teorias nãopositivistas possam subscrevê-la. Raz, no entanto, oferece uma leitura distintamente 44

Ibid., 37.

positivista da tese social, e a reformula em termos mais fortes. Será essa versão forte que ele irá defender. Raz oferece a seguinte reformulação da tese social: “uma teoria do direito é aceitável apenas se os seus testes para a identificação do conteúdo do direito e determinação de sua existência dependem exclusivamente de fatos do comportamento humano capazes de ser descritos em termos livres de valores e aplicados sem recursos a argumentos morais” 45. Raz defende essa versão da tese social, enfatizando especialmente o termo “exclusivamente” (de onde sairá a expressão “positivismo jurídico exclusivo”). Essa fórmula, que ele chama de tese social forte, restringe o escopo da tese social genérica ao afirmar a necessidade de que os testes para a identificação do direito não só dependam de fatos sociais, mas dependam exclusivamente de fatos sociais. De acordo com essa nova formulação, tais fatos sociais devem ser passíveis de descrição livre de valores e capazes de serem identificados e aplicados sem recurso a argumentos morais. Se Raz denomina esta nova tese reformulada de tese social forte é porque há também uma versão fraca da tese social. Para os autores que aderem à tese social fraca, a eficácia e o caráter institucional do direito esgotariam os requisitos teóricos para a explicação dos seus fundamentos sociais46. Ao afirmarem que o que é o direito depende de fatos sociais, tudo que esses autores querem dizer é que um determinado grau de eficácia e institucionalidade deve ser satisfeito para que possamos falar da existência de um sistema jurídico. Uma vez satisfeitos esses dois requisitos, o direito pode incorporar critérios morais para a identificação de determinados direitos e deveres particulares. Um sistema jurídico que incorpore esses critérios morais, mas que satisfaça os testes de eficácia e institucionalidade, terá satisfeito os requisitos mínimos exigidos para a explicação do fundamento social do direito de acordo com a tese social fraca. De maneira geral, o teste da eficácia exige que um sistema jurídico, para ser considerado o direito vigente em determinada comunidade, satisfaça duas condições: que exista uma adesão geral ao sistema, e que ele seja aceito e internalizado por parcela da população (prioritariamente seus oficiais)47. Por sua vez, o teste institucional exige que, para que possa ser considerado um sistema jurídico, um sistema normativo deve conter instituições decisórias encarregadas de regular as disputas que surgem a partir da aplicação das normas do sistema, além de afirmar sua autoridade e posição de supremacia na

Ibid., 39–40. “Most postivists (…) rest on efficacy and institutionality as the only conditions concerning the social foundation of the law. Let the combination of these two conditions be called the weak social thesis”. Ibid., 45. 47 Ibid., 42–43. 45 46

sociedade48. Assim, um sistema normativo que (i) tenha a adesão de grande parcela da população; (ii) seja aceito e internalizado por uma parcela importante dessa população (esp. seus oficiais); (iii) contenha instituições decisórias; e (iv) afirme ser legítimo e supremo naquela comunidade, será um sistema jurídico dotado do necessário fundamento social. Raz reconhece que todas as condições da tese social fraca são verdadeiras. Contudo, elas são insuficientes para caracterizar o positivismo jurídico49. Ao contrário da tese social forte, a tese social fraca é compatível com as seguintes proposições: (a) Algumas vezes, a identificação de algumas leis depende de argumentos morais. (b) Em todos os sistemas jurídicos possíveis, a identificação de algumas leis depende de argumentos morais50. No primeiro caso, temos uma relação contingente entre direito e moral que pressupõe a possibilidade (negada pela tese forte) de identificação do direito por meio de argumentos morais. No segundo caso, temos uma tese anti-positivista que afirma não só que existe uma relação contingente entre direito e moral, mas que essa relação existe e é conceitualmente necessária. Por ser compatível com essas duas proposições (especialmente com a segunda), a tese social fraca não é uma tese distintamente positivista. Raz reconhece que a tese fraca oferece uma explicação adequada dos testes necessários para a afirmação da existência de um sistema jurídico51. Contudo, a tese social fraca, por si só, não explica a identidade desses sistemas (que é o ponto em discussão no debate de Raz), além de ser compatível com explicações não-positivistas dessa mesma identidade. Seria, entretanto, uma petição de princípio afirmar que uma tese não é correta por não se ajustar a outras teses centrais do positivismo. Dizer que a tese social fraca é falsa porque ajusta-se a explicações não-positivistas da identidade do direito e não oferece uma explicação distintamente positivista para essa identidade assume como verdadeira as teses positivistas que estão em questão neste ponto. Se não tivermos boas razões para aceitar as teses positivistas centrais, não precisaremos nos preocupar com o fato de a tese social fraca não ser distintamente positivista. A exposição acima não procurou demonstrar a verdade ou falsidade das teses sociais fraca e forte, mas sim delimitar o conteúdo da tese que Raz irá defender: a tese social forte.

Ibid., 45. “The weak thesis though true is insufficient to characterize legal positivism”. Ibid., 47. 50 Ibid. 51 “The weak social thesis provides all the ingredients by which one determines whether a normative system is a legal system and whether it is in force in a certain country (…) It also contributes (…) some of the ingredients which make up the test of identity of a legal system (…), but here it is insufficient and has to be supplemented by the strong social thesis”. Ibid. 48 49

A diferença fundamental entre as teses sociais forte e fraca é que a última se contenta em afirmar a necessidade de que um sistema normativo satisfaça testes mínimos de eficácia e institucionalidade para que possa contar como um sistema jurídico. Isso permite uma grande variedade de concepções distintas sobre os critérios de identidade do direito compatíveis com a versão fraca da tese social. A tese social forte é mais exigente. Para Raz, “a diferença entre as teses sociais fraca e forte é que a forte insiste, enquanto a fraca não o faz, que a existência e conteúdo de todo o direito é completamente determinada por fontes sociais”52. A tese social forte, portanto, não rejeita o conteúdo da tese fraca. Todavia, além das exigências de eficácia e institucionalidade contidas nesta última, a tese forte exige que as fontes do direito tenham um fundamento exclusivamente social. Há, assim, uma sobreposição parcial entre os conteúdos das duas versões da tese social: a tese forte exige, além de um fundamento social para a determinação da existência de um sistema jurídico, um fundamento social para a determinação de sua identidade e conteúdo. O que chamamos de “fundamentos sociais do direito” inclui, para os partidários da tese forte, fontes exclusivamente sociais. Por conta disso, Raz chama a tese social forte de “tese das fontes”, pois o que diferencia as duas versões da tese social é a exigência, feita pela versão forte, de fontes exclusivamente. Os argumentos de Raz são argumentos a favor da tese das fontes e seu positivismo exclusivo é uma defesa dessa tese. De acordo com Raz, o termo “fonte” presente na tese das fontes deve ser entendido de uma maneira mais ou menos técnica. “Uma lei tem uma fonte”, explica ele, “se o seu conteúdo e existência puderem ser determinados sem o uso de argumentos morais”53. De acordo com essa definição, as fontes podem incluir opiniões morais de terceiros, desde que para determinarmos o conteúdo dessas opiniões não precisemos nos engajar em argumentos morais. Nesse sentido, a opinião moral de um terceiro, se puder ser afirmada sem argumentos morais independentes, é um fato (que comprovamos, por exemplo, com base em suas opiniões escritas, seus pronunciamentos públicos etc.). A definição raziana de fonte exclui os argumentos morais independentes, mas não as opiniões morais de terceiros que puderem ser determinados através de fatos publicamente acessíveis (o que se poderia chamar de moralidade convencional)54. Raz também afirma que o termo fonte tem um sentido mais amplo que o de “fonte formal”, já que as fontes a que a tese positivista faz referência nunca são atos ou fatos

Ibid., 46. Ibid., 47. 54 “(...) but allowing for arguments about people’s moral views and intentions, which are necessary for interpretation, for example”. Ibid. 52 53

individuais e isolados (como um decreto do Parlamento, por exemplo), mas um amplo conjunto de fatos bastante variados (entre os quais Raz inclui “fontes interpretativas”). Esses fatos, tomados em conjunto, permitem a determinação da existência e conteúdo do direito55. Recorrer às opiniões morais dos redatores da Oitava Emenda da Constituição Americana para determinar o conteúdo do termo “cruel and unusual punishment”, por exemplo, não violaria as restrições impostas pela definição de “fonte social”.

1.4 TRÊS ARGUMENTOS INADEQUADOS A FAVOR DA TESE DAS FONTES A tese das fontes é a tese central do positivismo jurídico raziano. Definimos acima o seu conteúdo, diferenciando-a de uma versão mais fraca (e, para Raz, não propriamente positivista) da tese social. Definimos também o que Raz entende por “fonte social”, e quais os tipos de fonte são compatíveis com as restrições impostas pela sua tese. Passaremos agora à análise das possíveis razões para aceitar essa tese. Após as primeiras críticas de Dworkin, não era mais possível assumir a verdade da tese positivista como posição “default” e passar todo o ônus argumentativo para os críticos do positivismo. Positivistas precisariam, agora, de argumentos positivos e independentes para sustentarem a tese das fontes. Antes de analisarmos os argumentos que Raz considera mais sólidos para defendê-la, veremos alguns que ele considera insatisfatórios, apesar de sua aparente popularidade. Pelo menos três justificativas são ordinariamente oferecidas em favor da tese das fontes: uma justificativa semântica; uma justificativa baseada em consequências; e uma justificativa institucional. Para Raz, nenhuma delas é capaz de justificar de maneira apropriada a tese das fontes.

1.4.1. Justificativa semântica De acordo com Raz, a justificativa mais geral e não-teórica a favor da tese das fontes é que ela reflete de maneira correta o significado da palavra “direito” e outros termos cognatos na nossa linguagem ordinária56. Seria um argumento poderoso dizer que o próprio significado da palavra “direito” implica que o direito possui fontes exclusivamente sociais. Cometeríamos uma espécie de erro semântico, afirma a justificativa semântica, se “The sources of law thus understood are never a single act (of legislation, etc.) alone, but a whole range of facts of a variety of kinds”. Ibid., 48. 56 “The most general and non-theoretical justification of the social thesis is that it correctly reflects the meaning of ‘law’ and cognate terms in ordinary language”. Ibid., 41. 55

afirmássemos que um padrão não dotado de fontes sociais é parte do direito. Não é assim que usamos a palavra “direito”. Raz argumenta, contudo, que a justificativa semântica é incapaz de fundamentar de maneira persuasiva a tese das fontes. Para ele, termos como “direito”, “lei”, “law” etc., são usados tanto em contextos que identificaríamos como “jurídicos” como em contextos “nãojurídicos”, e não há uma linha demarcatória clara entre esses usos. Como Raz observa, a disputa sobre o caráter jurídico do direito internacional (explorada por Hart em The Concept of Law) não pode ser resolvida por apelo a um significado mais preciso da palavra “direito”. Além disso, o uso desses termos é suficientemente amorfo para não fornecer um fundamento claro para a tese social. Usualmente afirmamos que os nazistas possuíam sistema jurídico, e isso poderia levar à conclusão que o significado da palavra “direito” implica que fatos sociais são condições necessárias e suficientes para a determinação da existência e identidade do direito. Essa conclusão, contudo, seria um erro. Em primeiro lugar porque há pessoas que negam que os nazistas possuíssem um sistema jurídico, sem com isso dizerem algo absurdo e sem que possamos corrigi-las apontando para o real significado da palavra direito. Em segundo lugar, mesmo que fosse verdade que esse uso é comum, seria difícil dele afirmar a verdade de uma tese tão exigente como a tese das fontes, já que sua aplicação ao caso nazista poderia se dar com base em outras características que não a de ter o direito fontes exclusivamente sociais57. Raz dirige, ainda, outra crítica à justificação semântica da tese das fontes. Para ele, a justificação semântica nos faz esquecer, com sua atenção excessiva no significado das palavras, que o interesse da teoria do direito é entender a sociedade e suas instituições, e não nos tornar “escravos de palavras”. A pergunta relevante que o um partidário da justificação semântica deveria fazer é se “o sentido ordinário de ‘direito’ é tal que ele ajuda a identificar fatos importantes para a nossa compreensão da sociedade?”58. Mesmo que nos fosse dado determinar de maneira precisa o significado de uma palavra como “direito” ou outro conjunto relevante de palavras, o objetivo do teórico permanece sendo entender determinada instituição social (e não propriamente determinar o significado de uma palavra específica). Justificações semânticas só são importantes se ajudarem nessa compreensão e, para Raz, temos razões para acreditar que elas tem pouco a contribuir nesse sentido: primeiro porque o uso de uma única palavra para identificar o direito (e nada mais) é um mero acidente “Usage is too amorphous to give adequate support for the social thesis. It certainly suggests that law has a social base, that Nazi Germany had a legal system, etc. But it is not sufficiently determinate to establish beyond dispute that social facts are both sufficient and necessary conditions for the existence and identity of the law”. Ibid. 58 Ibid. 57

lingüístico; em segundo lugar porque, na realidade, o uso da palavra “direito” é bastante variado e seus limites muito fluidos para que permitam uma definição ao mesmo tempo precisa e esclarecedora e que nos ajude a compreender nosso verdadeiro objeto de estudo.

1.4.2. Justificativas consequencialistas Reunirei sob o nome de “justificativas consequencialistas” duas justificativas distintas, mas relacionadas, citadas por Raz. A primeira delas sugere que a tese social, ao separar de maneira clara a descrição do direito de sua avaliação, evita confusões e favorece a clareza de pensamento. A segunda afirma que, ao aceitarmos a tese social, eliminamos os vieses dos investigadores, pois estes devem deixar de lado suas posições normativas particulares e valer-se de considerações que possam ser investigadas e descritas de maneira livre de valores59. Ambas as justificativas baseiam a verdade da tese das fontes nas consequências benéficas da sua aceitação. Em um caso, essas consequências incluem a eliminação de possíveis confusões entre direito e moral, e o estímulo ao pensamento claro; no outro, apelase a consequências benéficas de caráter epistêmico, como a eliminação de vieses e o uso de critérios publicamente acessíveis e empiricamente verificáveis para o teste de verdade de proposições jurídicas. Os efeitos deletérios da confusão entre direito e moral, e as consequências benéficas de se adotar a tese das fontes positivista foram bastante enfatizadas por positivistas clássicos como Bentham e Austin. Bentham, especialmente, apontou os perigos advindos tanto de posições anarquistas quanto de posições reacionárias sobre a relação entre direito e moral 60. Anarquistas tenderiam a dissolver qualquer autoridade ao insistir que o direito se confunde com suas concepções particulares de moral e justiça. Reacionários, por outro lado, tenderiam a substituir a moral pelo direito existente como o padrão último e definitivo para a avaliação e julgamento de condutas, identificando o direito posto com o que deveria ser o direito e com aquilo que é moralmente correto. Não haveria, portanto, espaço para a crítica moral do direito. Afirmações como “o direito é moralmente ilegítimo” ou “o direito é injusto” também não fariam sentido, sob essa perspectiva.

Ibid., 41–42. “Bentham’s view on this matter were driven by a censorial or moral end: he believed that the critique and subsequent reform of the law which formed the core of the censorial jurist’s task could only be achieved once he had an accurate description or exposition of law ‘as it its’ i.e. demystified and stripped to its essentials”. In: Julie Dickson, Evaluation and Legal Theory, Legal Theory Today (Oxford: Hart Pub, 2001), 5–6. 59 60

O debate clássico entre Hart e Fuller na Harvard Law Review exemplificaria esta abordagem61. Para Fuller, a adoção de uma concepção jusnaturalista do direito favoreceria a visão de que nem tudo aquilo expressamente promulgado por uma autoridade oficial é direito, o que impediria que leis iníquas fossem aplicadas com base em alguma visão legalista condenável. Hart, por sua vez, insistia que a melhor forma de evitar a “mistificação” do direito seria assumindo que sua identificação não diz nada a respeito do seu mérito moral e se ele deve ou não ser obedecido. O argumento a favor da tese positivista das fontes (ainda chamada por Hart de tese da separação) seria que sua aceitação criaria um ambiente em que a resistência a injustiças seria maximizada. Hart e Fuller defendiam concepções distintas do direito, mas ambos compartilhavam, nos artigos que compõem esse debate inicial, uma premissa importante: a premissa segundo a qual deveríamos optar por uma tese de teoria do direito com base em sua capacidade de promover a resistência a leis e comandos injustos62. Julie Dickson cunhou a expressão “tese das consequências morais benéficas” para referir-se a essa ideia63. Contudo, Raz afirma que as consequências (sejam morais, sejam epistêmicas) da aceitação da tese das fontes são irrelevantes para determinarmos sua correção. Tanto num caso quanto no outro, considerações sobre consequências pressupõem a verdade da tese, ao invés de demonstrá-la64. Talvez a separação entre o direito e a moral crie um ambiente em que o direito não possui uma aura mística que corrói o espírito crítico da população. Mas se os jusnaturalistas (ou uma versão do jusnaturalismo) estiverem certos, e a identificação do direito depender de considerações morais, afirmar que seria melhor que a tese das fontes fosse correta não a torna menos falsa. As consequências da aceitação da tese das fontes só são relevantes se a tese das fontes for verdadeira. É isso que Raz quer dizer quando afirma que justificações consequencialistas pressupõem, mas não fundamentam, a verdade da tese social. As proposições “é o caso que p” e “é moralmente benéfico que seja reconhecido que p” são logicamente distintas, e a verdade da primeira independe da segunda.

Lon L. Fuller, “Positivism and Fidelity to Law: A Reply to Professor Hart,” Harvard Law Review 71, no. 4 (February 1958): 630; H. L. A. Hart, “Positivism and the Separation of Law and Morals,” Harvard Law Review 71, no. 4 (February 1958): 593. 62 “(…) the largely unspoken premise that Hart and Fuller, at least in this debate, shared. For although the two plainly disagreed over which concept of law – Hart’s positivism or Fuller’s version of natural law – would best facilitate disobedience to evil directives, they intriguingly agreed that the tendency of a concept of law to facilitate such an attitude should count in its favour”. In: F. Schauer, “The Social Construction of the Concept of Law: A Reply to Julie Dickson,” Oxford Journal of Legal Studies 25 (2005): 494–495, doi:10.1093/ojls/gqi024. 63 Dickson, Evaluation and Legal Theory, 9. 64 Raz, The Authority of Law: Essays on Law and Morality, 42. 61

1.4.3. Justificativa institucional A última justificativa (inadequada) apresentada por Raz será chamada aqui de justificativa institucional. De acordo com ela, a verdade da tese das fontes decorreria do fato de o direito ser uma instituição social65. Por ser uma instituição social, prossegue o argumento, o direito deve satisfazer a três testes principais: o teste da eficácia, o teste do caráter institucional e o teste das fontes. Portanto, se aceitamos o caráter institucional do direito, devemos aceitar também que a tese das fontes é verdadeira. Raz considera que o argumento institucional é insuficiente para estabelecer a verdade da tese das fontes. Em primeiro lugar, deve-se notar que há uma versão da tese social (a chamada tese social fraca) que aceita testes morais para a identificação do direito. De acordo com ela, o caráter institucional do direito restringe-se à exigência dos testes de eficácia e do caráter institucional (e não necessariamente do teste das fontes). Algumas versões do jusnaturalismo, por exemplo, são compatíveis com as exigências impostas por esses dois testes, e aceitam que o direito deve satisfazer a condições mínimas de eficácia e institucionalidade. Por outro lado, é possível que exista, segundo Raz, instituições sociais que não se adequam aos três testes exigidos pela tese social forte, de modo que poderíamos afirmar que o caráter institucional de um sistema normativo não implica, necessariamente, que este sistema normativo é um sistema institucionalizado que aceita a tese das fontes. As exigências institucionais do direito podem se restringir àquelas enumeradas pela tese social fraca, o que permitiria que a identificação de algumas leis ou padrões jurídicos dependesse de argumentos morais. Para que pudéssemos afirmar que a tese das fontes é verdadeira, precisaríamos de um argumento adicional, já que das exigências de eficácia e institucionalidade (que compõem a tese social fraca) não se segue a verdade da tese das fontes. Como é possível existir uma instituição social que não atende ao teste da tese das fontes, é um non sequitur afirmar, sem um argumento adicional, que do caráter institucional do direito segue-se a verdade dessa tese. Assumiríamos como verdade que esse seja o caso, e que isso seja assim em decorrência do simples fato de o direito ser uma instituição social. Ocorre que há instituições em que não é válida a tese das fontes e autores que dizem que, em relação ao direito, ela não é válida (mesmo sem negar, com isso, que o direito seja uma instituição social). Portanto, não podemos derivar, a partir do simples reconhecimento do caráter institucional do direito, que

65

“The main justification of the social thesis lies in the character of law as a social institution”. Ibid.

nenhum argumento moral possa ser utilizado na sua identificação66. O universo das instituições sociais é mais amplo que o conjunto de instituições em que é verdadeira a tese das fontes. O direito pode ser uma instituição em que não se aplica a tese das fontes. Neste caso, ainda reconheceríamos sua natureza institucional, mesmo que rejeitássemos que a ela se aplica a explicação positivista de Raz acerca de sua identificação.

1.5 OS DOIS ARGUMENTOS DE RAZ A FAVOR DA TESE DAS FONTES EM LPSL Raz rejeitou que justificações semânticas, baseadas em consequências ou no caráter institucional do direito pudessem estabelecer a conclusão que a identificação do direito não depende, nem pode depender, de argumentos morais. Em Legal Positivism and the Sources of Law (LPSL), contudo, Raz apresenta dois outros argumentos, para ele mais persuasivos e sólidos, a favor da tese das fontes. “Quais são as razões para aceitarmos a tese das fontes?” 67, pergunta Raz após ter rejeitado as justificações anteriores. “Dois argumentos se combinam para apoiá-la”, prossegue. “Um mostra que a tese reflete e explica nossa concepção do direito; o segundo mostra que há boas razões para aderir a essa concepção”.68 Os tópicos seguintes analisarão em detalhes cada um destes argumentos – o argumento das distinções intuitivas e o argumento da função do direito.

1.5.1 O argumento das distinções intuitivas O primeiro argumento de Raz a favor da tese das fontes afirma que ela reflete e explica adequadamente nossa concepção de direito. Essa afirmação, isoladamente, é insuficiente, pois teses rivais acreditam que refletem e explicam adequadamente essa concepção (supondo, por ora, que admitamos a existência de uma concepção compartilhada de direito). Não basta, portanto, afirmar que a tese das fontes se adequa a essa concepção, mas apresentar as razões que mostram que esse é o caso. Para Raz, podemos identificar nossa concepção de direito com base num conjunto de distinções que fazemos rotineiramente, e sem nenhum esforço, sobre ele. A tese das fontes Raz escreve que “many natural law theories are compatible with all that was said above about the institutional nature of law”. Ibid., 44. 67 Ibid., 48. 68 Ibid. 66

“explica e sistematiza” essas distinções69. Uma tese que se desvie delas, não se adequa e nem reflete nossa concepção de direito, já que essas distinções rotineiras são parte essencial de nossa concepção de direito70. As distinções a que Raz se refere representam, assim, crenças intuitivas e evidentemente verdadeiras sobre o direito, que qualquer teoria deve aceitar e explicar. O argumento de Raz é, portanto, um argumento baseado em intuições (ou, como Raz chama, baseado em “características fundamentais da nossa compreensão do direito”). Não é necessário enfrentar o problema do estatuto epistemológico das intuições e os problemas que surgem do seu uso na teoria do direito (isso será feito no capítulo 3), mas é possível demonstrar que o argumento de Raz baseia-se nelas e que as distinções intuitivas representam, para ele, um critério sólido e independente para a avaliação de teorias rivais. Raz afirma, inicialmente, que seu primeiro argumento a favor da tese das fontes é que ela reflete e explica nossa concepção de direito. Em seguida, ele elenca algumas distinções que fazemos de maneira rotineira e sem esforço. Sua tese das fontes, como ele mesmo afirma, “explica e sistematiza essas distinções”. Além disso, tais distinções representam “características fundamentais de nossa compreensão do direito”. Combinando essas afirmações, pode-se concluir que as próprias distinções fazem parte da nossa concepção de direito e funcionam como um teste para avaliação de explicações teóricas. As distinções a que Raz se refere permitem identificar os contornos da concepção e, por serem “características fundamentais” dessa concepção, se aceitássemos uma tese que viola ou não se adequa a alguma delas, estaríamos negando uma parcela essencial da nossa compreensão do direito. Essa violação ou falta de adequação é, assim, um poderoso argumento contra determinadas explicações possíveis da natureza do direito. Dado o caráter fundamental das distinções razianas, elas oferecem um critério sólido e relativamente independente das teorias. Portanto, uma teoria será boa se explicá-las, e ruim se não se adequar a elas. Não sabemos ainda, contudo, que tipo de conclusão se pode tirar do fato de que uma teoria viola uma dessas distinções. Se esse for o caso, deveremos rejeitá-la automaticamente ou teremos apenas um forte argumento, mas ainda assim um argumento derrotável, para aceitá-la? Discutirei essas questões na segunda parte da dissertação. Por ora, analisarei as distinções indicadas por Raz e como elas oferecem um argumento a favor da tese das fontes. A primeira distinção apontada por Raz é aquela entre as habilidades jurídicas de um juiz e sua “sensibilidade moral”71. Falamos de juízes que possuem profundo conhecimento

Ibid., 49. “This argument for the sources thesis (…) relies on fundamental features of our understanding of a certain social institution”. Ibid., 50. 71 Ibid., 48. 69 70

do direito, mas carecem de sensibilidade e conhecimento moral adequados. Distinguimos, segundo Raz, entre conhecimento técnico e noções de justiça e equidade. De maneira similar, quando avaliamos um julgamento jurídico, distinguimos entre (i) uma avaliação de se são juridicamente aceitáveis ou não; (ii) uma avaliação de se são moralmente bons ou ruins72. Essa distinção, aliás, pode ser percebida no dito comum de que uma decisão é “juridicamente perfeita, mas moralmente injusta”. Escreve Raz: Quando discutimos indicações para os tribunais, distinguimos tipos diferentes de características desejáveis que os juízes deveriam possuir. Nós valorizamos seus conhecimentos do direito e suas habilidades em interpretar leis e em argumentar de maneiras que mostrem sua expertise e experiência jurídicas. Nós também valorizamos sua sabedoria e compreensão da natureza humana, sua sensibilidade moral, sua abordagem esclarecedora etc. (…) O ponto é que, enquanto é geralmente admitido que as duas são importantes para os juízes enquanto juízes, apenas o primeiro grupo de características mencionado é visto como estabelecendo habilidades jurídicas dos juízes. O segundo grupo, apesar de relevante para o seu papel como juiz, é visto como refletindo seu caráter moral, não sua habilidade jurídica.73

Essas distinções comuns no discurso ordinário indicam que, na nossa concepção de direito, há uma distinção entre o conhecimento do direito e o conhecimento de princípios morais. As habilidades tipicamente jurídicas de um juiz não envolvem, por exemplo, a presença de um caráter moral, ainda que esse tipo de sensibilidade seja importante. Um juiz pode determinar de maneira exata o conteúdo do direito sem que tenha conhecimento profundos da natureza humana e da moral ou mesmo um caráter moral pessoal digno de nota. Tenderíamos a ver a sensibilidade moral de um juiz como um fator adicional, que suplementaria o simples conhecimento técnico dos materiais jurídicos. Implícita na ideia de “suplementação”, contudo, há a percepção de que é possível um conhecimento jurídico avançado sem a adequada sensibilidade moral. Isso sugeriria, de acordo com o raciocínio de Raz, que a determinação do direito (i.e., o conhecimento jurídico) não envolve argumentos morais. A distinção anterior só faria sentido se admitíssemos que, muitas vezes, os juízes devem utilizar argumentos que revelem seu “caráter moral”, e que o uso desses argumentos se diferencia dos casos em que os juízes devem utilizar argumentos propriamente jurídicos74. Essa distinção relaciona-se a, e aponta para, outra distinção intuitiva explorada por Raz:

“(...) lawyers and informed laymen are used to distinguishing between assessing judicial arguments as legally acceptable or unacceptable and assessing them as morally good or bad”. Ibid. 73 Ibid. 74 “These distinctions presuppose that judges are, at least on occasion, called upon to rely on arguments revealing their moral character rather than their legal ability”. Ibid., 48–49. 72

aquela entre a aplicação do direito e sua criação, inovação e desenvolvimento75. De acordo com Raz, “é uma visão comum que os juízes tanto aplicam o direito quanto o desenvolvem. E embora suas duas funções sejam extremamente difíceis de separar em muitos casos, algumas vezes, pelo menos, é claro sobre um caso que ele abre novos caminhos, enquanto sobre outros pode ser igualmente claro que ele meramente aplica o direito estabelecido”. 76 Isso não significa que seja fácil separar um caso de outro, nem que sempre estamos certos quando afirmamos, sobre uma decisão, que ela “inovou” ou simplesmente “aplicou” o direito existente. O ponto de Raz é que fazemos essa distinção rotineiramente e, muitas vezes, é bastante claro quando um juiz aplicou o direito existente ou criou direito novo. Ainda que esse uso esteja sujeito a erros e existam casos fronteiriços em que é difícil aplicar a distinção, ela aponta para a existência de uma diferença fundamental presente na nossa compreensão do direito – aquela entre sua aplicação e sua criação. A existência dessa diferença autorizaria a conclusão que nem todas as decisões judiciais são casos de aplicação do direito estabelecido, mesmo que seja difícil estabelecer, de maneira exata e de uma vez por todas, quais não são. Para Raz, as distinções intuitivas que fazemos delimitam o conceito de direito de tal forma que não podemos supor que juízes e tribunais, ao decidirem casos, estão sempre aplicando o direito e que decisões são sempre resultado de um esforço para estabelecer o que o direito já é. Combinando as conclusões retiradas da análise das duas distinções intuitiva anteriores, Raz conclui que é “a nossa visão normal que juízes usam argumentos morais (…) quando desenvolvem o direito e que eles usam habilidades jurídicas quando aplicam o direito”77. Avaliamos uma decisão judicial por sua precisão técnico-jurídica e pelo seu valor moral. Também diferenciamos entre aplicação do direito estabelecido e criação e desenvolvimento do direito. Nos casos em que o direito baseado em fontes prevê uma resposta específica, torna-se relevante o conhecimento técnico-jurídico de juízes e advogados. É apenas nos casos em que o direito não prevê uma resposta que os juízes criam e desenvolvem o direito. Nestes casos, em que existe uma lacuna no direito, os argumentos morais tornam-se relevantes. Esses argumentos morais podem prever uma resposta determinada. Ainda assim, é parte do argumento de Raz que a referência a esses padrões implica uma lacuna no direito – e daí ele afirmar que os argumentos morais só são usados em casos de “desenvolvimento” (e não de aplicação) do direito78. Ibid., 49. Ibid. 77 Ibid. 78 Ele também afirma: “If a legal question is not answered by standards deriving from legal sources then it lacks a legal answer”. Ibid., 50. 75 76

Raz reforça a conclusão anterior acrescentando, ainda, uma terceira distinção intuitiva: a distinção entre o direito estabelecido (ou determinado) e o direito nãoestabelecido (ou indeterminado)79. De acordo com Raz, todas as pessoas com algum conhecimento do direito sabem que ele não possui respostas determinadas para algumas questões jurídicas. Essas pessoas podem querer dizer com isso duas coisas: (i) que ninguém sabe qual o direito aplicável, ou qual a resposta jurídica adequada, para alguma questão; (ii) que se trata de uma questão aberta para a qual o direito não prevê resposta ou solução. É neste segundo sentido que a distinção se torna relevante no argumento de Raz. É parte do conhecimento comum dos juristas que há “questões em aberto” no direito e que, para resolvê-las, não é suficiente o conhecimento técnico-jurídico. Tais casos não podem ser decididos pela mera aplicação do direito existente já que, supostamente, o direito existente não oferece soluções para eles. Nas hipóteses em que o direito não contém respostas certas no segundo sentido visto acima, os juízes criam direito novo, desenvolvendo e inovando o direito existente. Aqui, os argumentos jurídicos perdem importância relativa, tornando-se relevantes os argumentos morais (ainda que não só eles) que devem guiar a decisão dos juízes. Em casos de direito não-estabelecido ou indeterminado, a questão que os juízes enfrentam não é “o que o direito é?”, pois, por definição, não há direito aplicável na espécie; a questão, no ponto, é “como devo inovar ou desenvolver o direito neste caso em que o sistema jurídico não prevê solução?”. Caráter e argumentos morais são relevantes para responder esta segunda pergunta, mas não para responder a primeira. Raz conclui: O direito numa questão é definido [settled] quando fontes juridicamente vinculantes fornecem sua solução. Em tais casos, se diz tipicamente que os juízes aplicam o direito, e na medida em que ele é baseado em fontes, sua aplicação envolve habilidades técnicas e jurídicas no raciocínio a partir das fontes e não necessita de perspicácia moral. Se uma questão jurídica não é respondida por padrões derivados de fontes sociais, então ela carece de uma resposta jurídica — o direito na questão é incerto. Ao decidir tais casos, os tribunais invariavelmente abrem novos caminhos (jurídicos) e suas decisões desenvolvem o direito. Naturalmente, suas decisões em tais casos baseiamse, pelo menos parcialmente, em considerações morais e extra-legais80.

Para Raz, portanto, qualquer referência a um princípio moral no direito implica em uma lacuna no direito (i.e., em direito não-determinado). Isso ocorreria, segundo Raz, por expressa derivação lógica de três distinções intuitivas. Referências a argumentos morais no raciocínio jurídico implicam em criação e desenvolvimento do direito, e não em aplicação de

79 80

“Finally there is the distinction between settled and unsettled law”. Ibid., 49. Ibid., 49–50.

direito existente. Uma questão só é juridicamente determinada se houver um padrão jurídico dotado de fontes sociais oferecendo-lhe uma solução81.

1.5.2 O argumento sobre a função do direito O primeiro argumento de Raz a favor da tese das fontes baseou-se na sistematização de três distinções intuitivas básicas que fazemos quando nos referimos ao direito. Todavia, esse não é o único argumento que Raz desenvolve a favor de sua tese positivista. Além de ajustar-se a um conjunto de distinções fundamentais, Raz afirma que a tese das fontes “captura e realça um insight fundamental sobre a função do direito”82. Após explorar o argumento das distinções, Raz afirma que é “tranquilizador” saber que, além de coincidir com aspectos fundamentais de nossa compreensão do direito, a tese das fontes captura esse insight essencial sobre sua função. O argumento funcionalista, portanto, reforça o argumento das distinções, sem que ambos sejam diretamente conectados. Do contrário, não faria sentido utilizar a expressão “tranquilizador”, já que, sem o segundo argumento, a tese das fontes não seria justificada isoladamente pelo primeiro. De acordo com Raz, “é um lugar comum que a vida social requer e é facilitada por vários padrões de abstenção, cooperação e coordenação entre os membros da sociedade ou alguns deles”83. Isso também é verdade, prossegue Raz, para a busca e perseguição de determinado objetivos, que requerem algum tipo de consenso ou acordo para que possam ser realizados. Diferentes membros da sociedade, porém, possuem visões distintas de quais esquemas de abstenção, cooperação e coordenação são melhores ou piores. Alguns preferem o esquema S, outros o esquema W, e assim por diante. É parte essencial da função do direito, então, “marcar o ponto em que uma visão privada dos membros da sociedade (…) deixa de ser sua visão privada e torna-se (i.e., lança a reivindicação de ser) uma visão vinculante para todos os membros, a despeito de seus desacordos com ela”84. Dos diversos esquemas e padrões necessários para a vida social, precisamos diferenciar aqueles que são a mera visão Em Legal Reasons, Sources, and Gaps, Raz esclarece que “a legal question should not be identified as any question a court may answer in rendering decisions (…) A legal question is identified independently by the character of its answers: only legal propositions are possible complete answers to a legal question and legal propositions of a given legal system are identified by their truth-conditions as determined by the doctrine of identity”. Ibid., 71. Assim, uma questão jurídica é indeterminada ou não-estabelecida se não houver uma proposição jurídica verdadeira, com base no teste da identidade do sistema jurídico, que a responda. Como Raz aceita a tese das fontes, e como a tese das fontes fornece o critério positivista de identidade do direito, na ausência de fontes sociais, teremos uma questão indeterminada e, por via de consequência, uma lacuna no direito. 82 Ibid., 50. 83 Ibid. 84 Ibid. 81

particular de determinado grupo da sociedade, daqueles que são vinculantes e obrigatórios para todos. Sem esse tipo de diferenciação, seria difícil surgir o tipo de padrão compartilhado que Raz afirma ser tão importante para a vida em comunidade. A questão que se coloca, então, é saber como o direito pode realizar essa função essencial. A resposta de Raz é que “ele faz isso, e só pode fazer isso, fornecendo maneiras publicamente verificáveis de guiar o comportamento e regular aspectos da vida social”85. Sem critérios publicamente verificáveis, a identificação do padrão ou esquema de cooperação vinculante dependeria da visão particular de membros ou grupos da sociedade de qual deveria ser esse padrão, o que faria com que o problema da cooperação retornasse: teríamos novamente visões conflitantes sobre esquemas de cooperação possíveis e isso impediria a identificação de um padrão comum. Nesse sentido, Raz escreve: O direito é uma medida pública pela qual se pode medir o próprio comportamento e o dos outros. Ele ajuda a assegurar a cooperação social não apenas através de suas sanções fornecendo motivações para conformidade, mas também pela designação, em uma maneira acessível, dos padrões de comportamento requeridos para tal cooperação86.

A cooperação social depende da existência de padrões comuns de comportamento cuja identificação não dependa da visão individual de cada um sobre que padrões devem ser adotados na sociedade. Raz afirma que o direito só pode cumprir sua função essencial se a identificação desses padrões se der por meio de critério publicamente acessíveis – e, portanto, independente de visões morais particulares. Não fosse assim, não seria possível determinar o “ponto em que uma visão particular de membros da sociedade (…) deixa de ser sua visão particular e torna-se (…) uma visão vinculante para todos os membros”87. Cada membro da sociedade poderia, nesse caso, colocar em disputa o ponto marcado pelo direito com base em argumentos morais que julga relevantes. Uma função básica do direito é, portanto, “fornecer padrões publicamente verificáveis, aos quais os membros das sociedades são tidos como vinculados, de modo que eles não possam desculpar a não-conformidade desafiando a justificação do padrão”88. Utilizando o vocabulário da autoridade (que Raz irá utilizar de maneira mais extensa no argumento que veremos mais à frente sobre a natureza autoritativa do direito), Raz afirma que faz parte da nossa própria concepção de “governo” (seja na família, na comunidade ou no Estado) a diferenciação entre expressão de opiniões, pedidos ou pontos de vistas e regras Ibid., 51. Ibid. 87 Ibid. 88 Ibid., 52. 85 86

dotadas de autoridade. A identificação dessas regras não pode depender daquelas expressões. Regras dotadas de autoridades distinguem-se dessas opiniões particulares e independem delas, já que muitas vezes podem entrar em conflito. Numa sociedade podem existir diversas concepções distintas do que seja um imposto justo. Para alguns, todos devem pagar percentuais idênticos no valor de cinco por cento de sua renda, seja ela qual for. Para outros, o valor pago em impostos por cada membro da sociedade deve aumentar à medida em que aumenta sua renda e sua “capacidade contributiva”. Há, aqui, divergências tanto na maneira de se cobrar o imposto (se progressiva ou não) quanto nos percentuais específicos. Uma regra de direito tributário estabelecendo imposto de renda não pode depender dessas visões já que, pois não teríamos um padrão comum vinculante para todos, o que dificultaria, de acordo com o argumento de Raz, a cooperação e coordenação social. A existência de concepções distintas e conflitantes sobre o esquema tributário para cobrança de imposto de renda torna necessária a promulgação de um padrão cuja identificação não dependa dessas concepções. Essa identificação também não pode depender de algum tipo de justificação moral, pois a existência de divergências e concepções morais distintas impossibilitaria o estabelecimento do padrão comum. A tese das fontes ajustar-se-ia à exposição acima sobre a função do direito. Para que o direito possa estabelecer padrões comuns de cooperação e coordenação social, sua identificação (i) não deve depender de argumentos e justificativas morais, sobre os quais existem posições diferentes na sociedade; (ii) deve ser feita por meio de padrões publicamente verificáveis (i.e., fontes sociais) que não dependam de visões e justificativas morais. Se temos posições morais distintas sobre a legislação do imposto de renda, por exemplo, e se queremos um padrão comum e vinculante para toda sociedade a respeito da questão, a identificação desse padrão não poderá depender daquelas concepções. Esse ponto explica, aliás, a distinção analisada anteriormente entre aplicação e criação do direito. Segundo Raz89, quando juízes aplicam o direito, eles aplicam padrões que são publicamente verificáveis e vinculantes, os quais não estão abertos aos argumentos morais das partes. Quando, ao contrário, os juízes criam ou desenvolvem o direito, eles se valem de considerações morais e racionais sobre as quais pode haver disputa, argumento e controvérsia. Esse fato explicaria o porquê de distinguirmos esta situação da situação na qual existe uma fonte social publicamente verificável que oferece um teste comum para a resolução da disputa. Raz conclui, então, que a tese das fontes tanto ajusta-se ao insight

89

Ibid.

fundamental sobre qual seria a função do direito, quanto explica as estruturas jurídicas a partir daquela função.

1.6 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE A FAVOR DA TESE DAS FONTES No tópico anterior, apresentei dois argumentos explorados por Raz a favor da tese das fontes: o argumento baseado das distinções intuitivas e o argumento sobre a função do direito. O argumento mais conhecido de Raz a favor dessa tese, contudo, é outro: chamarei ele de “argumento da autoridade”. Esse argumento não exclui nem substitui os dois argumentos anteriores, que Raz nunca abandonou de maneira expressa. Devemos considerálo, portanto, em conjunto aos argumentos anteriores como mais um argumento a favor do positivismo exclusivo. Colocado de forma resumida, o argumento da autoridade afirma que apenas a tese das fontes ajusta-se a um dos aspectos mais fundamentais do direito: a sua reivindicação de autoridade. Apenas a tese das fontes, portanto, é compatível com a natureza autoritativa do direito. O principal texto de referência para o argumento da autoridade é o artigo Authority, Law and Morality (ALM). Variações do mesmo raciocínio, bem como complementos e desenvolvimentos a ele, podem também ser encontrados nos artigos que compõem The Authority of Law (AL) e The Morality of Freedom (MF). Tomarei o artigo ALM como base para exposição do argumento, mas utilizarei outros textos nos pontos em que eles possam esclarecer o argumento ali desenvolvido por Raz.

1.6.1 O argumento sobre a função do direito e o argumento da autoridade O argumento baseado na função do direito apresentado em LPSL afirmava que uma das funções essenciais do direito é marcar o ponto em que se diferenciam as visões particulares dos membros da sociedade a respeito de um esquema de cooperação social e a visão vinculante e adotada pela comunidade desse esquema social. O direito deve nos permitir distinguir entre opiniões particulares e regras dotadas de autoridade, do contrário ele não poderia colaborar na manutenção da cooperação e coordenação social, que julgamos ser sua função essencial. É por conta disso que a tese das fontes é verdadeira: admitir que o direito contém padrões não dotados de pedigree significaria eliminar a distinção entre uma opinião particular e uma regra dotada de autoridade. Só por meio de critérios publicamente

acessíveis e empiricamente verificáveis (fontes sociais) é possível que o direito cumpra sua função essencial. O argumento sobre a função do direito resumido acima parece indicar razões persuasivas para aceitarmos a tese das fontes. Contudo, a transição entre seus diversos passos foi muito rápida e pouca elaborada, mesmo na exposição original de Raz. Afinal, como determinar que a função do direito é promover a cooperação e coordenação social e que a tese das fontes, e nenhuma outra, se ajusta a essa função essencial? Essas afirmações talvez tenham algum apelo intuitivo, mas apenas o apelo intuitivo não é suficiente, especialmente se levarmos em conta a força e exigência da tese das fontes e o ônus argumentativo que ela deve satisfazer. O argumento da autoridade procura, então, preservar um insight importante do argumento baseado na função do direito: a importância de podermos determinar o que é o direito por meio de critérios publicamente acessíveis e empiricamente verificáveis. A ligação entre a tese das fontes e uma suposta função do direito, no entanto, será feita agora por meio do conceito de autoridade e da necessária reivindicação de autoridade do direito. Raz irá determinar o papel ou função conceitual das autoridades e aplicar — via recurso à necessária reivindicação de autoridade — esse papel e essa função ao direito. Analisarei a seguir o primeiro passo desse argumento. 1.6.2 O direito e sua necessária reivindicação de autoridade legítima A tese das fontes é uma resposta à pergunta sobre a identidade dos sistemas jurídicos, mas também é uma resposta ao clássico problema da teoria do direito sobre a relação entre direito e moral. Os teóricos do direito questionam-se se é possível que uma norma se torne jurídica em virtude de ser moralmente vinculante e se uma norma pode deixar de ser jurídica tão somente por ser moralmente inaceitável. A tese das fontes afirma que todo o direito é baseado em fontes sociais e, portanto, responde negativamente às duas questões anteriores. Há, contudo, respostas diferentes, e Raz lista duas delas: a tese da incorporação afirma que todo o direito é baseado em fontes sociais ou implicado pelo direito baseado em fontes sociais; a tese da coerência afirma que o direito consiste nas normas baseadas em fontes junto à justificação moral mais razoável do direito baseado em fontes90. Ambas as teses permitem a existência de normas jurídicas que não possuam fontes sociais diretas, mas não ignoram, por completo, o direito baseado em fontes. A tese da incorporação permite que Joseph Raz, Ethics in the Public Domain: Essays in the Morality of Law and Politics, Rev. ed., repr, Clarendon Paperbacks (Oxford: Oxford University Press, 2001), 211. 90

haja direito não baseado em fontes, enquanto a tese da coerência afirma que em todos os sistemas jurídicos haverá direito não-baseado em fontes91. A conexão existente entre os conceitos de direito e de autoridade é o que permite, segundo Raz, concluirmos que a tese das fontes é verdadeira enquanto as duas outras teses são falsas. Que conexão é essa? Uma distinção preliminar é necessária para entendermos o argumento de Raz. Trata-se da distinção entre autoridade legítima e autoridade de facto92. Uma autoridade de facto, segundo Raz, alega que é uma autoridade legítima ou é vista como tal por parcela significativa da população. Contudo, uma autoridade de facto pode não ser, tudo mais considerado, legítima, i.e., sua legitimidade pode ser simplesmente aparente e não passar em testes normativos que julgamos necessários para a justificação moral de uma autoridade. Uma autoridade legítima também será uma autoridade de facto, mas o contrário não é verdadeiro (existem meras autoridades de facto). O conceito de autoridade de facto, entretanto, depende do conceito de autoridade legítima, já que, na análise de Raz, um elemento essencial das autoridades de facto é a sua afirmação de autoridade legítima ou a crença, por parte da população, de que a autoridade em questão possui legitimidade. Isso significa, para Raz, que há uma diferença essencial entre autoridades de facto e o mero controle ou poder. Do fato de uma pessoa não passar em testes de legitimidade relevantes, não se segue que ela goze somente de simples poder ou controle. É possível que ela seja uma autoridade de facto caso afirme ser legítima ou seja vista pelas pessoas como sendo legítima (mesmo que, na realidade, não seja). Autoridade, portanto, não pode ser equacionada apenas com força ou ameaça do uso da força. “Um fator comum em todos os tipos de autoridade efetiva é que elas envolvem uma crença, por alguns, de que a pessoa em questão tem autoridade legítima”93. Essa crença pode até não ser justificada, mas isso não implica que sua presença não seja necessária para aplicação do conceito de autoridade. O que diferencia uma autoridade de facto de uma pessoa em simples posição de poder ou controle é que apenas no primeiro caso há uma reivindicação de ou crença na legitimidade do sujeito em questão. Podemos, assim, distinguir mero controle, autoridade de facto e autoridade legítima. No primeiro temos o simples apelo a força ou ameaça do uso da força. No segundo, há uma necessária reivindicação de legitimidade (que pode ser

Ibid. Ibid., 211–212. Raz também escreve: "A common factor in all kinds of effective authority is that they involve a belief by some that the person concerned has legitimate authority", In: Raz, The Authority of Law: Essays on Law and Morality, 29; "they are de facto authorities because they claim a right to rule", In: Joseph Raz, The Morality of Freedom (Oxford: Oxford University Press, 1986), 26. 93 Raz, The Authority of Law: Essays on Law and Morality, 29. 91 92

acompanhada por outros elementos não-morais de coação). No terceiro, temos uma reivindicação justificada de legitimidade. Com esta distinção em mãos, Raz estabelece a seguinte premissa para seu argumento da autoridade: “necessariamente, o direito, todo o sistema jurídico que está em vigor em algum lugar, tem autoridade de facto”94. Portanto, o que quer que o direito seja, ele é diferente de um mero sistema de poder e controle envolvendo tão somente recurso à força ou ameaça do uso da força. Se o direito necessariamente é uma autoridade de facto, ou ele afirma possuir autoridade legítima ou é tido como a possuindo (ou ambos). Essa premissa do argumento de Raz não é trivial, já que ela estabelece a conclusão não-óbvia de que o direito se distingue de um sistema de mero controle e reivindica para si autoridade legítima. A questão, no ponto, é saber como estabelecer que é o caso que o direito necessariamente reivindica autoridade legítima (e que, portanto, é necessariamente uma autoridade de facto). É importante observar, aqui, que a premissa que Raz estabelece é que o direito necessariamente possui autoridade de facto, e não que necessariamente possui autoridade legítima. Assim, um sistema jurídico pode não possuir autoridade legítima, ou não a possuir na extensão que alega possuir. É necessário, contudo, que a afirmação de legitimidade esteja presente, mesmo que ao final ela se mostre total ou parcialmente injustificada. Para mostrar que é uma verdade necessária que o direito reivindica autoridade legítima, Raz recorre ao seguinte argumento: As afirmações que o direito faz para si são evidentes a partir da linguagem que ele adota e das opiniões expressas por seus porta-vozes, i.e., pelas instituições do direito. A reivindicação de autoridade do direito é manifestada pelo fato de que instituições jurídicas são oficialmente designadas como ‘autoridades’, pelo fato de eles considerarem-se como tendo o direito de impor obrigações aos seus sujeitos, pelas suas afirmações de que os seus sujeitos devem-lhes obediência, e que seus sujeitos devem obedecer o direito como ele exige ser obedecido (…) Mesmo leis ruins, é a inevitável doutrina oficial, devem ser obedecidas enquanto estiverem em vigor, enquanto ações legais são tomadas para tentar emendá-las ou revogálas95.

O argumento de Raz é que uma reivindicação de autoridade explicaria a forma e a linguagem com que o direito, através dos seus oficiais, apresenta suas diretivas. Falamos de autoridades judiciais, legais etc. Falamos de obrigações e do direito de impor obrigações. Dizemos, ainda, que, do ponto de vista jurídico, temos a obrigação de obedecer ao direito.

94 95

Raz, Ethics in the Public Domain, 215. Ibid., 215–216.

Todas essas afirmações tornam manifesta, e são explicadas, ao assumirmos que o direito afirma possuir legitimidade moral. Raz não explora em detalhes em que medida uma reivindicação de autoridade legítima é necessária para dar sentido aos fatos apontados acima. Pode-se pensar que uma reivindicação de autoridade legítima é um pressuposto necessário para que as afirmações de direito e obrigações tenham sentido, de maneira que não se poderia afirmar que alguém possui uma obrigação sem simultaneamente afirmar-se, ou assumir-se, que o sujeito que faz a declaração possui autoridade legítima. Se os oficiais do direito se apresentam como autoridades, isso pressupõe que eles ou afirmam ser autoridades legítimas ou são vistos como tais. De outra forma, a declaração de que são “autoridades” e a sua identificação e caracterização por meio deste termo não fariam sentido. Poderíamos, ainda, dizer que a reivindicação de autoridade legítima é uma simples metáfora usada para referir-se aos atos de fala dos oficiais, mas que não compõe um pressuposto necessário para que esses atos tenham sentido. Seja como for, o importante é ter em mente que, no ponto, Raz assume que é uma verdade necessária que o direito reivindica autoridade legítima e que esse fato pode ser confirmado ao observarmos a linguagem utilizada pelos oficiais do direito e pelos cidadãos para referirem-se a ele96. Em MF, Raz avança o mesmo ponto, mas oferece um argumento distinto em seu favor. Esse argumento parece-me mais persuasivo do que o argumento baseado em “atos de fala” ou no “comportamento” de oficiais e cidadãos (especialmente porque, como notei, Raz não se aprofunda na relação entre o discurso de oficiais e cidadãos e a necessária reivindicação de autoridade legítima). De acordo com o argumento de MF, uma reivindicação de autoridade legítima é um elemento necessário do nosso conceito de direito porque, intuitivamente, não consideraríamos jurídico um sistema de padrões de conduta que não contivesse essa reivindicação. Como explicarei em capítulos posteriores, esse argumento emprega o método tradicional de análise conceitual, defendido por Raz e por outros filósofos analíticos: testa-se uma possível análise de determinado conceito em face de nossas intuições sobre sua aplicação a um conjunto de casos possíveis. Se julgamos intuitivamente que o O argumento de Raz não está livre de críticas. Ken Himma, por exemplo, afirma que as práticas e comportamento dos oficiais listados por Raz não autorizam a atribuição de uma reivindicação de autoridade ao direito. Para ele, “interpreted as a conceptual truth about law, the claim that official’s ‘regard themselves as having the right to impose obligations on their subjects’ seems implausibly strong (…) this implies that is conceptually impossible for, say, a communist who rejects the legitimacy of the US legal system to be a US official” (p. 287); “we should not attribute a claim to the legal system on the strength of what officials say in the relevant context unless there is a general consensus among officials about the truth of that claim” (p. 290); “the use of terms such as ‘right’, ‘duty’, and ‘oblitagion’ does not entail a claim to legitimate authority” (p. 295). Cf. K. E. Himma, “Law’s Claim of Legitimate Authority,” in Hart’s Postscript: Essays on the Postscript to The Concept of Law, ed. Jules Coleman (Nova York: Oxford University Press, 2001), 271–309. 96

conceito se aplica a um caso possível que não possui determinado elemento presente na análise inicial, então aquele elemento não é necessário e deve ser excluído; se, ao contrário, julgamos inaplicável o conceito ao caso hipotético em virtude da ausência, no caso, do elemento em questão, então há chances de aquela ser uma propriedade necessária. Para testar se a reivindicação de autoridade legítima é parte essencial do conceito de direito ou de autoridade de facto, Raz imagina a seguinte situação hipotética: em determinado país, as autoridades políticas não afirmam, nem supõem, que os habitantes estão obrigados a obedecê-las. Todavia, aquela mesma população, de fato, submete-se e aceita a autoridade do seu governo. Devemos imaginar, então, tribunais que determinam a prisão de indivíduos mesmo sem considerá-los culpados de qualquer crime; indenizações que são ordenadas sem que qualquer pessoa tenha o dever de pagá-las; legisladores que não afirmam nem pretendem impor qualquer tipo de dever de cuidado ou contribuição para serviços comuns (por meio, por exemplo, de impostos). Neste sistema hipotético, há apenas pronunciamentos com a forma: “pessoas que se comportarem de determinado modo irão sofrer consequências estipuladas em lei”. Nem os cidadãos nem os tribunais, policiais, oficiais, etc. estão sujeitos a algum tipo de ‘dever’. Há apenas a previsão de consequências jurídicas para o caso de ocorrerem determinados eventos. Essas consequências simplesmente “precificam” determinadas condutas, estabelecendo de antemão qual o “custo” para praticá-las. Diante desse sistema político imaginário, Raz escreve: Duas coisas se destacam quando se contempla um sistema político desse tipo. Primeiro, é improvável que alguma sociedade dessas tenha jamais existido. As sociedades sobre as quais conhecemos algo estão invariavelmente sujeitas a instituições reivindicando o direito de vincular seus sujeitos, e quando elas sobrevivem isto é em parte porque pelo menos alguns dos seus sujeitos aceitam sua reivindicação. Em segundo lugar, se tal sociedade fosse existir, não a consideraríamos como sendo governada por uma autoridade. Ela é muito diferente das instituições políticas que normalmente consideramos como autoridade97.

A reivindicação de autoridade legítima equivaleria, para Raz, a uma reivindicação de direito de ser obedecido. Sociedades em que pessoas ou instituições em posição de controle não afirmem tal direito ou não afirmem que os sujeitos lhes devem algum tipo de obediência podem até mesmo existir (ainda que Raz considere isso improvável), mas elas teriam uma forma tão diferente das instituições que chamamos de autoridades, que não precisaríamos alterar nossa análise do conceito para abarcá-las. O direito, por esse raciocínio, é uma típica instituição “autoritativa”. Se não houvesse uma reivindicação de autoridade legítima (ou

97

Raz, The Morality of Freedom, 27.

direito de ser obedecido) por sua parte, ela estaria fora do referente do conceito de autoridade. Isso, no entanto, seria implausível dada a “centralidade das instituições jurídicas nas nossas estruturas de autoridade”98. As reivindicações e concepções do direito são “formadas por e contribuem para nosso conceito de autoridade”99. Se o nosso conceito de autoridade (mesmo que apenas autoridade de facto) implica uma reivindicação de autoridade legítima, nosso conceito de direito (dada sua relação com o conceito de autoridade) também implica essa reivindicação. Por esse argumento, Raz conclui que o direito necessariamente afirma possuir autoridade legítima100.

1.6.3 Implicações conceituais da reivindicação de autoridade legítima Uma vez estabelecido que o direito necessariamente reivindica autoridade legítima, devemos analisar quais as consequências teóricas que se seguem, de acordo com Raz, dessa reivindicação. “O fato de que o direito reivindica autoridade”, pergunta Raz, “nos ajuda a compreender sua natureza de alguma forma, para além do simples fato de que o direito faz essa reivindicação?”101. Se o que tivéssemos estabelecido anteriormente fosse a verdade da afirmação de que o direito necessariamente possui autoridade legítima, a resposta seria óbvia: deste fato, seguir-se-ia que o direito necessariamente possui os elementos requeridos para passar num teste de legitimidade que julgamos relevante. No caso de Raz, seguir-se-ia que o direito possui todos os elementos de sua concepção de autoridade como serviço, já que é esta concepção que define, para ele, as condições que uma suposta autoridade deve satisfazer para que seja uma autoridade legítima. No entanto, o que Raz estabeleceu é que o direito reivindica autoridade e não que é, por necessidade conceitual, uma autoridade legítima. Se é possível que determinado sistema jurídico não tenha autoridade legítima em qualquer grau, não seria o caso que o conceito de autoridade não contribui para a compreensão da natureza do direito? Uma resposta positiva a essa questão seria, para Raz, “no mínimo prematura”102.

Raz, Ethics in the Public Domain, 217. Ibid. 100 Himma apresenta uma situação hipotética similar, mas discorda que ela não seja um sistema jurídico. Finnis também apresenta o mesmo exemplo, e afirma que não há razão para se negar que ele possa ser chamado de “direito”. Analisarei o argumento de Finnis no capítulo 3. Cf. Himma, “Law’s Claim of Legitimate Authority,” 298–299; John Finnis, “Law as Fact and as Reason for Action: A Response to Robert Alexy on Law’s ‘Ideal Dimension,’” The American Journal of Jurisprudence 59, no. 1 (April 2014): 91–92, doi:10.1093/ajj/auu007. 101 Raz, Ethics in the Public Domain, 216. 102 Ibid. 98 99

Mesmo que o direito não goze necessariamente da autoridade que ele alega legitimamente possuir, “poderia ser que, para estar apto a reivindicar autoridade, o direito deve ao menos chegar perto do alvo”103. É possível que existam condições mínimas que o direito deve satisfazer para sequer poder genuinamente afirmar que possui autoridade legítima. Essas condições mínimas permitirão, caso existam, uma melhor compreensão da sua natureza, já que se a reivindicação de autoridade é necessária, as condições mínimas para que ela possa ser feita também o são. “O direito”, escreve Raz, “pode falhar em ter autoridade. Mas ele só pode falhar de algumas maneiras”104. Assim, mesmo que algumas das condições necessárias para possuir autoridade legítima possam estar ausentes, algumas delas deverão necessariamente estar presentes para que seja possível fazer uma reivindicação (mesmo que moralmente injustificada). Dois exemplos ajudam a ilustrar o ponto anterior105. Para que algo possa contar como uma autoridade legítima, é preciso que, pelo menos, seja um candidato possível a ter autoridade. Um conjunto de proposições sobre vulcões não é um candidato possível porque não faz sentido, mesmo hipoteticamente, falar que esse conjunto tem autoridade ou reivindica ser obedecido. Do mesmo modo, não é possível afirmar de maneira sincera que árvores tem autoridade. Árvores não podem se comunicar com pessoas, e o que não pode se comunicar não pode ter autoridade. Uma árvore, portanto, é conceitualmente incapaz de ter autoridade. Essas conclusões se tornam claras quando comparamos essas proposições à proposição “o direito possui autoridade”. Neste último caso, podemos estar errados: o direito pode alegar autoridade que de fato não tem. Contudo, sabemos que o erro, aqui, é diferente do erro cometido por alguém que atribui autoridade a uma árvore ou a um conjunto de proposições sobre vulcões. O direito é o “tipo de coisa” que pode ter autoridade; árvores, não. Podemos distinguir, então, duas maneiras pelas quais algo pode falhar em ter autoridade: a primeira, que chamarei de falha normativa, ocorre quando as condições morais para que suas diretivas sejam legitimamente dotadas de autoridade estejam ausentes. Nesse caso, a falha terá sido de ordem moral e retirará o caráter legítimo da autoridade, ainda que ela possa permanecer — caso as pessoas acreditem nisso, ou caso ela afirme que é legítima — uma autoridade de facto. A segunda falha, que chamarei de falha não-normativa, ocorre quando alguma das condições que não dizem respeito à legitimidade moral da autoridade estão ausentes. Ser capaz de comunicar sua vontade não é uma condição de legitimidade, Ibid. Ibid. 105 Ibid., 216–217. 103 104

mas uma condição não-normativa mínima para sequer colocarmos a questão da legitimidade. Raz chama estas condições de “pré-requisitos não-morais e não-normativos de autoridade”106. Estas condições de autoridade são condições que definem a habilidade de possuir autoridade. Quando negamos que uma pessoa tenha a autoridade legítima que alega possuir, reconhecemos que, ao menos, ela está apta a tê-la. Do contrário, não precisaríamos nos preocupar em mostrar sua falta de legitimidade, como ocorre, por exemplo, no caso de árvores e declarações sobre vulcões. Se o direito alega, de maneira sincera, possuir autoridade legítima, ele deve satisfazer os pré-requisitos não-normativos de autoridade. Assim, se ele necessariamente reivindica autoridade legítima, então ele necessariamente satisfaz estas condições não-normativas. Aqui, seria o caso de se perguntar se não seria possível que as afirmações de autoridade feitas pelo direito, através de seus oficiais, sejam necessariamente falsas e totalmente insinceras. Isso permitiria que nem todas as condições não-normativas fossem satisfeitas, já que a asserção de autoridade seria avançada de maneira sabidamente falsa e sem preocupação com as condições não-normativas. Outra possibilidade é que os oficiais do direito estejam conceitualmente confusos quando fazem as afirmações citadas por Raz: eles atribuem características ao direito que ele de fato não possui nem pode possuir, pois estão confusos sobre os conceitos de direito e autoridade. Raz considera estas duas possibilidades, mas rejeita ambas. O fato de que a alegação de autoridade é sempre feita pelos oficiais do direito onde quer que um sistema jurídico esteja em vigor já excluiria a possibilidade de que ela seja, em casos normais, insincera ou baseada numa confusão conceitual. Isso ocorre, segundo Raz, porque, ainda que erros e falsificações sejam ocasionalmente possíveis, eles não podem ser a regra. Oficiais podem estar “ocasionalmente, mas não sistematicamente confusos”107. A ideia de erros conceituais sistemáticos também não é compatível com a relação existente entre os conceitos de direito e autoridade. Raz aponta que as afirmações e concepções das autoridades jurídicas tanto são formadas pelo conceito de autoridade quanto contribuem decisivamente para ele. Dessa forma, pensar em erros conceituais sistemáticos nos obrigaria a separar o conceito de autoridade das afirmações, declarações e concepções que ajudam a formá-lo, e julgá-lo a partir de um novo critério totalmente independente daquelas declarações. O ponto de Raz é que não há um conceito de autoridade totalmente autônomo, sobre o qual os oficiais podem estar sistematicamente errados. As opiniões dos

106 107

Ibid., 218. Ibid.

oficiais sobre o conceito de autoridade são, para ele, importantes e até mesmo decisivas para a determinação do próprio conceito de autoridade. Os oficiais podem estar enganados sobre a suposta legitimidade da autoridade do sistema jurídico que representam. Esta, contudo, será uma falha normativa, dependente de argumentos morais. É improvável, e para Raz impossível, que os oficiais estejam sistematicamente e todo momento cometendo falhas nãonormativas sobre um conceito cujos limites, eles próprios, ajudam a delimitar.

1.6.4 O conceito de autoridade de Raz: autoridade como serviço As explicações anteriores devem ser combinadas com o conceito de autoridade de Raz para formarem um argumento completo a favor da tese das fontes. Analisarei o conceito de autoridade de Raz neste tópico. Algumas observações preliminares, contudo, são importantes: em primeiro lugar, ao desenvolver seu conceito de autoridade (de onde irá extrair as condições para a posse de autoridade), Raz não supõe que as pessoas comuns ou mesmo os oficiais conheçam este conceito e o utilizem quando fazem alegações de autoridade. Se o discurso dos oficiais do direito permite concluirmos que há ali embutida uma alegação de autoridade legítima, ele não nos permite concluir que os oficiais de fato conheçam os detalhes do conceito de autoridade elaborado por Raz. Esta suposição, na verdade, inverte a ordem da análise teórica: Raz não oferece um conceito de autoridade que uma vez conhecido pelos indivíduos passa a ser incorporado na linguagem das práticas jurídicas. Ao contrário: o conceito de autoridade de Raz procura representar, de maneira adequada, a concepção de autoridade que é utilizada pelas pessoas nessas circunstâncias. “Tudo que estou assumindo”, escreve ele, “é que a concepção de autoridade como serviço é razoável, i.e., que ela representa corretamente nosso conceito de autoridade”108. Portanto, ao invés de dizermos que utilizamos o conceito de autoridade como serviço desenvolvido por Raz, é mais correto afirmar que o conceito de autoridade como serviço desenvolvido por Raz reflete e explica o nosso conceito de autoridade. Em segundo lugar, vale deixar claro que há diversas condições para a posse de autoridade que Raz não procura explorar ao detalhar o conceito de autoridade como serviço. A habilidade de comunicar-se, por exemplo, é uma óbvia condição para ter autoridade (citada por Raz), mas ele não a inclui de maneira expressa na sua doutrina da autoridade. Isto ocorre porque (a) algumas dessas condições são por demais óbvias para precisarem ser explicitadas;

108

Ibid., 220.

(b) Raz procura destacar apenas aquelas condições que ele julga mais importantes para o desenvolvimento de sua própria teoria. O objetivo de Raz é articular as doutrinas da autoridade e do direito e avaliar como a concepção de autoridade como serviço oferece um critério para avaliarmos as teses da coerência, da incorporação e das fontes, e por isso ele se concentra naqueles aspectos do conceito que são relevantes para a questão teórica que ele se colocou no início do artigo. “Nós iremos nos concentrar em duas características que devem ser possuídas por qualquer coisa capaz de ser autoritativamente vinculante. Estas duas características serão então usadas para apoiar a tese das fontes”109.

1.6.4.1 O caráter peremptório das diretivas dotadas de autoridade: o exemplo do árbitro Existem, de acordo com Raz, dois tipos de autoridade: práticas e teóricas110. As diretivas de uma pessoa que possui autoridade prática são razões para ação, enquanto as diretivas de alguém que possui autoridade teórica são razões para crença. Quando falamos do direito, é o conceito de autoridade prática que se torna relevante. A ideia de que autoridades práticas fornecem razões para ação, contudo, não é suficiente, já que não só autoridades têm esta capacidade. “A afirmação sincera de qualquer pessoa pode ser uma razão para acreditar, e o pedido de qualquer pessoa pode ser uma razão para agir” 111. Como diferenciar diretivas dotadas de autoridade de simples pedidos? “O que distingue diretivas dotadas de autoridade”, responde Raz, “é o seu especial estatuto peremptório”112. Tanto em The Morality of Freedom quanto em Authority, Law, and Morality, Raz explica o caráter peremptório de uma diretiva dotada de autoridade pedindo-nos para imaginar a seguinte situação hipotética. Imaginemos o caso de duas pessoas envolvidas em determinada disputa (a respeito, digamos, dos termos de um contrato que ambas assinaram). As duas decidem, então, escolher um árbitro para decidir a controvérsia. Como Raz nota, o árbitro tem autoridade sobre elas, porque ambas concordaram em aceitar e seguir sua decisão sobre o caso. A decisão do árbitro é, para elas, uma razão para agir e as duas devem agir conforme o árbitro determinar justamente porque foi isso que o árbitro determinou. Ocorre que essa razão (fornecida pela decisão final) relaciona-se às razões que se aplicam ao caso e que estavam presentes antes de ele ter sido levado ao árbitro. Ela não é uma razão a mais e independente que deve ser Ibid., 218. Ibid., 211. 111 Ibid., 212. 112 Ibid. 109 110

considerada em conjunto com as demais razões que já se aplicavam ao caso. Escreve Raz: “a decisão do árbitro deve estar baseada nas outras razões, resumi-las e refletir sua solução”113. A decisão do árbitro não é uma razão independente das demais, que deve ser colocada lado a lado com elas. Esse seria o caso na situação em que pretendo ir ao cinema mas descubro que irá chover. Aqui, a informação sobre a chuva acrescenta uma razão que deve ser colocada lado a lado às demais razões favoráveis ou contrárias à minha ida ao cinema. A decisão do árbitro opera de outra forma. Ela deve refletir as razões que se aplicam aos sujeitos e representar o que, para o árbitro, seria a solução do conflito entre elas. Raz chama de “razões dependentes” as razões envolvidas nesta situação: as razões que se aplicam diretamente ao caso e a razão contida na decisão do árbitro que deve decidir levando-se em conta aquelas razões. A decisão do árbitro objetiva substituir as razões das quais ela depende. Quando as partes concordaram em submeter sua disputa à decisão de um árbitro, elas concordaram, pelo menos naquele caso, em seguir o julgamento do árbitro ao invés de seguirem o que pensariam ser a melhor solução para ele (de acordo com o equilíbrio de razões). Assim, além de procurar refletir as razões que se aplicam ao caso, a decisão do árbitro também deve substitui-las. Raz chama uma razão desse tipo de razão peremptória [preemptive]114. Esquematicamente, teríamos a seguinte situação: chamemos de R o conjunto de razões {r1, r2 e r3} que se aplicam ao caso. A decisão do árbitro sobre a controvérsia, D, deve refletir o julgamento do árbitro sobre R (e não sobre um conjunto R’ formado por {r4, r5 e r6}. Contudo, D não deve ser somada ao conjunto R para formar um conjunto Rx composto por {r1, r2, r3 e D} a respeito do qual as partes devem formar um julgamento. Cada parte pode ter uma visão do equilíbrio das razões de R, mas, uma vez que concordaram em seguir a decisão do árbitro, devem, na ausência de outras razões, seguir D. A qualificação aqui é importante porque, como Raz observa, a afirmação de que a decisão do árbitro é dotada de autoridade não significa que sua palavra seja uma razão absoluta que deve ser obedecida custe o que custar. A decisão do árbitro pode ser questionada e desafiada em determinadas circunstâncias (por exemplo, se ele tiver sido subornado, se tiver tomado sua decisão enquanto estava alcoolizado ou caso surja uma nova e forte evidência não levada em conta no momento da decisão). O ponto fundamental, aqui, é que as razões que poderiam ter sido levadas em conta para justificar a ação antes da decisão do árbitro não podem mais ser levadas em conta uma vez que a decisão foi tomada115. No nosso esquema: D não pode ser desafiada Raz, The Morality of Freedom, 41. Raz, Ethics in the Public Domain, 213. 115 Raz, The Morality of Freedom, 42. 113 114

com base em r1, r2, r3 ou no que uma das partes julga ser o correto equilíbrio das razões que compõem o conjunto de razões R. Dependência e preempção são dois aspectos importantes de uma típica relação de autoridade (ilustrada aqui pela situação do árbitro). Ambos se relacionam da seguinte maneira: como a decisão do árbitro deve estar baseada nas razões que se aplicam ao caso (no esquema, em r1, r2 e r3), às partes não é mais dado levá-las em conta para decidir como agir. A tarefa de avaliar que ação é apoiada pelo equilíbrio de razões entre r1, r2 e r3 foi transferida para o árbitro. Se, mesmo com sua decisão, as partes ainda decidissem com base no que julgam ser o correto curso de ação apoiado pelo equilíbrio de r1, r2 e r3, elas “frustrariam o point e propósito da arbitragem”116. Raz não expande o argumento neste ponto para explicar em que medida a não-atribuição de um caráter peremptório à decisão do árbitro frustra o propósito da arbitragem. Em The Morality of Freedom, contudo, ele oferece uma explicação baseada na ideia de “contagem dupla”. As razões que formam o conjunto R e a decisão D baseada nestas razões são “razões dependentes”. Portanto, r1, r2 e r3 justificam (em parte) a razão fornecida por D. É bem possível que o equilíbrio das razões que compõem R já favorecessem D, de modo que esta seria a ação requerida com ou sem a decisão do árbitro. Contudo, ao considerarmos o peso e o estatuto das razões para ação no caso, as razões para a diretiva não podem ser acrescentadas à própria diretiva. “Ou a diretiva ou as razões para considerá-la vinculante devem ser contadas, mas não ambas. Fazer o contrário é ser culpado de contagem dupla”117. D já sumariza as razões contidas em R. Se considerássemos ela uma razão adicional (e não uma razão peremptória), contaríamos duas vezes as mesmas razões aplicáveis ao caso. Este é o problema da contagem dupla que explica porque a decisão do árbitro deve substituir as razões de primeira ordem diretamente aplicáveis ao caso, e não ser acrescentada e elas como mais uma razão de mesmo tipo. É importante observar, no entanto, que não é necessário que as partes renunciem totalmente a qualquer tipo de julgamento ou a formar qualquer opinião sobre o caso. A ideia de renúncia de julgamento foi exposta por H.L.A. Hart da seguinte maneira: o comandante tem caracteristicamente a intenção de que seu ouvinte tome a vontade do comandante ao invés de sua própria como um guia para ação e, assim, coloque-o no lugar de qualquer deliberação ou raciocínio próprios: Raz, Ethics in the Public Domain, 213; "(…) there is no point in having authorities unless their determinations are binding even if mistaken (…) The whole point and purpose of authorities (…) is to pre-empt individual judgment on the merits of a case, and this will not be achieved if, in order to establish whether the authoritative determination is binding, individuals have to rely on their own judgments of the mertis", In: Raz, The Morality of Freedom, 47–48. 117 Raz, The Morality of Freedom, 58. 116

a expressão da vontade do comandante (…) procura impedir ou barrar qualquer deliberação independente pelo ouvindo sobre os méritos de praticar o ato118.

Raz rejeita esta caracterização da relação de autoridade. Segundo ele, o que conta de verdade, do ponto de vista da pessoa detentora de autoridade, é como o sujeito age, e não como ele pensa. O que é necessário é que as partes ajam conforme a decisão do árbitro, e não que se abstenham de deliberar sobre o caso ou formar alguma opinião a respeito das razões que se lhes aplicam ou mesmo sobre a própria decisão da autoridade. “A reflexão sobre os méritos das ações requeridas pela autoridade não é automaticamente proibida por qualquer diretiva dotada de autoridade”119. Raz conclui: Não há razão para alguém conter seus pensamentos ou suas reflexões sobre as razões que se aplicam ao caso, nem estão eles necessariamente proibidos de criticar o árbitro por ter ignorado certas razões ou por ter sido enganado sobre sua importância. É meramente a ação por alguma dessas razões que está excluída120.

Mas mesmo que admitamos que a noção de autoridade não exclui por completo a possibilidade de julgamento e reflexão dos sujeitos sobre o mérito das razões que se aplicam ao caso, não teríamos que admitir que a própria ideia de autoridade viola a ideia de autonomia? Se as partes no nosso caso são obrigadas a agir contra o que consideram ser o correto equilíbrio das razões, elas não estão violando o princípio de autonomia que determina que devemos agir com base no que consideramos ser o correto equilíbrio das razões? A resposta de Raz é negativa e para entendermos o porquê devemos introduzir uma distinção entre razões de primeira ordem e razões de segunda ordem. A ideia de razão de primeira ordem é bastante simples e intuitiva: é qualquer razão para que um sujeito p faça algo. O fato de estar chovendo é uma razão para que eu leve um guarda-chuva caso saia de casa. Além de razões de primeira ordem, contudo, existem razões de segunda ordem. Uma razão de segunda ordem é uma razão para agir com base em uma razão ou para evitar agir com base em uma razão121. Uma razão para evitar agir com base em determinada razão é chamada por Raz de uma “razão exclusionária”. Ao agirem com base na decisão do árbitro, as partes na nossa situação hipotética acreditam que possuem uma razão exclusionária para não agir com base nas razões de primeira ordem que se aplicam ao seu caso. Se o equilíbrio das razões de primeira ordem r1, r2 e r3 entrar em conflito com a H. L. A. Hart, Essays on Bentham: Studies in Jurisprudence and Political Theory (Oxford: Oxford University Press, 1982), 39. 119 Raz, The Morality of Freedom, 39. 120 Raz, Ethics in the Public Domain, 213. 121 Joseph Raz, Practical Reason and Norms, Repr (Oxford: Oxford University Press, 2002), 39. 118

razão oferecida em D (uma razão exclusionária), a questão será decidida com base num “princípio do raciocínio prático”122 que determina que as razões exclusionárias sempre prevalecem quando entram em conflito com razões de primeira ordem123. Só seria verdade que obedecer uma autoridade viola o princípio da autonomia se só existissem razões de primeira ordem. De acordo com o “princípio da autonomia”, “a razão nunca justifica abandonar a própria autonomia, isto é, o direito e dever de agir com base no julgamento do que deve ser feito, considerando-se todas as coisas”124. Isto não significa, contudo, que não existam, nem possam existir, razões exclusionárias válidas. Se consideramos que é possível existir esse tipo de razão, elas obviamente devem ser incluídas num julgamento sobre o equilíbrio de razões que considere todas as coisas. Agir com base no equilíbrio de razões não significa agir exclusivamente com base no equilíbrio de razões de primeira ordem. Razões de segunda ordem, em geral, e exclusionárias, em particular, podem entrar no raciocínio e prevalecer por tipo diante das razões de primeira ordem. Isso não viola o raciocínio autônomo exigido pelo princípio da autonomia, já que elas são razões igualmente válidas, ainda que de tipo distinto.

1.6.4.2 Três teses sobre a autoridade Com a análise anterior em mãos, devemos agora analisar se as características presentes na relação de arbitragem são características das autoridades em geral, ou se representam apenas características típicas de uma relação de autoridade específica (a relação de arbitragem). Raz está ciente desta dificuldade. Escreve ele: Pode-se pensar, por exemplo, que o árbitro é típico de autoridades decisórias, e o que poderíamos chamar de autoridades legislativas diferem deles (…) Autoridades decisórias, alguém poderia dizer, são precisamente aquelas em que o papel da autoridade é julgar quais são as razões que se aplicam aos seus sujeitos e decidir de acordo com isso, i.e., suas decisões objetivam meramente declarar o que deve ser feito em qualquer caso. Uma autoridade legislativa, por outro lado, é uma cujo trabalho é criar novas razões para aqueles sujeitos e ela, i.e., razões que são novas não meramente no sentido de substituir outras razões das quais dependem, mas em não pretender substituir razão nenhuma. Se entendermos “legislativo” e “decisório” de maneira ampla, a objeção prossegue, todas as autoridades práticas pertencem a pelo menos um desses tipos. Conceder-se-á, é claro, que autoridades legislativas agem por razões. Mas as suas são razões que se 122

Ibid., 40.

123 Razões exclusionárias

podem ceder e ser superadas por outras razões já que, além de uma razão exclusionária, D também é uma razão de primeira ordem para agir com base no que ela determina Ibid., 58–59. 124 Raz, The Authority of Law: Essays on Law and Morality, 27.

aplicam a elas e que não dependem de, i.e., não se destinam a refletir, razões que se aplicam aos sujeitos a elas125.

O problema envolvido neste ponto é o seguinte: Raz estabeleceu que uma alegação de autoridade legítima está presente onde quer que haja direito ou sistema jurídico, e queremos utilizar o conceito de autoridade para compreender a natureza do direito. O exemplo do árbitro foi utilizado como estratégia argumentativa para iluminarmos aspectos importantes da nossa concepção de autoridade. Ocorre que, se os aspectos salientes da situação do árbitro não forem aspectos gerais do conceito de autoridade, é possível que as características ali presentes ocorram em outras autoridades, mas não em todas, e o direito pode bem ser uma das autoridades que pertencem a uma categoria distinta de autoridade prática. Colocado desta maneira, o problema parece ignorar pelo menos um ponto importante: se assumirmos a distinção entre autoridades decisórias e legislativas, parece-me claro que o direito envolveria os dois tipos. Sistemas jurídicos, em geral, são compostos por juízes que alegam possuir autoridade para decidir e legisladores que alegam possuir autoridade para legislar. Mesmo que a situação do árbitro possua características importantes, mas não gerais, ela pode explicar pelo menos parte da natureza do direito, já que o direito envolve, em alguma medida, autoridades decisórias. Mas talvez a ideia de que o direito ajustar-se-ia simultaneamente às duas categorias de autoridade esteja errada, já que nem todos os sistemas jurídicos possuem autoridades legislativas. Por mais estranho que isso pareça, para Raz “a existência de instituições criadoras de normas, apesar de característica de sistemas jurídicos modernos, não é uma característica geral de todos os sistemas jurídicos”126. Apenas instituições destinadas a aplicar normas são necessárias para a existência de um sistema jurídico. Se isso for assim, é claro que podemos nos contentar com as características das autoridades decisórias, já que somente elas são necessárias para a existência do direito e estarão presentes em todos os sistemas jurídicos. Para Raz, contudo, não é preciso explorar este ponto. Ele mesmo, após reconhecer a possibilidade de que a situação do árbitro seja um caso específico de autoridade cujas características podem não ser generalizáveis, contenta-se em afirmar o seguinte: A aparente atração da distinção acima [entre autoridades legislativas e decisórias] é, no entanto, enganosa. Considere uma Lei do Parlamento impondo aos pais um dever de sustentar seus filhos pequenos. Os pais

125 126

Raz, Ethics in the Public Domain, 213. Raz, The Authority of Law: Essays on Law and Morality, 105.

possuem tal dever independentemente dessa lei, e é apenas porque eles o tem que a lei é justificada127.

A explicação acima sugere que a suposta distinção apontada por Raz anteriormente na verdade não existe. Autoridades legislativas, assim como autoridades decisórias, avançam diretivas que possuem tanto o caráter de dependência em relação às razões que se aplicam à determinada situação, quanto de preempção (a lei editada pelo Parlamento é uma razão dependente em relação às razões de primeira ordem para que os pais cuidem dos seus filhos, bem como uma razão peremptória, pois destinada a substituir o julgamento dos pais a respeito do equilíbrio de razões de primeira ordem sobre a questão). As características salientes identificadas por Raz no exemplo do árbitro seriam, então, características gerais das autoridades práticas e, analisada de maneira adequada, a alegada autoridade de um Parlamento ou Congresso possui os mesmos traços de dependência e preempção presentes no exemplo da arbitragem. Esclarecido este ponto, Raz pode oferecer uma concepção geral de autoridade partindo da análise da situação do árbitro. Ele resume esta concepção em três teses fundamentais: as teses da dependência, da preempção e da justificação normal128. a) Tese da Dependência: todas as diretivas dotadas de autoridade devem estar baseadas, entre outros fatores, nas razões que se aplicam aos sujeitos daquela diretiva e que dizem respeito às circunstâncias abrangidas por ela. Raz chama estas razões (tanto as de primeira ordem aplicáveis às circunstâncias do caso, quanto a diretiva dotada de autoridade nelas baseada) de “razões dependentes”. b) Tese da preempção: o fato de que uma autoridade requer a prática de uma ação é uma razão que não deve ser adicionada às demais razões relevantes no momento de se avaliar o que se deve fazer, mas, ao invés disso, deve substitui-las (no todo ou parcialmente). c) Tese da justificação normal: para que algo ou alguém possa ser reconhecido como uma autoridade, o sujeito das suas diretivas deverá ter mais chances de conformar-se às razões que se aplicam a ele (além, é claro, das razões da própria diretiva) se ele aceitar as determinações da suposta autoridade como vinculantes e tentar segui-las, do que se tentar, ele mesmo, seguir as razões de primeira ordem que se aplicam diretamente ao seu caso. Em outras palavras, a autoridade estará

127 128

Raz, Ethics in the Public Domain, 214. Ibid.

justificada se for mais provável que o seu julgamento do equilíbrio das razões que se aplicam ao caso seja correto do que o julgamento do próprio sujeito das suas diretivas. As três teses combinadas formam o que Raz chamou de concepção da autoridade como “serviço” (service conception of authority)129. As duas primeiras teses (da dependência e da preempção) apenas generalizam as duas características mais fundamentais presentes no caso do árbitro. A novidade na concepção geral de autoridade de Raz é a tese da justificação normal. No exemplo da arbitragem, o acordo entre as partes para levar o seu caso ao árbitro foi responsável por estabelecer a relação de autoridade. A tese da justificação normal substitui a necessidade desse acordo e estipula uma condição para a justificação de uma autoridade. Esta condição está diretamente ligada ao papel essencial que Raz atribui a todas as autoridades: elas devem servir como mediadoras entre as pessoas e as boas razões que se aplicam a elas130. A autoridade deve julgar e se pronunciar sobre que os indivíduos devem fazer de acordo com as boas razões. Esta autoridade deverá ser reconhecida se ela estiver numa posição mais favorável do que o próprio indivíduo para avaliar o equilíbrio dessas. Uma autoridade estará justificada se passar nos testes contidos da tese da dependência e da justificação normal. A diretiva da autoridade, para ser moralmente legítima, deverá refletir as razões de primeira ordem que se aplicam ao caso (e não meramente ser apresentada como se refletisse) e a autoridade deve estar numa posição em que sua diretiva tem mais chances de refletir o correto equilíbrio de razões do que o julgamento isolado do indivíduo. Se as duas condições estiverem presentes, a preempção será não apenas alegada, mas estará também justificada e o indivíduo a quem a autoridade dirige a diretiva deverá atribuir-lhe caráter peremptório. A investigação sobre a legitimidade da autoridade e de suas diretivas, contudo, depende de uma investigação anterior sobre os pré-requisitos para a posse de autoridade. Se uma diretiva sequer é apresentada como uma razão dependente destinada a substituir as razões aplicáveis ao caso, não faria sentido, de acordo com Raz, investigar se ela de fato atende esses requisitos. A diretiva pode, como uma questão de fato, não refletir razões dependentes, mas é necessário que ela pelo menos seja apresentada como se as refletisse. O mesmo vale para a tese da preempção. Esse ponto, aliás, apenas repete e reforça a distinção anterior entre falhas normativas e não-normativas na posse de autoridade.

129 130

Ibid. “They regard authorities as mediating between people and the right reasons which apply to them”. Ibid.

A concepção de autoridade como serviço não procura, assim, expressar o “imenso poder” das autoridades, mas “refletir seu papel limitado”131. Autoridades não existem para introduzir considerações novas e independentes: elas se destinam a “refletir razões dependentes nas situações em que estão melhor posicionadas para fazê-lo. Elas mediam entre as razões últimas e as pessoas para quem elas se aplicam”132.

1.6.5 Requisitos não-normativos para a posse de autoridade Uma autoridade legítima satisfaz a todas as condições presentes na concepção de autoridade de Raz. Assim, será legítima a autoridade que basear suas diretivas nas razões dependentes aplicáveis aos seus sujeitos e que tiver mais chances de conformar-se ao correto equilíbrio das razões do que aqueles sujeitos a suas diretivas. Por conta disso, os indivíduos estarão justificados em substituir seu julgamento particular acerca do equilíbrio de razões pelo julgamento contido na diretiva dotada de autoridade. Mas imaginemos a seguinte situação: bem avaliada, uma suposta autoridade não satisfaz o critério da justificação normal. Ela afirma que o satisfaz e parcela importante da população acredita que ela o satisfaz. No entanto, após uma longa análise, descobrimos que isso não ocorre, que a autoridade não está justificada porque, ao contrário do que afirma, os indivíduos estão tão ou mais bem posicionados do que ela para avaliar o correto equilíbrio das razões de primeira ordem que se lhes aplicam. Por mais que afirme o contrário, I.e., por mais que alegue que é uma autoridade legítima, esta suposta autoridade não satisfaz o critério presente na tese da justificação normal de Raz. A tese da justificação normal oferece um critério de legitimidade e, portanto, um critério normativo. Se nossa suposta autoridade falha no teste da justificação normal, ela incorre em uma falha normativa: ela não é, nem deve ser considerada, uma autoridade legítima. Contudo, esta falha é diferente das falhas apontadas por Raz anteriormente: uma suposta autoridade que não satisfaça o teste da justificação normal não falha na posse de autoridade do mesmo modo que uma árvore falha ou que uma declaração sobre vulcões falha. É esta diferença que tentei captar introduzindo a distinção entre falhas normativas e não-normativas. Seguindo essa ideia, Raz diferencia critérios morais e critérios não-morais para a posse de autoridade133. Os critérios não-morais dizem respeito à aptidão para a posse de Ibid., 215. Ibid. 133 Ibid., 218. 131 132

autoridade; os critérios morais, à determinação de sua legitimidade. Uma suposta autoridade que não satisfaça a tese da justificação normal, por exemplo, não satisfaz um critério moral para a posse de autoridade. Mas, argumenta Raz, ela deverá satisfazer pelo menos todos os critérios não-morais para essa posse. Do contrário, ela sequer poderá ter autoridade de facto. Os critérios não-morais, portanto, devem sempre ser satisfeitos por qualquer autoridade (seja por uma mera autoridade de facto, seja por uma autoridade legítima). “Alegar autoridade legítima” é um critério não-moral para a posse de autoridade, pois isso diferencia uma autoridade de facto do mero controle por meio de ameaças. Mas a simples alegação não é suficiente para estabelecer a legitimidade, que deverá ser avaliada com base em outros critérios (morais). Raz reconhece que é uma afirmação muito forte dizer que o direito, por ser uma autoridade de facto satisfaz a todos os critérios não-morais para a posse de autoridade. Contudo, acrescenta ele, seu argumento não depende da prova dessa afirmação (que demandaria argumentos igualmente fortes). Como seu objetivo é mais restrito (oferecer um argumento a favor da tese das fontes), Raz contenta-se com dois desses critérios. Antes de passarmos a eles, convém acrescentar uma observação feita por Raz: ao invés de falar nos critérios para que o direito possa ter autoridade, Raz passará a falar dos critérios para que uma diretiva possa ter autoridade. A diferença, contudo, não altera em nada o argumento, já que, segundo ele, “o direito é um sistema de diretivas, e ele tem autoridade se e apenas se suas diretivas forem autoritativamente vinculantes”134. “Critérios não-morais para a posse de autoridade” e “critérios não-morais para que uma diretiva seja autoritativa” são proposições equivalentes na exposição de Raz, que apresenta os seguintes critérios para a posse de autoridade: Primeiro, uma diretitva pode ser autoritativamente vinculante apenas se ela for, ou pelo menos for apresentada como sendo, a visão de alguém sobre como seus sujeitos devem agir. Segundo, deve ser possível identificar a diretiva como tendo sido promulgada pela alegada autoridade sem se valer das razões ou considerações sobre as quais a diretiva pretende decidir135.

Estes dois critérios representam condições para que algo ou alguém possa ter autoridade, ou, o que dá no mesmo, para que possa alegar, de maneira significativa, possuir autoridade legítima. Temos assim:

134 135

Ibid. Ibid.

1) Condição da visão do agente: uma diretiva, para poder ter autoridade, deve representar, ou ser apresentada como se apresentasse, a visão de um agente sobre como o sujeito deve agir. 2) Condição da identificação independente: uma diretiva, para poder ter autoridade, deve poder ser identificada independentemente das razões dependentes que a justificam e cujo equilíbrio ela pretende refletir. Por que podemos considerar que a condição da visão do agente e a condição da identificação independente representam condições necessárias (ainda que não suficientes) para a alegação de autoridade legítima (ou para a posse de autoridade)? Comecemos com a primeira condição. De acordo com Raz, as autoridades existem para cumprir um papel fundamental de mediação entre pessoas e boas razões, e a condição da visão do agente procura refletir esse papel. As autoridades, como afirmou Raz, tem um “papel limitado”: elas não têm como objetivo criar novas razões, mas sim nos ajudar a nos conformarmos ao correto equilíbrio das razões que já se aplicam às nossas circunstâncias. Uma autoridade pode se equivocar, ou mesmo oferecer intencionalmente uma diretiva errada, mas ela deve pelo menos ser vista como se refletisse a visão do agente/autoridade sobre as razões que se aplicam àqueles sujeitos a ela. Não fosse assim, “ela não poderia ser uma instrução dotada de autoridade”136. Uma das teses básicas do conceito de autoridade de Raz é a tese da dependência. Diretivas dotadas de autoridade devem se basear nas razões de primeira ordem que se aplicam àqueles sujeitos a ela. Mas para que possa efetivamente ser baseada nessas razões, a diretiva deve, antes de tudo, ser apresentada como se estivesse baseada nessas razões. Se a diretiva sequer é apresentada desta forma (i.e., se ela não representa a visão de um agente sobre as razões dependentes) ela “falha não porque é uma má instrução, mas porque não é uma instrução do tipo correto”137. Nesse sentido, a ordem de um bandido que ameaça sua vítima com uma arma apontada para sua cabeça não só não é uma diretiva dotada de autoridade, como sequer está apta a sê-lo. A ordem do bandido não representa sua visão acerca das razões que se aplicam à sua vítima. Ela é apenas a manifestação do desejo do bandido, combinada com a ameaça decorrente de sua posição de superioridade física momentânea. Ela é uma instrução, mas não é uma instrução capaz de ter autoridade.

136 137

Ibid., 219. Ibid.

A condição da identificação independente também se relaciona na visão de Raz, à função mediadora das autoridades. Suponhamos que no exemplo da arbitragem que tratamos anteriormente, o árbitro tenha decidido de maneira correta: só havia uma única solução para o caso e esta foi a solução adotada pelo árbitro. Mas suponhamos, também, que, ao invés de serem informadas do conteúdo da decisão do árbitro, as partes sejam informadas apenas que ele tomou a única decisão correta existente para o caso. É óbvio que, numa situação como essa, as partes “sentirão que sabem pouco mais de qual é a decisão do que sabiam antes” 138. Se as partes soubessem qual seria a única solução para o caso, elas não precisariam ter recorrido a um árbitro para que decidisse a disputa. Se for necessário recorrer às mesmas razões cujo peso e equilíbrio a decisão dotada de autoridade deveria determinar e resolver, autoridades seriam inúteis. Elas não desempenhariam nenhuma função mediadora se simplesmente redirecionassem as partes para as razões que elas já conheciam e para cujo conflito eles não tinham solução. “Uma decisão é útil”, escreve Raz, “apenas se ela puder ser identificada por meios diferentes das considerações cujo peso e resultado ela deveria resolver”139. Assim, independentemente da legitimidade da suposta autoridade, é necessário que suas diretivas possam ser identificadas de maneira independente das razões dependentes nas quais ela se baseia ou afirma se basear. Essa é uma condição mínima para se alegar possuir autoridade (ou para ter autoridade de facto). Uma instrução que apenas redirecione os sujeitos diretamente às razões de primeira ordem a eles aplicáveis, não exerce nem pretende exercer nenhuma função mediadora e, portanto, não é uma instrução do tipo que possa ter autoridade. Note-se que o termo “identificação” não diz respeito somente à determinação da existência da diretiva, mas também à fixação de seu conteúdo. Quando falamos, na segunda condição, de uma “identificação independente” queremos dizer que tanto a existência quanto o conteúdo da diretiva podem ser identificados sem recurso às razões dependentes nas quais ela se baseia (ou pretende se basear). Assim, por exemplo, uma lei sobre imposto de renda pretende decidir qual seria a justa contribuição devida por cada membro da sociedade aos cofres públicos em termos de um percentual de sua renda mensal. Para estabelecermos o conteúdo desta lei, isto é, para que possamos identificá-la de maneira apropriada, basta que estabeleçamos que ela foi efetivamente promulgada e o que quer exatamente dizer. De acordo com Raz, para fazer isso, “precisa-se de pouco mais do que conhecimento de Inglês

138 139

Ibid. Ibid.

[ou português, no nosso caso] (incluindo inglês [ou português] técnico-jurídico), e dos eventos que ocorreram no Parlamento [ou no Congresso] em algumas ocasiões. Não é preciso chegar a qualquer visão sobre a justa contribuição para os cofres públicos”140. Raz toma o cuidado de mostrar que duas condições não-normativas similares àquelas contidas na tese da visão do agente e na tese da identificação independente podem ser derivadas de premissas muito menos fortes do que aquelas contidas na doutrina da autoridade como serviço. Ele faz isso para mostrar que mesmo que rejeitemos sua concepção de autoridade como serviço, devemos aceitar as condições não-normativas listadas por ele para a posse de autoridade. Raz chama este argumento de “argumento alternativo”. Ele é baseado numa premissa ligeiramente distinta daquelas estabelecidas pela sua concepção de autoridade, mas estabelece condições bastante similares (ainda que não totalmente idênticas) às duas anteriores. A premissa básica do argumento alternativo é a seguinte: “é parte da nossa noção de autoridade legítima que autoridades devem agir baseadas em razões, e que sua legitimidade depende do grau de sucesso em fazê-lo”141. De acordo com Raz, mesmo quem rejeita a concepção de autoridade como serviço poderá aceitar duas condições similares às da visão do agente e da identificação independente se aceitar que a legitimidade das autoridades depende, em parte, do seu sucesso em agir baseada em razões. Se uma autoridade deve agir baseada em razões, uma diretiva que traga embutida uma alegação de autoridade deve representar (ou ser apresentada como se representasse) a visão de um agente sobre essas razões. Essa premissa, porém, não é suficiente para derivar a condição da identificação independente. Contudo, Raz crê ser possível derivar duas condições mais fracas do que ela. Neste ponto, Raz introduz uma informação fundamental: ele assume que “autoridades fazem alguma diferença”142, i.e., o fato de que uma diretiva foi efetivamente expedida por uma autoridade modifica as razões que um indivíduo tem para agir. Essa premissa, quando combinada com a premissa anterior (que afirmava simplesmente que autoridades devem agir baseadas em razões), nos permitem concluir o seguinte: (1) a existência de razões para que uma autoridade emita uma diretiva não altera, por si só, as razões que um indivíduo tem para agir. Se uma diretiva dotada de autoridade deve alterar estas razões (i.e., se deve exercer uma diferença prática), devemos admitir que na sua ausência, e tudo mais permanecendo constante, não haveria esta modificação. A existência e conteúdo de uma lei, portanto, não podem depender da existência de razões para a promulgação desta lei (do contrário, ela não Ibid., 221. Ibid., 220. 142 Ibid. 140 141

teria diferença prática, já que com ou sem sua promulgação os indivíduos teriam exatamente as mesmas razões para agir). (2) A existência e conteúdo de uma diretiva também não podem depender da promulgação de uma outra diretiva. É possível que a promulgação de uma lei se torne uma boa razão para a promulgação de outra. Mas este fato, por si só, não estabelece a existência da lei. Esta segunda condição exclui, portanto, a possibilidade de diretivas com autoridade implicada. Cada diretiva (e consequentemente, cada lei) deve satisfazer individualmente a tese da diferença prática. A condição da identificação independente baseou-se na função mediadora das autoridades, derivada das três teses básicas da concepção de autoridade como serviço. Raz agora mostra que uma condição similar pode ser derivada de uma premissa geral (a de que autoridades agem por razões) e uma premissa mais específica, baseada no que ele considera um insight básico que compartilhamos sobre toda e qualquer autoridade: autoridades devem ter uma diferença prática sobre as razões que os indivíduos tem para agir. Combinadas estas premissas, chega-se a uma condição bastante similar àquela estabelecida pela condição da identificação independente: não é possível identificar uma diretiva dotada de autoridade recorrendo-se às razões dependentes que justificam a emissão da diretiva.

1.6.6 Da reivindicação de autoridade à tese das fontes Raz acredita que as duas condições para posse de autoridade vistas acima podem ser utilizadas para avaliar qual dentre as três teses sobre a relação entre direito e moral é mais razoável. Deveremos optar pela tese que satisfaça às duas condições não-normativas, e rejeitar aquelas que não se adequem a elas. Para Raz, apenas a tese das fontes passa nesse teste. Precisamos agora analisar o porquê. De maneira esquemática, esta é a estrutura do argumento de Raz: (1) Para que o direito possa alegar ter autoridade legítima, ele deve possuir as propriedades P1 (…) Pn. (2) O direito alega ter autoridade legítima. (3) Logo, o direito possui as propriedades P1 (…) Pn. (4) A tese das fontes é compatível com o fato de o direito possuir as propriedades P1 (…) Pn. A tese da incorporação e a tese da coerência são incompatíveis com a posse das propriedades P1 (…) Pn. (5) Logo, a tese das fontes, dentre as três, é a explicação mais razoável para a natureza do direito.

Os tópicos anteriores procuraram mostrar como Raz estabelece a verdade das proposições (1), (2) e (3). A conclusão (5) representa o núcleo da tese de Raz e é a proposição central de sua versão exclusivista do positivismo jurídico. Para que possamos estabelecê-la, contudo, é preciso estabelecer a verdade da proposição (4), da qual depende a validade do argumento. Dado que o direito necessariamente satisfaz às duas condições não-normativas presentes nas condições da visão do agente e da identificação independente, a conclusão de que a tese das fontes é a explicação mais razoável da natureza do direito seguir-se-á se, e somente se, ela for compatível, e as outras não forem, com a proposição (3). É preciso, então, analisar cada tese individualmente para avaliar se ela ajusta-se ou não ao fato, estabelecido em (3), de que o direito possui as propriedades P1 (…) Pn.

1.6.6.1 Tese da Coerência A tese da coerência afirma que o direito consiste nas normas baseadas em fontes sociais junto à justificação moral mais razoável do direito baseado em fontes sociais. A formulação é claramente vaga e precisamos de uma formulação mais precisa antes de analisarmos se essa tese é compatível com a proposição (3) do argumento de Raz. A tese da coerência apresentada por Raz procurou sintetizar a concepção de Ronald Dworkin acerca da natureza e identidade do direito. Numa formulação recente de sua tese, Dworkin caracteriza sua posição (agora chamada de “interpretativismo”) da seguinte maneira: O direito inclui não apenas as regras específicas promulgadas de acordo com as práticas aceitas de uma comunidade, mas também os princípios que fornecem a melhor justificação moral para aquelas regras. O direito, então, inclui as regras que se seguem daqueles princípios justificadores, mesmo que estas novas regras jamais tenham sido promulgadas143.

As regras efetivamente promulgadas são um ponto de partida para a determinação dos princípios justificadores. Mas, uma vez que adicionamos este elemento interpretativo, o resultado é o reconhecimento de que regras não promulgadas também fazem parte do direito (desde que se sigam dos princípios justificadores estabelecidos a partir das regras efetivamente promulgadas). Raz afirma, no entanto, que a tese da coerência (ou interpreativismo) é “inconsistente com a natureza dotada de autoridade do direito”144. As razões que o levam a concluir isso são as seguintes: a tese da coerência permite a existência 143 144

Ronald Dworkin, Justice for Hedgehogs (Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2011), 402. Raz, Ethics in the Public Domain, 225.

de normas que jamais tenham sido promulgadas. Portanto, é possível, de acordo com Dworkin e outros partidários da tese da coerência, que existam leis que não representam a visão de quem quer seja sobre o que os seus sujeitos devem fazer. Raz também afirma que se segue da formulação de Dworkin que essas normas, além de não representarem a visão de ninguém, também não são apresentadas como se representassem145. Os princípios construídos a partir das regras efetivamente promulgadas podem, como nota Raz, jamais terem sido pensados ou expressamente adotados por qualquer autoridade. Os princípios de que fala Dworkin não são derivados ou implicados pela moralidade política que efetivamente motivou aqueles que adotaram as regras promulgadas. Mesmo que fosse possível identificar esses princípios, Dworkin não os equipara aos princípios que fornecem a melhor justificação moral das regras promulgadas (que devem ser estabelecidos por meio de argumentos morais, e não pela reconstrução histórica das opiniões morais dos legisladores passados). Raz observa que o recurso à “melhor justificação” torna possível que grande parte do direito de determinado país possa ser desconhecido para parcela significativa da população (e até mesmo de seus oficiais). Esse direito “desconhecido”, no entanto, já seria juridicamente vinculante, “aguardando para ser descoberto”146. A tese da coerência, portanto, viola a condição da visão do agente. Pelo argumento de Raz, a violação de apenas uma das duas condições já seria suficiente para justificar a rejeição da tese da coerência. Ele, no entanto, avança para a condição seguinte. Segundo Raz, além de não se adequar à condição da visão do agente, a tese da coerência também não se ajusta à condição da identificação independente. O direito, na concepção coerentista de Dworkin, deve ser identificado por meio de argumentos morais. O recurso às razões morais que justificariam o conjunto de regras promulgadas (e a partir das quais se derivariam novas regras) é inescapável. Escreve Raz: “a identificação de grande parte do direito depende, de acordo com a análise de Dworkin, de considerações que são as mesmas considerações que o direito deveria resolver”147. A concepção coerentista de Dworkin viola, portanto, as condições da visão do agente e da identificação independente. Mas ela viola também, de acordo com Raz, as condições previstas no seu “argumento alternativo”. A primeira condição estabelecida no argumento alternativo era similar à condição estabelecida pela condição da visão do agente: autoridades devem agir baseada em razões, e a validade de suas diretivas depende, em parte, no seu sucesso em fazê-lo. Raz concluir disso que o direito deve ser apresentado como a Ibid., 224. Ibid. 147 Ibid., 224–225. 145 146

visão do legislador e da autoridade a respeito das boas razões aplicáveis aos indivíduos. Como já vimos, o argumento de Dworkin viola essa condição, mas ele também viola a segunda condição, derivada da tese da diferença prática. O direito, conforme escreveu Raz, deve ter ou fazer alguma diferença prática no raciocínio daqueles sujeitos a ele. Portanto, a validade de uma lei não pode depender inteiramente do fato de ela ser uma lei desejável em vista das razões dependentes ou da existência de outras leis. Sustentar o contrário é assumir que pode existir uma lei ou diretiva que não faça, nem pretenda fazer, nenhuma diferença prática no nosso raciocínio. Se as razões morais aplicáveis no caso tributário tornavam desejável a existência de uma lei que determinasse certa solução, e se isso bastasse para estabelecer a existência da lei e nos permitir identificá-la, a efetiva promulgação da lei não faria diferença prática alguma, já que ela já existiria antes e independente desta promulgação. A conclusão de Raz, então, é que a tese da coerência, em geral, e a concepção do Direito de Dworkin, em particular, “não condiz[em] com o fato de que o direito necessariamente alega possuir autoridade e que ele, então, deve ser capaz de possuir autoridade legítima”148.

1.6.6.2 Tese da incorporação Antes de avaliarmos a compatibilidade da tese da incorporação com as duas condições para a posse de autoridade, devemos entender o que ela afirma. A tese da incorporação não diz que o direito é necessariamente composto pelas regras baseadas em fontes sociais e as regras implicadas por elas. A tese da incorporação sugere que é possível (e não que é necessário) que o direito possa incluir, além das regras baseadas em fontes sociais, aquelas derivadas das (ou implicadas pelas) regras baseadas em fontes sociais. O argumento de Raz é que, entendida desta forma, a tese da incorporação é incompatível – assim com a tese da coerência – com a natureza autoritativa do direito149. Para demonstrar essa incompatibilidade, Raz recorre a alguns exemplos de situações envolvendo autoridades teóricas. Suponhamos que Andrew, um brilhante matemático, prove que a conjectura de Goldbach, de acordo com a qual todo número inteiro maior do que três é a soma de dois números primos, é verdadeira se, e somente se, a solução de certa equação for positiva. A prova de Andew não é trivial: estamos supondo que ele determinou que equação devemos 148 149

Ibid., 225. Ibid., 227.

resolver para provar a conjectura e que, antes disso, não sabíamos exatamente qual equação levaria a esta prova. Ocorre que nem Andrew nem qualquer outro matemático vivo conhecem a solução desta equação. Tudo que eles sabem é que se uma solução para ela for encontrada, e se essa solução for positiva, a conjectura de Goldbach estará provada. Imaginemos agora que, cinquenta anos após a prova de Andew, a equação seja finalmente resolvida e a conjectura de Godlbach, provada. Para Raz, não diríamos que Andrew provou a hipótese, ainda que ele tenha feito uma contribuição fundamental (ao identificar a equação que deveria ser resolvida) e a verdade da conjectura seja uma consequência lógica de sua descoberta150. Imaginemos agora que Alice nos informe da descoberta de Andrew (antes da solução efetiva da equação). Alice, assim como Andrew, é uma especialista na área da matemática, e seu conselho é, pelo menos no seu campo de expertise, dotado de autoridade (teórica). Alice, no entanto, não nos aconselha a aceitar com verdadeira a conjectura de Goldbach. Ela apenas nos aconselha a acreditar (com base na prova de Andrew) que a conjectura será verdadeira se a solução da equação relevante for positiva. A verdade da conjectura é consequência lógica do seu conselho (já que a solução posterior da equação é positiva), mas não diríamos que o seu conselho foi para que aceitássemos a verdade da conjectura151. O exemplo acima mostra que não podemos dizer que alguém aconselhou a aceitação de uma proposição particular p com base no fato de que p é uma implicação lógica de outra proposição cuja aceitação aquela autoridade de fato aconselhou. Afinal, concedemos acima que é possível que as implicações lógicas de determinada proposição sejam desconhecidas (e ninguém poderia oferecer um conselho ou emitir uma diretiva dotada de autoridade sobre algo que desconhece). Esse fato pode ser demonstrado ainda de outra maneira. Escreve Raz: As pessoas não acreditam em tudo que é implicado por suas crenças. As crenças desempenham um certo papel em nossas vidas ao apoiar outras crenças, ao fornecer premissas para nossas deliberações práticas. Elas colorem nossa vida emocional e imaginativa. De maneira mais geral, elas são pontos fixos determinando nosso senso de orientação no mundo. Muitas das proposições implicadas pelas nossas crenças não desempenham esse papel nas nossas vidas. Uma marca desse fato é que se as pessoas estivessem cientes de algumas das consequências de suas crenças, ao invés de abraçálas elas poderiam preferir abandonar as crenças que as implicaram (…) Essa consideração explica porque não podemos atribuir às pessoas a crença em todas as consequências lógicas de suas crenças. Ela também explica porque 150 151

Ibid., 227–228. Ibid., 228.

uma pessoa não pode aconselhar crença numa proposição que ela própria não acredita152.

Imaginemos o caso em que alguém, que reconhecemos como sendo uma autoridade, nos aconselha a aceitar a proposição p como sendo verdadeira. Imaginemos também que aceitamos a tese de que é possível que um conselho dotado de autoridade abrange não só a proposição p a que a autoridade fez referência expressa mas também a proposição q que é uma implicação lógica da proposição p. Ocorre que a autoridade não tinha conhecimento que q se segue logicamente de p. Informada sobre isso, ela abre mão da crença em p pois não está disposta a aceitar q. Neste caso, não faria sentido afirmar que o conselho fosse para que aceitássemos tanto p quanto q. Mesmo que estejamos diante de uma relação de implicação lógica, a autoridade não poderia ter nos aconselhado a aceitar q porque (1) ela não tinha conhecimento de que q era o caso; (2) agora que ela sabe que q se segue de p, ela abriu mão de ambas as proposições. Conclui Raz: [Um] conselho compartilha o papel mediador das diretivas dotadas de autoridade. Ele também é uma expressão de um julgamento sobre as razões que se aplicam ao destinatário do conselho. Porque o conselho tem este papel mediador, ele só pode incluir questões sobre as quais o conselheiro tem uma visão, ou que se apresenta como tendo uma visão (…) Como uma pessoa não acredita em todas as consequências de suas crenças, ela não pode também, fora de circunstâncias excepcionais, aconselhar os outros a acreditar nelas153.

A tese da incorporação permite que o direito incorpore tudo aquilo que seja derivável (seja logicamente, seja em combinação com outras proposições verdadeiras) do direito baseado em fontes sociais. Estes padrões deriváveis não foram jamais endossados por uma instituição criadora de direito. Essas instituições, inclusive, poderiam sequer ter conhecimento desses padrões ou do fato de que eles seriam implicados pelo que elas efetivamente promulgaram. É possível até que, se elas tivessem conhecimento das regras derivadas, elas não teriam promulgado a regra original. Padrões deriváveis, portanto, são incompatíveis com o papel mediador das autoridades e com a condição da visão do agente.

1.6.6.3 Tese das fontes Para demonstrarmos a validade e aparente solidez do silogismo apresentado em 1.6.6, precisávamos demonstrar: (a) a incompatibilidade entre a tese da coerência e a posse

152 153

Ibid. Ibid.

de algumas propriedades necessárias para a reivindicação de autoridade; (b) a incompatibilidade entre a tese da incorporação e a posse de algumas propriedades necessárias para a reivindicação de autoridade; (c) a compatibilidade entre a tese das fontes e a posse dessas propriedades. Vimos acima como Raz estabelece (a) e (b). Precisamos agora ver como ele demonstra que (c) é o caso. A tese das fontes afirma que todo o direito é baseado em fontes sociais. Portanto, aquilo que não possui uma fonte social não tem o caráter jurídico relevante (e onde não houver uma fonte, haverá uma lacuna no direito). O argumento de Raz é que, ao contrário das duas outras teses, é a tese das fontes é compatível com as condições não-normativas para a posse de autoridade analisadas por ele. Raz observa, de início, que legislação, decisões judiciais e costumes - três fontes jurídicas comuns - satisfazem às condições da visão do agente e da identificação independente. A legislação pode ser arbitrária, injusta, e até mesmo falhar completamente em adequar-se à tese da dependência (i.e., ela pode não ter uma relação efetiva com as razões dependentes que se aplicam aos indivíduos). No entanto, a legislação pelo menos expressa (ou é apresentada como se expressasse) a visão de um legislador (ou um conjunto de legisladores) sobre como os cidadãos devem agir nas condições em que as leis promulgadas se aplicam. O legislador pode estar enganado, mas as leis que promulgam são o produto (ou são apresentadas como se fossem o produto) do seu julgamento sobre as razões que se aplicam aos seus cidadãos. Isso é tudo que é necessário para a condição da visão do agente, de maneira que a legislação, enquanto fonte de direito, é compatível com ela154. Decisões judiciais também são compatíveis com a condição da visão do agente. Juízes podem decidir de maneira incorreta, podem agir de maneira arbitrária ou decidir em troca de favores e privilégios. Contudo, uma decisão judicial expressa um julgamento sobre as consequências jurídicas das ações dos litigantes, isto é, sobre as razões jurídicas que se aplicam a eles. Ela é um julgamento sobre como as partes deveriam ter agido e representa a visão da autoridade judicial sobre essas razões. Quanto aos costumes, Raz nota que, ao contrário da legislação e das decisões judiciais, eles não são normalmente gerados por pessoas que têm a intenção de criar direito. Ainda assim, Raz argumenta que os costumes são compatíveis com a condição da visão do agente porque “refletem o julgamento do grosso da população sobre como as pessoas, nas circunstâncias relevantes, devem agir”155. A noção de agente, quando aplicada aos costumes,

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Ibid., 221. Ibid.

deve ser expandida para permitir que a própria comunidade (ou mesmo o conjunto dos oficiais, no caso de costumes judiciais) possa formar uma visão, satisfazendo assim à condição da visão do agente. As fontes jurídicas também se conformam à segunda condição para a posse de autoridade. Tanto costumes quanto decisões judiciais e leis podem ser identificados sem recorrer-se às considerações sobre as quais eles próprios deveriam basear-se e cujo conflito eles deveriam resolver. A legislação sobre imposto supostamente deve decidir qual é a justa contribuição para o Estado a ser devida com base na renda individual. Para se estabelecer o conteúdo dessa legislação, contudo, não é necessário que os cidadãos ou os juízes utilizem argumentos morais ou decidam, eles próprios, o que seria esta justa contribuição. “Para estabelecer o conteúdo da lei”, escreve Raz, “tudo que é necessário é estabelecer que a promulgação ocorreu, e o que ela diz”156. O mesmo vale, de acordo com Raz, para decisões judiciais e para costumes. Tanto num caso como no outro, é possível identificar a existência e conteúdo da decisão ou da regra costumeira sem recorrer às razões dependentes nas quais a decisão ou o costume se baseiam. O direito baseado em fontes sociais (especialmente baseado em legislação, decisões judiciais e costumes) satisfaz, portanto, as duas condições para a posse de autoridade listadas por Raz. Outro ponto importante destacado por Raz é que a identificação de uma diretiva como diretiva jurídica deve ser dar por meio de um processo de atribuição baseado exclusivamente em fatos sociais157. Assim, é necessário que (1) seja possível atribuir a diretiva a uma pessoa ou instituição; (2) o processo pelo qual estabelecemos a atribuição deve se basear exclusivamente em fatos sociais (quer dizer, uma diretiva que seja atribuível por implicação lógica ou algum tipo de derivação moral não satisfaz o critério). Para desempenhar este papel [de mediação entre as razões últimas e as ações e decisões das pessoas] o direito deve ser, ou pelo menos ser apresentado como se fosse, uma expressão do julgamento de alguma pessoa ou alguma instituição sobre os méritos das ações que ele requer. Desta forma, a identificação de uma regra como uma regra jurídica consiste em atribui-la à pessoa ou instituição relevante como representando suas decisões e expressando seus julgamentos. Tal atribuição não precisa se dar com base no fato de que isso foi o que a pessoa ou instituição explicitamente disse. Ela pode ser baseada numa implicação. Mas a atribuição deve estabelecer que a visão expressão na alegada afirmação é a visão da instituição jurídica relevante. Tais atribuições só podem ser baseadas em considerações factuais. Argumentos morais podem estabelecer o que uma instituição jurídica deveria ter dito ou deveria ter mantido, mas não o que ela de fato disse ou manteve158. Ibid. Ibid., 231. 158 Ibid. 156 157

No trecho acima, Raz abre espaço para diretivas “implícitas” ao afirmar que não é preciso que a atribuição ocorra com base naquilo que a pessoa ou instituição expressamente determinou. Isso parece contradizer o que o próprio Raz afirmou anteriormente quando criticou a tese da incorporação. O próprio Raz reconhece que não está comprometido com a ideia de que todo o direito é direito explícito. Não haveria uma contradição neste ponto? Quando Raz criticou a tese da incorporação ele afirmou que o direito não pode incorporar regras logicamente implicadas (em relação às quais as autoridades não formaram opinião ou julgamento) pois isso seria incompatível com as condições para a posse de autoridade. Todavia, Raz não afirma, no trecho acima, que todas as implicações das regras jurídicas podem ser atribuídas às autoridades. Além disso, o que ele entende por atribuição baseada em implicação não é o mesmo que a implicação lógica de uma diretiva ou crença. Imaginemos, por exemplo, que uma autoridade tenha emitido a seguinte diretiva: “lucros obtidos no exterior serão taxados em um percentual distinto dos lucros obtidos internamente”. Essa regra não estabelece explicitamente que a renda obtida a partir das exportações será taxada com base no percentual interno. Mas suponhamos que esse seja o caso: isto é, que é possível apontar determinados fatos sociais (por exemplo, portarias, outras determinações legais etc.) que demonstrem que a autoridade entende que os lucros das exportações são considerados “lucros obtidos internamente” e não lucros obtidos no exterior. Nesse caso, a determinação de que os lucros das exportações serão taxados de acordo com o percentual interno é atribuível à autoridade (essa era, afinal, a visão da autoridade sobre a questão), mesmo que não estivesse explicitamente estabelecida na diretiva original. Essa será uma espécie de regra implícita, mas justificamos essa implicação não com base em argumentos lógicos ou morais, mas apontando outros fatos sociais que demonstrem que a visão representada pela diretiva implícita era, de fato, a visão da instituição jurídica relevante. O caso, portanto, é diferente do exemplo do matemático Andrew, que não conhecia a solução da equação que julgava fundamental e que, portanto, não poderia formar uma visão ou opinião sobre o assunto. Também não é uma objeção afirmar que, se a atribuição de uma diretiva à determinada autoridade basear-se exclusivamente em fatos sociais, a questão deveria ser incontroversa e facilmente demonstrável159. Essa objeção basear-se-ia, de acordo com Raz, numa falsa dicotomia: ela assume que se uma questão é controversa, ela deve ser uma questão moral e que, portanto, questões que dizem respeito a fatos sociais devem poder ser resolvidas facilmente e sem controvérsias. Nem Raz acredita que só questões morais podem ser 159

Ibid.

controversas, nem que todas as questões morais são controversas. Além disso, mesmo que a atribuição de uma intenção ou pensamento ao seu autor deva basear-se em critérios factuais, esses critérios podem ser controversos ou de difícil demonstração. A atribuição de autoria de uma diretiva também não implica que seja possível identificar uma única e determinada autoridade ou instituição como autora da diretiva. Raz responde a essa objeção afirmando que quando tratamos de instituições complexas, a complexidade no processo de atribuição será maior. Isso porque autoridades posteriores podem modificar uma diretiva originária, acrescentando novas determinações ou retirando outras. O processo de atribuição continuará, nesse caso, baseando-se em critério factuais, mas ele será mais complexo porque mais complexo foi o processo de formação da diretiva atual. Uma “regra como é agora”, escreve Raz, “pode incluir aspectos que não podem ser atribuídos ao seu criador original. Eles são parte da regra porque são atribuíveis ao autor de uma intervenção posterior”160. Se a visão contida na regra não for passível de atribuição a um único indivíduo em particular isso não demonstra que a tese de Raz seja falsa: demonstra apenas que a regra é fruto da visão de muitos indivíduos, e não de um só161. Essa conclusão é, segundo ele, inteiramente compatível com a tese das fontes.

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Ibid., 229. Ibid., 234.

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