Em3Atos - Ser Tão Teatro

September 30, 2017 | Autor: Christina Streva | Categoria: Street Theatre, Ensemble Theatre, Brazilian Theater
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Descrição do Produto

EM3ATOS

SER TÃO TEATRO

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EM3ATOS

Realização:

Patrocínio:

© 2011 - Grupo Ser Tão Teatro

EM3ATOS - SER TÃO TEATRO Publicação Cultural da UNIRIO em parceria com o Ser Tão Teatro de distribuição gratuita para as Universidades, Bibliotecas e Centros Culturais. Proibida a venda. Os artigos são autorais, não refletindo, necessariamente, o posicionamento da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Coordenação: Christina Streva Realização: Grupo Ser Tão Teatro - João Pessoa - PB e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Rio de Janeiro - RJ Julho de 2011 Compilação: Pollyanna Barros Projeto gráfico: Márcio Miranda Revisão: Mariana Simoni Impressão: Gráfica JB

E53

Em 3 atos – Ser tão teatro / coord. Christina Streva ; realização Grupo Ser Tão Teatro ; comp. Pollyana Barros ; projeto gráfico Márcio Miranda ; rev. Mariana Maia. – João Pessoa : UFPB : Banco do Nordeste ; Rio de Janeiro : UNIRIO. PROEXC, 2011. 96p. : Il. ISBN: 978-85-61066-30-7

1.

Teatro brasileiro. 2. Teatro e sociedade. 3. Teatro universitário. 4. Teatro de Grupo. I. Streva, Christina. II. Barros, Pollyana. III. Miranda, Márcio. IV. Maia, Mariana. V. Ser Tão Teatro (Grupo de Teatro). VI. Universidade Federal da Paraíba. VII. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003). Pró-Reitoria de Extensão e Cultura. VIII. Banco do Nordeste. IX. Título.

prefácio Seria praticamente impossível para qualquer um dos 17 par-

mil pessoas. Em 2011, com o patrocínio da CHESF, adaptamos em

ticipantes da primeira oficina de formação do Ser Tão Teatro em

parceira com a pesquisadora Rosyane Trotta o texto “O Coronel

2007 imaginar que, apenas quatro anos depois daquele primeiro

de Macambira” de Joaquim Cardozo. Com Flor de Macambira per-

encontro, o grupo teria montado três clássicos da dramaturgia

corremos as dez principais cidades ao longo do Rio São Francisco,

nacional, circulado com eles por mais de cinquenta capitais e

além de Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

cidades do interior do Brasil, percorrido mais de 15 mil km de

Em paralelo às apresentações, montagens e desmontagens,

estradas e realizado três edições de um festival que já garantiu

a vocação natural do grupo como agente multiplicador se conso-

seu espaço na cena teatral nordestina, a Mostra de Teatro de

lidou nas oficinas ministradas em espaços tão diferentes como,

Grupo, que na sua terceira edição reuniu um público de mais de

por exemplo, o Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, as cidades

5 mil pessoas em João Pessoa.

ribeirinhas do Rio São Francisco, e a sede do Grupo Nós do Morro,

De ônibus, com equipes que variavam entre 18 e 25 pessoas,

no Rio de Janeiro. A peculiaridade do Ser Tão também passa pela

e graças ao apoio de mais de vinte editais nacionais de cultura, o

prática da autogestão coletiva, que, dia a dia, realização após re-

Ser Tão viu seu trabalho crescer, florescer e ser reconhecido. Da

alização, transforma jovens e inexperientes atores em produtores

estreia de Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, na pequena sala

e multiplicadores artísticos.

preta de 68 lugares da Universidade Federal da Paraíba, fomos

O que parecia impossível em 2007 hoje é uma realidade con-

conquistando primeiro os teatros de João Pessoa, depois o inte-

creta que em apenas quatro anos atingiu algo em torno de 60 mil

rior do estado da Paraíba e, em seguida, lugares tão diversos e

pessoas em vários estados brasileiros. Daí, a necessidade de não

distantes como Canudos (BA) e Aracati (CE).

deixar essa história se perder criando a publicação “EM3ATOS

Em nossas andanças, através de muito intercâmbio com vá-

– Ser Tão Teatro”, uma parceria com o Banco do Nordeste, que

rios outros grupos do Brasil e com esse publico tão diverso, fomos

congrega uma coletânea de textos e fotos, em narração polifôni-

descobrindo a nossa forma de fazer teatro. Um teatro popular que

ca, reunindo vozes que cruzaram a recente e intensa trajetória do

bebe das matrizes da nossa cultura, que resgata nossa dramatur-

grupo. Vozes como da pesquisadora Rosyane Trotta, do crítico Kil

gia e que é feito em praça pública, aberto, gratuito, e muitas ve-

Abreu, da caracterizadora Mona Magalhães, da figurinista Danie-

zes para públicos que nunca viram teatro antes. Em 2010, com o

le Geammal, da diretora Christina Streva, da atriz Isadora Feitosa

apoio do Programa Eletrobrás de Cultura e da FUNARTE e, em

e, ainda, críticas e reportagens sobre as aventuras do Ser Tão pelo

parceira com o grupo “Clowns de Shakespeare”, de Natal, adap-

cenário teatral brasileiro.

tamos e montamos o texto Farsa da Boa Preguiça. Apresentamos a peça em 21 cidades de sete estados nordestinos para mais de 20



Ser Tão Teatro Junho de 2011

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ato

I 7

8

Vereda da Salvação aborda a miséria, o fanatismo religioso e o conflito de terra. Escrita entre os anos 1957 e 1963, a peça é ambientada no sertão e foi inspirada em um fato verídico e brutal da história velada do Brasil, quando em 1955, trabalhadores rurais do norte de Minas Gerais, tomados por uma forte exaltação místico–religiosa desencadearam um desfecho trágico. Apesar da dramaturgia ser construída por uma situação extrema ocorrida há 50 anos, a peça mostra em cena a realidade imutável de boa parte da população sertaneja. Vereda da Salvação fez sua estreia em 2007 na cidade de João Pessoa (PB). Aprovado pelo público, foi considerado pela crítica especializada o melhor espetáculo do ano, ganhando o Prêmio Domingos Sergio Batista de destaque da cultura paraibana. Em 2008, Vereda da Salvação circulou com o patrocínio do Programa BNB de Cultura pelo interior do estado, repetindo o sucesso de público em todas as apresentações, além de ganhar os prêmios de Melhor Espetáculo e Melhor Direção no Festival Aldeia SESC de Teatro – PB. Em 2009, o espetáculo é contemplado no edital BR Distribuidora de Cultura, que selecionou as peças que mais se destacaram no país nos dois anos anteriores. Através desse projeto, Vereda da Salvação circulou por três estados da região Nordeste - Ceará, Sergipe e Bahia - totalizando doze apresentações tanto no interior quanto nas capitais. Vereda da Salvação causou forte impacto por onde passou. Assistida por muitas pessoas que nunca haviam visto um espetáculo teatral antes, muito menos um clássico do teatro moderno brasileiro, a apresentação da peça foi sempre acompanhada de debates calorosos. Nessas ocasiões, o grupo pôde constatar como o espetáculo mexe com o povo nordestino, e o faz refletir sobre importantes questões da atual sociedade brasileira que são tão bem abordadas no texto de Jorge Andrade.

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A história dessa

10

história...

Christina Streva

sidade, entusiasmo e uma total disponibilidade para doar-se ao processo criativo. Durante os dois primeiros anos, nosso trabalho

A história da origem do Ser Tão Teatro se confunde com a

foi basicamente de formação. Por isso, optamos por trabalhar a

minha própria história de vida quando, em 2006, me mudei para

partir de clássicos da dramaturgia nacional, relendo-os e adaptan-

João Pessoa para lecionar teatro na Universidade Federal da Paraíba.

do-os ao momento histórico, político e social atual.

Há anos, o Departamento de Teatro acalentava o desejo de criar

Iniciávamos o dia, sempre às oito da manhã, com um treina-

um bacharelado em interpretação e uma licenciatura em teatro

mento físico que envolvia condicionamento energético e experi-

na UFPB. Eu, por minha vez, desejava também há anos, criar um

mentações com ações físicas, aplicando a elas variações de ritmo,

núcleo permanente de pesquisa teatral, com integrantes fixos

densidade, redução e dilatação. Por um lado, construíamos par-

e metodologia colaborativa. Trazia na bagagem, além de um

tituras psicofísicas, utilizando o psicologismo dos personagens,

bebê de dois anos, meu filho Gabriel, muita vontade e algumas

as relações afetivas entre eles e suas trajetórias emocionais na

experiências anteriores significativas, porém descontínuas.

tragédia. Simultaneamente, investigávamos também exercícios

Entre nossos desejos e a realidade, o maior desafio era superar uma atmosfera de apatia artística não só na universidade,

de coro, buscando alcançar uma pulsação conjunta e construir imagens a partir de movimentos coletivos.

como também na cena teatral paraibana como um todo. Apesar

Além da investigação prática, conversávamos muito sobre

do glorioso legado histórico, que tanto marcou a minha e outras

tudo que cercava nosso universo de pesquisa: da história do tea-

gerações do teatro brasileiro, João Pessoa sofria com anos de ine-

tro brasileiro à dramaturgia de Jorge Andrade, assistindo a filmes,

xistência de políticas públicas consistentes de incentivo à arte e à

pesquisando sobre a Revolta de Canudos, e gastando horas e ho-

cultura e com a escassez de oportunidades para a reciclagem e a

ras no debate sobre as possíveis relações que poderíamos traçar

formação no campo teatral.

entre o texto da década de 60 e o momento atual. Nesse período,

Em 2007, fundamos juntos o tão esperado curso de teatro

foi fundamental a colaboração de Elias de Lima Lopes e Osvaldo

da UFPB, implementamos as provas de habilidade específica e a

Anzolim, ambos também professores do Departamento de Tea-

nova grade curricular. Paralelamente eu, com a ajuda de uma ver-

tro, que conduziam o trabalho de formação comigo.

ba de dezenove mil reais obtida pelo departamento, através do

A única sala de que dispúnhamos, abafada e escura, ao contrá-

Prêmio Jovens Artistas do MEC/SESU, e muitos cartazes espalha-

rio de ser um problema, acabou nos proporcionando um espaço ao

dos pelos murais e banheiros do campus, consegui juntar dezes-

mesmo tempo intimista e sufocante, justamente como a atmosfe-

sete pessoas entre alunos, professores e funcionários, dispostos a

ra que a peça sugeria. A mata atlântica, dentro do campus universi-

trabalhar até 6 horas por dia, sem qualquer tipo de remuneração,

tário, também foi uma grande companheira de jornada. Passamos

para pesquisar o teatro brasileiro através da montagem de Vereda

muitas manhãs ali, sem nunca sermos incomodados, improvisando

da Salvação, de Jorge Andrade.

as cenas e realizando vivências e laboratórios. Muitas das descober-

Nosso bando era completamente heterogêneo e praticamen-

tas feitas ali foram posteriormente incorporadas ao espetáculo.

te sem qualquer experiência anterior em teatro, mas desde o iní-

Alguns meses após o início dos trabalhos realizamos uma imer-

cio, reunia os ingredientes indispensáveis ao aprendizado: curio-

são na cidade de Barra de São Miguel, no cariri paraibano. Lá, com

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jornadas de até quinze horas de ensaios, que varavam a madruga-

A LAPADA nos permitiu conhecer nossos pares e foi um

da, e rodeados por um cenário idêntico ao que serviu de inspiração

divisor de águas para o Ser Tão. Grupos de pesquisa como nós,

a Jorge Andrade, encontramos as mais belas cenas de Vereda da

alguns porém, com muito mais anos de estrada, que já tinham

Salvação, como as da morte de Jovina e do Banho da Purificação. A

uma forte identidade artística e formas de se viabilizarem admi-

experiência contínua, sob o mesmo teto, além de promover um sal-

nistrativamente, inclusive com sedes estabelecidas. A partir des-

to surpreendente no trabalho artístico, revelava também a presen-

sa experiência, o intercâmbio com outros coletivos ganhou uma

ça de uma ética coletiva que permitia a boa convivência do grupo.

importância central no nosso trabalho. Foi assim que surgiram

O espetáculo estreou na Sala Preta da UFPB em dezembro de

projetos como a Mostra de Teatro de Grupo, que realizamos

2007 e se apresentou em inúmeros lugares e em todas as oportu-

anualmente na cidade de João Pessoa, e a montagem da Farsa da

nidades que surgiram. Era um espetáculo de estudantes inexpe-

Boa Preguiça, de Ariano Suassuna, em parceria com o Clowns de

rientes, com limitações técnicas, mas com uma carga dramática

Shakespeare. Os dois grupos passaram cinco meses juntos, mon-

que surpreendia e uma verdade e uma entrega coletiva que conta-

tando e circulando com o espetáculo por 21 cidades do nordeste

giavam. Causou um verdadeiro impacto inicialmente no campus,

brasileiro, entre os anos de 2009 e 2010.

mas depois também na cidade e, posteriormente, no interior do estado da Paraíba.

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Isadora Feitosa, Gladson Galego, Renata Mora, Maísa Costa, Netto Ribeiro, Suellen Brito, Thardelly Lima, José Hilton, Ander-

Ao término do segundo ano de trabalho estávamos todos

son Lima, Cida Costa, Zé Guilherme, Winsthon Aquilles... Um a

exaustos. A repercussão obtida pelo espetáculo tinha surpreendi-

um, e cada qual no seu tempo. Entre encontros e despedidas, foi-

do até os mais otimistas de nós, mas a constante falta de recursos,

se formando um núcleo duro do Ser Tão, mais forte e amadureci-

a eterna dependência de favores para atender as nossas necessi-

do, consciente dos desafios e das inúmeras tarefas que envolvem

dades mais básicas, como um local para ensaios, o transporte de

a manutenção de um coletivo teatral. E mais e mais colaborado-

cenário, a locomoção da equipe e o armazenamento do material,

res foram se aproximando da nossa família: o cenógrafo Carlos

esgotavam o grupo. Eu, também não agüentava mais acumular,

Alberto Nunes, a figurinista Daniele Geammal, a caracterizadora

praticamente sozinha, a condução da investigação artística, a

Mona Magalhães, o iluminador potiguar Ronaldo Costa, o técnico

produção da peça e as atividades administrativas necessárias para

de luz Janielson Silva, e as preparadoras corporais Valéria Vicente

que o trabalho de pesquisa não parasse.

e Juliana Manhães.

Foi quando em 2008, o Ser Tão foi convidado pelos grupos

Com relação à investigação artística, havia chegado o mo-

Clowns de Shakespeare, de Natal, e pelo Grupo Bagaceira de Te-

mento de eu sair da minha zona de conforto, e de mergulhar com

atro, de Fortaleza, para integrar o recém criado movimento A

o grupo em uma etapa mais colaborativa, que me permitisse in-

LAPADA. O movimento reunia grupos da Paraíba (Piollin, Alfe-

clusive pesquisar novos estilos nunca visitados antes. Entramos,

nim e Ser Tão), do Rio Grande do Norte (Estandarte e Clowns de

então, em uma fase de estudos sobre Jacques Lecoq e Dario Fo,

Shakespeare) e do Ceará (Bagaceira e Máquina) com o objetivo

mergulhando no universo do teatro popular e descobrindo o trei-

de promover o intercâmbio artístico e a articulação política en-

namento com as máscaras. Confeccionamos nossas primeiras

tre os coletivos da região.

máscaras, primeiro a neutra, em seguida a meia máscara, e pos-

teriormente, a máscara inteira. Começamos a investigar os tipos

des ao longo do Rio São Francisco, além de Belo Horizonte e Rio

populares, o tempo da comédia, a criação de fisicalidades extra-

de Janeiro. Logo em seguida, realizamos a III Mostra de Teatro de

cotidianas a partir da exploração de animais. Incluímos também a

Grupo: Edição Teatro de Rua, que reuniu mais de cinco mil pesso-

investigação musical no nosso treinamento diário, trazendo para

as durante uma semana assistindo a espetáculos no Largo São Frei

a cena a música executada pelos próprios atores.

Pedro Gonçalves, em frente à nova sede do Ser Tão. Começamos,

Administrativamente passamos a nos organizar melhor, estu-

então, a circular por vários festivais nacionais de teatro. Foram

dando os editais de cultura e pensando projetos coletivamente.

muitas conquistas, em um curto período de tempo, mas nada veio

Desde nosso primeiro edital, que nos permitiu circular com Vereda

fácil para nós. Trabalhamos muito duro buscando o tempo inteiro

da Salvação pelo interior da Paraíba em 2008, não paramos mais

o aprimoramento e a superação, tanto individual quanto coletiva,

de andar. Circulamos por mais de 50 cidades brasileiras, apresen-

artística e administrativamente.

tando sempre gratuitamente em praças públicas, por capitais e

Tomara que ainda tenhamos uma longa estrada pela frente. Te-

cidades do interior do Brasil, ministrando oficinas e promovendo

mos muitos projetos na cabeça e muitos pés dispostos a continuar

debates com o público após as apresentações.

trabalhando para transformá-los em realidade. Torcemos para que

O contato com o interior do Brasil mordeu todos nós. A re-

nosso país, tão viciado na descontinuidade, na extinção de ações

ceptividade da platéia, sempre afetuosa e sedenta por arte, con-

a cada troca de governo, consiga desta vez, manter as conquistas

tagiou nosso trabalho. Percebemos ali uma verdadeira forma de

que apenas alguns anos de continuidade, de democratização e de

contribuir para a difusão da dramaturgia nacional, para a forma-

descentralização das políticas públicas de incentivo a arte consegui-

ção de platéia e, acima de tudo, para a democratização do teatro

ram construir. Nosso amadurecimento representa o crescimento

no Brasil. Afinal, o que é o teatro de rua, se não o mágico encontro

da cena teatral paraibana como um todo. Somos o resultado de um

da arte com a democracia?

conjunto de ações que começaram na parceria com a universidade,

Em 2011, montamos nosso terceiro espetáculo Flor de Macam-

e que conseguiram florescer em um ambiente de democracia e de

bira, em parceira com a dramaturga Rosyane Trotta e com o dire-

oportunidades. Não sabemos que ventos soprarão no futuro, mas

tor musical da Cia Carroça de Mamulengos, Beto Lemos. Novos e

já temos certeza de uma coisa: a experiência que o Ser Tão tem nos

grandes parceiros que se aproximaram. E circulamos por dez cida-

proporcionado já merece ser celebrada!

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Um

novo teatro surge na

Universidade Federal da Paraíba

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Calina Bispo* Vereda da Salvação encerrou, neste domingo, 16 de dezembro, no Lima Penante, curta e disputada temporada da primeira montagem do recém implantado curso de Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba. Com texto de Jorge Andrade, Vereda foi adaptada sob a direção e produção da professora Christina Streva e atuação de alunos do curso, além da convidada, em excelente atuação, Cida Costa. Montada pela primeira vez em 1963, a peça é inspirada em fatos reais e tem como tema a repressão policial desencadeada contra a comunidade de Catulé, em Minas Gerais, no começo do século XX. Nesta encenação paraibana, Vereda mostra em uma montagem visceral e trágica, o quanto o fanatismo religioso é reforçado pelo analfabetismo e pela falta de perspectivas de um povo marcado pelas secas sertanejas. Como agravante, uma ditadura militar brasileira. Aprovado pelo público paraibano, que lotou todas as sessões, o espetáculo agora depende do investimento que a produção cultural paraibana possa apresentar. Segundo Streva, para que ele retorne em nova temporada, faz-se necessária a boa e velha parceria entre órgãos públicos e privados, no sentido de reconhecerem de forma profissional, o trabalho que o grupo está desenvolvendo nesta montagem. Espera-se, a partir do sucesso que marcou essa primeira temporada que teve patrocínio do Ministério da Educação, que os patrocinadores do teatro paraibano invistam também nesse novo teatro que está surgindo através da Universidade Federal da Paraíba. O que se revela não é a apenas o talento de todos que estão envolvidos nessa produção, mas a escola acadêmica que se confirma através de Vereda da Salvação. É possível observar que esta primeira turma está antecipando a semente de

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um curso que tem tudo para se tornar, ao longo dos próximos anos e próximas pesquisas, referência para o profissional das artes cênicas no Nordeste. Tensão é reforçada por elementos trágicos É incômodo ver como os atores foram levados à exaustão. Uma exaustão mental e física que faz com que a plateia também fique em suspense. Essa é a primeira sensação que se tem a cada novo instante. Elementos como um bebê e uma deficiente física, servem para reforçar esse sentimento. Uma tríplice: Artuliana e a mãe, Joaquim e a mãe, Manoel e sua filha. São eles que polarizam o palco e a narrativa dramática. Streva soube construir essa cena de forma simples, mas que nos oferece, enquanto plateia, cada parte daquele todo formado pelos três casais, de onde surgem os três conflitos que levam a um final extremamente trágico. As funções dos objetos em cena apresentam significações múltiplas, de forma lúdica, agressiva e funcional. Podem ser casas ou prisões. O figurino não excede ao texto nem ao cenário. A roupa deixa de significar apenas roupa. E em tudo isto, vê-se que o texto de Andrade ainda é revisitável, atual, e que sempre será um desafio para quem o encenar. Que a peça circule pelos festivais do país, que as mostras de teatro recebam essa montagem e que o público e o privado, sem trocadilhos, invistam em sua popularização. *Publicado no jornal A União, 18 de dezembro de 2007

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Diógenes Maciel Quando Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, estreou em São Paulo, em 1964, ela foi abafada pelo Golpe Militar. Agora, quando Vereda estreia em João Pessoa, em 2007, somos tomados como por um golpe no meio do estômago. Trazer este texto à cena é um cometimento dos mais audazes, principalmente, depois de toda a história de suas montagens emblemáticas. Talvez um dos mais difíceis textos da nossa moderna dramaturgia, ele se envereda pelos caminhos de um grupo de agregados de uma fazenda, envolvidos pelo fanatismo (com caras

“Talvez um dos mais difíceis textos da nossa moderna dramaturgia”

de Messianismo) de Joaquim. Mas não é só isso que o texto e esta nova montagem nos trazem: eles nos conduzem ao entendimento da desigualdade, do conflito social, da compaixão pelo sofrimento e pela dor de existir. Ele nos ensina, ainda, que num mundo desigual, varado pelo valor da posse, ter braços para trabalhar não é o suficiente, pois não há terra para todo mundo. Inexplicavelmente. Na Paraíba, essas Veredas fazem parte de nossa história recente. Fazem parte da dimensão daqueles que entendem o que é viver sempre empurrado pelo latifúndio e pelo grande proprietário. As veredas da salvação, seja lá para que caminhos apontem, seriam aquelas em que todos pudessem ser iguais, com as devidas partes de cada latifúndio. As veredas da salvação são aquelas por onde trilhamos a descoberta do nosso próprio “Ser-tão”.

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“(...) 2007 foi bom pra quem teve forças de nadar contra a maré. Christina Streva dirigiu um espetáculo de encher os olhos. Vereda da Salvação foi, disparado, o ponto alto das produções paraibanas em 2007.(...)” Jãmarri Nogueira, em matéria publicada no Jornal da Paraíba, 30 de dezembro de 2007

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Vereda da Salvação:

sucesso de público e de crítica, espetáculo terá apresentação única hoje no

Teatro Santa Roza Jãmarrí Nogueira*

(...) Vereda da Salvação merece uma crítica de trás para frente: imperdível, obrigatório, necessário. A montagem de Christina Streva que será apresentada, hoje, no Santa Roza, é uma prova inconteste de como as mãos do diretor podem fazer lapidar um elenco jovem e inexperiente. Carioquíssima, Streva teve sensibilidade na captação da essência sertaneja, descartando lugarescomuns e dizendo não ao caricatural. Vereda da Salvação tem interpretações e texto fortes. Guturais. Secos. Fortes, guturais e secos como o jeito sertanejo de falar. Atente para a crueza da cenografia. Atente para a luz rubro-amarelada e para o breu. E mais: a sonografia passou a ser feita pelo elenco. Nada de som mecânico. São detalhes enriquecedores de uma peça que desvenda a microfísica do poder através do misere sócio-intelectual dos brasis. A melhor opção para esta noite de terça-feira está no Santa Roza. Imperdível! *Publicado no jornal Correio da Paraíba, 11 de março de 2008

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Astier Basílio* Quem conhece a carioca Christina Streva sabe que, em seus trabalhos, ela não alivia. É uma encenadora exigente e dedicada. Foi com esse espírito de entrega e paixão que foi conduzida a montagem da peça Vereda da Salvação, de Jorge Andrade (1992-1984), um clássico da dramaturgia brasileira. O espetáculo, que estreia hoje, às 20h, no teatro Lima Penante, em João Pessoa, foi premiado pelo programa Jovens Artistas, do Ministério da Educação. Christina Streva contaminou todo elenco, composto exclusivamente de alunos da Universidade Federal da Paraíba, instituição em que a diretora trabalha como professora do Departamento de Artes Cênicas. “Foi muito importante para nós o período de vivência e imersão. Passamos cinco dias juntos, na cidade de Barra de São Miguel, trabalhando até 15 horas por dia, de manhã, de tarde, de madrugada”, conta. Vereda da Salvação é baseada em fatos reais acontecidos na cidade de Malacacheta, interior de Minas, em 1955. Uma comunidade de roceiros se converte a uma religião com fortes pendores messiânicos. Joaquim, o pólo mais radical do fanatismo (Girleno Souza), disputa a liderança do grupo com Manuel, embora crente, representa um olhar mais ligado à terra (Gladson Galego). O conflito entre os dois, entre a razão e o fanatismo não se simplifica nesse embate e várias outras questões como exploração, miséria, opressão, pecado, santificação, se confluem, se misturam numa tragédia pungente e forte. Gladson Galego é estudante de Sociologia. Tem 24 anos e só há dois que entrou pela primeira vez num teatro, por conta de uma namorada que teve. “Sempre estive ligado à arte, produzi vídeos, filmando ou produzindo na universidade. Não sei como vai ser meu futuro, mas de uma coisa tenho certeza, quero estar nesse universo”, revelou Galego. * Publicado no Jornal da Paraíba, 07 de dezembro de 2007

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Clássico de

teatro brasileiro

versão exigente

ganha de Christina Streva

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O Ser Tão levando “além das fronteiras “ o nome da Paraíba e de seus parceiros.

Mais um debate aberto ao público após apresentação na cidade de Aracaju. Atividade que se tornou marca do grupo.

Parada para almoço e uma boa foto que mostra o encontro dos atores com a estrada e suas surpresas.

Oficinas realizadas pelo grupo: momentos de intensa interação e contato com as comunidades visitadas.

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VEREDA DA SALVAÇÃO FICHA TÉCNICA Texto: Jorge Andrade Encenação: Christina Streva Assistente de direção: Elias Lima e Osvaldo Anzolin Cenário: Osvaldo Anzolin Figurino: Adriano Bezerra Caracterização: Netto Ribeiro Preparação Corporal: Elias Lima Projeto Gráfico e Hotsite: Márcio Miranda Montagem 2008 Produção / Divulgação: TRATO Cultural MONTAGEM 2010 Cenotécnico: Didi Iluminação: Gladson Galego Operador de Luz: Janielson Silva Direção de produção: Renata Mora Produção: Ser Tão Teatro

ELENCO

2007

2008-2009-2010

Artuliana: Isadora Feitosa Manoel: Gladson Galego Joaquim: Girleno de Souza Dolor: Elba Góes Durvalina: Cida Costa Geraldo: Anderson Lima Ana: Ana Valentim Daluz: Maísa Costa Pedro: Mayk Nascimento Germana: Marcio Barcellar Jovina: Suellen Brito Conceição: Zé Hilton Souza Matador: Netto Ribeiro

Artuliana: Isadora Feitosa Manoel: Gladson Galego Joaquim: Girleno de Souza / Heráclito Cardoso (2010) Dolor: Suzy Lopes (2008)/ Wanda Oliveira Durvalina: Cida Costa Geraldo: Anderson Lima Ana: Ana Valentim / Raquel Ferreira (2010) Daluz: Maísa Costa Pedro: Netto Ribeiro / Winston Aquilles (2010) Germana: Zé Hilton Souza Jovina: Suellen Brito

Clowns de Shakespeare - O Casamento

Clowns de Shakespeare - Muito Barulho por Quase Nada

Grupo Parque de Teatro Uma Flor de Dama

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Coletivo Alfenim Quebra-quilos

Nossa primeira edição. Muitos sonhos e vontades, de troca, de experiência, e sobretudo de oferecer ao público pessoense bons espetáculos e, aos interessados, vivências com grupos de expressão no cenário nordestino. A I Mostra de Teatro de Grupo aconteceu no ano de 2008, quando o grupo dava seus primeiros passos, ainda atrelado à Universidade Federal da Paraíba. Surgiu como um projeto de militância, a partir da necessidade de fomentação e articulação do meio teatral da cidade. Buscou incentivar os alunos de Artes Cênicas da UFPB a se aproximarem dos coletivos em formação e conhecerem a trajetória de grupos que já estão solidificados no circuito teatral nordestino. Mas, a Mostra foi e tem sido algo ainda mais surpreendente e motivador para o Ser Tão. Nesse ano recebemos os grupos TEA, de Caruaru (PE), o Grupo Parque de Teatro, de Fortaleza (CE), e o Clowns de Shakespeare, de Natal (RN). Este último grupo ficou responsável pela oferta de duas oficinas ao público. Representando os grupos locais, convidamos o Coletivo Alfenim de Teatro (PB), parceiro do Ser Tão desde sua formação. Os desdobramentos dessa ação não poderiam ter sido melhores. A partir desse encontro, nós do Ser Tão pudemos, através do Programa Eletrobrás de Cultura 2009, partilhar com o Clowns a montagem do espetáculo Farsa da Boa Preguiça que permitiu aos grupos um intenso processo de troca artística e convivência intensa durante cinco meses de projeto, incluindo a circulação do espetáculo por vinte e uma cidades de sete estados norClowns de Shakespeare Fábulas

destinos. Bons frutos, e novos caminhos se abriram a partir dessa pequena semente.

25

ato

II 27

De um lado, a juventude e energia do Ser Tão Teatro (PB),

no, a caracterizadora mineira Mona Magalhães, a preparadora

grupo formado na UFPB em 2007. Do outro, o Clowns de

corporal pernambucana Carla Martins e o iluminador potiguar

Shakespeare (RN), com mais de quinze anos de estrada, di-

Ronaldo Costa.

versos prêmios nacionais e indicado em 2009 nas categorias

A encenação da Farsa da Boa Preguiça buscou o espírito da

Figurino e Música, do Prêmio Shell de Teatro pelo espetáculo

Commedia Dell’Arte através do improviso, da música ao vivo, da

O Capitão e A Sereia. O Edital da Eletrobrás 2009 possibilitou

alegria e da polifonia de estímulos típica das feiras do interior

esse encontro e essa troca. Juntos, os grupos reuniram uma

nordestino. A inspiração estava no excesso - de cores, sons, tex-

equipe de mais de 20 profissionais vindos de todo o Brasil, sob

turas, nuances e dicotomias tão característicos da cultura popu-

a direção da carioca Christina Streva e do paulista Fernando Ya-

lar nordestina.

mamoto. Também participaram do projeto os cariocas Carlos

A estreia nacional do espetáculo aconteceu em fevereiro de

Alberto Nunes e Daniele Geammal, assinando cenário e figuri-

2010 no Ponto de Cem Réis, em João Pessoa, capital paraibana. Em seguida, a trupe seguiu viagem por 7 estados nordestinos, apresentando em praças públicas de 21 cidades dos estados da Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte, totalizando 27 apresentações gratuitas, sendo uma na capital e duas no interior de cada estado.

(atrás, da esq. p/ dir.) Isadora Feitosa, Carla Martins, Thardelly Lima, Renata Kaiser, César Ferrario e Marco França. (na frente) Maisa Costa, Camille Carvalho, Suellen Brito, Netto Ribeiro, Christina Streva e Fernando Yamamoto.

“A improvisação ruma para uma grande feira onde todos estão vendendo algo. Por muitas vezes o caos foi grande, faltou nos escutarmos mais, perceber as preposições. Mas surgiram momentos interessantes de fazer e de se ver também. É muito bom sentir a energia de Chris puxando o trabalho.” Suellen Brito (sobre o processo de montagem) 8 de dezembro de 2009

“Durante a leitura ouvimos um microfone meio distorcido anunciando um produto, pára tudo! Correm todos para rua, era o cara do picolé em sua bicicleta, um camelô ambulante, vê-lo já serviu de estímulo para ideias outras.” Thardelly Lima (sobre o processo de montagem) 7 de dezembro de 2009

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posta pelo Marco França. Oba! Olhos brilharam e bocas se arreganharam para lançar no espaço as palavras que falam sobre “A história do rico que virou pobre/ Que ficou mais rico ainda e foi pro inferno viver ao lado do cão/ E do pobre, do pobre que virou rico/ Que ficou pobre de novo (...)”. Que beleza!” Isadora Feitosa (sobre o processo de montagem) 11 de dezembro de 2009

“A Chris pediu que pegássemos lápis e papel e colocássemos os nomes dos personagens Aderaldo, Andreza, Nevinha, Simão e Clarabela, numa coluna vertical e na horizontal, que bicho esse persongem seria, qual pecado capital ele teria, que objeto ele seria, que comida, que cheiro e qual elemento ele seria. Ao final das respostas, todas num tempo super rápido, fomos destrinchando cada um dos itens das colunas dos personagens. Foi uma zona! Das respostas mais esclarecedoras e interessantes às coisas mais bizarras ditas e defendidas com toda a dignidade do mundo, aconteceram nesse momento de troca de impressões.” “Assim, fechamos nossos cadernos e levantamos para cantar a primeira música da peça com-

“Relembramos os aspectos que deveríamos observar com mais atenção: características do ambiente, prosódia dos vendedores, olhar, forma de caminhar, pulsação, ações físicas e detalhes peculiares e grotescos dos vendedores. Lista checada e mãos à obra!” Camille Carvalho (sobre visita à Feira do Alecrim) 12 de dezembro de 2009

tempo de existência, foi agraciado e iluminado com 10 editais de cultura, desde sua formação. E a cada hora que se passa, somos tomados por uma sensação de Pai e Mãe. O filhinho, que geramos durante três anos, finalmente começa a dar os primeiros passos.” Netto Ribeiro (sobre o processo de montagem) 28 de dezembro de 2009

“E hoje o dia foi: chegada, saudações, limpeza do espaço, organização dos instrumentos e elementos de cena, aquecimento... Percebo que já temos uma rotina.” César Ferrario (sobre o processo de montagem) 19 de dezembro de 2009

“Assim, Ariano evoca todos os céus e infernos, o príncipe dos apóstolos, o mais corajoso anjo, o arcanjo decaído ao trono flamejante com sua corte infernal e tudo mais que esta terra tem de cego e esquisito para contar a farsa do pobre que virou rico e ficou pobre e do rico que virou pobre e ficou mais rico ainda. Descobrir os enigmas nas entrelinhas, que pairam sobre o universo mítico e ficcional de Suassuna e de seus pitorescos personagens é no mínimo estimulante. Já não somos mais dois grupos!... Somos vinte! Pensando, experimentando, agregando ideias, jogando e reinventando antigas fórmulas de inventar, de imaginar.” Netto Ribeiro (sobre o processo de montagem) 16 de dezembro de 2009

“Fim de ano se aproxima e com ele, todas as lembranças que marcaram a trajetória do grupo Ser Tão nesse ano abençoado. Foi um ano de decisões, de edificações e realizações de sonhos coletivos. O nosso grupo, apesar do pouco

“Que espécie de venda seria essa?. Chegamos então ao denominador comum que, mais que uma venda, o ato de ir até o público trazendo seu personagem de vendedor para dialogar com o universo da obra de Ariano. Fomos para o lado de fora do barracão e iniciamos um tipo de experimentação uns com os outros. Os carrinhos do cenário foram se movimentando com o Tardelly e a Camille, e o restante do elenco com suas estações dependuradas no pescoço criaram uma atmosfera de um verdadeiro camelódromo, onde o produto principal a ser vendido era a PEÇA.” Netto Ribeiro (sobre o processo de montagem) 22 de fevereiro de 2010

“É perceptível como as informações dadas e trabalhadas durante todo o dia vão se somando para cada ator e sendo expostas nas suas proposições. O grupo começa a ganhar uniformidade.” Renata Kaiser (sobre o processo de montagem) 8 de dezembro de 2009

“Com quase 800 testemunhas em pleno Ponto de Cem Réis, nosso filho finalmente veio à tona!” “Durante toda a tarde, inúmeros transeuntes paravam, analisavam o cenário, e invariavelmente perguntavam: “Quanto custa esse óculos?”, “Esses CDs tão à venda?” ou “Esse chá pra gastrite funciona mesmo?”. E nós, aproveitando essas abordagens espontâneas, íamos explican-

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do que se tratava de um cenário de teatro, e que haveria uma apresentação mais tarde.” Fernando Yamamoto (sobre a apresentação em João Pessoa/PB) 28 de fevereiro de 2010

“Disparado, tivemos o público mais inquieto, e para completar a interferência sonora, um culto evangélico acontecia ao lado da apresentação. É minha gente, o teatro de rua é realmente uma prova de fogo para qualquer ator.” Netto Ribeiro (sobre a apresentação em Cascavel / CE) 10 de março de 2010

“Em Traipu, tudo que escrevemos em nossos projetos, a cada edital - a vontade de levar a vivência teatral às regiões pouco favorecidas, o desejo de contribuir para a democratização da cultura, de nos alimentarmos enquanto artistas brasileiros desse país tão rico e tão diverso tudo ali se materializa, como num passe de mágica, em uma realidade forte, concreta e, acima de tudo, revolucionária.”

(sobre a apresentação em Limoeiro / PE) 18 de março de 2010

“O contato com esse Brasil ainda esquecido nos realimenta. E a ação teatral mostra sua verdadeira essência. Sem ser panfletária, ou partidária ela, ainda assim, é essencialmente revolucionária.” “E ali, naquele rio, navegando pela artéria do Brasil e observando aquelas populações ribeirinhas, o que tomou conta de mim foi mesmo uma forte mistura de orgulho e de dever cumprido.” Christina Streva (sobre a apresentação em Traipu / AL) 24 de março de 2010

“Se, no início, a falta de experiência do Ser Tão e a ousadia do projeto nos preocupavam; se chegamos a nos perguntar inúmeras vezes se daríamos conta de tantos desafios, agora, a sensação é bem diferente. Já sabemos que damos conta. Não só de cumprir o projeto mas, mais do que isso, de fazê-lo bem feito.”

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“Demos o play, e entramos rua adentro, chamando o povo que estava sentado na praça, o pessoal do lanche que estava por ali, as crianças que corriam de um lado para o outro, e foram todos se aproxegando às muitas pessoas que já estavam ali para assistir à peça. No primeiro contato percebo o quanto o povo é interativo e isso é bom. Muito burburinho em cena, dos atores e da plateia, claro, e está começando a Farsa da Boa Preguiça em Limoeiro.” Isadora Feitosa

“Teatro de rua! Cores amarelas, misturadas com vermelhas, preto, verde, cores da terra, som de diálogo de teatro e cores de atores que despertaram nas pessoas que estavam por ali passando e as da varanda de prédios, a presenciar o esplendor da Farsa da Boa Preguiça: direção, texto, atores, figurino, produção musical. (...) E me envolvi. Como todos que ali estavam e tiveram a oportunidade de encontrar por um acaso essa peça no meio da rua - não tinha chuva que fizesse os espectadores desistirem. Fui

seduzida por essa peça avaliada por mim, perfeita. (...) Enfim... Com a Farsa, não é que fez ressurgir o orgulho de ser nordestina! A Farsa me impulsionou, e se depender de mim, irei estimular minha família e aos que me circulam a assistirem sempre espetáculos de teatro. Educa, emociona, faz refletir. Agir! Represento aqui a massa alagoana. Não culta, mas uma espectadora que entendeu o recado da peça.” Millena Ramos, espectadora (sobre a apresentação em Maceió / AL) 29 de março de 2010

“Turistas, ambulantes, moradores e meninos de rua curiosos indagavam que show iria acontecer ali. E a gente, orgulhosamente, respondia: Não é show, não. É TEATRO!” “E o público foi chegando. Mais de meia hora antes do início da peça, as cadeiras já estavam todas tomadas. Aos poucos, a avenida foi se tornan-

fartas sombras e na companhia de um pedaço de Mário de Andrade que, estático, vê e ouve tudo como um busto respeitável deve fazer.” Marco França (sobre o processo de montagem no Rio de Janeiro/RJ) 11 de janeiro de 2010

do um grande e belo palco com mais de quinhentas pessoas assistindo à peça. Ritmo bom, plateia animada.... até que a chuva chegou e, finalmente, fomos batizados!!! Mas em dez minutos a chuva passou. E para minha surpresa, o público, continuava lá. Sem arredar pé, esperando a peça continuar. Emocionante. E, assim, em meio aos aplausos, nosso atores recomeçaram o espetáculo, ainda lotado de gente de todos os tipos.” “Marcante: a intervenção urbana, a insistência do público, a entrega da plateia, a força dos atores.” Christina Streva (sobre a apresentação em Maceió / AL) 20 de março de 2010

“(...) 4 horas antes do espetáculo começar, todos já se encontravam no local de apresentação para descarregar o ônibus e montar cenário no Pátio São Pedro. Lugar melhor para apresentação não havia, além da praça ser bem conhecida na cidade por eventos culturais que acontecem lá como a Terça Negra, lá fica a Catedral de São Pedro dos Clérigos, que é tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, uma igreja linda e que nos fez entrar mais ainda no clima da peça, pois São Pedro, para quem não sabe, é um dos personagens do espetáculo.” Maísa Costa (sobre a apresentação em Recife/ PE) 17 de março de 2010

“Após a peregrinação pelos corredores vazios da Universidade, chegamos ao sexto andar e à quarta sala que nos abriga, munida de um restinho de ar-condicionado que bravamente resiste aos tempos de férias em janeiro. Quer dizer, férias para alguns. Não pra nós, claro. Ah! E nem pro disciplinado estudante de violino que estudava sob

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Os rostos e as

máscaras

na peça teatral

Farsa da Boa Preguiça

Mona Magalhães Antes de abordar o processo de criação dos rostos de Nevinha, de Joaquim Simão, de Aderaldo Catacão, de Clarabela, do trio divino (Cristo, Arcanjo Miguel e São Pedro) e da dupla demoníaca (Andressa e de sua ajudante), farei uma breve digressão para falar do entusiasmo com que aceitei o convite da diretora Christina Streva para criar a maquiagem de caracterização desta montagem. Ao mesmo tempo em que achei que a proposta de unir dois grupos distintos completamente ousada e cheia de riscos, confiei no equilíbrio entre a energia e a vontade juvenis de um grupo recém formado, o Ser Tão Teatro, da Paraíba, e a experiência solar e amadurecida do Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte. Em comum, os dois grupos nordestinos têm a mistura em seus núcleos (naturalidades e formação) e a disponibilidade para o trabalho árduo, mas gratificante. Já havia trabalhado em dois espetáculos com os Clowns e também com a Streva, no espetáculo de defesa do seu mestrado, convívio sempre muito prazeroso que aguçava a minha curiosidade de como seria esse trabalho conjunto. Durante o processo, comprovei o talento, o companheirismo e vivenciei o verdadeiro intercâmbio entre eles. Experiência que agradeço a cada componente dos dois grupos.

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De volta ao processo da composição visual de cada um dos personagens, parti do texto de Suassuna - em conjunto com a criação dos figurinos, o desenvolvimento dos personagens pelos atores, os conceitos propostos pela figurinista Daniele Geammal e pela dupla de direção Fernando Yamamoto e Christina Streva - para, no processo de criação das maquiagens, reforçar os traços ou esconder as feições dos atores. Este é o processo que venho desenvolvendo há algum tempo sobre a fotografia dos atores, uma espécie de estudo de campo e reconhecimento de área, para facilitar o encontro dos traços, cores e formas dos rostos dos seres ficcionais que pairam na nossa imaginação. O teatro é um todo de sentido que utiliza em sua expressão diversas linguagens, entre elas, a maquiagem (como qualquer outra linguagem, é constituída de um plano de conteúdo e um plano de expressão), que pode promover a virtualização do rosto do ator para que o rosto do personagem se realize em cena. Suassuna discrimina claramente os três grupos de personagens de Farsa da Boa Preguiça, que, na construção visual, seguindo os preceitos estabelecidos por Pavis (2008), servem como vetores acumuladores que agrupam conjuntos de personagens: o grupo terrestre, o grupo divino e o grupo demoníaco. O terrestre é formado pela apaixonada Nevinha, mulher do preguiçoso Joaquim Simão, e o casal representante da burguesia capitalista, Aderaldo Catacão e sua mulher; a fútil e pseudointelectual Clarabela. Cristo, Arcanjo Miguel e São Pedro constituem o grupo divino; e o grupo demoníaco é formado por Andressa e sua ajudante, que, nesta montagem, reuniu diversos personagens que ora são chamados de Cão Cachorro, ora de Cão Manco. A maquiagem de Aderaldo Catacão e Joaquim Simão é composta por três tonalidades: o tom natural da pele, que, aliado a um tom mais claro e a outro mais escuro, modela os rostos, dando ao primeiro personagem um aspecto novo rico brega, e ao segundo um tom encardido, sujo, com olheiras que denotam o estado de eterna sonolência e cansaço. A dupla feminina também se opõe na composição das maquiagens: Nevinha ganhou cores mais suaves e os cabelos presos tipo “Maria Chiquinha”, o que demonstra sua simplicidade interiorana. Clarabela ostenta uma maquiagem multicolorida, com cabelos

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ruivos presos, num penteado trabalhado de maneira que se perceba por meio dele todo o dinheiro gasto para mantê-lo como tal. A cor azul é a base da maquiagem do trio divino, que se estende também para os cabelos de Simão Pedro e do Arcanjo Miguel. Toda profundidade e contorno no rosto são feitos na cor azul, às vezes pura, outras mesclada ao marrom, esfumada ou não. Às vezes ela define formas, outras deixa que o contorno se perca, dando um sentido de incompletude, mostrando que esses seres celestiais estão muito longe da perfeição divina. Em oposição, na dupla demoníaca, as cores verde e vermelha se harmonizam sobre os rostos de Andressa e sua assistente. Os traços dos rostos de Renata Kaiser e Camille Carvalho são alterados com o propósito de lhes dar feições mais fortes e grosseiras: as sobrancelhas de Andressa são angulosas e os olhos ressaltados pelo verde do qual surge, nas pálpebras móveis, o vermelho que revela o segredo diabólico do personagem. Sua assistente ganhou sobrancelhas grosseiras, nariz mais largo e boca torta. Se Andressa mantém os cabelos escondidos, sua ajudante, no fim, mostra seus longos cabelos emaranhados em tranças e dreads, demonstrando a trama e desvelando as teias ardilosas da história de Suassuna. A maquiagem dos três núcleos procura revelar as características físicas e psicológicas de cada personagem, mas o faz em traços caricatos e farsescos, para que o público perceba o que virá a partir dessas primeiras informações visuais: muita energia e alegria. A maquiagem de caracterização procura se integrar harmonicamente às outras linguagens que compõem a cena e trabalha muito próximo da criação dos figurinos e dos desejos dos atores, pois são eles que abdicam de seus traços fisionômicos para dar mais ênfase aos personagens com os quais agem, reagem, brincam e jogam em cena. Desse modo, agradeço aos atores que, gentilmente, colaboram para a criação dos rostos desses seres ficcionais, que, generosamente, não se importam de se manterem escondidos sob a maquiagem máscara flexível e que, diariamente, dedicam alguns minutos na reprodução dos traços e dos coloridos efêmeros criados e definidos por mim, procurando executá-los fielmente: Camille Carvalho, César Ferrário, Isadora Feitosa, Maisa Costa, Marco França, Netto Ribeiro, Renata Kaiser, Suellen Brito e Thardelly Lima.

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Juntando as roupas para a

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viagem de férias

“Me casei com uma mestiça eu mestiço por inteiro, tivemos muitos mestiços cada vez mais verdadeiros, cada vez mais misturados, cada vez mais brasileiros.” Daniele Geammal O ano tinha acabado e com ele o turbilhão de trabalhos que costumo ter neste período. Janeiro se anunciava com a promessa de férias. O telefone toca: um convite. Farsa da Boa Preguiça era o trabalho. Clowns de Shakespeare e Ser Tão Teatro, em parceria, para montar um espetáculo de rua. Saber como esses dois grupos, oriundos do nordeste do Brasil, se expressariam através das palavras de Ariano Suassuna, me seduziu. Toda a expectativa de descanso se foi e, como uma boa capricorniana, me apresentei ao labor. No primeiro dia de ensaio me deparo com uma feira livre, tanto nas ações daquele espetáculo em formação, quanto no acervo visual que os grupos trouxeram. Seria este o meu universo inspirador para vestir aqueles nove atores. Uma trupe de feirantes que, para aquecer a venda de suas mercadorias, conta uma história escrita por Suassuna. Colocá-los na rua, misturados aos possíveis vendedores que a turnê encontraria em 22 cidades do nordeste, com figurinos que os destacassem da realidade coloquial, emprestando a possibilidade do imaginário preenchido de significados, e ao mesmo tempo permitisse uma identificação local e social, seria a minha função. A primeira coisa que extrai do meu arquivo de memórias foi a música “Mestiçagem” de Antônio Nóbrega e Wilson Freire. Fiquei com ela na cabeça e a partir desta ideia iniciei minha pesquisa, que logo foi ganhando novos rumos. Não era minha intenção e nem a dos dois diretores, Christina Streva e Fernando Yamamoto, segundo nossas conversas, caracterizar um nordeste idealizado e estereotipado. O espetáculo era de rua, na rua e para a rua, com toda a mistura que nela podemos encontrar. Os aspectos da circulação do evento traziam à tona, a cada ensaio, o ambiente cosmopolita. A palavra livre, da feira que nos inspirava, se acentuava cada vez mais. Aqueles persona-

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gens criados por Ariano, interpretados por atores múltiplos nas suas habilidades cênicas, com características que me lembravam do nordeste do meu país, também me possibilitavam enxergar um Brasil por inteiro, em cores, sons, cheiros e gostos. Com o olhar aguçado, circulando por uma livraria em busca de referências visuais, fui atraída por um livro de imagens de dois artistas paulistas, Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos como “Os Gêmeos”. Encontrei na obra deles uma similaridade com o que eu procurava ilustrar. Gustavo e Otávio se expressam através do graffiti, uma arte feita na rua e para a rua, assim como a obra que estávamos produzindo. Seus personagens inspirados no cotidiano, que transitam entre o realismo e a ficção, me ofereceram mais um caminho de inspiração visual para a realidade da rua, com um tom fantástico que o espetáculo precisava. Acrescentei “Os Gêmeos” à minha pesquisa, me aproveitando dos padrões, cores e formas que encontrei no livro. Reuni as imagens para o ambiente visual que pretendia imprimir ao espetáculo, através da minha arte, onde o conceito principal seria a mistura. Meu trabalho já tinha percorrido metade do percurso necessário. Agora, de forma mais específica, precisava desenhar cada um daqueles personagens. Eles já não pertenciam somente ao autor, nem aos diretores, e sim aos atores. As suas partituras gestuais já me conduziam a silhuetas que caracterizariam cada um deles. Aliás, a participação dos intérpretes no meu processo criativo é fundamental. Sempre solicito que falem sobre seus personagens. Peço a descrição de tudo que julgam relevante. Nem sempre o retorno é pertinente e se encaixa no conjunto da obra, mas neste trabalho, especialmente, as contribuições do elenco, quando não correspondiam ao que eu imaginava para cada um deles, me sugeriam um caminho ainda mais rico para algum outro lugar da cena. Juntei tudo tentando não perder as essências do que me foi apresentado. As informações foram transformadas em vestimentas para a cena, num conjunto que ganhou, com a diversidade, a unidade necessária. Concluí meu trabalho. O espetáculo ficou pronto e partiu para sua turnê no nordeste. Eu continuei no Rio. Janeiro acabou e com ele se foi a minha possibilidade de férias, mas a sensação de viagem por muitos Brasis me deixou com a renovação para uma nova empreitada.

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“Aqueles personagens criados por Ariano (...)

Brasil por inteiro, em cores, sons, cheiros e gostos.“

me possibilitavam enxergar um

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com

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Uma farsa iluminada

verdade artística

Valmir Santos* O tema da cultura regional fala alto na tradição artística do Nordeste. Para bem e para mal. Às vezes, a sensação é de engessamento, repisado desde a metade do século passado, elogio da mediocridade a custo do popular. Noutras, a sensação é de alumbramento pelo avesso disso tudo: a cultura popular posta em alta voltagem na elaboração formal, abertura de janelas capazes de nos surpreender diante do que se dava pelo mais do mesmo. Dois exemplos que ocorrem porque cruzados no caminho deste autor nestes dias: o filme Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, que fotografa por dentro, e sem clichês, a geografia afetiva da gente desses lugares; e o espetáculo Farsa da Boa Preguiça, parceria dos grupos Ser Tão Teatro, de João Pessoa, e Clowns de Shakespeare, de Natal, sobre a qual tratamos. É a nova geração de artistas do teatro, marcada pela afirmação do trabalho em grupo, às voltas com as fontes paradigmáticas da dramaturgia popular brasileira, a escola de Ariano Suassuna, de Hermilo Borba Filho. O resultado é um projeto solar, em todos os sentidos. A direção conjunta de Christina Streva e Fernando Yamamoto, unha e carne com a direção musical de Marco França, comunica-se com muita felicidade e sofisticação com o espectador de 2010, crianças e adultos desconectados do mundo digital para mergulhar de corpo e alma, presentes e fisgados que são por narrativa plena em oralidade, em musicalidade, em comunhão raras de se atingir na arte ao vivo. Concebida para apresentações ao ar livre, esta Farsa traz naturalmente os gestos mais alargados, o timming da atuação para as praças (exceção à voz, como apontamos mais adiante), os figurinos exuberantes, a semiarena como desenho espacial propício à cenografia e aos adereços que sugerem o ambiente de uma feira com seus mascates, as leituras de cordel, o carrinho de CD pirata. E é deste que França como que pilota sua cabine de DJ para samplear os climas incidentais ou sentimentais, além dos números musicais que configuram os pilares da criação, a sua preciosidade na sincronia coral, nos arranjos e execuções, na capacidade de servir de ponte e não pinguela entre os blocos da história.

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Se um teatro musical brasileiro existe, se um musical brasileiro é latente e pode peitar e descolar-se belamente das convenções temáticas e estilísticas da Broadway, esse musical brasileiro passa hoje pela assinatura de Marco França. Trata-se da percepção de um ator, da feitura de quem é sujeito de cena, comediante de mão cheia que intui a música organicamente entre esses dois elementos: o ator e a cena, ponto. Soa óbvio, mas faz toda a diferença na peculiar trajetória do Clowns de Shakespeare, sua casa, e encontra terreno fértil na criação de intercâmbio com o Ser Tão. Grandalhão, de personagens um tanto desengonçados, mas um homem de fino trato com a música e a atuação, eis Marco França, aqui um vilão antipático, o Aderaldo Catacão que Suassuna e a encenação zelam em não medi-lo pelo maniqueísmo, assim como os santos e o Deus narradores perdem suas auréolas de quando em quando. E há Thardelly Lima, a encarnação perfeita dessa preguiça macunaímica que desmunheca e desliza ondulante até os dedões dos pés. Seu Joaquim Simão é o espírito umbilical de João Teité, de João Grilo, de Pedro Malazarte. Todos concentrados numa interpretação cômica que parece limar a técnica e se deixar vir por instinto. Parece. O comediante popular atinge esse nirvana com o público sem demonstrar que o faz. Quando se vê, já é, num estalar de dedos. Lima, pés descalços, pulsa o coração do espetáculo sem o vislumbre de protagonista. Sua dança é no olho a olho com os colegas de cena e com o público, ligeiro com o corpo. O elenco da Farsa é entrosado. Dá conta do jogo entre si e da interatividade com a plateia em meia lua. Os atores tocam, cantam, desnudam-se das “máscaras” diante do público. Buscam o arquétipo de animais, seguindo o texto, para desenhá-los corporalmente ou deformá-los de acordo com o caráter. A nota dissonante é o desnível na enunciação. Por tratar-se de espetáculo para ir ao ar livre, espanta que o mero virar de costas de um ou outro faça com que percamos o contato com sua voz. No Fenart, na arena coberta do Espaço Cultural José Lins do Rego, de acústica problemática, isso ficou mais evidente. Mesmo o espectador mais próximo perdeu alguns momentos. Quem quer ir à praça tem que ter voz para dizer a que veio, assim como quem faz comédia popular sobre a cultura regional tem que ser um artista arrojado. *Publicado no site www.teatrojornal.com.br

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Uma cena à altura de Suassuna 46

Kil Abreu* A dramaturgia de Ariano Suassuna, que tem um exemplar alto nesta Farsa da Boa Preguiça, guarda nas dobras da aparente simplicidade (reforçada pelos temas da cultura popular, seu centro), alguns desafios artísticos nada simples. São o canto da sereia a convidar grupos bem intencionados, mas nem sempre munidos dos recursos necessários para dar conta do ritmo exigente e sinuoso da narrativa, dos tempos acertados da ação e, sobretudo, da necessidade de uma colaboração efetiva da montagem com o texto. É que mesmo tratando-se de uma fábula redonda, clássica, fechada (Ariano, aliás, zela muito pelo respeito a isto), há espaços generosos na arquitetura dramática pedindo a intervenção criativa da direção e dos intérpretes. É um espaço produtivo aberto ao olhar do artista que faz e da plateia que assiste. Característica de parte das grandes obras cômicas, sobretudo as populares, mas que em Suassuna, especialmente neste caso, ganha relevância porque o autor se dedica a um universo, em tese, “típico”, então a um retrato pronto de certo locus social, como é quase regra em sua obra; entretanto a peça, ela mesma, tem como um dos seus eixos fortes uma crítica mordaz justo a essa ideia de autenticidade cultural como valor. O tema é espinhoso para uma parte dos artistas nordestinos contemporâneos, que dividem-se entre cumprir o dever de representar aquilo que ideologicamente ficou demarcado como o espaço de evolução da sua cultura e subjetividade e o respiro na direção de rupturas que reinventem a tradição, ou a reabordem, ou esqueçam dela. Pois esta Moralidade ariana – tendo em vista as posições do autor em relação a estas coisas todas – talvez represente, por absoluta necessidade da sua temática, uma saudável dialética, contraponto curioso a esta ideia de cultura que independentemente da sua inspiração ideológica ganhou traduções brilhantes na dramaturgia, na obra romanesca e poética do autor paraibano. E que, por outro lado, infelizmente passou a ser representada e reconhecida nacionalmente de uma maneira superficial, estereotipada e pouco complexa, através das simplificações feitas pela TV. O importante na montagem que celebra o encontro dos Clowns de Shakespeare com o coletivo Ser Tão - dois grupos da cena nova nordestina e que estariam, portanto, diante daqueles dilemas - é o equilíbrio quase perfeito entre

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estes diferentes pesos. A proposta não chega a ser a de assassinar o pai (ainda porque Suassuna está atento e não permitiria grandes intervenções em seu texto). Até ao contrário, há uma generosa assimilação de todas as principais coordenadas sugeridas pela dramaturgia, e em registro dentro do esperado nos campos da comédia popular. Mas com a compensação do preenchimento livre e inquieto de todos aqueles espaços convidativos que se deixaram em aberto. Sem prejuízo e, na verdade, em apoio ao conjunto das outras funções espetaculares, é muito evidente, nesta direção de uma fala autônoma, o trabalho de mestre de Marco França, ator carismático e hoje sem dúvida um dos artistas mais sensíveis na área da criação musical para teatro no Brasil. Aqui temos o exemplo deste diálogo à medida em que a música do espetáculo, seja no cancioneiro, seja na sua função de sonoplastia, vai inventando paripassu à fábula suas formas próprias para pontuar o ritmo, criar sentidos e efeitos ora líricos (o que qualifica e faz respirar o andamento veloz ), ora propriamente cômicos (no passeio à vontade e irônico entre diferentes gêneros musicais). Provavelmente esta exploração dedicada das entradas - a busca do acabamento tanto no plano maior da ação quanto no pormenor- também terá muito a ver com a encenação de Fernando Yamamoto e Christina Streva. Pode-se dizer que parte do gos-

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to que temos ao assistir ao espetáculo vem deste olhar surpreendido por gags, ritmos, detalhes cenográficos e intervenções inesperadas, que saltam da cena em improvisos aparentes. Com alguma distância perceberemos que na verdade há sempre ali um momento oportuno, uma situação bem medida, não atropelada, mesmo quando a sensação é de que a história avança a galope. Evidentemente é impossível saber quanto desta invenção cabe ao próprio elenco, mas esta seria uma pergunta ociosa porque isto em tese não é muito relevante em criações coletivizadas. De todo modo não há dúvida sobre o olhar atento e disciplinado dos encenadores no equilíbrio tanto entre os diferentes tempos da cena quanto das inventivas soluções encontradas para cada uma delas. Por fim, quanto ao “miolo’ da montagem, cabe chamar a atenção para o rendimento do elenco, que operacionaliza todas estas medidas – a composição dos tipos de Suassuna, o improviso aparente e o improviso ele mesmo, deliberado. O resultado é bem mais que regular. Neste capítulo a apresentação no Fenart coloca uma questão importante para a organização: é bonito ver um espetáculo com esta qualidade representado para uma plateia grande, e com grande aderência desta. Mas é uma exigência quase sobre-humana, especialmente para os atores, competir com a infinidade de concorrentes sonoros que o evento abriga. O espaço é

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lindo, uma ágora linda. Mas o fato de tratar-se de uma montagem pensada para a rua não nos desobriga, quando apresentada em um espaço institucional e sob o guarda-chuva de um evento deste porte, que se crie as melhores condições para que a apresentação esteja minimamente resguardada. Talvez o teste maior de qualidade do trabalho tenha sido resistir às poderosas interferências do entorno. E o elenco esteve maduro o suficiente para assegurar a variedade de nuances que o espetáculo inventou e o jogo aberto com a plateia. Como ressalva é preciso dizer, por outro lado, que ainda que se considerem estas limitações salvo engano as atrizes têm uma tarefa de ordem técnica a resolver, na área da empostação e projeção vocal em espaços abertos. Isto não diz sobre o todo das composições femininas, em geral bem desenhadas, como de resto. Tem a ver com a dilatação destas composições, que passam por um trabalho vocal que deve ser tomado como ainda em processo. Nesta versão da Farsa da Boa Preguiça é possível testemunhar, então, o encontro consequente de dois grupos nordestinos em uma dupla dinâmica dialógica, feliz em todas as suas variações: a dos grupos, entre si, e a destes com a obra de Ariano, em uma conversa de gerações que, embora diferentes, acontece sem culpa nem cobranças. E, melhor, de igual para igual. Isto é muito importante para a vida de uma arte atualmente tão saqueada como o teatro - o nordestino em particular e o brasileiro, em geral. *Publicado no site www.funesc.com.br

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FARSA DA BOA PREGUIÇA FICHA TÉCNICA Direção: Christina Streva e Fernando Yamamoto Elenco: Camille Carvalho, César Ferrario, Isadora Feitosa, Maisa Costa, Marco França, Netto Ribeiro, Renata Kaiser, Suellen Brito e Thardelly Lima Texto: Ariano Suassuna Adaptação dramatúrgica: Fernando Yamamoto Direção musical: Marco França Preparação corporal: Carla Martins Cenário: Carlos Alberto Nunes Figurista: Daniele Geammal

Assistente de figurino: Renata Cortes Costureiros: Caio Braga, Fátima Araujo e Marlene de Paula Cenotécnico: Renan Cardoso Maquiagem de Caracterização: Mona Magalhães Iluminação: Ronaldo Costa Direção de Produção: Renata Mora Assistente de produção: Augusta Farias e Gladson Galego Produtor Técnico: Rafael Telles Assessoria de Comunicação: Calina Bispo Fotografia: Maurício Rêgo e Natália Lima Captação de Imagem: Gladson Galego Projeto Gráfico e Hotsite: Márcio Miranda Assistente de pesquisa: Paula Queiroz

Secretariado: Arlindo Bezerra Assessoria Contábil: Joelmarx Sobrinho Idealização: Christina Streva Produção Rio de Janeiro: Samara Martins e Thaís Teixeira Produção Paraíba: Trato Cultural – Calina Bispo Produção Ceará: ATO Produção e Marketing Produção Rio Grande do Norte: Rafael Telles Produção Pernambuco: Fabio Paschoal, Pedro Henrique e Zacaras Garcia Produção Sergipe: Gladson Galego Produção Alagoas: Anna Rodrigues – UFAL / Ronaldo Freire Produção Bahia: Selma Santos Realização: Ser Tão Teatro, Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare e Trato Cultural

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Christina Streva Desde sua origem, o Ser Tão Teatro teve como um importante princípio manter o intercâmbio com outros coletivos teatrais. O projeto da Mostra de Teatro de Grupo surgiu justamente como uma ação permanente do grupo no sentido de promover essa aproximação. Na II Mostra de Teatro de Grupo tivemos o prazer de receber outros dois importantes grupos do nordeste: o OCO Teatro de Salvador (BA) e o Grupo Bagaceira de Teatro de Fortaleza (CE), que trouxeram seis espetáculos inéditos no estado, além de quatro oficinas abertas ao público, debates e mesas-redondas. Representando os grupos locais, convidamos o Grupo Bigorna, dirigido por Fernando Teixeira, que também ministrou uma oficina, além de apresentar o aclamado espetáculo Esparrela. Além disso, apresentamos também a montagem compartilhada pelo Ser Tão Teatro e Clowns de Shakespeare do espetáculo de rua: Farsa da Boa Preguiça. Com muito orgulho e satisfação, repetimos as parcerias da primeira edição: a Prefeitura Municipal de João Pessoa, através da FUNJOPE, o Núcleo do Teatro Universitário – NTU e o SEBRAE. Além desses parceiros, contamos com o patrocínio indispensável do Banco do Nordeste e do BNDES para a realização desse grande evento. A II Mostra pôde assim reunir um número maior de grupos e coletivos, mas sem perder o foco no intercâmbio, marca maior desse encontro tão rico para o grupo Ser Tão e para a Paraíba.

Grupo Bagaceira Lesados

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Grupo Bigorna - Esparrela

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Grupo Bagaceira - Tá Namorando! Tá Namorando!

Grupo OCO - Os Sonhos de Segismundo

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ato

III

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A adaptação da peça, deflagrada pela visão simbólica e feminina da encenadora Christina Streva, ganhou fôlego quando o grupo Ser Tão apresentou à equipe fragmentos elaborados ao longo do processo de pesquisa em torno das músicas, danças e personagens. O autor de O Coronel de Macambira não poupou liberdade poética para enlaçar literatura erudita, crítica social e festa popular. Nós buscamos entrelaçar sua poesia com o Brasil de nosso tempo e a linguagem cênica que emana do jogo vivo dos atores. O pontapé do processo foi investigarmos juntos o folguedo do bumba-meu-boi e outras manifestações populares brasileiras. Através de ricos encontros com grandes artistas, o grupo foi ganhando substância e propriedade tanto no texto quanto na pesquisa. Da experimentação na cena, do jogo dos atores e das entrelinhas da peça fomos descobrindo uma história de amor, não mais entre o Mateus e a Catirina do folguedo, mas sim de um casal à la Romeu e Julieta. Seguindo ainda mais fundo na nossa estrada, buscamos também os mistérios ocultos na ingenuidade das histórias populares. Foi surgindo, então, a história da menina e o “Coronel...” foi sendo transformado em “Flor...”. Catirina, a mais bela flor da Fazenda Macambira, que sucumbe aos vícios e as tentações mundanas e, para salvar a si e ao seu amado, mergulha nas profundezas de sua alma. Um momento marcante do processo foi o encontro do grupo que já havia iniciado a pesquisa há oito meses na Paraíba com a equipe do Rio. À energia contagiante que eles traziam, somou-se a direção de Christina Stre-

(Da esq. p/ dir.) Rodrigo Costa e Silva, Cida Costa, Christina Streva , Isadora Feitosa e Winsthon Aquilles. (Agachados) Gladson Galego, Maisa Costa, Thardelly Lima e Zé Guilherme.

va, a dramaturgia de Rosyane Trotta, a garra dos assistentes, a criatividade e o domínio técnico das equipes de cenário, figurino e caracterização, e a explosão musical causada pelo encontro dos tambores de Zé Guilherme com a delicadeza e a genialidade de Beto Lemos. Ao longo de um frenético último mês de ensaios, com oito horas de trabalhos diários, fomos costurando os preciosos retalhos dessa Flor. Navegando pelo “Velho Chico” o Ser Tão levou toda sua energia para contar a história da Flor de Macambira. Vê-la desabrochar é vivenciar mais uma experiência de superação coletiva.

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O “Coronel...” se transforma em

“Flor...”

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Isadora Feitosa Uma sala de ensaio cedida pelo Grupo Bigorna no Centro Thomaz Mindello, em João Pessoa (PB), cinco atores, um texto baseado no folguedo do boi e uma longa estrada pela frente. Assim se deu o pontapé inicial do processo de levantamento de cenas do texto “Coronel de Macambira”, de Joaquim Cardozo. Logo de cara um enorme desafio para o grupo, talvez o maior até então de nossa trajetória, pois sem nossa diretora presente fisicamente nos vimos frente a frente com um grande espaço vazio. Vazio no sentido da ausência da Christina Streva que estava no Rio de Janeiro, mas também no sentido de um espaço a ser preenchido de teatralidade. Recorremos, então, como base para a pesquisa, às manifestações populares brasileiras, ricas em elementos teatrais e com sua forte expressão nos brincantes. Esse universo das manifestações populares nos deixava cada vez mais instigados e com vontade de ir cada vez mais além. Paralelamente, este processo nos colocava também receosos diante da grandeza do desafio. Assim, conhecemos juntos os folguedos do Bumba Meu Boi / Cavalo Marinho e diversas manifestações populares do nosso Brasil. Em meio a esse trabalho de pesquisa que surgia diante de nós, conciliávamos os ensaios no espaço do Grupo Bigorna com reuniões virtuais via Skype com a diretora do grupo numa relação que estávamos tentando descobrir em virtude da distância. A partir daí, o grupo foi trocando experiências e conhecimentos com atores, músicos, dançarinos e professores imbuídos do mesmo objetivo de seguir junto por essa estrada. Gradativamente, fomos ganhando substância e propriedade tanto no texto do Joaquim Cardozo quanto na pesquisa do folguedo. Nós tínhamos consciência de quais eram os nossos pontos fortes e também conhecíamos os nossos pontos fracos, mais ligados às questões musicais e partindo dessa consciência buscamos profissionais que pudessem nos subsidiar na busca do aperfeiçoamento deste trabalho. Cabe ressaltar, um encontro especialmente importante que se deu com Valéria Vicente, professora do curso de Teatro da Universidade Federal Paraíba, que mais do que uma preparadora corporal é uma pesquisadora das manifestações populares e nos trouxe a consciência corporal e racional através da leitura

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e compreensão de textos teóricos sobre o cavalo marinho, por

não apenas como um casal cômico, mas principalmente enquan-

meio da discussão de temas pertinentes a cultura popular e a téc-

to representantes de uma história muito mais densa e construída.

nica peculiar dos brincantes, a partir da observação de vídeos de

Desta forma, os brincantes ganharam a complexidade de perso-

músicas e danças do cavalo marinho do Pernambuco dialogando

nagens à La Romeu e Julieta.

com o que Joaquim Cardozo propõe em seu texto. Outro momento bastante significativo ocorreu no encontro

diversos encontros com a referida diretora via Skype e aqui em

com Zé Guilherme, músico da Orquestra Sinfônica da Paraíba,

João Pessoa, ficamos sob os cuidados de Thardelly Lima, ator e

inicialmente convidado para fazer a preparação musical, através

assistente de direção na etapa da Paraíba, caímos em campo nas

do treinamento de ritmos brasileiros, da técnica de percussão, do

praças públicas do estado da Paraíba e de Pernambuco para ava-

contato com as músicas nordestinas, da poesia de Otacílio Batis-

liar a reação da platéia com relação à peça. Foi neste contexto que

ta e das conversas extra classe

descobrimos que, ao contrário

em um bar ali e acolá. Este aí

do que pensávamos, a peça

foi logo intimado pelo grupo a

funcionava, sim! E o melhor de

participar do processo não so-

tudo agradava ao público. No

mente tocando, mas atuando.

entanto, faltava ainda muito

O convite foi aceito e agora só

chão pra pisar...

faltava trazer Christina Streva

Em dezembro de 2010, ti-

do Rio de Janeiro para a Pa-

vemos vinte dias de descanso/

raíba e dar início à construção

preparação para a verdadeira

das cenas da peça partindo dos

maratona que viria pela frente:

experimentos que vínhamos

três meses seguidos de ensaios

realizando com cenas isoladas

e apresentações pelos estados

do texto. Com a Christina em

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Depois de um período de três meses que se seguiram após

de Alagoas, Sergipe, Bahia, Per-

João Pessoa e no espaço recém alugado pelo Ser Tão, situado no

nambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sem botar o pé em casa.

Centro Histórico de João Pessoa, entre reuniões administrativas,

Vamos lá! Em 10 de janeiro de 2011 estávamos de volta ao trabalho,

arrumação da casa, ensaios de “Vereda...” e do “Coronel...”, o últi-

só que agora no Rio de Janeiro, com uma equipe bem mais robusta,

mo elo da corrente se forma: Cida Costa entra para o elenco.

composta por mais de vinte profissionais que aceitaram o desafio

Através de esforços conjuntos, encontramos os problemas

de fechar a peça em 25 dias do mês de janeiro, no auge do verão

dramatúrgicos do texto original e as soluções para concretizar a

carioca. De segunda à sábado, com mais de oito horas intensas de

encenação. Não abordamos apenas o folguedo, queríamos pôr

trabalho nas cenas, na exploração da corporeidade e da musicalida-

em prática nossa pesquisa corporal e transformar uma manifes-

de, na construção colaborativa de todos os envolvidos no projeto e

tação popular em uma encenação universal. Nada melhor para

do contato diário com a equipe de cenário, máscaras e de figurino,

isso do que perceber a representação do casal Mateus e Catirina

o grupo Ser Tão Teatro foi dando nova dimensão à peça.

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Pasmem! Dias depois chegamos à conclusão que o “Coro-

Para finalizar, agradecemos carinhosamente ao assistente

nel...” havia se transformado em “Flor...”. A história agora tinha

de direção Breno Sanches, pela sua paciência e que com sua “va-

como fio condutor uma visão feminina das coisas e da vida. Além

rinha de condão” propôs soluções mágicas para as cenas; a Julia-

do Mateus e da Catirina, tínhamos o Homem dos Tambores, o

na Manhães, coreógrafa do espetáculo e pesquisadora das dan-

trio demoníaco e uma figura misteriosa e inicialmente nebulosa

ças maranhenses e que foi nosso “boizinho” encantado cuidando

na cabeça da direção que era a Colecionadora de Ossos. Pronto!

do condicionamento físico dos atores quando mais nos doía aqui

Agora era só reescrever a história da história do Cardozo... “mas

e acolá; a Maíra Kesten que esperou pacientemente para traba-

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isso aí já dava uma outra história” ...

lhar a corporalidade dos atores e quando teve a oportunidade

Sempre ao lado de Rosyane Trotta, dramaturga do espetá-

aproveitou com unhas e dentes trazendo aos demônios a pitada

culo, juntos, fomos costurando os retalhos trazidos por nós da

de maldade necessária; ao Beto Lemos, um ser humano mara-

Paraíba, e ela pacientemente ia alterando a história praticamen-

vilhoso e grande músico, compositor, diretor musical, dotado

te toda. Além de adaptar o texto, Rosyane Trotta foi responsável

de tantas outras virtudes...; ao Carlinhos Alberto Nunes, Arlete

por diversas decisões de cenas, sugestões para as ações e inten-

Rua, Thaís Boulanger e Rodrigo Reinoso, que viraram madruga-

ções dos atores e esteve a todo o momento disponível às nossas

das e madrugaram na sala da cenografia da UNIRIO e na “Praça

idéias, mesmo quando parecia que estávamos “delirando” em

do Camafonge” da UNIRIO; a Daniele Geammal que com seus

função do cansaço e ansiosos para encontrar uma emenda entre

dois assistentes, Caio Braga e Renata Cortes superaram nossas

uma cena e outra. Tarefa difícil, entretanto não impossível quan-

expectativas na composição dos belíssimos figurinos, nos dei-

do estamos todos com os mesmos propósitos e Rosyane soube

xando à vontade para dar todos os pitacos e permitindo que to-

muito bem conduzir essa reconstrução dramatúrgica. Assim, o

dos os atores sentissem na pele o toque final de nossos persona-

espetáculo ia pouco a pouco ganhando um caráter divertido e

gens; a Mona Magalhães que chegou da Europa aos 35 minutos

misterioso simultaneamente.

do segundo tempo, e mesmo assim deixou sua marca registrada

Em contagem regressiva, uma semana antes de viajarmos

na caracterização dos personagens. Portanto, é nessa riqueza e

para a primeira cidade da turnê, Penedo (AL), já estávamos com

mistura de sotaques, especialidades e proposições de idéias que

tudo praticamente pronto: figurinos, adereços, elementos de

o Ser Tão se sente imensamente agraciado pelas manifestações

cena, a caracterização chegando já na retinha final e com um ce-

de carinho, doações e contribuições valiosas que cada um des-

nário que nos instigou a pesquisar suas mil e uma possibilidades

ses e demais pessoas envolvidas e comprometidas dispensaram

cênicas. Ufa! Deu tempo. Respiramos fundo e no dia 05 de feve-

a realização deste importante trabalho! Ô café cheiroso!

reiro de 2011, na UNIRIO, realizamos um ensaio aberto para o pú-

Por fim, um agradecimento especial aos nossos familiares que

blico, uma grande responsabilidade para todos os integrantes do

sempre nos apoiaram nessa caminhada, incentivando e apoiando

grupo. Uma superação para todos nós do Ser Tão que estávamos

nosso trabalho e escolhas. Ao público, tão receptivo e participati-

imensamente felizes pela participação de todos que compartilha-

vo por tantos lugares por onde passamos nesse imenso Brasil.

ram com a gente cotidianamente a maravilhosa sensação de realização de mais um projeto, e porque não dizer um sonho...

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Fala de abertura do espetáculo Flor de Macambira.

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Sobre o

processo Transcrição dos emails enviados pela dramaturga à diretora, às vésperas da viagem para a temporada de circulação. de: Rosyane Trotta para: Christina Streva em: 7 fev 2011 assunto: papo processo Oi, Chris Este email vai substituindo um papo que não vai rolar por falta de tempo. Sei que, sendo escrito, tende a se tornar documento imortal do qual você lançará mão no futuro quando quiser me convencer de alguma loucura. Vou correr o risco. Em algum momento do ano passado eu pensei em uma estratégia para pular do barco com elegância. Nossa aproximação era recente e eu pensava se por trás daquela sua língua desgovernada haveria alguma consistência. A diretora, presa ao trabalho de horário comercial, ia tirar o grupo de casa e ensaiar em menos de um mês sem ter ainda nenhuma concepção! Pensei que já conhecia o filme: o diretor me encomenda um texto-salvador-da-pátria, eu escrevo 25 versões procurando acertar um alvo invisível, até que ele fecha a porta da sala de ensaio e no final assina o texto comigo. Então agora devo descrever de que modo, durante as últimas semanas, estes receios foram se desfazendo. Começou com a apresentação dos atores para a equipe: engajamento, destreza física e vocal, afinação... Só pelo aquecimento se via: um grupo. Nada daquela presença ausente que os objetivos fugazes imprimem nos coletivos. Estava ali, bem viva diante de nós, uma identidade fundada na ética profissional e no amor pela cena. O Ser Tão Teatro se tornou a principal referência da dramaturgia. Picasso dizia que uma volta pelo parque o impregnava do verde que ele depois

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vertia na tela. Eu fui impregnada pela linguagem do grupo – e desta absorção saíram as invenções mais acertadas do texto. As outras descobertas vieram imediatamente depois. Você nunca fechou a sala. Os ensaios e o diálogo estiveram sempre abertos, a qualquer tempo, e minha voz nunca foi censurada: a idéia de que os atores ficam confusos com uma opinião diferente ou que a autoridade do diretor se fragiliza não faz parte dos seus princípios. Vibrei muito todas as vezes que exerci a função de reconduzir a cena para a sua concepção, que pude de fato atuar na dramaturgia cênica, indo além das palavras em papel. E agradeço muito pela confiança. Por outro lado, você nunca delegou as tarefas da direção. E o trem caminhava a passos largos. Se eu deixava uma lacuna, ela era instantaneamente preenchida pela música, por você e pelos atores. Eu de fato me vi construindo junto, sem ser vagão nem locomotiva. Considero que foi uma verdadeira parceria entre texto e cena. Abrindo a lente, observei a competente e respeitosa estrutura de produção. Os atores trabalhavam oito horas por dia numa rotina pesada, mas tinham condições de trabalho. Tudo pensado para que, na hora do ensaio, eles estivessem em condições para render. Outro aspecto notável: nenhuma insatisfação na equipe. Todo mundo trabalhando duro, remando contra o tempo, buscando idéias que melhor servissem à proposta... e sorrindo, porque havia liberdade e segurança para realizar. É provável que o grupo tenha tido seus momentos de stress. Mas nunca um conflito se manifestou ou perturbou os ensaios. Nunca houve manifestação de descontentamento em cena, nos bastidores ou nos intervalos. Outra característica particular do grupo – e isso se deve certamente à sua direção – é que não há separação entre os atores e as demais áreas de criação. Desde o primeiro dia, todas as reuniões e debates ocorreram lá, no final do dia de trabalho, com a presença de todos. A produção, percebo, tem um foro mais restrito, uma vez que nem todos atuam na administração. Mas isso não dá a ninguém privilégios artísticos – não há cisão. Bem, diretora, acho que estou concluindo. Seria ótimo se eu pudesse fazer alguma crítica – minha especialidade! – e contribuir para o seu crescimento. Mas não tenho nada a dizer neste sentido. Todas as bifurcações e todos os im-

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passes que surgiram foram burilados e resolvidos sem ansiedade

tanto de paralelos com a realidade, apresenta uma provocadora

nem atropelo. Pra mim, sinceramente, você e seu grupo são um

visão do feminino.

fenômeno de organização e criação coletivas. Uma coisa tão fora

Vem ao meu ouvido a música em que ela repete “tô ficando

do normal que não tem explicação. Que continuem assim. Estou

animadinha” (elegante corruptela do funk original) e em segui-

feliz, orgulhosa, revigorada e à disposição do grupo.

da, puxada por Mateus, reclama: “ai, Mateus, eu tô ficando animadinha!”. Como não criei a letra nem o subtexto, é bom dizer

em: 8 fev 2011

que assino embaixo. Gosto tanto desse pedaço que me obrigo

assunto: nossa história

a pensar porquê. O tom de Isadora na frase parece dizer: por que você corta o meu barato quando eu tô me divertindo? Não

Falei do processo, do grupo, da sua direção, mas não falei do

é submisso nem agressivo, é queixoso. Catirina não é a mulher

espetáculo. Achei que ainda veria mais um ou dois corridos. Saber

urbana e modernosa que bate no peito e faz discurso. Mas tam-

que sábado foi o último deu certo choque – não vou poder lamber

bém não é o clichê da mulher rural que acata e se conforma. Ela

a cria e tão cedo não poderemos sentar num botequim para trocar

diz pro homem que o legal é ele deixá-la livre, mesmo que seja

impressões. Por conta disso, fico rememorando trechos e tentan-

para fazer besteira.

do compreender o todo, o que foi feito, do que trata afinal esta história que estamos contando.

Com outra atriz, as besteiras de Catirina poderiam se originar da futilidade – e a história se tornaria moralista. Mas a nos-

Aquela Catirina, inventada como abstração ou hipótese,

sa Catirina mistura doçura e malícia, afeto e ímpeto. Ela quer

como ficção deliberada do teatro popular e farsesco, e livre por-

melhorar de vida como qualquer mulher. Ela quer se mover,

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quer buscar o que não tem, quer se aventurar como todo ser humano dotado de inconformismo e potência criativa. Bingo! Seu erro é o exagero. E, por não ser leviana, ela move o mundo para corrigi-lo. Não se trata de salvar a própria pele – o que a prenderia na redoma individualista – mas o parceiro. Isso a coloca em pé de igualdade não com Julieta mas com todos os heróis que enfrentam perigos pelo ser amado. Ele é ingênuo, conformado e ciumento... mas ela o quer. Gosto muito também que o rompimento com o pai não tenha retorno: não há culpa nem redenção. Ela não olha para trás. Sua vida se faz a partir dali, com autonomia total. Sem apego nosso à moral do melodrama. Outro ponto positivo: ela se serve da espiritualidade sem ser uma beata. Quando a corda aperta, ela recorre, e pouco importa se antes disso nunca rezou sequer uma ave-maria. Ela topa as regras da velha, se ajoelha, obedece as ordens, canta, gira, se banha... E quando consegue a poção mágica vai embora, sem vínculos com aquele mundo. Completamente atéia. E neste momento, a farsa vira drama. Ali, diante do amado que parece irremediavelmente morto, ela se desespera – bota mais energia nisso do que colocou em qualquer outro lugar na peça inteira. Temi que soasse falsa aquela visceralidade súbita. Mas é bonito. O drama vira ópera. E, quando tudo se resolve, ela não se redime nem se refaz. Ela é a mesma: a imortal encarnação de uma alma feminina. Provavelmente vai cometer erros semelhantes e escapar com a mesma ousadia. Para sempre. Costumo pensar que a farsa é um gênero inconseqüente, que não se presta a maiores reflexões. Simples entretenimento. Mas, sei não, acho que esta Flor de Macambira pode render alguns papos. Ou apenas pensamentos. Gosto de pensar, por exemplo, que as pessoas da platéia que já foram enganadas e lesadas por bancos e afins (infelizmente deve ser um bom percentual...) vão fazer uma breve catarse. E as que ainda não foram, quem sabe pensem duas vezes antes... beijo e boa viagem

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A cultura popular em espetáculo

encantador

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Bárbara Heliodora* Grupo Ser Tão Teatro da Paraíba, mostra no Rio sua versão para o romance de Joaquim Cardozo Formado na Universidade Federal da Paraíba, o grupo Ser Tão Teatro está fechando, no Rio, a turnê “Flor de Macambira”. Elenco, técnica, cenário e equipamento cobriram, de ônibus, um percurso que incluiu sete estados. Se a palavra-chave do momento é inclusão, o Ser Tão a representa muito bem – seu trabalho foi oferecido de graça a comunidades carentes, que muitas vezes jamais haviam visto teatro, tendo sido sempre muito bem recebido. Flor de Macambira tem por inspiração “O Coronel de Macambira”, de Joaquim Cardozo, com Rosyane Trotta e o próprio

O espetáculo é simples, com cenografia e adereços (Carlos

grupo assinando a adaptação. Nesta, um misto de circo com

Alberto Nunes), figurinos (Daniele Geammal) e máscaras (Bruno

folguedo popular do boi conta a história de Catirina e Mateus,

Dantas) feitos com boa dose de imaginação e poucos recursos,

incluindo um toque de história exemplar ao mostrar a luta en-

o que deixa muito mais próximo do público buscado nas ruas da

tre o bem e o mal, lembrando literatura de cordel. As peripécias

cidade que visitou. A coreografia (Juliana Manhães) e a luz (Gla-

do casal fazem a estrutura ser armada em vários episódios, com

dson Galego) completam bem o conjunto, que tem ótimo apoio

três atores se revezando em alguns personagens, sendo os bois,

na direção musical de Beto Lemos e Zé Guilherme. A encenação

assim como os monstros e a serpente, muito bem executados.

de Christina Streva conduz tudo para a alegria e a harmonia, e o espetáculo se comunica muito bem com o público. A interpretação é fiel ao tom e ao espírito do texto, com rendimento bastante bom dos atores: Isadora Feitosa (Catirina) e Winston Aquiles (Mateus), além de Cida Costa (Feiticeira), têm o privilégio de um só personagem, enquanto Gladson Galego, Thardelly Lima e Maísa Costa se desdobram em vários papéis. Com apresentações gratuitas, hoje, no Parque dos Patins, na Lagoa, às 19h, na terça-feira nos jardins do Centro de Letras e Artes da Uni-Rio, na Urca, às 20h, e na quarta na Praça do Mercado (Centro), às 19h, o Ser Tão conclui essa longa e bem-sucedida viagem de seu encantador espetáculo.

Durante a apresentação no Morro do Vidigal. Guti Fraga, Bárbara Heliodora e Carla De Gonzalez

*Publicado no jornal O Globo, 27 de março de 2011

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Pecados de uma Flor

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Miguel Anunciação* Apalavrado até o último instante para cumprir nove apresentações de Farsa da Boa Preguiça pela derradeira edição do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte, o grupo Ser Tão Teatro também foi surpreendido pelas mudanças de planos, também careceu caçar outro rumo - e não é preciso rebobinar de novo as constrangedoras reviravoltas a que o FIT/ BH de 2010 foi submetido. A boa notícia é que, ao largo da burocracia dos órgãos de Cultura locais, o grupo de João Pessoa (PB) chega à cidade: apresenta três sessões de Flor de Macambira na Praça JK - o trecho mais nobre da Avenida Bandeirantes, no Sion -, entre os próximos dias

carioca Rosyane Trotta e pelo grupo. No lugar dos quadros inde-

17 e 19, sempre a partir de 18 horas. As três sessões têm acesso

pendentes do texto original, que se utilizam do bumba-meu-boi

gratuito ao distinto público. Vamos conferir?

como elemento central, o enredo do espetáculo recorre à persona-

Esta primeira visita que o grupo nordestino realiza à cidade

gem Catirina como recurso de “costura”, de alinhavo da narrativa.

acontece graças ao patrocínio da Chesf (Companhia Hidro-Elé-

Bastante jovem, extraordinariamente bonita, Catirina é feste-

trica do São Francisco), via programa Eletrobrás de Cultura, que

jada como “a mais bela flor da Fazenda Macambira”. Entretanto, fa-

patrocinou tanto a montagem quanto a turnê por 12 cidades de

dada a experimentar a maldição que a dramaturgia mundial reserva

cinco Estados, dez às margens do Rio São Francisco. Depois de

aos personagens que aparentam ter tudo, ela “sucumbe aos vícios e

passar - e ser vista por cinco mil pessoas, aproximadamente - por

tentações mundanas e, para salvar-se e a seu amado, mergulha nas

Penedo (AL), Propriá (SE), Petrolina (PE) e Paulo Afonso, Juazeiro,

profundezas de sua alma”. Nesta viagem ao dark side, Catirina trava

Bom Jesus da Lapa e Xique Xique, todas na Bahia, a produção che-

contato com “tipos do cotidiano brasileiro como o coronel sangui-

gou a Minas no final de fevereiro.

nário, o padre mercantilista, o bicheiro corrupto, e o triunvirato do

Já se apresentou em Januária (dia 1º) e São Francisco (dia 3) e se apresenta também na Praça dos Cariris, em Pirapora, às 19 horas de

capitalismo: o economista ilusionista, o banqueiro especulador e o marqueteiro enganador vão sendo apresentados”.

sexta-feira (11), cidades do Norte do Estado. Depois da breve pas-

Dirigido pela carioca Christina Streva, Flor de Macambira mobili-

sagem por Belo Horizonte, semana que vem, a turnê prossegue no

za nove atores (Cida Costa, Gladson Galego, Isadora Feitosa, Maisa

Rio, onde cumpre seis apresentações entre 28 deste mês 3 de abril.

Costa,Thardelly Lima, Winsthon Aquilles, Zé Guilherme, Anderson

Baseado em “O Coronel de Macambira”, o mais conhecido texto teatral do dramaturgo, poeta e engenheiro pernambucano

Lima e Rodrigo Costa e Silva) e uma equipe técnica de mais nove figuras ao seu redor.

Joaquim Cardozo (1897/1978), a dramaturgia do espetáculo é assinada pela autora, diretora, pesquisadora, ensaísta e professora

*Publicado no jornal Hoje em Dia, 10 de março de 2011

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“Ser Tão”

finalmente conhece o Sudeste

No Nordeste, porém, o Ser Tão pertence ao rol dos grupos maiores, mais estruturados, embora tenha menos que quatro anos de vida 76

Miguel Anunciação* Apesar de um já vasto currículo de apresentações e viagens que contemplaram diversas capitais do Nordeste, esta será primeira visita do Ser Tão a grandes capitais do Sudeste, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro. É um momento importante do grupo, portanto, levando em conta que vem de região onde o teatro não alcança tanta projeção como em SP, Rio e Minas. No Nordeste, porém, o Ser Tão pertence ao rol dos grupos maiores, mais estruturados, embora tenha menos que quatro anos de vida. Lá, ele é membro do coletivo A Lapada, que reúne os grupos Piolim e Alfenim, também paraibanos; Tarará, Estandarte e Clowns de Shakespeare, de Natal (RN); Máquina e Bagaceira de Fortaleza (CE) O Lapada é um coletivo bastante operoso: além de uma publicação que já rodou o 2º número, promove encontros duas vezes ao ano. Uma com todos integrantes dos grupos e a outra com apenas um representante deles. Nestas reuniões, abordam basicamente estratégias de sobrevivência - a autogestão longe do eixo RJ/SP não é tarefa muito fácil. Numa desta reuniões, surgiu a ideia de montar Farsa da Boa Preguiça em parceria com o Clowns de Shakespeare - que já esteve em Minas em algumas oportunidades, na primeira para mostrar Muito Barulho por Quase Nada, seu espetáculo de lançamento, que Eduardo Moreira, do Galpão, dirigiu. Dirigido por Christina Streva e Fernando Yamamoto e juntando atores dos dois grupos, Farsa está temporariamente fora de repertório. “Devemos voltar este ano, com ou sem os atores do Clowns”, define Christina. Com cenário e adereços assinados por Carlos Alberto Nunes, figurinos de Daniele Geammal e caracterização de

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Mona Magalhães (maquiadora que também assina em diversos espetáculos do Galpão), Flor de Macambira possui trilha sonora original. Beto Lemos, da Cia Carroça de Mamulengos, assina a direção musical em parceria com Zé Guilherme, músico da Orquestra Sinfônica da Paraíba. Além dos nove atores em cena, dois músicos tocam rabeca, bandolim, escaleta e diversos instrumentos de percussão ao vivo. Contribuem para reforçar a impressão de “festa popular com música, comicidade, cor e teatralidade” que o espetáculo pretende ter. “Aparentemente simples, as histórias populares ocultam poderosas pistas para o entendimento do ser humano”, diz Christina, que no momento atua como docente e coordenadora de Cultura da Uni-Rio, e precisou se manter na ponte-aérea para dirigir Flor de Macambira. Segundo Rosyane Trotta, a dramaturgia do espetáculo não ignora a dimensão política da época e atualiza a narrativa, personificando o drama na protagonista, o que não existia no texto original. “Joaquim Cardozo não poupou liberdade poética para enlaçar literatura erudita, crítica social e festa popular. Nós buscamos entrelaçar sua poesia com o Brasil de nosso tempo e a linguagem cênica que emana do jogo vivo dos atores”. Além das três sessões de Flor de Macambira, a passagem do Ser Tão Teatro prevê a oficina “Construindo a Cena”, para atores e não-atores que desejem vivenciar princípios criativos do grupo. É grátis, aberta a 20 interessados e dura seis horas. Saiba mais no www.sertaoteatro.com.br. *Publicado no jornal Hoje em Dia, 10 de março de 2011

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“as histórias populares ocultam poderosas pistas para o entendimento do ser humano“ Christina Streva, sobre a montagem.

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O

nascimento de um grande

grupo

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Com a peça apresentada na Mostra de Teatro de Grupo, o atinge a sua maioridade estética

Ser Tão Teatro

Astier Basílio*

tos em que foi exigido que ela mostrasse o seu clown, Isadora não comprometeu, de modo algum, mas não se apresentou to-

O espetáculo Flor de Macambira marca um rito de passagem

talmente à vontade.

da companhia paraibana Ser Tão Teatro. A mão segura da en-

Com este espetáculo, o Ser Tão Teatro inicia um processo

cenadora Christina Streva encontra parceiros maduros no elen-

de troca interno, e de evidente criação coletiva e deixa de lado a

co. Com texto do poeta e dramaturgo pernambucano Joaquim

etapa de aprendizado. Se na primeira peça, Vereda da Salvação,

Cardozo, com adaptação de Rosyane Trotta, o espetáculo foi

o braço forte de Streva se justifica pelo caráter formativo, quase

apresentado em frente da sede do grupo, no largo de São Pedro

professoral necessário ao grupo, e se na segunda montagem,

Gonçalves, em João Pessoa.

embora em um outro nível, o grupo experimente também uma

A linha dramatúrgica é muito simples, como a do teatro

relação de tutoria com o Clowns de Shakespeare, do Rio Grande

popular de raízes clássicas. O casal protagonista, Mateus e

do Norte, agora, em Flor de Macambira o Ser Tão Teatro se arris-

Catirina, interpretados por Winston Aquiles e Isadora Feito-

ca com uma série de proposições e apropriações.

sa. Eles conseguem se casar, malgrado a má vontade do pai,

A melhor dessas apropriações sem dúvida é da commedia

e enfrentam uma série vicissitudes financeiras, que dão vez a

dell’arte, e vale destacar o toque de gênio de Bruno Dante, na con-

peripécias, até que o boi místico, base de um dos ciclos mais

fecção das máscaras, cujos resultados depuram experimentações

poderosos da literatura de cordel, é vendido e uma maldição

que remontam à Farsa do Poder, espetáculo que, embora não sen-

recai sobre o casal cujo feitiço é necessário ser quebrado de

do da companhia, contou com a orientação de Christina Streva e

modo sobrenatural, como uma depuração de final de jornada.

no papel do pícaro Ferreirinha, o ator Thardelly Lima. Aliás, o ator

A atriz Isadora Feitosa não foge às responsabilidades que o

demonstrou porque é um dos grandes talentos do teatro paraiba-

papel lhe impõe. Canta, com desenvoltura e beleza; representa

no dos últimos anos: fugindo das armadilhas do facilitário, não se

mantendo seu vigor e força, característicos de sua interpretação

repetiu como na Farsa. Aqui, o vimos encontrando timbres, tons

desde Vereda da Salvação, sua primeira montagem; e, toque

e níveis de interpretação para os vários personagens, surgidos em

especial, consegue depurar o humor, acentuando-lhes linhas e

meio às peripécias do casal protagonista.

tons, efeito não obtido em Farsa da Boa Preguiça, montagem anterior do grupo.

Outro elemento avulta na montagem é a música que se agigantou com a performance singular, do instrumentista Zé Gui-

Apesar do trabalho de Isadora crescer a olhos vistos, falta-

lherme que também atua. Como o velho narrador ele extravasou

lhe trabalhar melhor a triangulação com o público, nos momen-

para o palco o potencial que demonstrava desde os tempos de

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Cabruêra. Um exemplo da boa apropriação dos elementos musicais se dá com uso do maracatu, há uma cena em que Mateus e o Capitão disputam o amor de Catirina e a tensão do maracatu rural foi posta na roda dentro da cena com um resultado significativo. Mas nem só de tradição, no sentido engessado e sério do termo, vive Flor de Macambira. A cena em que Catirina brinca com um funk, as referências aos comerciais, enfim, os momentos em que as referências midiáticas entraram em cena encontraram referência imediata na plateia, nisso contribuiu decisivamente a presença do versátil coro de demônios com Maísa Costa, Gladson Galego e o já citado Thardelly Lima. Ver o desempenho do Ser Tão Teatro, ao mesmo tempo vigoroso e contido, é atestar o crescimento da cena teatral paraibana como um todo. Aqui fica o apelo: que Flor de Macambira entre em temporada em João Pessoa. A capital paraibana merece um espetáculo dessa qualidade. *Publicado no jornal Correio da Paraíba, 25 de maio de 2011

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“O bom de poder passar mais dias em cada local é termos a oportunidade de dividir momentos de integração, que vão além daquela construída em cena. É perfeito unir a troca com o público, que ocorre durante o espetáculo, ao contato direto, tanto no processo de montagem do cenário, como através das oficinas.” Gladson Galego

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Ônibus pronto, primeira parte da equipe embarcando indo ao encontro do restante em Maceió. Agora é só seguir viagem e aguardar as surpresas preparadas pelo “Velho Chico”. Produção e assessoria afinando os últimos detalhes.

Momento de descontração na Cachoeira Jucurutu, buscando bons fluídos e se purificando rumo ao Sudeste. Que venha Rio de Janeiro e BH!

Sol escaldante e nossa rotina de trabalho: transformar a praça pública em palco.

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FLOR DE MACAMBIRA FICHA TÉCNICA Texto original: “O Coronel de Macambira”, de Joaquim Cardozo Adaptação: Rosyane Trotta e Ser Tão Teatro Concepção e Encenação: Christina Streva Elenco: Cida Costa, Gladson Galego, Isadora Feitosa, Maisa Costa, Thardelly Lima, Winsthon Aquilles, Zé Guilherme, Anderson Lima e Rodrigo Costa e Silva Assistente de Direção: Breno Sanches e Thardelly Lima Direção Musical: Beto Lemos e Zé Guilherme

Letra das Músicas: Beto Lemos e Thardelly Lima Músicas instrumentais: Beto Lemos Preparação Corporal: Juliana Manhães e Valéria Vicente Coreografia: Juliana Manhães Treinamento de Comicidade: Maíra Kesten Orientação Vocal: Jane Celeste Guberfain Cenografia e Adereços: Carlos Alberto Nunes Assistente de Cenografia: Arlete Rua Cenotécnico: Marcos Souza Equipe de Adereços: Arlete Rua, Thaís Boulanger, Rodrigo Reinoso, Marcello Villar e Aline Vargas Modelagem de Máscaras: Bruno Dante Costureira de Cenário: Vera Pontes

Pintura de Arte: Nilton Katayama e Regina Katayama Figurinista: Daniele Geammal Assistente de Figurinos: Renata Cortes Confecção de Figurinos: Caio Braga Costureiras de Figurinos: Fátima Araújo e Marlene de Paula Estagiária de Costura: Gê Bz Costumização de Figurinos: Mírian Meee Visagismo: Mona Magalhães Assistente de Visagismo: Rodrigo Reinoso Iluminação: Gladson Galego Operação de Luz: Janielson Silva Assessoria de Comunicação: Calina Bispo Release: Carla De Gonzales Fotógrafo: Anderson Silva Cinegrafista: Luís A. Barbosa Ilustrações: Bruno Dante Projeto Gráfico e Hotsite: Márcio Miranda Produção e Administração: Ser Tão Teatro Produção Executiva Turnê: Renata Mora Produção Turnê: Samara Martins Produção Rio de Janeiro e Belo Horizonte: EmCartaz Empreendimentos Culturais Secretariado: José Hilton Realização: Ser Tão Teatro

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Christina Streva Iniciada em 2008 como uma ação de militância do grupo Ser Tão Teatro no sentido de contribuir para o intercâmbio artístico, a circulação e a articulação política entre os coletivos de João Pessoa e outros coletivos do Nordeste, a Mostra chega, em 2011, à sua terceira edição com mais fôlego e energia do que nunca. Já recebemos oito importantes grupos de teatro nordestinos, apresentando 14 espetáculos, ministrando nove oficinas, além de debates e demonstrações de trabalho, atingindo um público de aproximadamente quatro mil pessoas. Os desdobramentos do evento também têm sido surpreendentes, com trocas artísticas que se expandem para muito além do encontro. A novidade da terceira edição é que contamos, pela primeira vez, com grupos e convidados de outras regiões do país, o que nos permitiu ampliar o debate e conhecer realidades distintas da nossa. O grande desafio daqui para frente será de conciliarmos essa expansão, sem cairmos no frequente erro de inchar a programação e prejudicar a qualidade do encontro que temos conseguido promover. A notável tendência nos últimos anos de valorização das experiências de teatro no espaço público e sua importância tanto para a formação de atores quanto para a formação de plateia, nos motivou a criar a Edição Especial de Teatro de Rua. Trouxemos para João Pessoa um dos mais emblemáticos grupos desse movimento no nosso país – a Cia Carroça de Mamulengos (CE), além da Brava Companhia (SP). Localmente, além da estreia em João Pessoa do último espetáculo do Ser Tão Teatro, recebemos também o Coletivo Alfenim e o Piollin Grupo de Teatro. Vivemos um momento singular de formação, consolidação e re-estruturação de grupos de teatro de pesquisa em João Pessoa. Ao impulso inicial causado pela implementação do Bacharelado em Teatro na UFPB somou-se o favorável momento de democratização e melhor distribuição de verbas públicas que vivemos atualmente no nosso país. Tomara que possamos potencializar esses bons ventos, nos conhecermos cada vez melhor, e aprendermos a trabalhar juntos para o fortalecimento do teatro de grupo no nosso país. Vida longa à Mostra de Teatro de Grupo!

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Cia. Carroça de Mamulengos - Felinda

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Rosyane Trotta

de modo a efetivar a dinâmica entre experiência e desafio, entre identidade e mutabilidade. Por isso o grupo é, por excelência,

Os eventos de teatro de grupo têm características próprias:

propício a empreendimentos de pesquisa e invenção. Ele permite

uma única atividade em cada horário, para que tudo possa ser

criar e gerir, de acordo com as próprias escolhas artísticas, as mo-

apreciado; programação concentrada na mesma área, para fa-

dalidades produtivas, organizativas, políticas e culturais do teatro

cilitar a orientação e criar o ambiente de encontro; oficinas para

que se quer ser, enquanto se leva adiante o trabalho do teatro que

revelar a cozinha de cada participante; debates para produzir pen-

ser quer fazer.

samento; um pouco de festa e convivência para celebrar a alegria

Nas duas últimas décadas, os grupos de teatro, organizados em

de fazer parte. E, fundamental, a recepção eficiente e cuidadosa

movimentos de expansão para além de suas fronteiras, promoveram

dos organizadores, tanto para com os profissionais envolvidos

intercâmbios, arrebataram pesquisadores, editaram revistas, livros,

quanto para com o público.

festivais, ganharam espaço junto a instituições, políticas públicas,

A III Mostra de Teatro de Grupo de João Pessoa – que ocorreu

mudaram enfim o panorama teatral do país. A isto se pode chamar

entre os dias 23 e 29 de maio de 2011 – trouxe mais uma vez à tona

de teatro de grupo: ação política. Na década de 1990, na Itália, o pes-

a discussão sobre o que esta modalidade teatral pode pretender

quisador Piergiorgio Giacché considerava o teatro de grupo...

em termos sociais e políticos. Mas, principalmente, evidenciou que a troca entre grupos, desde a pedagogia das oficinas até a roda de discussão, não apenas fortalece e incrementa a cultura interna de cada conjunto como se revela uma prática fundamental para a construção de ações capazes de adensar as relações entre o teatro e a sociedade. Se, por um lado, a constituição e a continuidade de um conjunto teatral favorecem a formação artística, o desenvolvimento técnico, a pesquisa e a autoria cênica, o diálogo com o público, por outro lado estes fatores se mostram raros em grupos cada vez mais marcados pela rotatividade, pela descontinuidade e pela hierarquização. A perda de memória, decorrente da breve permanência dos integrantes, e a falta de atividades extra-cênicas colaboram para a rarefação da identidade e da potência do grupo.

... o teatro que mais produz, que emprega mais atores e ativa mais consumidores do teatro oficial; se revela como a zona de máxima troca, discussão e abertura, a primeira a recolher os ensinamentos dos maiores exemplos da pesquisa teatral internacional, a última a desdenhar dos experimentos das menores e difusas formações dos teatros de base. Mas sobretudo são os grupos teatrais – o conjunto de atores, diretores, técnicos, operadores, críticos, intelectuais que compõem o ambiente do novo teatro de pesquisa – os únicos a levar adiante, às vezes de modo inadequado, o debate sobre o papel e o sentido do teatro. (Lo spettatore partecipante. Milano: Guerini, 1991, p.157)

Se, no Brasil, diferentemente da Europa, o teatro de grupo não é oficial, ou seja, subvencionado de modo estável e continuado

É necessário então retomar a diferença conceitual entre teatro

pelo poder público, é verdade que ele tem se desenvolvido nos úl-

e espetáculo – o primeiro como sustentação do segundo, o segundo

timos anos através dos editais públicos, das leis de incentivo e de

como expressão finita e incidental da continuidade e das infinitas

fomento. Nos debates da III Mostra de Teatro de Grupo, a inter-

possibilidades do primeiro. Mantendo-se no campo de um mesmo

rogação sobre o sentido desta atividade se deteve sobre a relação

teatro, cada espetáculo se faz como diálogo com a obra anterior,

com o público e dos grupos entre si.

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“Qual o interesse da sociedade a respeito do trabalho que a faz?” – Fernando Teixeira, do Grupo Bigorna, opinou que a dificuldade em atrair o público para os teatros está ligada ao anseio insatisfeito do espectador de se ver representado no palco ou encontrar alguma identificação com a cena que se mostra. A formação de plateia vem deixando de ser um trabalho de divulgação para se incluir no projeto de realização dos artistas produtores. Ir onde o público está ou inventar formas de trazê-lo ao teatro tem sido uma estratégia dos grupos, bem recebida pelas instituições patrocinadoras. Alguns se plantam em uma comunidade e fazem este trabalho de divulgação e formação no entorno da sede; outros oferecem transporte e ingressos gratuitos aos estudantes e instituições das proximidades. Como lembrou Christina Streva, do Ser Tão Teatro, este problema

Coletivo Alfenim - Histórias de Sem Réis

raramente se apresenta no teatro de rua. E, uma vez que, na maioria das cidades brasileiras, a ausência de eventos culturais contrasta com a saturação de entretenimento nas capitais, qual o sentido de um grupo de teatro se restringir aos espaços fechados e privados da área nobre dos grandes centros ao invés de conceber projetos de circulação em espaços novos, principalmente em tempos de democratização da cultura? Buda Lira, integrante da Piollin, sublinhou que o bacharelado em Artes Cênicas, aberto em 2008 na Universidade Federal da Paraíba, incrementa a atividade, o conhecimento e o diálogo entre os artistas. Observou também que há “um espírito mais colaborativo entre os grupos”. Discutiu-se também o problema dos períodos de entressafra, quando o grupo, no intervalo entre projetos em execução, não tem como manter sua infraestrutura, principalmente a sede ou espaço de trabalho. Também neste âmbito a colaboração entre grupos pode criar novas estratégias, como aquela relatada pelos integrantes da Brava Cia (SP), que se uniram a quatro outros conjuntos sediados na periferia da capital paulista – Dolores Boca Aberta, Engenho Teatral, Cia Instável, Antropofágicos – para um projeto de ajuda mútua. A iniciativa cria uma agenda coletiva para o ano, prevendo tanto encontros internos quanto atividades abertas, e consta no cronograma e no orçamento dos projetos que cada grupo apresenta aos editais. Desta forma, quem quer que seja contemplado naquele ano, destinará parte da verba a estas atividades de colaboração. Com a recente política que vem se desenhando nos editais públicos, o incremento ao teatro e, mais especificamente, aos projetos de formação, de pesquisa e de invenção artística, marca um histórico momento de valorização da continuidade. Cabe agora aos grupos atravessar fronteiras e ampliar sua potência artística, cultural e política.

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Grupo Piollin de Teatro - Silêncio Total

III Mostra de Teatro

de Grupo: a voz das

ruas e as perspectivas

do

teatro paraibano Kil Abreu

O teatro de grupo, no Brasil, é um fenômeno curioso em termos de sobrevivência. Isto porque em geral a “forma-grupo” está na contramão de uma época, a nossa, em que tudo se mercantiliza, inclusive a estética, e hoje de uma maneira radical e aparentemente irreversível. Pois, a identificação do teatro de grupo – definido nos termos do trabalho continuado feito por uma equipe de criadores relativamente permanente – como instrumento de contramão neste processo, não é gratuita. É que o grupo desde logo se apresenta como um negócio inviável (no sentido literal da expressão). Porque o tempo dedicado à pesquisa, à prospecção dos assuntos e à sua formalização (quando se trata de um espetáculo) não bate com os rendimentos que em geral este trabalho gera. Mas, para compensar, é este relativo (ênfase no relativo) descolamento de um sistema de produção que tem como finalidade essencial a geração de lucro no menor tempo possível, é este descolamento que garante a existência do capital simbólico que tem feito grande diferença no panorama do teatro brasileiro contemporâneo, sobretudo a partir dos anos 90, quando a cultura de grupos volta a se firmar. Foi a consciência sobre uma atividade de contramão – porém, essencial para a vida da cidade – que fez o fato estético demandar uma questão de ordem pública. Não foi outra coisa que ocorreu quando da articulação da qual surge o movimento Arte Contra a Barbárie, que gerou o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São

Cia. Carroça de Mamulengos Histórias de Teatro e Circo

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Paulo. E também quando do surgimento de outros fundos públi-

têm como plataforma o repertório da cultura popular ou a reflexão

cos de fomento à atividade artística, como por exemplo o da cida-

sobre ela. Com isto não se diz, evidentemente, que não há medida

de de Porto Alegre. Este modelo de subvenção, diferente daquele

técnica no teatro de raiz realmente popular. Sabemos que é bem

sustentado na renúncia fiscal, por melhor que avance evidente-

o contrário, pois que a criação genuinamente popular cria seus

mente não gera nenhum tipo de resultado automático quanto à

próprios métodos de representação, com instrumentos que têm

coisa estética, dito que a criação não é apenas uma questão de

a sua medida. É que, se tomarmos como referência, por exemplo,

apoio logístico. Mas, sem dúvida, tende a criar o espaço – físico

o trabalho do Ser Tão Teatro, Flor de Macambira, a partir do texto

e de pensamento – para que os grupos sigam criando com algum

de Joaquim Cardozo, vamos verificar que a fluência espontânea

suporte e, portanto, em condições mais favoráveis ao amadureci-

da cena popular aparece bem disciplinada (mas não subjugada) a

mento artístico – o que já é notável em alguns lugares do país.

métodos de trabalho, sobretudo na área das atuações, em que há

Para arrematar esta questão, resta uma pergunta fundamental,

já uma ciência da cena que é de outra ordem. Isso provavelmente

agora direcionada aos criadores, em se confirmando esse painel em

se deve ao diálogo com processos de formação mais sistemáticos,

que o teatro é tomado como objeto da subvenção pública porque

que ganham exemplo neste caso, mas que têm sido decisivos para

se apresenta como coisa importante na vida da cidade: como é que

estabelecer diálogo entre o fazer teatral espontâneo e aquele que

se responde publicamente a isto? Um teatro subvencionado com o

se aprende nas universidades e nos cursos de teatro.

dinheiro dos cidadãos difere do teatro não subvencionado? Se sim,

Em outra frente podemos tomar como exemplo o trabalho

em que direções? Há uma relação ética possível entre o fomento

da Brava Companhia, de São Paulo, Este Lado para Cima. Para fa-

público e a fatura artística? São perguntas que ganham relevância

zer o seu teatro político (cujos pressupostos certamente devem

porque delas depende a sustentação do modelo.

ser motivo de discussão), a Brava lança olhos não apenas aos

Vozes da Paraíba

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temas de interesse e ao discurso direto sobre ele, mas também a artifícios muito rigorosos quanto à edição do espetáculo e ao

Este introito serve para dialogar também com o quadro que

desdobramento, quase aeróbico, dos atores para dar conta de

foi mostrado nesta III Mostra de Teatro de Grupo, que reuniu em

todas as tarefas expressivas que o espetáculo pede. Instrumento

João Pessoa trabalhos pensados para a rua. Foram espetáculos,

de conscientização sobre o lugar de classe do trabalhador frente

trocas de experiências através de oficinas, encontros. Em todos

a um processo cuja compreensão muitas vezes lhe foge, a mon-

estes lugares parece que prevaleceu e permaneceu aceso, feliz-

tagem tenta equilibrar algum didatismo com inequívoca entrega

mente, aquele princípio de consciência sobre o fazer, ainda que

de todos os seus atuadores na apresentação da dramaturgia e na

ele não esteja totalmente delineado.

condução da dinâmica exigente das cenas.

Nos espetáculos chama a atenção a sustentação das monta-

Infelizmente não foi possível assistir a todos os grupos da Mos-

gens em qualidades estéticas de ordem bem diversa – o que, aci-

tra e isto certamente gera prejuízo ao quadro. Por exemplo, esteve

dentalmente ou não nos diz sobre diversos aspectos da sociabili-

lá outro grupo hoje essencial à cena paraibana, o Coletivo Alfenim,

dade atual, traduzidos na forma cênica. É notável, por exemplo, a

com o seu Histórias de Sem-Réis. A tomar pelos espetáculos anterio-

qualificação da cena em termos técnicos mesmo em grupos que

res do coletivo também há apontada ali uma experiência valiosa em

que a relação do teatro com a sociedade é eixo, dadas as fábulas a que eles têm se dedicado, com muito interesse não só na questão social, como também em formas artísticas viáveis à sua representação. Estas notas breves sobre os espetáculos da Mostra (que comportou ainda o comovente “teatro de origem” da Cia. Carroça de Mamulengos e Silêncio Total, solo do palhaço Xuxu, de Luiz Carlos Vasconcelos) nos levam de volta àquelas ideias do início, da inviabilidade e da necessidade do teatro de grupo na vida atual. Como seus companheiros de ofício Brasil afora, os artistas reunidos em João Pessoa nos mostram em seus trabalhos a um só

Brava Companhia - Este Lado para Cima

tempo um tipo de empenho na argumentação e na forma destas obras que não seria possível em um modo de Cia. Carroça de Mamulengos

produção que não o do trabalho continuado. Isto é fato relevante. O outro, tão essencial quanto este, vem da audiência, ou de como nos dias da Mostra o público marcou presença, muitas vezes sob ameaça de chuva, fazendo do Largo de São Frei Pedro Gonçalves o lugar de encontro que confirmou de uma maneira bonita e exemplar a absoluta necessidade de insistência dos artistas no trabalho coletivo. O que demanda muito a todos: aos próprios artistas que, subvencionados ou não, não podem perder de vista a verticalidade da investigação que os diferencia do “fast food” da indústria cultural e os faz essenciais em um mundo no qual eles tendem a ser cada vez mais exceção. É encontro que também demanda a atitude dos governantes, que não prestam favor ao reconhecer ali um acontecimento indispensável à vida social. E, para terminar com uma questão que muito movimentou as tardes quentes nos debates da Mostra, há a tarefa igualmente incontornável de assunção destes lugares (de consciência da “forma-grupo”) para que estratégias de aproximação das plateias sejam traçadas, em um deliberado, planejado estreitamento da relação do teatro com a sociedade - o que certamente pode ter começado (ou recomeçado, ou tomado fôlego) neste encontro de João Pessoa. Mesmo que a próxima mostra não aconteça nas ruas, o fato de esta atual ter acontecido fora das salas fechadas já diz muito, sinaliza a intuição de um caminho que vem se provando útil, necessário.

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Brava Companhia

“Assistimos a uma mostra com um recorte direcionado ao teatro de rua em um cenário perfeito para isso, com a escadaria da igreja servindo de arquibancada e o casario cercando a arena. Acho que o local ajudou a passar a mensagem da mostra, de democratização do teatro. Foi muito satisfatório ver aquele largo cheio de gente, muitos moradores do bairro”. Luís Carlos Vasconcelos, ator e diretor do Grupo de Teatro Piollin, ressaltando o papel do Largo de São Frei Pedro Gonçalves no sucesso da III Mostra de Teatro de Grupo. (O Norte On Line, 31 de maio de 2011)

Rosyane Trotta e Kil Abreu realizando a “Conferência sobre o Panorama do Teatro de Grupo no Brasil”.

Curiosidade acerca do conteúdo do baú, na Vivência com a Cia. Carroça de Mamulengos.

Oficina com Beto Lemos, diretor musical da Cia. Carroça de Mamulengos criando a Música para a Cena com os alunos.

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“João Pessoa precisa de mais iniciativas como esta, é preciso manter o Centro Histórico sempre ativo, é um dos lugares mais bonitos da cidade. Vivemos uma semana fenomenal. Foi muito bonito ver famílias que moram na área saindo de casa no meio da semana para assistirem aos espetáculos. Espero que venham outras mostras como esta”. Fernando Teixeira, ator e diretor do Grupo de Teatro Bigorna, sobre a III Mostra de Teatro de Grupo. (O Norte On Line, 31 de maio de 2011)

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créditos das imagens 06 - Dayse Euzébio 08 - Anderson Silva 11 - Dayse Euzébio 12 - Anderson Silva 13 - Anderson Silva e Dayse Euzébio 14 a 21 - Anderson Silva 22 e 23 - Divulgação/Grupo Parque, Adriano Franco/Coletivo Alfenim e Pablo Pinheiro/Clowns de Shakespeare 27 e 28 - Maurício Rêgo

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29 - Maurício Rêgo e Natália Lima 30 a 49 - Maurício Rêgo 51 - Rafael Escocio/Grupo Bagaceira 52 - Altair Castro/Grupo Bigorna 53 - Hercília Lustosa/Grupo OCO e Levy Mota/Grupo Bagaceira 56 - ilustração Bruno Dante 57 a 83 - Anderson Silva 85 e 86 - Mauro Kury/Carroça de Mamulengos

88 - Mirtthya Guimarães/Coletivo Alfenim e Divulgação/Grupo Piollin 89 - Suellen Brito 91 - Mauro Kury/Carroça de Mamulengos e Fábio Hirata/Brava Companhia 92 e 93 - Suellen Brito 94 - Márcio Miranda

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CONTATOS Direção: Christina Streva [email protected]

Produção: Renata Mora e Zé Hilton (83) 8886-9929 / 9913-0062 (21) 8051-7007 [email protected]

SEDE Largo de São Frei Pedro Gonçalves, 17 Varadouro - João Pessoa - PB CEP: 58010-590

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