Em tempos de crossfit hermenêutico, há quem recomende fazer uma \" lipo \" na Constituição

May 30, 2017 | Autor: Mariana de Siqueira | Categoria: Constitutional Law, Legal interpretation, Direito Constitucional, Hermenêutica Do Direito
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Em tempos de crossfit hermenêutico, há quem recomende fazer uma “lipo” na Constituição!

Mariana de Siqueira 18/09/2016

Há alguns meses publiquei nesse espaço eletrônico um texto onde abordava a ideia de “crossfit hermenêutico”. Tal fenômeno, em minha visão, corresponde a um grande esforço interpretativo no sentido de atribuir a um texto de direito positivo um significado violador de sua essência, de modo que a norma a partir de então construída não possui coerência lógica para com o sistema jurídico. Essa prática, a despeito das críticas que pode e deve receber, tem se revelado uma constante no dia a dia de nossos tribunais, fato que acaba por enfraquecer a normatividade da legislação e por gerar considerável insegurança jurídica. Tudo isso se agrava quando a conjuntura descrita se transporta para a interpretação e aplicação da Constituição, o que infelizmente também se percebe cotidianamente no país. Como se não bastasse a fragilização do texto constitucional vinda dessa atuação hermenêutica carente de técnica e de densidade teórica, agora querem formalizar e institucionalizar de vez o Frankenstein jurídico. A Constituição Federal de 1988, emendada por mais de noventa vezes ao longo de sua vida, talvez não sobreviva à “cirurgia de reparo estético” que querem lhe direcionar. Desejam lipoaspirar a Constituição para lhe retirar as “gordurinhas sociais” indesejadas. A mazela do Brasil, de acordo com esse diagnóstico, está nos direitos sociais, especialmente nos direitos dos trabalhadores. E, como se não bastasse, há quem defenda que “boa parte do problema fiscal brasileiro surgiu da Constituição de 1988”. 1 Como sobreviver a esse tipo de colocação? Desabafar é um caminho, refletir nos permite compreender melhor as coisas, justamente por isso cá estou eu a escrever sobre o assunto. Então vamos lá: quer dizer que basta mudar a Constituição de forma a lhe retirar a essência e ontologia social inicial para que todos os problemas brasileiros desapareçam ou pelo menos para que sumam aqueles de matriz econômica? Easy, não é mesmo? Antes fosse uma verdade! São tantos os infortúnios ensejadores de problemas econômicos no país que soa ingênuo e até mesmo oportunista defender a retirada de direitos dos trabalhadores 1

SEERA Apud. OTTA, Lu Aiko. Serra apoia a ideia de promover “lipo” na Constituição. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,serra-apoia-ideia-de-promover-uma-lipo-naconstituicao,10000075325. Acesso em 12 de setembro de 2016.

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como forma de salvar a economia nacional. E a má gestão pública? E a corrupção, a desigualdade social e concentração de renda, a ausência de democratização dos meios de comunicação, os vícios privados nos espaços públicos e tantos outros fatores que certamente dão causa às nossas tão antigas e complexas dificuldades? Simplesmente varreremos tudo para debaixo do tapete como se não existisse? A culpa agora é da Constituição? E eu que pensei que veria a Constituição amadurecer, adquirir notória estabilidade e intensificar a sua força normativa em sua vivência balzaquiana! Os que querem “lipar” o texto da Constituição alegam o desejo por um Estado mínimo e veem esse Estado mais enxuto como solução para todo o mal, amém! Eu aqui fico a me perguntar: Estado Mínimo para quem mesmo, hein, cara pálida?! Foi impossível ler a matéria sobre a “lipo” constitucional no site do Estadão e não me recordar da fala de uma das personagens do filme The big short (A grande aposta). O filme relata um trágico momento da economia estadunidense, onde a bolha criada no setor imobiliário, em grande parte oriunda de fraudes praticadas pelos agentes econômicos, fez o mercado quebrar, gerando desemprego, aflições sociais inúmeras e a mitigação do sonho da casa própria. Dados revelam que aproximadamente oito milhões de pessoas perderam seus empregos e seis milhões as suas casas. Para o rombo gerado em 2008, houve resgate financeiro estatal. O Estado e os contribuintes salvaram o capital. Mark Baum, personagem do filme, ao constatar quão impiedoso é o sistema, diz: “Sinto que em poucos anos farão o que sempre fazem quando a economia vai para o buraco: culparão os imigrantes e os pobres.” Na verdade, complementa o narrador do filme, “culparam os imigrantes, os pobres e até mesmo os professores.” Para os que desejam a reforma constitucional minimizadora do Estado, digo que não estão sozinhos, muitos entendem ser ela possível, especialmente diante do fato de não serem os direitos sociais laborais cláusulas pétreas expressas. Para os que, como eu, consideram tal Frankenstein constitucional um retrocesso sem tamanho, as ideias de vedação do retrocesso social e de cláusulas pétreas implícitas oferecem amparo e acalento. Me lembro aqui de Cazuza: “Ideologia! Eu quero uma pra viver!” Caso as mudanças venham a efetivamente ocorrer, sendo elaboradas as emendas constitucionais pretendidas, só nos restará apelar para aquele que ultimamente tem sido alvo de inúmeras críticas por aparentemente também ter esquecido do valor do texto constitucional: o STF. Ressalte-se, que outros ares podem soprar ao redor dessa conjuntura. Como é notório, uma nova presidência se inicia no STF e quem sabe não vem junto com ela um novo olhar de mais amplo e intenso respeito ao texto original constitucional. Se até flores nascem do asfalto rompendo com a sua rigidez e colorindo a sua cinzenta cor, é possível sim manter a esperança! Nesse ponto me recordo de A flor e a náusea, poema de Carlos Drummond, que em seu trecho final nos diz:

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Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumamse. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Viva a poesia, a música, o cinema, viva a arte por encher de cor a vida, especialmente em tempos sombrios! Por ora, para quem é de espera resta o aguardo, para quem é de luta resta as ruas ocupar. Quanto ao desfecho efetivo de tudo isso, só o tempo o revelará. Quem viver verá!

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