Em favor de uma cartografia cognitiva dos espaços onde os VJs atuam: estratégias na constituição de jogos dialógicos

June 23, 2017 | Autor: Guilherme Cestari | Categoria: Music Cognition, Masks, Trance, VJ, Vjing
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Em favor de uma cartografia cognitiva dos espaços festivos onde VJs atuam Guilherme Henrique de Oliveira Cestari

Em favor de uma cartografia cognitiva dos espaços festivos onde VJs atuam1 estratégias na constituição de jogos dialógicos Guilherme Henrique de Oliveira Cestari2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: Fundamentado no contato promovido por Pietarinen (2013) entre teoria dos grafos existenciais de Peirce e teoria dos jogos, este trabalho descreve e analisa aspectos lógicos da relação entre videojóquei (VJ) e público no ambiente festivo. A pista de dança é espaço cognitivo, em que se podem realizar inscrições e interferências. A sociedade, como ser inteligente, interpreta performances dos VJs. Cada performance realizada por VJs contribui de modo diferente para o desenvolvimento contínuo de uma cultura do VJing no contexto social em que está inscrita. Palavras-chave: VJ; Grafos existenciais; Improviso; Imagem e inserção social. Abstract: Based on contact promoted by Pietarinen (2013) between Peirce’s existential graphs and game theory, this work describes and analyzes logical aspects of relations between video jockey (VJ) and audience in festive contexts. The dance floor is a cognitive space, where inscriptions and interferences can be done. The society, as intelligent being, interprets VJ’s performances. Each VJ performance contributes differently to the continuous development of a VJing culture at the social context on which it is inscribed. Key words: VJ; Existential graphs; Improvisation; Image and social inclusion.

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Uma versão abreviada deste artigo foi apresentada no II Seminário Internacional de Imagem e Inserção Social, realizado em 10 de novembro de 2014 na Faculdade Cásper Líbero. A versão resumida será publicada em anais, editados como livro. 2 Doutorando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), orientado pelo Prof. Dr. Winfried Nöth e inscrito na linha de pesquisa Aprendizagem e Semiótica Cognitiva. Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e graduado em Design Gráfico também pela UEL. Email: [email protected] 1

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VJing como signo Este artigo advém de uma apropriação livre da teoria dos grafos existenciais de Charles Sanders Peirce para compor uma metáfora da cognição nos ambientes festivos em que o VJ se apresenta; serve como esboço que descreve aspectos de complexidade identificáveis na relação entre VJ, público e sociedade. Ocupar uma pista de dança é instalar-se e circunscrever-se num espaço permeado por dialogismo e instabilidade; as configurações de iluminação, som e visualidade, além do eventual uso de substâncias que alteram a normalidade da percepção, influem nas relações entre mente e ambiente. Diante da profusão de estímulos, a energia corporal na pista é dispendida principalmente por meio do improviso; em geral, danças coreografadas, por exemplo, acontecem em momentos pontuais, depois, é de praxe que se retorne à improvisação. Há um conjunto mais ou menos definido de regras (terceiridade) tácitas que instanciam o comportamento (segundidade) na pista de dança; ou seja, existem diretrizes eminentemente aperfeiçoáveis que regulam a convivência no espaço festivo: vigoram informalmente permissões e restrições que dizem respeito ao relacionamento interpessoal. A execução do improviso é orientada por acordos não necessariamente verbalizados ou expressos formalmente. Um mapeamento cognitivo do espaço em que o videojóquei (VJ) atua passa pela descrição lógica da determinação da conduta antes, durante e depois de uma performance audiovisual. Além de sons, luzes, imagens, gritos, gestos, jeitos de dançar e de se vestir, homens e mulheres também são, por si sós, signos; o ser humano é signo e sua vida acontece na relação com outros signos. Cada ser humano possui uma capacidade própria e singular de interpretar e de produzir signos; por viver em sociedade, cada um faz parte também de um organismo maior, que interpreta e produz signos comunitariamente. A capacidade de produção-interpretação de signos de uma comunidade tende a ser mais sofisticada que a de indivíduos quase-isolados. A tendência à individualização e ao isolamento pode limitar o acesso à variedade; o pensamento coletivo tende a ser mais complexo porque presume a coexistência de diferenças. Para Santaella (2003), merece atenção “[...] a noção de uma mente cuja história é contínua e tem vindo a crescer como um organismo há alguns milhares de anos” (p. 106); influenciando o comportamento desta mente, estão “[...] regras simples aplicadas por um grande número de agentes que, ao trabalharem paralelamente, conduzem à auto -organização de um sistema complexo e à emergência de propriedades imprevisíveis” (p. 107). Cada ocupante da pista de dança é um agente constituinte do sistema; se todas as relações entre os agentes forem extintas, o sistema se desarticula e deixa de existir: VJs, DJs, músicos e promoters são agentes, aparatos tecnológicos são agentes, cada integrante do público é um agente. “Regras simples” podem ser, aqui, as estratégias de comunicação utilizadas por cada agente. Um grande

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número de agentes atuando paralelamente origina um sistema complexo. A comunicação ininterrupta entre VJ e público/sociedade contribui para a constituição de hábitos que, em parte, determinam a convivência no ambiente urbano. As imagens produzidas e articuladas pelo VJ pertencem, inevitavelmente, a um contexto social. No processo eminentemente aperfeiçoável de conformação de regras e culturas, o VJing gera comprometimentos sociais e culturais apenas parcialmente previsíveis. Pressupondo a pista de dança como ambiente cognitivo, onde signos transitam e combinam-se exercendo influência sobre mentes que vivem na cidade, este trabalho tem por principal objetivo compreender aspectos lógicos da relação entre VJ e público no ambiente festivo; para isto fundamenta-se no contato, proposto por Pietarinen (2013), entre a teoria dos grafos existenciais, desenvolvida por Peirce, e a teoria dos jogos. O Quadro 1, a seguir, sintetiza os propósitos deste texto. Quadro 1 – Quadro resumo questão da pesquisa

HIPÓTESES

OBJETIVO GERAL

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Como compreender, adotando parâmetros lógicos, aspectos da comunicação entre VJ e público antes, durante e depois do contato entre ambos na pista de dança?

A pista de dança é espaço mental caracterizado pela informalidade; é um lugar propício para que aconteça o fluxo gerativo e evolutivo de pensamentos originado pela ação dos signos. __

Fundamentado no contato promovido por Pietarinen (2013) entre teoria dos grafos existenciais de Peirce e teoria dos jogos, compreender aspectos lógicos da relação entre VJ e público no ambiente festivo.

Caracterizar posições e interesses de grafista e grafeu no jogo dialógico que culmina na composição e no desenvolvimento de um diagrama. __

Ocupando um espaço comunicacional dialógico permeado pela improvisação, o público configura-se como ser inteligente que, ao interpretar os signos do trabalho do VJ, pode ter algumas de suas condutas modificadas por ele.

__ Ao produzir, em tempo real, interferências pouco previsíveis no espaço compartilhado com o VJ, o público evita posturas meramente reativas diante da apresentação; ao assumir, por vezes, a posição de grafista, o público contribui criativamente para a evolução do diálogo entre VJ e sociedade. Fonte: elaborado pelo autor.

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Descrever estratégias que grafista e grafeu geralmente utilizam para defender seus interesses durante o jogo, destacando a importância, no caso da pista de dança, da paidia (CAILLOIS, 1990) e do improviso na atuação de ambos. __ Compreender como comunicação e oposição incessantes entre grafista e grafeu contribuem para a constituição e manutenção de hábitos e culturas especialmente influenciados pelo VJing.

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A pista de dança é um dos lugares em que acontece a semiose. Por semiose, entende-se a ação ou influência que é ou envolve a cooperação lógica entre três elementos, como o signo, seu objeto e seu interpretante; esta influência tri-relativa não pode ser simplificada ou reduzida em ações meramente diádicas (observar CP5.484, 1907). A semiose é um processo dialógico e triádico, porque se refere à mediação entre dois elementos, realizada obrigatória e indissociavelmente por um terceiro. De acordo com Fabbrichesi (2013, p. 20): A semiótica peircena baseia-se, acima de tudo, na ideia de interpretante. Isso porque sem a mediação do interpretante (que não é uma mente subjetiva) não há ativação significativa da relação sígnica. É exatamente esta referência ao interpretante que mantém a relação sígnica em movimento, fazendo dela uma ‘função ou referência relacional’, e a cadeia dinâmica de Interpretantes produz a semiose ou a ‘ação triádica do signo’ (CP5. 472).

Se a ação triádica do signo é condição para a vida, a análise da ação do signo produzido pela ambiência do VJ se refere aos modos de vida e de pensamento que se desenvolvem em conjunto com a performance audiovisual. Para Makela (2008, p. 1), o VJing se assemelha a um DJing visual. A maioria dos DJs não produz seu próprio material, eles mixam músicas do mesmo modo que VJs mixam materiais preexistentes. Se desejarem, VJs podem criar seus próprios clipes, mas esta não seria uma característica elementar do VJing. O que definiria o trabalho do VJ é a criação via seleção, mixagem e remixagem, e não necessariamente via produção prévia, de conteúdo. Vários VJs podem usar os mesmos clipes de modo distintos, e isto normalmente não compromete a originalidade de suas performances. Em suma, de acordo com Makela (2008), para ser um VJ não é necessário saber produzir faixas musicais ou clipes de vídeo, mas é essencial saber misturar materiais, linguagens e formatos, originando uma apresentação performática híbrida. Se visualidade e sonoridade do VJ acontecem na informalidade e no improviso, o desenvolvimento das relações sociais na VJ arena segue padrões semelhantes. É possível identificar correspondências entre a organização do espaço, a sintaxe da imagem e da sonoridade articulados pelo VJ e a configuração das relações interpessoais no público. Em suma, diante da presença do material misturado e projetado pelo VJ, as relações sociais influem no contínuo rearranjo do terreno que é a pista de dança, e vice versa: relações interpessoais modificam a disposição de elementos topográficos da pista, que, por sua vez, retroagem sobre as relações interpessoais, determinando-as. Assim se caracteriza um sistema recursivo evolutivo parcialmente previsível. Neste aspecto, considerando a coletividade como organismo, pode-se afirmar que visualida-

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de e sonoridade das imagens do VJ ressonam na conduta e no pensamento do público e da sociedade como entidades coletivas. O público em senso lato é ser inteligente que, ao interpretar os signos do trabalho do VJ, pode ter algumas de suas condutas modificadas por ele. Compondo diagramas Pressupondo que o sistema de grafos existenciais desenvolvido por Peirce é um diagrama – rústico e geral – da mente (observar CP4.582, 1906; Fabbrichesi, 2013, p. 32), o raciocínio diagramático se mostra um recurso conveniente para considerar conteúdos articulados pelo VJ como intervenções ressonantes no espaço e, também, para compreender o desenvolvimento da cognição no ambiente festivo sobre o qual o VJ intervém. Diagramar é ponderar relações entre elementos por meio da geração de um esquema visualizável. Em acepção geral, a diagramação independe de materialização; o raciocínio diagramático é instrumento da mente humana (mas não somente dela) para lidar com a experimentação. Diagramar é dispor visualmente elementos numa superfície mental de modo a representar algumas qualidades estruturais de um fenômeno; as relações entre os elementos sintáticos de um diagrama se assemelham às relações entre os componentes do fenômeno representado. A folha fêmica (ou folha de asserção) é a superfície material na qual são inscritas instânciasgrafos; em outras palavras, é o contexto por meio do qual aquele que inscreve grafos e aquele que os interpreta se relacionam. Signos podem ser inscritos ou apagados da folha fêmica (observar CP4.553, c. 1906) desde que sejam respeitadas certas regras (permissões) lógicas de inserção e de deleção. Qualquer conteúdo que ocupe a folha fêmica diz respeito a um universo arbitrário e hipotético, criação de uma mente; este conteúdo deve ser considerado sob a perspectiva de um vir a ser, ou seja: se as premissas inscritas forem verdadeiras, então as relações serão verdadeiras se o universo/contexto proposto deixar de ser hipotético. Imagina-se que há duas pessoas, uma delas, chamada grafista, ocupada em realizar sucessivas modificações no conteúdo da folha fêmica. A outra pessoa é o grafeu, que concebe um universo por meio do desenvolvimento contínuo de suas ideias sobre este mesmo universo, adicionando, a cada intervalo de tempo, fatos sobre este universo, conforme se desenvolve sua interpretação acerca dos conteúdos disponíveis na folha fêmica. Enquanto o grafista inscreve modificações na folha fêmica, o grafeu lê, interpreta o que está na folha e cria continuamente um universo hipotético baseado em seu entendimento das informações ali representadas. A atividade realizada pelo grafista deve chegar a um fim antes do trabalho de interpretação-criação realizado pelo grafeu. O grafista deve esforçar-se para ser um suposto leitor de mentes,

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estimulando-se a estar ciente [de uma parcela ou mesmo da totalidade] do trabalho interpretativocriativo já realizado, no passado, pelo grafeu. O grafista pretende que os grafos por ele inscritos expressem aspectos de como o universo virá a ser caso, porventura, deixar de ser meramente hipotético e vier a existir de fato. O grafista pode incorrer em contradição e sofrer punições caso arriscar uma inscrição sem garantias do que já foi interpretado pelo grafeu (observar CP4.431, c. 1903). Resumidamente, em se tratando dos grafos existenciais, uma certa folha, chamada folha de asserção ou folha fêmica, é superfície material apropriada para desenhar grafos que expressam asserções inscritas por uma pessoa imaginária chamada grafista, em um universo contínuo perfeitamente definido e inteiramente determinado. Este universo é uma criação arbitrária e hipotética de uma mente imaginária chamada grafeu (observar CP4.432, c. 1903). O VJ ajuda a constituir um diagrama porque inscreve – projeta – formas visuais (e também luminosas e sonoras) num espaço de apresentação; espaço habitado pelo público, que, de modo inteligente, interpreta os signos, incorporando-os ou não à sua conduta. O VJ é grafista porque projeta signos diretamente no espaço de apresentação e, indiretamente, na mente do público. O público é grafeu porque interpreta e articula os signos então projetados pelo grafista. Interpretar diagramas é articular formas e proposições, combinando-as e experimentando-as. Não há diagramação efetiva que não pressuponha interpretação (experimentação por meio da articulação de elementos). O grafeu não cria inscrições na folha assertiva, mas, na constante tentativa de falsear a verdade inscrita pelo grafista, tem a liberdade de dispô-las na ordem em que desejar, problematizando-as e testando-as. Se o grafeu se mostra meramente conivente com as verdades inscrita pelo grafista, sem investigar possíveis problemas ou contradições, o sistema tende a se tornar monótono. É dever do grafeu, então, buscar sair do comum, do óbvio; tentar demonstrar, de modo eminentemente falível e por meio de sua interpretação crítica e insatisfeita, que a verdade desenhada pelo grafista não é suficiente e deve ser continuamente complementada, aperfeiçoada. Formalmente, pode-se identificar um revezamento por turnos: o grafeu interpreta a informação grafada e, problematizando-a, desafia o grafista; este, por sua vez, incorpora a crítica e responde com uma inscrição mais sofisticada, desafiando o grafeu. Para Fabbrichesi (2013, p. 33) a folha está para os grafos assim como a mente está para signos -pensamentos e o universo para os fatos. A folha de asserção sem nenhum grafo já constitui um diagrama porque representa a existência daquele contexto em seu continuum. Pode-se considerar que o branco de uma folha em branco expressa que o universo, criado num processo contínuo pelo grafeu, é perfeitamente definido e inteiramente determinado (observar CP4.431, c. 1903). Equivalentemente, seguindo a analogia, o espaço de apresentação vazio, sem estímulos projetados pelo VJ, também

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pode, por si só, ser considerado prenhe de signos e pensamento, uma vez que, em seu continuum espaço-temporal, aquele ambiente contém inúmeras possibilidades de realização performática (inscrição formal). Para exemplificar, a dança do público é interpretante dinâmico predominantemente energético da música-representamen escolhida pelo VJ. Além do interpretante dinâmico energético, existem ainda ao menos oito outros tipos de interpretante produzidos pela performance-representamen do VJ3. A música, representamen inscrita pelo VJ-grafista no espaço fêmico4 [equivalente à folha assertiva], gera uma dança-interpretante que não é meramente reativa no público-grafeu. Por meio da dança, o público faz com que o VJ perceba se a música e sua mixagem estão ou não de acordo com as expectativas depositadas no espaço fêmico (a pista de dança da festa). Se o público busca surpreender o VJ com sua dança, o VJ pode se sentir estimulado – desafiado – a inscrever novos e diferentes estímulos. Se o público porventura recursar-se a dançar e se retirar do recinto, é também um indício de que há algo a ser aperfeiçoado na performance. Constituindo uma dinâmica de jogo, grafista e grafeu desempenham papeis opostos e complementares; são oponentes porque têm interesses divergentes e, ao mesmo tempo, são mutuamente dependentes. A relação entre aquele que escreve o diagrama e aquele que o articula, interpretando-o, faz parte da dinâmica dialógica da comunicação. Grosseiramente, nos termos de uma teoria da comunicação anterior a McLuhan, o grafista é o emissor, o grafeu é o receptor, a folha de asserção é o meio e o grafo é a mensagem. Para ser um diagrama in actu, um grafo precisa ser manipulado, articulado, experimentado pelo grafeu. Um intenso embate entre grafista e grafeu produz um diagrama cada vez mais complexo e rico. O pensamento (ação e movimento dos signos) acontece por meio e através do diálogo contínuo e evolutivo entre grafista e grafeu. Grafista e grafeu elaboram estratégias para serem bem-sucedidos no jogo dialógico; estratégias que façam valer e predominar seus interesses (a saber, validar e falsear as verdades até então inscritas, respectivamente). Para Pietarinen (2013, p. 94), “A noção peirceana de um hábito como um plano geral ou recomendação para ação é virtualmente idêntica àquilo que, em teoria dos jogos, se ___________________________________________________

O cruzamento de duas tipificações do interpretante realizado por Short (1996) e Silveira (2007, p. 55-56) resulta em pelo menos nove tipos de interpretante: Interpretante [1] imediato [1] emocional; [1] imediato [2] energético; [1] imediato [3] lógico; [2] dinâmico [2] emocional; [2] dinâmico [2] energético; [2] dinâmico [3] lógico]; [3] final [1] emocional; [3] final [2] energético; [3] final [3] lógico. Os interpretantes imediatos [1, primeiridade] são inerentes ao signo e independem da interpretação do público por serem meras potencialidades. Os interpretantes dinâmicos [2, segundidade] são as interpretações que efetivamente ocorreram durante a performance audiovisual. Os interpretantes finais [3, terceiridade] são uma tendência interpretativa, para onde os interpretantes dinâmicos convergem. 4 Adaptação feita pelo autor a partir da expressão “folha fêmica” (Phemic sheet) utilizada por Peirce (por exemplo, em CP4.553-557, c. 1906; 570, 1913). O termo é derivado da palavra “pheme” (empregado em CP4.538-541, 1906; 552-553, c. 1906), que diz respeito a um signo proposicional. O espaço-fêmico funciona como a folha fêmica para o VJ-grafista, porque é ali que ele faz suas proposições [desenvolve sua apresentação]. 3

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entende por estratégia”. Os hábitos continuamente adquiridos pelo grafista visam a adequação de sua conduta na tentativa de prever, com base na identificação de padrões de comportamento, possíveis modos de agir do grafeu no futuro; o grafeu, da mesma maneira, reconhecendo alguns padrões comportamentais do grafista, aperfeiçoa constantemente sua interpretação crítica da folha fêmica. Os equipamentos que o VJ-grafista utiliza para produzir inscrições no espaço fêmico são hardwares (notebooks, mixers, telões, projetores) e softwares (Modul8, Resolume, Isadora, ArKaos, Neuromixer, VJamm), além de seu repertório digital, analógico ou híbrido de vídeos e sons. A capacidade de pensamento do VJ está em parte alocada em seus equipamentos, já que sem eles [e na ausência de algum outro recurso equivalente] não seria possível projetar conteúdo audiovisual no espaço de apresentação. O pensamento precisa de veículos para acontecer; Fabbrichesi (2013, p. 31) entende que “[...] os instrumentos da escrita são uma condição para elaboração de certos pensamentos”, e complementa: “[...] sistemas diferentes de expressão de pensamentos fazem surgir diferentes formulações.”: a faculdade de discussão e de argumentação de um grafista está localizada, também, em sua caneta; ela é imprescindível para que os grafos sejam produzidos e para que pensamento se desenvolva (observar CP7.366, 1902). A relativa fluência nestes equipamentos faz parte da estratégia do VJ-grafista para se impor durante o jogo. O conjunto mais ou menos definido de regras tácitas que instanciam o comportamento na pista de dança faz parte da estratégia do público-grafeu. Ou seja, para desenvolver condutas inteligentes, que a longo prazo possuam maiores chances de êxito no jogo, é necessário um planejamento estratégico, a começar por um acordo comum de interação e integração entre os indivíduos-grafeus; daí geram-se algumas das diretrizes eminentemente aperfeiçoáveis que regulam a convivência no espaço festivo. Caillois (1990) elabora e relata quatro categorias sociais para os jogos, duas delas, máscara e transe, são úteis para descrever brevemente alguns recursos estratégicos utilizados pelo públicografeu para ler e interpretar as inscrições do VJ-grafista. Em todo sistema relacional sobrevive uma espécie de jogo. Para constituir-se como tal, qualquer espaço lúdico deve respeitar determinados princípios; a seguir, tópicos que caracterizam o lugar do VJing como um espaço lúdico na visão de Caillois (1990, p. 29-30): (1) o público é livre para participar da performance, só a frequenta porque tem relativa autonomia para assim decidir. É provável que a experiência perca sua ludicidade e se torne desestimulante caso participação ou permanência no jogo forem impostas. (2) a performance acontece num lugar delimitado espacial e temporalmente (mas nunca totalmente isolado da sociedade que o envolve); por mais prolongada, é certo que uma apresentação chegará ao fim. (3) performances de VJs nunca possuem resultados totalmente previsíveis; maior ou menor parcela de

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incerteza alimentam expectativas e tornam o evento criativo e atraente. (4) estímulos geridos pelo VJ incitam a aceitação de ficções consentidas: conduzem temporariamente à irrealidade ou mesmo ao envolvimento com uma realidade simultânea [mas nunca completamente independente em relação] à vida cotidiana. A liberdade primeira que persiste no âmbito de qualquer jogo ou festa é nomeada paidia (CAILLOIS, 1990, p. 47). A paidia é “maneira de jogar” (1990, p. 74) que privilegia excesso, animação, algazarra, desregramento, agitação, risada, descontração, desordem, turbulência, recreação espontânea; as raízes linguísticas do termo podem referir-se a movimentos bruscos, infantis ou infantilizados provocados por uma superabundância de vitalidade; a expressão pode adquirir acepção erótica ou, ainda, referenciar algo que ondule despreocupado, ao sabor do vento. Paidia é alegria primitiva, estado orgânico de confusão; é impulso para tocar, apanhar, provar, farejar, degustar e talvez, em seguida, descartar; é gosto pelo contato transformador; é vontade juvenil, vigor alegre e impremeditado. Motor indispensável para o ambiente do VJ, paidia se relaciona com intensidades e contrastes emotivos: medo, euforia, tensão, angústia, excitação, pânico, desespero. Celebrações sazonais, orgias, cerimônias religiosas e rituais mágico-míticos possuem forte vínculo com as categorias de máscara (mimicry) e transe (ilynx, vertigo), justo as mais intimamente relacionadas à paidia. No contexto da festa, é relativamente comum o uso de adereços, disfarces, fantasias, maquiagens e máscaras. A máscara (fantasia, mimese, imitação, mimicry) é categoria e recurso lúdico que permite a portabilidade identitária, possibilita a encarnação de um personagem ilusório por meio da adoção de seu respectivo comportamento; a fisionomia artificial, incorporável, serve de disfarce e dá margem a atitudes não convencionais, inclusive ao desvario. O mascarado esquece-se de sua personalidade, fingindo ser outro; quer fazer crer a si mesmo e aos circundantes que sua presença e identidade foram momentaneamente substituídas. A máscara pretende ser ego cambiante e identidade indestrutível. A festa é ambiente propício ao uso de recursos e substâncias que alteram a normalidade da percepção: estimulantes, tranquilizantes, alucinógenos, embriagantes, anestesiantes... O transe (espasmo, estado evasivo, centrífugo, de vertigem, síncope, convulsão, perturbação, subversão e desordem da percepção sensorial, ilynx) mostra-se alcançável também por meio do olhar fixo em luzes estroboscópicas. Durante o transe, o corpo desvia-se da normalidade neurológica, o sistema nervoso é submetido a condições de estresse e instabilidade. A experiência emocional e ritualística é frequentemente relacionada a capacidades sobrenaturais de comunicação, à busca pelo gozo e a imersões impulsivas, oníricas e fugazes num estado desviado e anormal de consciência (CAILLOIS, 1990, p. 43, 107).

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Uso da máscara e busca pelo transe se retroalimentam: o fingimento aliena e extasia, usar máscaras embriaga e liberta; simulação gera vertigem (observar Caillois, 1990, p. 97). Subverter a identidade pelo uso da máscara (mimicry) e a percepção por meio da busca pelo transe (vertigo) configuram, então, recursos inerentes a um “modo de jogar” (estratégia, hábito) eufórico e juvenil (paidia). Máscara e transe não são estratégias em si, a estratégia é a paidia, porque possui cunho mais abrangente; máscara e transe configuram recursos específicos baseados na estratégia paidia. Concordamos com Caillois (1990, p. 96-97) quando ressalta que mimicry e ilynx supõem ambos um mundo onde o jogador está constantemente a improvisar, entregando-se a fantasias transbordantes; discordamos quando afirma, na mesma passagem5, que este mundo é desordenado e que nem fantasia e nem inspiração vividas pelo jogador reconhecem código algum. O improviso não pode acontecer na ausência de códigos ou estruturas organizadoras; para ocorrer, o improviso exige hábitos e repertórios que o favoreçam; improvisar nem sempre quer dizer falta de preparo ou de treinamento. Existem jeitos para adquirir fluência no improviso; paidia é, então, habito-estratégia que valoriza o improviso, e não pode ser reduzida, somente porque espontânea, a uma conduta meramente desorganizada e infundada. Quando se trata da comunicação em festas, o improviso transpassa qualquer estratégia de produção, tradução e de leitura. Roteiros fixos prolongados tendem a ser pouco úteis e monótonos para uma festa com VJs; pelo contrário, o ambiente festivo normalmente valoriza a espontaneidade, o “criar na hora”, “arranjar de repente” e mesmo o “organizar às pressas”. Para Moran (2005, p. 157), a poética do VJ está relacionada à manipulação de conteúdo “ao vivo” e à abertura para a influência do acaso: A interpenetração sonoro-visual quando se pensa em jam, jamming, ou jammer qualifica a poética do VJ. As jam-sessions, como muito bem sabem os admiradores deste gênero musical, são shows de jazz em que prevalece o improviso, e o jamming é o momento de improvisação nos shows. Jamming diz respeito a esta característica dos eventos com VJs, o improviso, o ao vivo.

Improviso e “ao vivo” pouco se dissociam, evoluem lado a lado. Durante a improvisação, a comunicação entre performers se torna literalmente visível e audível (observar Makela, 2008, p. 5). O improviso mostra-se condição para a realização da festa; é matriz estruturante das condutas tanto do VJ-grafista como do público-grafeu. O VJ mostra e prova sua presença de espírito por meio, tam___________________________________________________ 5 Na íntegra: “[...] mimicry e ilynx supõem ambos um mundo desordenado onde o jogador está constantemente a improvisar, entregando-se a uma fantasia transbordante e a uma inspiração soberana, nenhuma delas reconhecendo código algum.” (CAILLOIS, 1990, p. 96-97).

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bém, do improviso. A conduta improvisada assume sua falibilidade; de certo modo, quer ser nômade e errática. O improviso é estratégia que faz surgir tentativas criativas e insistentes para interpretar aquilo que permanece admirável, misterioso, incerto e arredio. Festa como hábito e conjunto de princípios gerais Na progressão do jogo, um fato menos evidente, mas igualmente relevante e frequente, é a inversão de funções: o VJ assume o papel de grafeu e o público reivindica o de grafista. Por exemplo, quando o público canta acompanhando a canção, emite vaias ou mesmo um grito de empolgação, é ele quem inscreve um representamen no espaço fêmico. Uma vaia representa a verdade defendida pelo público, necessariamente avessa à verdade defendida pelo VJ no mesmo contexto. Cabe então ao VJ interpretar o signo e ajustar sua conduta, seguindo uma estratégia e esforçando-se para que seus interesses sejam atendidos. “Ganhar” o jogo significa manter por mais tempo seus interesses em vigor; é, no entanto, indesejável que algum interesse seja sempre mais potente que o outro, a ponto de sufocá-lo. A dualidade deve ser preservada, caso contrário é provável que o jogo – e o diagrama – definhem. Apenas didática e teoricamente há uma alternância estrita do tipo “vez de um” e depois “vez de outro”, como no xadrez; na prática, o jogo é simultâneo: espontâneo, informal, embolado e improvisado. Quando se desligam os aparelhos e o público vai para casa, o jogo continua e persiste porque qualquer festa e projeção que esteja ocorrendo ou que já tenha ocorrido é apenas uma instância física (réplica, segundidade) de uma abstração abrangente (lei, terceiridade). É na lei informal que regula a produção de festas que o jogo entre VJ-grafista e público-grafeu sobrevive em plenitude. Uma única festa, limitada no tempo e no espaço, é a atualização (interpretante dinâmico) desta lei geral. A história do dialogismo lógico entre VJ e público não pode se restringir, então, a um número limitado de performances; a história do jogo necessariamente engloba convenções e acordos [sociais, políticos, culturais, econômicos...] que determinam relações entre grafista e grafeu em cada festa que já aconteceu, acontece ou que pode ou não, um dia, vir a acontecer, ad infinitum. A história do jogo como lei somente seria suficientemente explorada caso fossem consideradas exaustivamente e em contexto ideal todas as performances audiovisuais possíveis; apenas desta maneira seria possível desvendar, então, o verdadeiro e último fim desta história. Em outras palavras, a história dos jogos como abstração reguladora é uma tendência interpretativa (interpretante final) para a qual toda e qualquer festa individual aponta em maior ou menor medida. Não se pode considerar que VJ e público vivam o momento da performance independente-

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mente da sociedade em que a festa acontece; a festa não é um espaço isolado, imune e asséptico, é ambiente integrado ao restante da comunidade. VJ e público incluem-se em uma sociedade, têm uma vida mais ou menos independente de uma única festa, são estudantes, empresários, cidadãos, eleitores... As relações que acontecem na pista de dança são fenômenos sociais, o que acontece na performance audiovisual faz parte da vida. Performances de um VJ, como signos, possuem influência que extrapola as limitações espaço-temporais da pista de dança. A sociedade, como ser inteligente, lê e interpreta as performances dos VJs. A sociedade, para além do público presente nas apresentações, é grafeu não apenas porque o público das apresentações desempenha funções sociais variadas fora da festa, mas porque a própria festa é um fato inscrito na realidade social. Cada performance realizada por VJs contribui de modo diferente e único para o desenvolvimento de uma cultura do VJing no contexto social em que está inscrita. Cultura é hábito geral que instancia comportamentos. O VJing faz parte da comunicação na metrópole. Mesmo que alguém não se interesse por performances realizadas por VJs, é provável que tenha uma parcela de sua conduta [ainda que sutil e indiretamente, apesar da impossibilidade de se realizar qualquer medição] determinada pelo trabalho dos VJs. Como a maioria dos sistemas inteligentes, o trabalho do VJ, que é simultaneamente fruto e produtor de complexidade, exerce influências múltiplas e ambivalentes nos contextos em que está introduzido: para além do escopo deste trabalho, o VJ não atua apenas em festas; há influência do VJing nas galerias de arte, nos shoppings, nas vitrines, nos cinemas, na televisão, nos teatros, na internet, nas fachadas, nas ruas e nas praças como protesto e como intervenção urbana. Fazer VJing é exercer uma atividade aberta, é expressar-se e comunicar-se de modo alinear, é se dispor a misturar e a deformar discursos de outrem; fazer VJing é contribuir para a geração coletiva e colaborativa, em rede, de mediação (pensamento) e de cultura – hábitos, modos de conhecer a vida e de lidar com o mundo. Referências bibliográficas CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990. FABBRICHESI, Rossella. “O pensamento icônico e diagramático na obra de Peirce”. In: QUEIROZ, João; MORAES, Lafayette de (Orgs.). A lógica de diagramas de Charles Sanders Peirce: implicações em ciência cognitiva, lógica e semiótica. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, p. 17-48. MAKELA, Mia. “The practice of live cinema”. Media Space Journal, 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2014.

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MORAN, Patrícia. “VJ em cena: espaços como partitura audiovisual”. Revista Contracampo, n. 13, 2005, p. 155-168. PEIRCE, Charles Sanders. The collected papers of Charles Sanders Peirce. HARTSHORNE, C., WEISS, P. e BURKS, A. (Orgs.) Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1931-35 e 1958; 8 vols. [Obra citada como CP seguido pelo número do volume e número do parágrafo]. PIETARINEN, Ahti-Veikko. “Grafos, jogos e a prova do pragmaticismo”. In: QUEIROZ, João; MORAES, Lafayette de (Orgs.). A lógica de diagramas de Charles Sanders Peirce: implicações em ciência cognitiva, lógica e semiótica. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, p. 83-104. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. SHORT, Thomas Lloyd. “Interpreting Peirce’s interpretant: a response to Lalor, Liszka, and Meyers”. Transactions of Charles Sanders Peirce Society, Bloomington, v. 32, n. 4, 1996, p. 488-541. SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de semiótica geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

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