Emily Dickinson e a \"transcendência novalisiana\"

June 9, 2017 | Autor: Alisson da Hora | Categoria: American Literature, Emily Dickinson, Poetry
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1 Emily Dickinson e a "transcendência novalisiana" Álisson da Hora - Letras – UFPE

Este estudo aponta as relações entre a poetisa norte-americana Emily Dickinson com as idéias estético-filosóficas do alemão Friedrich Von Hardenberger, o Novalis. A poesia de Emily Dickinson pode ser enquadrada dentro do conceito novalisiano de transcendência, uma vez que a sua construção poética obedece, via de regra, ao pensamento do filósofo, de que a poesia transcendental se baseia nas "leis da construção simbólica do mundo transcendental". A capacidade de Emily Dickinson transfigurar a realidade, descrevendo-a a seu modo, sucinto, e por vezes com uma objetividade desconcertante, acaba por estabelecer essa relação que vamos analisar. Se procurarmos contextualizar a obra de Emily Dickinson, a situaremos sem dúvida, dentro do Romantismo, mas certamente seria um Romantismo tão desconcertante quanto o de um dos fundadores dele: o filósofo e poeta alemão Friedrich Von Hardenberger, o Novalis. Tanto um como o outro são figuras seráficas a nós: os seus olhos distantes parecem vislumbrar esse distante sagrado ao qual Novalis nomeava “A Casa do Pai”, e que Emily Dickinson imaginou alcançá-la sendo levada na carruagem que se deteve ante a ela. Como o poeta alemão, ela traçou alguns signos mágicos, cuja compreensão é distante e difícil, de uma inverossímil longevidade que contradiz as expectativas de ambos diante da morte que pacientemente esperaram. Novalis encerrou as suas esperanças de vida nos hinos que teceu à Noite, desesperançados em uma absurda esperança na qual transformou o seu amor por Sophie Von Kuhn, sua noiva morta ainda adolescente, em religião. “Amor absoluto, independente do coração, fundamentado em crença, é religião”. (Folha de Fragmentos, Pólen, p.31)1

A citação completa é “Tenho por Söfchen religião – não amor. Amor absoluto, independente do coração, fundamentado em crença, é religião”. 1

2 E daí ele derrama a sua vida em uma transcendência que iluminaria o caminho dos românticos alemães, mas que ainda assim deixaria a muitos, pasmos, como disse o seu irmão Karl em carta de 30 de setembro de 1802, ao guardião dos escritos dele, Ludwig Von Tieck: (...) ”Compreendo bem agora [ao reler esse manuscrito] que ele precisava morrer; nós ainda não estamos maduros para as descomunais revelações que, através dele, teriam vindo a nós” (...).

Emily Dickinson, dentro da atividade poética, teve vida mais fecunda que Novalis, produzindo em sua vida de 56 anos alguns mistérios talvez mais inexplicáveis, de igual transcendência, desorientadora dos sentidos dos mais incautos que se imaginavam capazes de decodificá-los. Trancada voluntariamente dentro da casa paterna ela conseguiu fugir àquela enganosa opinião que afirma a necessidade da experiência para a atividade poética. Como então explicar os 1775 poemas dispostos em 60 cadernos, a maioria escritos ao longo dos anos de reclusão, que foram encontrados logo após a sua morte por sua irmã Lavínia? A transcendência que Novalis alcançou – ele mesmo um ser igualmente exilado por vontade própria em Freyberg, interior da Alemanha, administrando com competência minas de carvão – se fundamenta na capacidade de crer que o poetar é gerar – e independentemente do que se possa entender por experiência de vida. Para ele todo o ser poetado acaba se tornando um ser vivente. E como ele mesmo afirmou, as coisas é que giram ao nosso redor – e não nós. Textualmente, ele nos diz: “A poesia eleva cada individuo através da ligação específica com o todo restante – e se é a filosofia que através da sua legislação prepara o mundo para a influência eficaz das idéias, então poesia é como que a chave da filosofia, seu fim e sua significação; pois a poesia forma a bela sociedade – a família mundial – a bela economia doméstica do universo”. (Pólen – Poesia, seção 31, p.121).

3 Assim, percebemos em Emily Dickinson essa capacidade de transformar em seres viventes tudo aquilo que ele utiliza como objeto de suas imagens poéticas. Ou ela mesma se transforma em um ser ou algo inanimado como no poema 754, no qual ela se imagina uma arma carregada, que protege o dono, mas que transcende a ele, como ela nos diz na estrofe final: “Embora mais que ele, talvez, eu viva, Mais que eu, precisa ele viver – Pois tenho tão-só o poder de matar, Não me é dado o poder de morrer”. 2 (poema nº754; a tradução é minha)

Toda a expressão dessa transcendência que Novalis preconizou se deu através de uma sutil poesia, mesmo em prosa, obedecendo à teoria de Friedrich Schlegel do fragmento como porco-espinho. Escreveu certa vez Schlegel na revista de Filosofia Athenauem, número 206: “Um fragmento tem de ser, igual a uma pequena obra de arte, totalmente separada do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho”. Ao que Novalis anotou logo abaixo, manuscrito: “O porco-espinho – um ideal”. Essa inserção do macro-cósmico em uma estrutura micro-cósmica representa a erosão e a conflagração do pensamento pré-romântico tão bem representado por ele. A transcendência – na visão novalisiana - para alcançar os páramos da “Casa do Pai”, o que possibilitaria acabar com o despotismo de uma falsa claridade dos dias, teria de passar por esse caminho inverso de introspecção e fantasia. Emily Dickinson notabilizou-se pelo seu estilo telegráfico, poemas que se não lembram os haicais orientais estão bem próximos dos fragmentos novalisianos. Como se toda aquela angústia superlativa coubesse em tão exíguo espaço de poesia, como de

No original: “Though I than He – may longer live/He longer must – than I - /For I have but the power to kill, / Without – the power to die - ” in: Johnson, Thomas H. (org) The complete poems of Emily Dickinson. Boston: Little, Brown, 1960. 2

4 fato, coube; e toda uma gama de espaços retrabalhados em suas mentes geniais – de tão longínquos passam a estar transcendentalmente próximos. Em seus Diálogos, Novalis compara a febre de livros e revistas filosóficas, enfim a turbulência cultural da Alemanha pré-romântica à descoberta de poderosas minas, como ele diz: (...) “A descoberta dessas poderosas minas na Alemanha, que são mais que Potosí e o Brasil e que, na verdade, fazem e farão uma revolução maior que a descoberta da América”. (...).

Tanto para ele quanto para Emily Dickinson, que tinha em sua geografia imaginária tais lugares, as imagens de Potosí e do Brasil representariam Eldorados distantes, de riquezas inumeráveis e desconhecidas, transcendentais. Uma riqueza que pode encerrar até mesmo o próprio ser, como ela escreveu em um dos seus poemas nos quais cita o Brasil: “Eu pedi nada mais, Nada mais me foi negado; Em troca ofereci meu Ser – O Poderoso Mercador rosnou – ‘Brasil?’ E rodou um botão, Sem me olhar sequer – ‘Mas, Senhora, não há nada mais Que hoje eu possa lhe oferecer?”3 (Poema nº621; a tradução é de Ivo Bender) “Uma mina – não há homem algum que possua Mas devemos conferir Nos conduzindo pela riqueza exclusiva;

No original : “I asked no other thing,/ No other was denied./I offererd my Being for it;/The mighty merchant sneered./Brazil?He twirled a button,/Without a glance my way/But, madam, is there nothing else/That we can show to-day?’” 3

5 Potosi nunca acabou – Está acumulado na mente – Um Universo ao lado – Nos quais avarentos espremem à noite com suas mãos Índias no chão “4. (Poema nº1117; a tradução é minha) Para chegar a tal ela recorreu ao que Novalis chamava de “leis da construção simbólica do mundo transcendental”, que baseavam-se, sobretudo – como já o dissemos – em uma transfiguração da realidade exterior através de uma unificação da linguagem e do entendimento. O artista, que na visão romântica de Novalis é um ser inteiramente transcendental, deve estar atento a despertar uma individualidade alheia primeiramente em si mesmo, não através de uma mímese superficial – deve transcender a partir do momento em que enxerga o outro em si próprio. Para ele o artista faz de si tudo aquilo que vê e quer ser. E por conseqüência, o outro. Embora o Romantismo como um todo tenha se baseado na subjetividade, Emily Dickinson – e aí está o seu diferencial – consegue apresentar tal subjetividade inserida numa estrutura textual que aparenta uma objetividade comparável ao dos então recém inventados telégrafos. A sua objetividade é como uma objetividade de Sibila de Delfos, da qual temos sempre de estar atentos para não sermos enganados, tentando achar sempre o verdadeiro alcance daqueles versos oraculares. Parafraseando Henry W. Wells, sua leveza é um misto inegável de misticismo e de estoicismo. E passa também pelo “sentimental”, mas não nesse sentido piegas e pejorativo que conhecemos, mas no sentido técnico que Friedrich Schiller deu a essa palavra, significando “auto-reflexivo”. Dessa forma cremos que a transcendência que Novalis concebeu acaba nos levando a uma falta de distinção necessária entre o Aqui e o Ali. Essa “noite transcendental” opõe-se ao dia luminoso – que define claramente o espaço temporal do dia e da noite – justamente porque a noite fundiria qualquer distância e duração de tempo, tornando vãos os nossos conceitos e os nossos desejos de classificar tudo. Assim como as palavras de Novalis 5, os versos de Emily Dickinson já foram considerados dignos de manicômio, tal a sua profundidade e a sua ousadia que desafiam ao senso comum de sua época, no qual já começavam a raiar todo aquele pensamento No original: “ A Mine there is no Man would own/But must it be conferred,/Demeaning by exclusive wealth/A Universe beside -/ Potosi never to be spent/ But hoarded in the mind/What Misers wring their hands tonigth/ For Indies in the Ground!” 5 Em sua edição de 1804, o Neues Allgemeine Deustche Bibliothek, traz escrito tal comentário sobre Novalis: “Desperta verdadeiramente uma sensação melancólica, quando se vê que um jovem rico de talento se deixa induzir, pela caça aos paradoxos, ao estabelecimento de frases tão descerebradas”. 4

6 prático norte-americano, afinal, “time is business” e ninguém em sã consciência iria perder tempo e dinheiro lendo versos tão “desconjuntados”. Pelo menos até que alguém tivesse a idéia de ganhar dinheiro com ela... Demoraremos talvez ainda muito tempo em compreender em toda a sua plenitude a real transcendência dos versos de Emily Dickinson. Sobretudo numa época em que estamos sufocados de informações que advêm de todos os lados, tornando-nos quase incapazes de transcendermos a nós mesmos. Talvez quando conseguirmos transcender as nossas próprias concepções atuais de mundo e de vida; possamos então apreender em sua totalidade o alcance da sua obra. E aí, como disse Novalis, alcançaremos o fim da História mundial, quando todos formos capazes de lançar as nossas almas para o amor a final transcendência do espírito humano. E aí entenderemos o que ele quis dizer com: “O amor é o fim último da História mundial – o amém do Universo” (Novalis Schriften, seção nº309)6

Referências Bibliográficas: BRION, M. La Alemania romantica II.Barcelona: Barral, 1971. DICKINSON, E. Poemas de Emily Dickinson. tradução de Ivo Bender.Porto Alegre:Mercado Aberto,2002. JOHNSON, T.H. (org.) The complete poems of Emily Dickinson. Boston: Little, Brown, 1960. LIRA, J. Emily Dickinson e a poética da estrangeirização. Recife: Programa de Pósgraduação em Letras e Lingüística – UFPE, 2006. SCHILLER, F. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 2000. VON

HARDENBERG.

F.

(NOVALIS).

Pólen.:

fragmentos,

diálogos,

monólogos.tradução de Guilherme Rodrigues Torres Filho. 2 ed. São Paulo: Iluminuras, 2001. ______________________________________. Das Allgemeine Brouillon. 20 ed. Darmstadt: Kohllhammer, 1977. 6

Na verdade, quando da organização do Novalis Shcrifnten por Ludwig Tieck e Eduard von Büllow (Berlim, 1806) houve uma leitura errada do fragmento citado, uma vez que em outro manuscrito novalisisano – Das Allgemeine Brouillon (Borrador Universal), esse mesmo fragmento aparece como nº50, sob o título de Psicologia, e traz o seguinte texto: “O amor é o fim último da História mundial – o unum do uni-verso”.

7 ___________________________________. Novalis Schriften. 3. ed.crítica rev. ampl. por Paul Kluckhohn e Richard Samuel. Stuttgart/Darmstadt: Kohllhammer, 1975. WELLS, H.W. Romantic sensibility

in: SEWALL, R.B. (ed) Emily Dickinson: a

collection of critical essays. 7 ed. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1963.

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