Em louvor à fragilidade: sobre espiritualidade e missão

June 15, 2017 | Autor: Jonathan Menezes | Categoria: Theology, Spirituality, Missiology and Mission Theology
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[Práxis 25 (2015) 29-44] EM LOUVOR À FRAGILIDADE: SOBRE ESPIRITUALIDADE E MISSÃO Jonathan Menezes1 RESUMO Este ensaio é um convite à discussão de uma relação importante, que é a interpolação entre espiritualidade e missão. As questões que moverão minha reflexão aqui, dentre outras, são: Quais são as possíveis relações entre espiritualidade e missão? Como lidar com a questão da vocação? A busca pela relevância e a eficácia é mesmo imprescindível quando pensamos em uma espiritualidade da missão? Existe algum lugar para a fraqueza, vulnerabilidade e dependência em nossa concepção regular de missão? A fim de responder tais questões, em primeiro lugar, falo sobre a missão da espiritualidade na Missão de Deus, procurando avaliar motivações e a força que nos impele à missão; em segundo lugar, trato da espiritualidade como busca e resposta a uma vocação, entendendo que no discernimento dessa vocação que reside nossos encontros e/ou reencontros com Deus e sua missão; por fim, reflito brevemente sobre o que chamo de lugar da fraqueza na espiritualidade da missão, destacando, como tese, que a assunção humana de nossas fragilidades é condição prévia para a missão. PALAVRAS-CHAVE Espiritualidade; Fragilidade; Vocação; Missão. ABSTRACT This essay is an invitation to discuss an important relation which is the one between spirituality and mission. The questions that will lead us here, among others, are: What are the possible connections between spirituality and mission? How one should deal with the issue of vocation? The search for relevance and efficiency is really necessary when we think about a spirituality of mission? Is there a place for weakness, vulnerability and dependency in our regular concept of mission? In order to respond these questions, in first place, I speak about the mission of spirituality in God’s Mission, aiming to evaluate the force and motivations that urge us to mission; in second place, I deal with spirituality as a search and answer to a vocation, understanding that our encounters and/or reencounters with God and his mission takes place in the discernment of that vocation; and finally, I briefly reflect upon what I call the place for weakness in the spirituality of mission, defending as a thesis that the human assumption of our fragilities is the previous condition for mission. KEYWORDS Spirituality; Fragility; Vocation; Mission.

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Professor da Faculdade Teológica Sul Americana. Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’, campus de Assis-SP. Email: [email protected]

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Começo: Uma missão da espiritualidade na “Missão” Para começo de conversa, quero defender a ideia de que a espiritualidade cristã consiste em que amemos a Deus e ao próximo enquanto fazemos as coisas ordinárias do cotidiano – o que não é nenhuma definição ou conceituação, é mais uma suma talvez do princípio inequívoco da vida cristã. Ademais, ela é fruto, na visão de Segundo Galilea, de nossa amizade com Deus. Ele também lê a missão de um modo simples: como fruto natural de nossa amizade com Cristo: “A missão começa quando a amizade se torna experiência de vida” (Galilea, 1988, p. 85). A espiritualidade, nesse sentido, é manifestação desse amor que em nós pulula em função de nossa amizade com Deus; pode ser forjada no deserto ou no quarto secreto, mas também se mostrar em meio a uma cultura e de diversas formas, especialmente nos tempos em que atualmente vivemos; também é chamada a assumir uma posição e responder à sua vocação pública, política e profética no mundo, e por essa razão não tem nada a ver com conformismo e sim com o seu contrário. Assim, como bem expressa David Bosch (1979, p. 13, tradução minha), “espiritualidade não é contemplação versus ação. Não é uma fuga do mundo em detrimento do envolvimento no mundo”. Meu ponto de partida neste começo é pensar na motivação da missão (o que diretamente a atrela à espiritualidade), perguntando: que força é essa que nos determina a ir ou a permanecer, a agir ou a não agir, a falar ou a permanecer calados? Como reconhecemos e/ou discernimos esta força ou esta voz que nos impele a algo? Quem é, afinal, o “sujeito” da missão? Há uma canção cristã contemporânea – “Eu tenho um chamado”, da banda 4X1 – que expressa bem o que gostaria de tratar aqui. No refrão desta canção, diz-se o seguinte: Eu tenho um chamado, jamais vou me calar Eu tenho um chamado, o evangelho anunciar Eu fui escolhido no ventre da minha mãe Eu sei que Deus não abre mão de mim não...

Sei que muito provavelmente você já deve ter escutado e/ou cantado esta música e até goste dela, por isso serei muito pontual aqui. Minha intenção é analisar sua letra do ponto de vista missiológico, sem a pretensão de julgar a “espiritualidade” ou a sinceridade de quem a produziu – no máximo, revelar algumas idiossincrasias, que apontam para o espírito de uma época ou mesmo uma tendência no mundo evangélico. Dito isto, o primeiro aspecto notável nessa parte da canção – e que já não é mais nenhuma novidade ou absurdo – é a quantidade de vezes em que se repete o pronome pessoal “eu”. Desde a primeira parte da canção, tudo já indicava que o foco residiria sobre esse “eu”: o vento que sopra “sobre mim”, os problemas que tentam “me abater” e, por fim, como contraposto motivacional, vem a lembrança de que o “Grande EU SOU me enviou”. Daria uma análise até interessante se entrássemos no mérito da junção de “EU-SOU-me”, como uma espécie de escorregão da linguagem, mas isto talvez soasse a alguns como juízo de valor, e esse não é o alvo aqui. Chama atenção, num primeiro plano, esse lugar-comum da atitude cristã de vencer os problemas pessoais, quase como que uma obrigação moral. Nesse viés, o crente deve ser vitorioso por natureza. Se não vence, é vencido: pelo Diabo, pelas tentações, pelo mundo, por si mesmo. No entanto, Paulo por tantas vezes nos ensinou 2

em suas cartas que a perseverança e esperança em meio às tribulações da vida fazem parte do lugar próprio do cristão – que pode não render-se por saber que seu Senhor não se cansa – mas isso não o faz melhor nem mais especial que ninguém, nem sempre “vitorioso” em tudo – precisamos, inclusive, rever o sentido da expressão paulina, muito repetida nas igrejas, de que “somos mais que vencedores”. No entanto, parece-me que a mensagem subentendida aqui é a de que “eu sou especial” porque “Deus me escolheu” para realizar uma missão especial no mundo que é a de ir e anunciar o evangelho – ênfase da Grande Comissão de Marcos –, o que revela não apenas que, para o autor, missão é “pregar a Palavra”, mas um segundo importante aspecto, que é a noção quase militar de que o chamado é meu, a missão é minha, afinal, fui escolhido no ventre da minha mãe e, portanto, sou indispensável, pois sei que “Deus não abre mão de mim não”. Sério mesmo? Deus não abre mão de mim? Não aparenta ser isso um convencimento desnecessário ou mesmo um uso inapropriado do chamado ou da vocação como meio de afirmação de uma admiração divina autoalegada e autogerada? Quem é o ser humano para afirmar que “Deus não abre mão” dele/a? Parte do espírito desta canção lembra-me de duas coisas lamentáveis: primeiro, que o individualismo definitivamente tomou conta de nossos cânticos, de modo que pouco lugar resta para a comunidade (o sentido de uma missão que é “nossa”), a realidade ou a cruz; segundo, que se vê refletida não apenas na teologia de nossos cânticos, mas também em nossos atos litúrgicos em geral, o que se poderia chamar de “síndrome dos filhos de Deus”, a que nem Jesus, o Filho unigênito, cedeu. Ele não se jogou do pináculo, nem transformou pedras em pão ou aceitou todos os domínios da terra simplesmente porque o Diabo por três vezes o provocou dizendo “se és o filho de Deus”, faça isso ou aquilo (cf. Mt 4.1-11). Não era necessário duvidar ou reafirmar sua identidade com atos ou discursos portentosos, pois para ele bastava a confirmação da voz dos céus que em seu batismo no Jordão disse: “Tu és o meu filho amado, em quem eu me comprazo” (Mt 3.17). Quem é, é, e não precisa ficar repetindo isso como um mantra a fim de que avulte uma legitimidade seja lá qual for. O equívoco de pensar que a missão é minha, em si, evoca também outros problemas como, por exemplo, o de propagar a ideia de ministérios como algo de possessão pessoal (o “meu ministério”), ou mesmo de afirmar coisas como “a minha igreja” ou a “igreja do pastor” ou “do bispo fulano de tal”. Isso se tornou tão comum que poucos percebem que não se trata apenas de uma questão de descuido de linguagem, mas de uma questão de poder, ou melhor, de deslocamento de poderes e da ausência completa do bom senso bíblico. A graça da espiritualidade é que ela implica no exame constante de si mesmo e suas motivações e na penetração no que há de mais profundo e, portanto, quase sempre oculto no ser – como a ânsia por poder, muito evidente nessas alegações acima referidas, embora nem sempre para todo mundo, sobretudo para a “massa” dos fiéis. Por isso é reducionista a visão que associa espiritualidade com performances, o que representa na verdade o seu esvaziamento e denota sua superficialidade. Esvaziamos a espiritualidade quando focamos demais nas supostas demonstrações e desviamos o olhar sobre o coração. Jesus foi quem desmascarou esse mise en scène religioso quando – em resposta à acusação feita pelos fariseus aos discípulos, dizendo que eles transgrediam a tradição dos anciãos, por não lavarem as mãos quando comiam – ele disse: “Ouvi e entendei: não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem”, uma vez que “do coração procedem os maus desígnios” (Mt 15.2,11,19). 3

Por isso penso que estas práticas deveriam compor a formação de líderes, pastores e missionários cristãos como sendo essenciais: o exame do coração e o autoconhecimento. Isso quer dizer que, por um lado, nos equivocamos e pecamos porque desconhecemos a nós mesmos. O tempo e as variadas situações vão revelando o ser e a disposição de cada pessoa, escondidos muitas vezes por trás de uma redoma muito frágil de proteção. Não me esqueço da pergunta central do filme Crash, no limite: “Você acha que se conhece?”. No que a dor, o apuro, a pressão, a doença, a perda, o poder, o sexo, o dinheiro, o moralismo, a violência, a raiva, o descontrole, e as paixões como um todo podem nos transformar? Não parece ser à toa que a máxima de Friedrich Nietzsche no prefácio à Genealogia da moral continua sendo útil, mesmo para fins teológicos ou especialmente para eles. Dizia ele que “nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?” (Nietzsche, 2007, p. 7). Por esta razão é que me recuso a reduzir a mim e aos outros a rótulos fáceis, baratos e que desmancham no ar. Afinal, quem sabe o dia de amanhã? Quem conhece a própria reação ao próximo ato, à circunstância seguinte? Quem pode prefigurar o rosto que terá de enfrentar na próxima vez em que se vir diante de um espelho? Apenas Deus conhece e sonda profundamente nossas intenções e motivações, o que torna a oração do salmista Davi ainda mais necessária, verdadeira e libertadora: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno” (Sl 139.23-24). Por outro lado, nosso equívoco e pecado provêm também do desconhecimento ou ignorância em relação à origem e natureza da Missão. E aqui é preciso evocar o óbvio ululante de que Missão é, antes de tudo, Missio Dei ou Missão de Deus. Qualquer motivação que nos impulsione ou papel que nos caiba precisa ser gestado e gerido dentro do horizonte dessa Missão. A missão da igreja, nesse sentido, é assumir, na dependência do Santo Espírito, o privilégio de participar na Missão de Deus, que, na definição de David Bosch (2002, p. 28, grifo meu), consiste na “auto-revelação (sic) de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e a atividade de Deus que compreende tanto a igreja quanto o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio de participar”. Perceba o destaque que faço à palavra “privilégio”, em detrimento da ideia de obrigação ou de uma diretriz pessoal, como a que se vê na canção “Eu tenho um chamado”. Isto significa que “eu” não tenho uma missão, um ministério ou uma igreja, mas participo, pela graça, na Missão que é de Deus, e da mesma forma da Igreja (rebanho e povo de Deus) e do Ministério (serviço) na força que Deus supre. O contrário disso, que nunca fica apenas no deslize gramatical, facilmente se degenera em um projeto de poder – e como fugir dele? –, isto é, em concorrência e não cooperação com Deus e seu reino. Pensando com Bosch, antes mesmo da fundação do mundo e de nós mesmos, a natureza de Deus é Missão, porque Deus é amor. Assim, de acordo com Bosch (2002, p. 63), “a missão da igreja não vai inaugurar o reinado de Deus, porém o possível fracasso dessa missão também não o vai frustrar. O reinado de Deus não é um programa, e sim uma realidade, introduzida pelo acontecimento pascal”. Em suma, a espiritualidade é necessária à missão no exame de nosso lugar e motivações nela, e a missão coloca a espiritualidade nos trilhos de um propósito maior, que vai além do individualismo extático e desemboca na luta pela transformação da realidade vivida por cada pessoa no mundo.

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Meio: Uma espiritualidade como busca e resposta a uma vocação Até aqui, os elementos do chamado e da vocação aparecem como ensejo para uma discussão sobre as motivações que nos impelem à missão que, como vimos, não é nossa nem tem origem em nós, mas em Deus. Adiante gostaria de endereçar uma reflexão mais específica sobre a vocação pensando-a como tema essencial e caro tanto à espiritualidade quanto à missão. Para tanto, quero prosseguir a partir de um estudo de caso em Henri Nouwen2, mais particularmente no modo como ele trabalha o tema da vocação em seus textos sobre espiritualidade, e como lidou com a própria vocação que recebeu do Senhor ao longo de sua vida. Veremos que a vocação não tem que ser percebida na base da fixidez e da certeza, mas pode também ser um caminho em que nunca paramos de perguntar ao Senhor: “Que queres de mim?”. A questão da vocação Todos sabem que vocação tem a ver com o chamado ou a inspiração quem vem do Senhor, que nos presenteia com dons e talentos e nos convida a fazer uso deles no serviço ao reino e à Missão de Deus. Envolve desempenho – como no caso do mestre, que com sabedoria e destreza ensina, ou do escritor, que traduz pensamentos, imagens e conceitos em palavras – porém é mais que desempenho: é a impulsão do ser rumo à sua plena realização em Deus. Vocacionado/a não é quem “faz” para “ser”, mas quem “faz” porque “já é”, isto é, o fazer é resultado natural do ser. Nesse sentido, nem todo mundo que faz alguma coisa o faz por força da vocação; alguns fazem por necessidade, outros por oportunismo, e assim por diante. E não há nada como o fazer que segue não o ímpeto do ativismo, mas da vocação; não por força ou obrigação, mas na liberdade do Espírito; não por ambição, mas por livre obediência. A parte difícil dessa história toda é que o saber-ser e o ser-saber da vocação não se adquirem de modo instantâneo, necessariamente óbvio e de uma vez por todas. Ou seja, a convicção de que Deus nos chama para um modo de ser-no-mundo e para uma tarefa específica – como a de ser pastor, missionário, médico, político ou professor – não surge com a indicação prévia do caminho a ser percorrido, nem de quando, onde ou como, pelo menos não do modo como vejo. Faz parte do processo de maturação da vocação divina no ser humano o prazer da busca, a necessidade de discernimento, a aventura do caminhar, o risco da decisão. Por isso, é praticamente impossível ser honesto e ao mesmo tempo assentir com a percepção da vocação como um lugar inflexível – como quem afirma: “Deus me chamou apenas para ser professor de teologia” – combinada com uma visão tão pouco condescendente com a realidade e a variedade da condição humana sobre a vontade de Deus. Gostaria de me deter um pouco nestes dois aspectos, partindo da aporia: sim, posso ter um chamado, mas e daí? Em que isso me torna, a quem devo, para onde me conduz, e o que pretendo fazer com isso? O que é a vontade de Deus? Como conhecê-la? O que fazer para cumpri-la? Esse é um mistério que tem permeado a vida de pessoas ao longo de milênios. O jeito com que se trata esse assunto é o que gostaria de refletir aqui. Não há dúvida de que, ao lermos as Escrituras, encontramos o princípio de que viver bem, com temor e dignamente significa dispor a vida para andar conforme a vontade do Senhor. Converter-se a Cristo, em parte, também é isto: permitir que nossa vontade saia cada vez mais de cena, a fim de dar lugar a uma vontade maior e soberana: a de Deus. O 2

Mais sobre a vida e as contribuições de Nouwen pode ser encontrado em meu livro Humanos, graças a Deus (2013), especialmente no capítulo 28. Para uma perspectiva mais ampla e profunda, sugiro a leitura da biografia escrita por Michael Ford, O profeta ferido: um retrato de Henri J. M. Nouwen (2005).

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ponto para mim, porém, é: se temos consciência, quando buscamos a vontade de Deus, do que envolve esse “andar conforme”. O salmo 143 de Davi, humano, honesto e orgânico, servirá como ponto de partida aqui. Antes de tudo, trata-se de uma oração, de uma súplica. Normalmente, nós suplicamos com mais força quando sofremos. E é o que está acontecendo com Davi. Diante dos muitos conflitos que enfrenta, apela para a justiça e fidelidade divinas (v. 3). Mostra-se muito angustiado e com o coração aflito, “em pânico” (v. 4). Costumo dizer que a angústia não pode ser desprezada, pois é uma das avenidas que nos conduzem aos braços de amor de Deus. Mas nem sempre conseguimos lidar com ela. Sentimos como se a angústia fosse um peso, uma ferida aberta, uma faca cravada no peito da gente. E muitas vezes ela tem a ver com frustração, com medo, com sentimento de rejeição e abandono, e com as inúmeras incertezas que nos cercam. Então, apressados pra sair dessa logo, suplicamos para que Deus se apresse a nos responder, a dar um rumo definitivo. Mas descobrimos que na vida não há rumos definitivos – nem a morte, biblicamente falando, é um rumo definitivo. E o mais duro golpe aos apressados é ter que lidar com as indefinições e dúvidas que fazem parte da vida de qualquer pessoa comum. Dessa forma, a “vontade de Deus” vai se tornando a fórmula religiosa para expiar tudo o que é indesejável, como também para alimentar o que se deseja. Daí brota as distorções, tais como: a pregação de que precisamos estar no “centro da vontade de Deus”; que cada detalhe da vida não pode fugir do plano de Deus para nós; que a vontade de Deus é isso, e não pode ser aquilo; se desastres acontecem, foi “da vontade de Deus”; se o avião não saiu do aeroporto, era propósito de Deus, porque certamente ele cairia; se perdi um emprego, foi Deus quem quis, pois estava preparando um ainda melhor pra mim, e assim por diante. Privatizamos a vontade de Deus e, quando assim fazemos, facilmente confundimo-la com a “nossa vontade do que seja a vontade de Deus”. A chave do Salmo 143, para mim, vem quando, do desespero, Davi pede que o Senhor o ajude quando tiver que escolher o caminho a se andar (v. 8); quando roga para que o “ensine a fazer sua vontade” (v. 10). A vontade é de Deus, mas a escolha é nossa. E Deus só pode ensinar sua vontade a quem quer aprender, quem se lança na aventura de aprender, pois é vivendo (errando e acertando, sofrendo e mudando) que se aprende. Por isso repito, parafraseando o poeta: discernir é preciso! O salmista (119:27) também ora: “Faze-me discernir o propósito dos teus preceitos, então meditarei nas tuas maravilhas”. Na tradução A Mensagem: “Ajuda-me a entender estas coisas de dentro pra fora”. Entender de dentro para fora é encarnar a mensagem, deixar que ela faça morada na gente, nos confronte, nos inquiete, nos transforme, e assim a Palavra se torna viva em nós. Parafraseando Nietzsche, as melhores verdades são as verdades sangrentas – isto é, que brotam de dentro da vida e se aplicam a ela. Portanto, posso concluir que a vontade de Deus não se mostra instantaneamente; a vontade de Deus se experimenta e se pondera, pela renovação da mente (cf. Rm 12.2). Como eu entendo a vontade de Deus? Como um mistério revelado que só se compreende e se experimenta na medida em que se caminha e em que se vai à luta. Ademais, como bem analisa Jacques Ellul (2006, p. 65, 66), Deus é livre para fazer sua vontade e a realiza em total liberdade, de modo que: Não há razão, motivo, causa ou condição para a vontade livre de Deus. Deus é Deus. Ele fala, e as coisas acontecem. (...) Não existem planos pré-concebíveis, discerníveis ou revelados. Não há sinal premonitório que possamos calcular. Não há passagem de tempo que 6

corresponda a períodos históricos. Não há obras, nem êxito em missões, nem igrejas, não há propagação do evangelho, nem excesso de sofrimentos humanos que nos permitam dizer: “É amanhã...”. A Palavra que dirá isso virá a nós como águia, quando ninguém espera, quando ninguém espera mais nada.

O exemplo de Henri Nouwen O exemplo de Henri Nouwen é uma amostra concreta de onde quero chegar com esta reflexão. Utilizo sua experiência sem pretender absolutizá-la, mas ensejando pensar que existem outros caminhos possíveis de se lidar com a questão da vocação e com a “certeza do chamado”. Apenas para situar, uma suma: Nouwen foi um padre holandês, nascido em 1932 e falecido em 1996. Desde os cinco anos de idade sonhava em se tornar padre. Cursou o seminário, foi ordenado aos 31 anos de idade. Daí seguiu para a psicologia, disciplina que estudou durante anos e que futuramente ajudaria muito a construir sua visão sensível e ao mesmo tempo assertiva sobre o ser humano. Resolveu mudar-se para os Estados Unidos para se especializar ainda mais nesta área. Não conseguiu concluir a contento sua formação acadêmica. Não obstante tal percalço, ingressou como professor de psicologia pastoral na Universidade de Notre Dame. Dali foi convidado para ser professor de teologia pastoral na Universidade de Yale. Permaneceu por dez anos naquele posto e, em 1981, renunciou-o para passar seis meses na Bolívia e no Peru. Nouwen tinha à época 51 anos de idade e 25 de ministério ordenado; a esta altura já havia alcançado notoriedade mundial como escritor de livros, a maioria sobre espiritualidade. No entanto, mesmo após anos dedicados à igreja, à escrita e ao magistério, a pergunta pela vocação permanecia viva e, num certo sentido, aberta, indefinida. Prova disso é seu diário do tempo que passou na América Latina, que foi publicado em livro sob o título: Gracias! A Latin American Journal. A pergunta central que o guiou durante aquele tempo era: “Deus está me chamando para viver e trabalhar na América Latina nos anos seguintes?” (Nouwen, 2005, p. xvii, tradução minha). No meio das atividades, viagens, conversas e encontros que ali teve, Nouwen afirma ter tentado discernir a voz de Deus e seguir um caminho de obediência àquela voz. E discernimento permanece sendo uma das palavras-chave para a compreensão e vivência da vocação e da vida em missão. O discernimento não necessariamente traz direção, mas nos ajuda a ser honestos para com a difícil jornada que temos adiante, como expressa Nouwen (2005, p. 13, tradução minha): Somos chamados a discernir cuidadosamente os movimentos do Espírito de Deus em nossas vidas. Discernimento se mantém sendo nossa tarefa para a vida toda. Eu não consigo enxergar outro caminho para o discernimento que não seja uma vida no Espírito, uma vida de oração incessante e contemplação, uma vida de profunda comunhão com o Espírito de Deus. (...) Nós certamente cometeremos erros constantes e com frequência veremos a pureza do coração sendo requisitada para tomar as decisões certas. Podemos nunca saber se estaremos dando a César o que pertence a Deus. Mas quando continuamente tentamos viver no Espírito, pelo menos estaremos dispostos a confessar nossa fraqueza e a pedir perdão toda vez em que de novo nos encontrarmos a serviço de Baal.

É preciso, portanto, percorrer o caminho, enfrentar a questão com discernimento, mesmo que não se obtenha uma resposta rápida – o que normalmente ocorre. E observe 7

que Nouwen não é daqueles autores que propõem uma vida no Espírito, de oração e comunhão com Deus, como fórmula mestra para que Deus se apresse, ou para que tenhamos total certeza de que estamos “no centro da vontade de Deus” – que, diga-se de passagem, é uma pretensão tola e infantil. Pelo contrário, ele diz que esse tipo de vida nos ajuda na tarefa do discernimento, bem como a lidar com as constantes incertezas, assim como a tratar nosso eventuais equívocos e desvios, que acontecem e sempre acontecerão. Por isso a necessidade de arrependimento; e só é passível de se arrepender quem reconhece a própria fraqueza e admite não ter todas as respostas – como me parece ter sido o caso de Nouwen. Ao retornar desse período na América Latina, Nouwen tinha apenas a clareza de que seu desejo de servir os pobres do mundo era genuíno e real, mas que não seria na América Latina. Ele passou a receber cartas de Harvard, que lhe ofereceu uma posição como professor ali. Mesmo não aceitando o emprego em tempo integral, um semestre por ano, de 1983 a 1985, Nouwen lecionou na Harvard Divinity School, sendo ali aclamado como professor, com classes sempre lotadas de estudantes ávidos por ouvi-lo. Mais uma vez, porém, ele percebeu, como relatou em um de seus diários, que quanto mais se via cativo à ambição (de sua carreira, seu ministério), mais difícil era enxergar aqueles que são cativos pela pobreza. De novo, havia a certeza da vocação original, de ser um ministro da cura, um “curador ferido”, como ele mesmo denominou em um de seus livros (2001), ou um “profeta ferido”, nos dizeres de Michael Ford (2005), porém permanecia a incerteza do caminho. Em 1985 Nouwen recebeu um convite do francês Jean Vanier, fundador da Arca – uma instituição responsável por cuidar e ser comunidade para pessoas com deficiência mental – para passar um ano sabático em uma das comunidades da Arca, em Trosly, na França. Para Nouwen, foi um ano de descobertas, de experiências novas e inusitadas, e para discernir se aquele era um caminho para uma melhor realização de vocação no reino de Deus, como sentida naquele momento. Ao final daquele período, Nouwen finalmente decidiu que sua vocação dali para diante seria ser um membro e ministro de cura na Comunidade A Arca, em Toronto no Canadá, onde permaneceu pelos dez últimos anos de sua existência. Por essas experiências, concluiu que “às vezes a maneira de saber onde você é chamado a estar é indo onde sente que deve ir e estar presente naquele lugar. Logo saberá se aquele é o lugar que Deus quer ou não que esteja” (NOUWEN, 2013, p. 102, tradução minha). Vocação não é apenas uma questão de “chamado”, mas também de escolha e do risco de cada decisão. O lugar não é o mais importante; fundamental é manter viva a chama do relacionamento. Assim, Nouwen finalmente se encontrou, pois compreendeu que a questão da vocação não está ligada principalmente ao lugar em que atuamos, servimos e vivemos, mas com a constante abertura do coração para Deus e o que Ele quer fazer por meio de nós, tornando-nos agentes de sua Missão onde quer que estejamos. Como ele conclui na parte final de Gracias!, soando um tanto como o apóstolo Paulo: Hoje eu me dei conta de que a questão de onde viver e o que fazer é realmente insignificante se comparada com a questão de como manter os olhos do meu coração focados no Senhor. Posso estar lecionando em Yale, trabalhando na padaria da Abadia de Genesee, ou caminhando por aí com as crianças pobres no Peru e me sentir totalmente inútil, miserável e deprimido em todas essas situações. Estou certo disso porque é o que aconteceu. Não existe tal coisa como o lugar certo ou o emprego certo. (...) A diferença nunca foi baseada na situação em si, mas sempre em meu estado de mente e coração. 8

Quando sabia que estava caminhando com o Senhor, sempre me senti feliz e em paz. Quando me vi preso em minhas próprias reclamações e necessidades emocionais, sempre me senti cansado e dividido (Nouwen, 2005, p. 152).

Com Nouwen aprendo que o mais importante não é tanto a certeza da vontade de Deus sobre onde se deve estar, a segurança da posição que se ocupa numa organização, ou se está ou não “no caminho certo” ou inequívoco da vontade de Deus; mais importante que saber o caminho, é percorrê-lo, enfrentando percalços, colhendo frutos, experimentando sucessos e insucessos, e amadurecendo na fé, de preferência ao lado de Jesus, caminho, verdade e vida. O caminho se revela melhor quando caminhamos. Fim: Um lugar para a fraqueza na espiritualidade da missão A igreja não é composta de gigantes; apenas seres humanos feridos podem guiar outros até a cruz.. – David Bosch

À guisa de conclusão, gostaria de falar sobre a importância de assumirmos e lidarmos com nossas fraquezas enquanto caminhamos pela vida em missão. Para tanto, quero iniciar examinando duas afirmações que devem servir aqui de ponto de partida. A primeira é de David Bosch: “A verdadeira missão é a mais fraca e menos impressionante atividade humana que se pode imaginar, a própria antítese de uma teologia da glória” (Bosch, 1988, p. 76, tradução minha). Bosch não está sozinho nesta percepção. José Comblin também escreveu algo nesta direção, servindo de inspiração ao próprio Bosch em sua abordagem à espiritualidade missionária de Paulo: “A fraqueza não é nenhum acidente da missão, nenhuma circunstância que se tenha que lamentar. Muito pelo contrário, é uma condição prévia de qualquer missão autêntica” (Comblin, 1983, p. 56). Quando pensamos a missão na perspectiva triunfalista da nobreza do “meu chamado”, de um grande empreendimento da igreja ou mesmo de uma cruzada no mundo a fim de “ganhar almas para Jesus”, estas afirmações soarão um tanto estranhas e sem propósito. Afinal, a evocação de um lugar, de um poder e uma unção sobrenatural sobre o missionário ou embaixador de Cristo torna-se necessária e até comum para justificar uma missão de tal natureza. Ou seja, para lutar contra as potestades que dominam a terra e aprisionam as almas dos mundanos e pagãos, é preciso se revestir de força e de lutar com as “armas da fé”. Assim, o linguajar militar, não muito estranho aos escritos bíblicos, mesmo os de Paulo, mas utilizado fora de contexto e para propósitos duvidosos, domina esse tipo de cosmovisão missionária. O problema é que, mesmo arrebatando e convencendo a muitos de sua eficácia motivadora, ela provoca um duplo afastamento: (1) o do mundo desse Cristo bélico e conquistador e, (2) da igreja da perspectiva do Cristo da cruz dessa missão triunfal e gloriosa, que acaba se transmutando, de um ideal-raiz da vocação e espiritualidade cristãs, em uma ideia desorientada e deturpada de apresentar Deus ao mundo. Quando olhamos para o caminho (missionário) de Jesus, porém, a imagem não é de triunfo, glória ou conquista, mas de submissão, fragilidade e dor. Com isso não quero dizer que, em Jesus, Deus foi derrotado, e sim que nele vemos o sentido de que perder nem sempre é signo de derrota; pode ser caminho para uma vitória não triunfal, mas significativa. Assim é para mim a relação entre a cruz e a ressurreição. A mensagem da cruz carrega o gene da morte, que gera vida, como no paradoxo do Cristo: tentar salvar 9

a vida é, na verdade, perdê-la; já perder a vida, pela causa certa, é achá-la (cf. Mt 17.25). Jesus também falou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me”. O paradoxo aqui, porém, é que negar-se é uma forma de declarar a morte de algo dentro de si (o que Paulo chama de “velho homem”), a fim de fazer brotar e florescer da própria vida um novo ser humano. Não, Deus não é sádico; não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos ver morrendo; não nos criou para rejeitar a vida, mas para afirmá-la. No entanto, segundo Jesus, é negando-se a si mesmo, desfazendo-se de todo orgulho de ser, abraçando a própria fragilidade, reconhecendo-se como ser codependente, é que podemos afirmar a vida e a liberdade humanas. A mensagem da ressurreição, por sua vez, não existe nem faz sentido se separada da mensagem da cruz. Para ressuscitar é preciso morrer e é morrendo que se vive. É uma mensagem de vida abundante, mas não sem morte; de alegria, mas não sem tristeza; de vitória, mas não sem fracasso; de força, mas não sem fraqueza; de luz, mas não fora das trevas. Como disse, numa palestra, Julio Zabatiero (2012), Deus está morto e permanece morto. Ressuscitou precisamente porque morreu, e não é porque morreu que deixou de ser o Deus crucificado. Em suas palavras exatas: “A teologia é a linguagem do paradoxo: quando digo que Deus está morto, é a melhor maneira de afirmar que Ele está vivo”. Além disso, a ressurreição não foi um evento majestoso, triunfal e barulhento. Como vemos nas narrativas da ressurreição em Lucas 24, a ressurreição foi um ato silencioso e marginal de Deus; não houve testemunhas à beira do túmulo, apenas anjos que anunciaram a poucas mulheres que Ele já não está morto, mas vive; não saiu nos principais noticiários do dia, mas correu de boca em boca, de modo que se a história até hoje a encara não como evento, mas como mito, até para os discípulos à época foi difícil de acreditar, mesmo quando o próprio Jesus de repente apareceu no meio deles, como Mateus indica (Mt 28.17). Deus não ressuscitou Jesus dos mortos preocupado com a propaganda do seu governo sobre a terra, como que dizendo: “Viram só, eu tiro e dou à vida a quem quero, meu poder é magnânimo; vocês mataram meu Filho, mas a grande prova de que Ele É em mim e de que EU SOU, é que agora ele vive de novo, por isso curvem-se diante de mim, o rei dos Reis!”. Não. A ressurreição não é prova de nada nem existe para provar alguma coisa. Não é o aguilhão daqueles que, como Tomé, precisam “ver para crer”, mas para o bem-aventurados do reino os quais, mesmo não vendo, creram e creem (cf. Jo 20.29). O Pai ressuscitou Jesus dos mortos porque Ele é o seu Filho amado; para que a morte não tenha a última palavra; para confirmar a obra do Filho; para que nós encontrássemos vida Nele e, tendo vida, tivéssemos esperança e, tendo esperança e pela fé, espalhássemos essa boa notícia de vida, amor e esperança ao mundo. E assim fazemos seguindo o mesmo modelo e espírito que vimos em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que, como expressa Comblin (1983, p. 56, grifos meus): (...) se manifestou sem nenhum dos atributos da força humana. Jesus não quis brilhar pela cultura. Não quis argumentar com os escribas e os doutores da lei, menos ainda com os filósofos pagãos. Não conquistou o povo pela abundância de suas esmolas ou as obras de desenvolvimento. Não impressionou pelo poder. O messianismo ficava totalmente alheio às suas perspectivas. O sinal supremo que deu aos homens foi sua morte, manifestação visível da mais completa incapacidade e dominar e de convencer por meio de argumentos tirados das culturas e das civilizações. Na verdade Jesus estava completamente desarmado no meio dos homens, e quis estar assim. 10

Estava desarmado para poder alcançar o homem na fonte de sua humanidade, no nível da maior universalidade: concretamente para poder ser recebido pelo mais humilde dos homens, para se encontrar com a humanidade em todos os homens.

Pensando na mesma direção que Comblin, é possível dizer que Jesus não teria um perfil para ser um missionário cultural ou transcultural em nossos dias, por falta de requisitos mínimos para se encaixar (conforme as caixas de encaixe hoje vigentes em muitas igrejas e agências missionárias do mundo): caminhou à margem da religião e da cultura; abraçou não apenas as vulnerabilidades humanas como escolheu ser humilde entre os humildes e desgraçados; não primava por demonstrações sobrenaturais de poder, pelo contrário, em muitos milagres que realizou pedia total sigilo daquele(a) que o recebeu; não partiu para o caminho da apologética ou defesa da fé, cercando-se de argumentos fortes para “defender” a perspectiva do reino de Deus, de modo que, em Jesus, não se faz ninguém se achegar ao reino pelo poder do argumento, mas pelo caminho da fragilidade, da infantilidade espiritual, do diálogo, do arrependimento, do perdão e da graça. Como lembra Comblin (1983, p. 58), “os homens são vulneráveis. A possibilidade de mudança radica justamente nessa vulnerabilidade”. Ademais, Jesus não se aliou às estruturas e poderes de seu tempo, ao mesmo tempo em que rejeitou o caminho da usurpação de ser “igual a Deus” (cf. Fp 2.6); apresentou a boa nova do reino em obediência à sua missão, sem se preocupar em agradar a ninguém ou mesmo com o possível insucesso, rejeição ou má reputação. Jesus foi um profeta, e profeta que é profeta não esconde sua fragilidade nem teme perder a própria cabeça. Por essa razão, seu ministério profético iniciou-se com um discurso arrojado numa sinagoga em Nazaré, em que declarou a palavra do profeta Isaías se cumpria nele mesmo naquele momento, e teve de reconhecer a rejeição dos seus, e mais do que isso, enfrentar a ira dos que estavam presente na sinagoga, a expulsão de sua própria cidade e tentativa de assassinato (cf. Lc 4.16-30). Não poderíamos chamar isto de um início bem-sucedido aos olhos da cultura (especialmente a nossa), concordam? Por essa razão é que, segundo vejo, as perspectivas de Bosch – de que a missão não tem nada de impressionante, é antítese de uma teologia da glória – e a de Comblin – da fraqueza como condição prévia de uma missão autêntica – faz jus à perspectiva bíblica e primitiva de missão. Isto porque, conforme analisa Comblin (1983, p. 60), a tentação pela qual passa o missionário é parecida com aquela enfrentada por Jesus: “a tentação de messianismo, a tentação da força, do poder, do dinheiro e da cultura”. Não é à toa que Paulo desenvolveu toda uma teologia do poder e da fraqueza em sua carta missionária, de II Coríntios. Ali ele utiliza-se de uma metáfora poderosa, a de que temos esse “tesouro em vasos de barro” (2Co 4.7), a fim de que reconheçamos que isso é por pura graça e um milagre – um vaso contendo um tesouro; o evangelho, poder de Deus, habitando e agindo através de seres frágeis como nós – e que, portanto, o poder que avulta em nós não é propriamente nosso, mas vem de Deus. Adiante, no capítulo 12, ele complementa esta ideia acrescentando a perspectiva de que a graça de Deus nos é suficiente em tudo, que o espinho na carne – ou a “dádiva de uma deficiência”, na tradução A Mensagem – não será arrancado, pois ele está ali por uma razão: para esbofetear nossa prepotência e nos fazer aceitar com gratidão nossas fraquezas, pois é através delas que o poder de Deus se aperfeiçoa em nós, pois quando somos fracos, então é que somos fortes (2Co 12.7-10). Essa sim é, nos dizeres de Nietzsche, uma “verdade sangrenta”. E a questão aqui não é gostar ou não dela; a questão é aprender como encarná-la. 11

Referências bibliográficas BOSCH, David. Missão transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. ______. A spirituality of the road. Scottdale, Pennsylvania: Herald Press, 1979. COMBLIN, José. Teologia da missão. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983. ELLUL, Jacques. Políticas de Deus, políticas do homem. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. FORD, Michael. O profeta ferido: um retrato de Henri J. M. Nouwen. Prior Velho, Portugal: Paulinas, 2005. GALILEA, Segundo. A amizade de Deus: o cristianismo como amizade. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 1988. MENEZES, Jonathan. Humanos, graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013. NIETZCSHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, 2007. NOUWEN, Henri. Discernment. Reading the signs of daily life. New York, NY: HarperOne, 2013. ______. Gracias! A Latin American journal. Maryknoll, New York: Orbis Books, 2005. ______. O Sofrimento que cura. São Paulo: Paulinas, 2001. ______. Lifesigns. Intimacy, fecundity and ecstasy in Christian perspective. New York: Image Books, 1990. ZABATIERO, Julio. Lugares e modos da teologia para a igreja e a realidade brasileira contemporânea. Palestra proferida na Consulta Nacional da FTL-B em Belo Horizonte/MG, em 07 de junho de 2012. Material em vídeo.

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