Em Óbidos, a Luz é uma Paixão

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EM ÓBIDOS, A LUZ É UMA PAIXÃO Mário Caeiro

A Luz é uma paixão que me assaltou em 2002, quando me apercebi que, por um lado, as cidades, em termos de iluminação, estão longe de oferecer uma experiência completa aos seus habitantes; e que, por outro, raramente integram as visões artísticas nos seus projectos de imagem. A arte contemporânea, em geral, já ocupa um espaço diminuto no imaginário colectivo, mas a arte da luz, em especial, está quase completamente ausente do ambiente urbano, sobretudo em países como Portugal com uma industrialização muito recente e generosamente contemplados com um Sol quase excessivo que, aliás, menosprezamos. Desde então parte da minha investigação-acção enquanto programador cultural consiste em integrar as tradições projectuais da arte, da arquitectura e da iluminação nocturna, sempre tentando acompanhar a evolução e/ou estabilização de determinadas tendências estéticas e artísticas, não menos que manter uma perspectiva cultural tanto quanto possível anacrónica, isto é, para além do tempo (ou, para ser mais claro, das modas). Neste percurso de descoberta considero incontornáveis – fundamentais – as experimentações clássicas de um certo minimalismo-lumière que hoje se vai actualizando ao ritmo de novas visões, atitudes e tecnologias. Estou a pensar nas múltiplas experimentações remotamente oriundas da arte conceptual, da instalação, da arte processual ou da land art nos anos 60 e 70, hoje tanto mais interessantes quanto formos sendo capazes as integrar em inovadoras perspectivas urbanísticas, ao nível de um modus operandi decisivo face à forma urbana. No limite e em suma existe hoje uma progressivamente afirmativa arte da luz, que vai encontrando formas diversas para se integrar no tecido urbano, no quadro de eventos, de intervenções arquitecturais, de instantes performativos. Nenhuma ocasião para afirmar esta cultura da luz pode ser deitada fora e assim aconteceu em Óbidos, no Natal de 2013. 9

OPERAR COM O LUGAR

Desde a Luzboa – Bienal Internacional da Luz em Lisboa (2004 e 2006) tenho tido a oportunidade de programar continuamente acontecimentos urbanos na esfera de ‘arte da luz’, seja em Tallinn, na Estónia, ou Durham, no Reino Unido e, com regularidade anual desde 2009, em Torun, na Polónia. Creio que foi esta perspectiva curatorial ‘mão na massa’, bem como o meu interesse em conceber a luz a partir da mobilidade táctica da arte contemporânea, que levou Óbidos e convidar-me para ensaiar um evento-acontecimento para a Vila. Reconheci no convite um desafio para a sua integração numa dinâmica internacional.

A este desafio respondi de imediato, estabelecendo com Philip Cabau, meu colega de docência na ESAD.cr e arquitecto, uma parceria para o desenvolvimento do projecto capaz de conferir a esta acção em Óbidos um carácter particular – uma identidade – no seio da rede internacional da Luz. Essa identidade radicar-se-ia num entendimento sistémico e propriamente territorial da acção – e que viria a consubstancializar-se no Plano Cultural ‘Água Viva’. Em todo o caso, programar intervenções de arte urbana em torno ou a partir do tema da luz implica desde logo problematizar a cultura da luz local, na qual as obras se irão inserir. Ou seja, implica prestar atenção ao meio urbano e suas formas – ver mais à frente o texto de Philip Cabau, que explicita o âmago desta problemática definindo algumas regras essenciais do jogo da arte da luz urbana –, não menos que à ocasião, que 10

Integração numa dinâmica internacional

Het Pakt em Lisboa (2006), Kortrijk (2012) e Torun (2014).

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já tem a ver com o problema da oportunidade do momento, da gestão dos meios disponíveis e a disponibilizar, em resumo, do kairos em toda a sua multidimensionalidade. Isto implica simultaneamente uma generosidade específica (durante a preparação e a produção de qualquer projecto from scratch), bem como uma vigilância particulares (relativamente à complexa articulação que há que fazer-se entre o desejo original dos artistas (as suas ‘ideias’) e o(s) ‘projecto(s)’ de luz propriamente dito(s), o que resulta sempre de complicadas negociações e compromissos, uma vez que estamos a falar de intervenções urbanas no espaço público. Por outras palavras, na curadoria do objecto de luz urbana, conforme a realizámos em Óbidos, procurei começar por estar atento às vias para articular a vontade artística – nem sempre fácil ou desejável de comunicar antecipadamente, uma vez que a arte nunca deixa de ter a sua sombra (Perniola) – com os meios e tempo disponíveis (colocados à disposição pela organização e a produção). Tal começa sempre na capacidade que o espaço e o lugar possuem para albergar as obras em si, isto é, de o contexto, nas suas múltiplas dimensões, reagir favoravelmente à intromissão do objecto artístico. Óbidos, em Dezembro de 2013, foi um palco particularmente privilegiado para ensaiar estas questões, palco esse aberto por uma visão institucional e política que nos ‘abriu a porta’ para conquistar aquelas muralhas – pelo menos durante um mês. Um princípio-chave na curadoria de arte pública é, de resto, o de ser essencial laborar-se no seio de uma visão global que enquadre as acções não apenas enquanto conjunto de entidades discretas, pedaços de cidade, mas sobretudo como outcomes efémeros de uma atitude projectual transversal que através deles se revela. O plano Água Viva, nestes termos, apenas revelou uma parte ínfima da sua potencialidade. Contudo, ela reconhece-se já no Óbidos Luz, num par de pormenores cruciais, como por exemplo o modo como as luminárias e os projectores foram pensados: pormenores técnicos realizados pela equipa da Visual Stimuli para a Praça de Santa Maria; ou no desenho original de uma Torre de Projecção, integralmente realizada em madeira pelas Carpintarias da Câmara Municipal – a partir de um projecto de Philip Cabau. 12

Este tipo de subtilezas, longe do espectáculo que não deixa de ser esperado, mostraram que um evento de Luz e de Noite não deixa de pensar a sua relação com a paisagem diurna assumindo preocupações da ordem do craft e do detalhe construtivo que, na verdade, ‘desaparecem’ quando as luzes se acendem. ÓBIDOS LUZ? ÓBIDOS-RELÂMPAGO

Em Óbidos, o inventio da curadoria, que tinha de se concretizar em escassos dias para dar lugar ao processo de produção executiva, começou desde logo com a própria participação na já referida visão estrutural de síntese com carácter urbanístico. O Plano Cultural ‘Água Viva’ foi a base – conceptual e propriamente física (leitura global do terreno) – sobre a qual haveria de assentar a linguagem mais efémera e táctica das intervenções do programa e destas enquanto conjunto legível. Tenho para mim que o meio urbano é já um discurso. Em Óbidos, este é o de uma evidente monumentalização ou historicização de uma imagem-experiência, com forte vocação turística. Ora, sobre esse discurso, a arte vai criar momentos específicos, manipulando a matéria urbana no sentido da criação de pequenos (nem sempre tão pequenos quanto isso…) momentos urbanos. O conceito advém de Henri Lefèbvre, e por ora retenha-se o essencial: sem estes momentos, a cidade, o lugar, são amorfas massas de entorno que não conseguem tornar-se factores de comunicação genuína – e que incluí uma componente profundamente sócio-cultural. Dito isto, em que consistiu a operação curatorial Óbidos-Luz? Um curador trabalha com possibilidades, opções. Imagina cenários, nos quais os actores serão as peças na sua relação com o contexto. Evoca artistas com os quais seja estimulante estabelecer uma colaboração que enriqueça a sua própria noção do contexto, entretanto informada pela equipa que faz acontecer a acção como um todo cultural – no caso, a equipa multidisciplinar e transversalmente empenhada da Associação Cultural Palavrão.

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Dada a oportunidade específica que Óbidos ofereceu – a possibilidade de realização de um evento original, potencialmente inovador e consequentemente passível de se tornar regular, para já no seio da marca ‘Vila Natal’ –, havia que promover-se uma dimensão simultaneamente artística e pedagógica e, porventura, propedêutica. Havia que explicitar as diversas possibilidades da luz na paisagem e no quotidiano de Óbidos, promovendo momentos experimentais e críticos, mas também celebratórios e identitários, reconhecíveis pela comunidade como válidos para o seu futuro imediato; ao limite, deveriam ser capazes de articular os mundos da arte contemporânea e da programação cultural em sentido lato, no quadro de um urbanismo cultural, integrando preocupações na gestão de uma imagem urbana ancorada em estratégias turísticas incontornáveis, até pelo peso económico que têm. Apareceram assim naturalmente, em Óbidos, várias visões da arte. Várias propostas que passo agora a revisitar do ponto de vista do seu papel numa narrativa curatorial. Em primeiro lugar, veja-se a proposta dos Hetpakt, um colectivo de criadores belga, que previamente apresentei em Lisboa (2006) e Torun, Polónia (2011, 2012 e 2014). Os Hetpakt são um combo particularmente oleado no que toca a ‘tomar conta’ de um espaço através de intervenções dialógicas e interactivas, caracterizadas por um humor e sensibilidade absolutamente particulares. Lieven Neirinck e companhia trouxeram seis tendas iluminadas a partir do interior, instaladas num ponto alto da vila – o Campo da Bola –, num acampamento de aparente fragilidade – afinal, o material das tendas era o plástico translúcido – que apelava ao transeunte convocando-o para uma interacção extremamente directa (what you see is what you get), mas ao mesmo tempo altamente evocativa, isto é, poética. Através de gestos simples como subir a um pedestal para de repente recebermos uma ovação gravada, activada pela nossa ‘coragem’ em participar; ou de, ‘entrando no jogo’, apertar a mão a um actor – supostamente… o melhor apertador de mãos do mundo –, o espectador é arrancado ao quotidiano e lançado para um universo de ilusão capaz de estimular 14

os sentidos e, acima de tudo, a totalidade social como extensão do humano em relação. Trata-se, sublinhe-se, de um humano em aberto, em que a ternura dos gestos é tintada por uma ironia amarga (talvez um traço profundo da cultura flamenga). Esta dimensão de contacto intersubjectivo, na realidade sempre imprevisível, é um aspecto crucial dos eventos urbanos que aspirem ao carácter de encontro, capazes de substituir o kitsch natalício por genuínas formas de espiritualidade. Katarzyna Malejka e Joachim Slugocki trouxeram algo de completamente diferente. São um duo de artistas polacos (que separada- ou conjuntamente apresentei em Torun, em 2010, 2011 e 2013). Ao contrário dos Hetpakt, são muito jovens; mas tal como os Hetpakt, trabalham em equipa e em regime laboratorial, empenhando-se num agudo senso do lugar quando realizam as suas intervenções. Mas onde os Hetpakt trabalham com formas culturais vernaculares – um acampamento de desejos que se desenrola como universo de imagens audiovisuais teatral ou cinemático, assentando em narrativas que estimulam situações conviviais – Kasia e Joachim representam uma atitude de depuração visual extrema, radical mesmo, reduzindo a sua intervenção a uma interrupção gráfica na paisagem, através da colocação de tiras de material têxtil fluorescente. A peça – versão duotone da apresentada na última edição do Festival Bella Skyway – chegou a Óbidos na sequência de uma investigação profunda de ambos no domínio da óptica – no caso de Joachim, sobretudo em torno da cor fluorescente na pintura; no caso de Malejka, sobre a imagem dinâmica a partir de tecnologia video. Conjugando as suas visões, o resultado é sempre uma espécie de maximalismo, pois a singeleza das formas e materiais, enquanto geometrias variáveis de uma op-art povera, transmutam o lugar numa vibrante cena de cor – e aliás, também de som, pois com a brisa a peça ganhava uma dimensão cinética e sonora evidente –, fazendo acontecer, no momento urbano — no caso, uma das principais portas da vila – o próprio esforço de percepção tout-court, que acontece num plano extremamente individual do percurso do espectador. 15

Em qualquer evento, este tipo de peça desempenha um reduto óptico, em que a arte resiste às tentações da iconografia para se restringir à mais discreta das alterações de uma determinada geometria energética de um espaço. Como aconteceu com os Hetpakt, Malejka e Slugocki souberam reagir, no seio da sua linguagem, à proposta de sítios por nós – equipa – previamente estudados como sendo os mais adequados a albergar as suas obras. Foi teamwork e total trust à séria, que acontece porque felizmente já tínhamos tido a oportunidade de trabalhar juntos antes, afinando mecanismos de cooperação. Aqui avanço um factor importante para o sucesso do projecto de curadoria: o respeito dos artistas pelas prioridades culturais de um conceito alia-se ao do curador pela investigação pessoal dos criadores – esta inefável proficiência colaborativa é a essência da qualidade. Vejamos como ela se concretizaria nos restantes artistas conviados. Na economia curatorial do evento, o convite a Alessandro Lupi para participar representou, antes do mais, uma homenagem ao engenho conceptual e plástico; e, num segundo momento, não menos a assumpção da importância da arte como campo e regime operativo. Porque onde Heptakt são de certa forma outsiders do sistema da arte (são essencialmente uma equipa de artistas amadores, que se reúnem pontualmente para cada projecto, nisso residindo aliás a sua irreverente paixão), provocando-o com o seu circo de emoções em estado puro (longe do cinismo de corte reinante); e onde Malejka e Joachim são, de certa forma, aspirantes a artistas – no sentido de que ainda estão às portas do sistema, procurando atingir a velocidade de cruzeiro que lhes permita trabalhar com mais regularidade a nível internacional –, Lupi é um artista com uma carreira individual regular e sólida, permanentemente levando mais longe as suas experimentações, que encontram com facilidade venues para o seu reconhecimento. Para tal contribui o facto deste, sendo italiano, ter como base de operações Berlim, um dos centros mundiais da arte. Ora Lupi – que por outro lado não deixa de ser um artista ainda de certa forma emergente, à beira de um reconhecimento ainda mais inequívoco – foi convidado 16

sobretudo pela sua capacidade de interpretar questões ancestrais (a relação Arte/Natureza, antes de qualquer outra), um entendimento filosófico da obra de arte claramente informada por uma Cultura Humanista que urge actualizar, e finalmente uma técnica artesanal regularmente testada para criar situações sempre com surpreendente pendor cognitivo. Lupi coloca em cada nova obra a responsabilidade de constituir um novo patamar de consciência num percurso que poderíamos dizer é próximo do da investigação científica. Em Óbidos, o italiano teve oportunidade para realizar duas intervenções distintas: uma delas, a instalação de uma obra de arte (Tree), a outra a realização de uma intervenção desenvolvida e decidida in situ, em regime de residência (Arcos). Em ambas as situações criadas – criadas deliberadamente para explicitar a diferença, ao nível da densidade do exercício, entre uma obra (de arte) e um ensaio (artístico) –, o seu trabalho realiza com precisão algo de muito especial: uma subtil bricolage da percepção que organiza o desajuste entre a expectativa do acontecimento plástico e o assunto ele mesmo. Com efeito, a incontornável condição experiencial que caracteriza os seus trabalhos conduz o espectador a uma exploração inteligente das fronteiras que habitualmente distinguem intervenção activa e contemplação (do texto de apresentação da sua obra Light Curve, na recente Bienal de Aquitectura de Veneza de 2014). Ora, com efeito, e para continuar a citação do texto que fizémos para a intervenção de Veneza no Palazzo Bembro, não se trata aqui de uma dialéctica, mas de uma atenção dialogante e elíptica – entre a arquitectura e a intervenção plástica, entre a tecnologia e o gesto, entre o fazer artístico e a história de arte. Atravessados por um humor crítico, os trabalhos de Alessandro Lupi caracterizam-se por uma simplicidade técnica desconcertante. Em suma e nas palavras de Philip Cabau, “Não se trata de iluminar, mas de criar lugares de sombra significante”. É deste modo que o desenho, a experiência do próprio espaço como desenho, se torna assim mecanismo para uma rara percepção do momento como algo de pessoal e único e, ao mesmo tempo, partilhável socialmente, como magia. Esta aconteceu nos arcos da muralha e numa parede junto a uma fonte, e portanto com a arte a comentar, frágil mas decididamente, a matéria mais ‘dura’ da urbe, as suas paredes. 17

Nos objectivos do Evento, a questão de como dar uma imagem contemporânea e original da cidade passou depois pela criação de uma imagem forte na/da Igreja de Santiago, um dos icones arquitectónicos da região. Dado que a tendência video-mapping se tem vindo a constatar como incontornável no seio da cultura da luz, optei por convidar os húngaros Limelight, colectivo de artistas que é dos mais consagrados a nível mundial no que diz respeito ao video-mapping sobre fachadas.

Conscientes de que representam uma fatia importante de qualquer orçamento, artistas desta natureza procuram sempre que a nova obra – quase sempre taylor-made – seja capaz de fazer um compromisso evidente entre narrativas locais (no caso, o ancestral mito religioso de Santa Luzia, tanto quanto o novo mito de Óbidos como foco de eventos ao nível original). Na prática, a Luz é aqui uma emanação grafo-visual dinâmica, empenhada em transformar a fachada do edifício num tela, que por assim dizer ‘acelera’ a cidade (o monumento, no caso a Igreja) com as suas pequenas sequências narrativas articuladas (em torno de uma imaginário reconhecível pela população local), mas ao mesmo tempo ‘abranda’ a cultura visual do cinema e da publicidade com um senso de 18

Uma emanação grafo-visual dinâmica

Intervenções de Limelight e Ocubo em Torun, Polónia e de Simeon Nelson (em colaboração com Nick Rothwell e Rob Goodman, em Durham.

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delicada integração arquitectural: nos Limelight, em Óbidos, a ideia foi a de cobrir a fachada com um revestimento audiovisual espectacular, que colocasse a imagem de Óbidos num plano internacional, já que no mapping o que está em causa é não apenas a experiência local da arquitectura em movimento, mas também a disseminação dessas imagens no âmbito da competição entre cidades por notoriedade (marketing urbano). Esta construção teria de ser realizada partindo do imaginário de Santa Luzia, venerada localmente e entre cujos atributos – coincidências!… – se encontram os olhos (Luzia é a santa dos invisuais). Finalmente, ao nível da implantação, a Igreja de Santiago seria naturalmente o ‘ponto alto’ de qualquer percurso pedonal, e enquanto tal decidimos assumir que aí teria de estar uma peça assumidamentemais mainstream, qual marco nocturno, não apenas para quem percorresse a Rua Direita (virtualmente toda a gente) mas também para quem passasse a maior distância. Ainda em relação à opção pelos Limelight, importa notar que representam o lado mais festivo e celebratório de uma cultura visual que, nas suas margens, por vezes opta por criar momentos de certa forma já contravisuais, igualmente impactantes ao nível da escala e da integração do arquitectural, mas que num contexto de Natal seriam manifestamente desadequadas. Tais outras projecções de luz sobre fachadas não deixam de ser um mecanismo particularmente preciso de confluência entre uma política urbana da luz mais ecológica e uma dimensão de resistência artística empenhada numa crítica dos dispositivos. Se a cidade se faz de espectáculo dinâmico e ilusão cinemática, ela também acontece numa não menor escala enquanto ambiente e atmosfera. Ora a luz-ambiente é um factor-chave numa percepção subtil da forma urbana, e isto é tanto mais crucial num espaço como Óbidos, cujo carácter de pequena pérola arquitectónica e urbanística é por demais evidente. Haveria portanto que convidar o design e em particular o design de luz a integrar a dinâmica de transfiguração artística da noite em que consistia todo este projecto. No caso, o design de ambientes tenderia a 20

prevalecer uma imagem de conjunto, a conseguir através da gestão de pontos de luz, de atmosferas de cor, e sobretudo do reforçar de linhas e planos dos edifícios, isto, do dar ritmo e profundidade à experiência de percorrer o espaço. Tudo isto, se possível, acompanhado de um momento mais directamente participativo, convidando-se a população local e acompanhar um workshop de iluminação realizado com material de iluminação adquirido pela organização e que entretanto se tornou propriedade da própria comunidade. Os responsáveis convidados a interpretar estas duas problemáticas foram a Visual Stimuli, equipa de designers e arquitectos portuguesa constituída por Pedro Ek Lopes, Rute Delgado e Alexandre Neto, que convidei porque precisamente previamente haviam realizado comigo um importante projecto-luz para contexto museológico. O resultado do seu trabalho, sendo menos espectacular ou até ‘visível’, é importante ao nível de uma gestão lumínica que possa progressivamente caracterizar o espaço nocturno de Óbidos, no sentido de uma luz urbana de qualidade, delicadamente controlada. É um trabalho que educa a comunidade para uma luz urbana mais responsável. Chegamos assim ao fim do ‘percurso’, ou do ‘programa’, com a convicção de que, na curadoria, o que faz acontecer a arte na cidade é a confiança e generosidade depositadas na dinâmica criada entre a Equipa de Coordenação – no caso, a Palavrão e os funcionários da Câmara Municipal de Óbidos e da Óbidos Criativa – e os artistas convidados. No caso de Óbidos, a questão-chave foi ter de se desenvolver tudo isto numa operação-relâmpago, para mais focada em gerir expectativas – a Luz gera sempre muita expectativa, por exemplo junto dos políticos, bem como da população, e ao mínimo deslize, dada a sua aparente não-necessidade, torna-se facilmente ‘descartável’… – e, ao mesmo tempo, gerar massa crítica – por exemplo, tornando Óbidos num novo player, nacional mas também, quiçá, internacional, capaz de estimular a aproximação de novos parceiros, com destaque para a ESAD.cr, principal instituição de ensino da zona, reconhecida internacionalmente. 21

Ora, nestes termos, a operação curatorial consistiu em garantir que as obras surgissem claramente como aspectos complementares do que pode ser a luz e a arte na cidade; e, ao mesmo tempo, que tivessem a capacidade de inscrever hipóteses ao nível de uma cultura da luz que, a nível regional, é inexistente. Mais, que pudessem permanecer na memória do lugar como memória do futuro desse mesmo lugar. E finalmente, que cada obra pudesse representar um aspecto específico do discurso actual da luz urbana. Em conclusão, um evento-relâmpago que se queira furtar à ‘espuma dos dias’ – às flutuações da moda – deve antes do mais partir de um conceito ou estrutura ou modelo de que constitui por um lado a expressão e, por outro a acção exemplar. Depois, deve convocar saberes e seus agentes – no caso, os queridos artistas que sabiam estar a embarcar num pequena aventura em alguns momentos quase sem rede – de uma forma que os torne cúmplices de uma visão de conjunto motivadora, mobilizadora. Finalmente deve conter em si o germen de futuras reflexões, úteis para novas edições do mesmo conceito ou até outras experiências noutros lugares. Creio que esta estratégia gera a sua própria posteridade, operativa e exemplarmente, e é disso que esta pequena publicação procura dar conta, acompanhando a componente curatorial (motor de arranque) de componentes de reflexão intelectual (plano de investigação, sob a forma de ensaio) e teórico-prática (plano de reflexão sobre a produção executiva da acção, a posteriori). Mais... e para que conste: a selecção final dos artistas para um evento creio que deve decorrer no quadro de uma opção de base: trabalhar-se apenas com profissionais com comprovada capacidade de resposta, isto é, experiência e domínio – craft – da sua linguagem. Cada artista tem de ser, desde o primeiro momento, extremamente claro nos meios necessários para a sua acção (por forma mobilizar-se a parceria com a Organização da melhor maneira) e deverá ser capaz de realizar em escassos dias, senão horas, naturalmente in situ, a sua visão. A realidade muitas vezes desmente voluntarismos, e de outras vezes confirma opções 22

tomadas; uma coisa é certa: há sempre surpresas, boas e más – sendo que as más são as melhores porque aquelas em que todos aprendemos o que não fazer no futuro. Nestes termos, a responsabilidade do curador não se esgotou na escolha dos ‘jogadores’ ou sequer nalguma ‘táctica’ comunicada para o relvado (a Vila de Óbidos); ela teve de fazer com que todas as experiências no terreno constituíssem contributos complementares uns dos outros, para uma cidade mais luminosa, já depois de o evento terminar. Penso que é isto que pedimos a este livro, o comunicar desta visão entretanto realizada pela Palavrão. E por isso fico contente de aqui registar que, neste Evento, a verdade é que aprendemos muito. Ainda assim não tanto que nos impedisse de olhar para os resultados com orgulho, como algo de excepcional aos mais variados níveis: qualidade dos objectos artísticos, das experiências estéticas e da acção pedagógica e, last but not the least, de uma experiência de produção cultural relâmpago. Uma palavra final para a Presidência do Município, na pessoa de Humberto Marques, e a vereação da cultura, na pessoa de Celeste Afonso. De certa forma, são eles os verdadeiros ‘curadores’ deste acontecimento, tendo-me escolhido e à Palavrão para uma acção urbana tão intensa quanto incisiva. Toda a equipa de Óbidos, dos carpinteiros e electricistas ao pessoal do marketing e da produção propriamente dita, estão de parabéns, já que foram capazes de integrar os nossos – os ‘agentes infiltrados’ Rosa Quitério e André Teles – num quotidiano já de si cheio de afazeres, em nome desta nóvel paixão: a Luz.

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HET PAKT Miradouro ‘Jogo da Bola’

Porta da Vila

ALESSANDRO LUPI Arcos góticos, muralha nascente WORKSHOP AULAS ABERTAS Capela de S. Martinho JOACHIM SLUGOCKI E KATARZYNA MALEJKA Porta nascente da vila

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LIMELIGHT Fachada da Igreja de Santiago

VISUAL STIMULI Praça de Santa Maria

ALESSANDRO LUPI Traseira das escadas da Igreja de Santa Maria

Planta da implantação do evento Óbidos-Luz, Óbidos 2013

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