Emoção e jurisdição: o governo das emoções (Parte 2)

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Emoção e jurisdição (Parte 2)


Atahualpa Fernandez(


"Y de repente tengo miedo. Miedo de no estar a la altura de
lo que se espera de mí. ¿Seguiré teniendo derecho a ser
valiente? Derecho a estar furioso. Derecho a sentirme
desbordado. Derecho a estar cansado. Derecho a no tener ganas de
jugar. Derecho a cometer errores. Derecho a tomar decisiones
equivocadas. Derecho a no tener tiempo. Derecho a no estar
presente. Derecho a mostrarme cínico. Derecho a tener días
malos. Derecho a no volver a hablar de ello. Derecho a ser
banal. Derecho a tener miedo. Derecho a no saber. Derecho a no
querer. Derecho a no ser capaz." Dennis Lehane




O governo das emoções (1)

Três dos diversos modelos propostos para explicar as relações entre
emoção/razão e ações/juízos morais são particularmente relevantes por suas
implicações para o direito. No primeiro modelo, inspirado na filosofia
kantiana e defendido por Piaget e Kohlberg, se postula como centro das
condutas morais os processos de reflexão e de dedução: diante de uma
situação ou ação moralmente relevante, o ser humano explora consciente e
racionalmente diferentes princípios para gerar um juízo moral.
No segundo modelo, inspirado em Hume, se enfatiza o rol das emoções e
da intuição moral. A percepção de uma situação dispara e/ou implica uma
emoção, a qual se traduz em um juízo sobre se a ação com a qual se responde
a essa situação é moralmente boa ou má. Este ponto de vista é apoiado por
estudos que sugerem que nossos juízos sobre o que é bom e mau são
influenciados por reações emocionais tais como a empatia, a repugnância, o
desgosto, etc...etc. Tudo isto deixa pouco lugar à deliberação racional
como forma de modelar nossa visão moral. Com efeito, muitos psicólogos
pensam que os raciocínios que fazemos de "por que" cremos certas coisas são
em sua maioria justificações post hoc de reações viscerales.
Tal como expressa Jonathan Haidt (2001), ainda que gostamos de ver a
nós mesmos como como sensatos e imparciais juízes[1], razoando e
argumentando sobre as situações graças a nossa imaculada racionalidade e
princípios profundamente arraigados, em realidade somos e atuamos mais que
tudo como advogados, defendendo e argumentando (emocionalmente) a favor de
(e sobre) ideias, crenças, preferências, desejos e preconceitos que já
temos estabelecidos[2]. Isto implica que temos pouco controle consciente
sobre nosso sentido do bem e do mal, que nosso cérebro reconstrói a
realidade e recria o que percebe em função de nossas expectativas, ideias,
crenças, desejos e preferências.[3]
Um terceiro modelo, inspirado em John Rawls e aplicando ao campo da
moral os conceitos sobre a linguagem propostos por Noam Chomsky[4], postula
que se realizaria uma avaliação inconsciente e automática das ações com
implicações morais, funcionando da seguinte maneira: primeiro, a percepção
de um evento com implicações morais dispararia e/ou implicaria uma
apreciação inconsciente das causas, intenções e consequências das ações
associadas a ele; seguidamente, essa análise inconsciente conduziria a um
juízo moral que se expressaria em uma emoção e raciocínio consciente. Esta
análise, ainda que rápida e inconsciente, é um processo cognitivo complexo
usado para formar um juízo de aprovação ou desaprovação. Em um sentido
importante, é um processo de raciocínio, ainda que, em um primeiro momento,
não seja consciente.
À diferença do modelo anterior (de inspiração humeana), aqui as
emoções não interviriam na geração do juízo moral: as emoções se disparam
somente depois de que este juízo tenha ocorrido, e são relevantes
principalmente para controlar nossa resposta condutual ao ato percebido.
Trata-se de uma forma de integrar a Kant, Hume e Rawls na descrição de
nosso comportamento moral baixo a denominação de "criaturas" (com instintos
morais): "A criatura rawlsiana [...] disparará suas intuições sobre ações
moralmente boas ou más; a kantiana replicará a essas intuições com
argumentos fundados em princípios" e, no "meio do fogo cruzado", a criatura
humeana intentará inclinar os juízos a um dos polos morais (bom/aprovação
ou mau/desaprovação) gerando emoções de acordo com a evidência. (M. Hauser)
Como no modelo (intuicionista) de Haidt[5], os juízos morais estão
baseados primariamente na intuição, ainda que Hauser (contrário a Haidt)
negue que estas intuições sejam de tipo afetivo: podemos encontrar algumas
regras universais abstratas – como a reciprocidade em justiça e a regra de
ouro (não fazer ao outro o que não se deseja para si) – e uma disposição a
aprender outras, às quais a cultura introduzirá algumas exceções, isto é,
dará a expressão ou forma final.[6]
Em sede de interpretação e aplicação do direito, parece não haver
dúvidas que o juízo normativo é produto tanto das emoções como da razão,
sendo que as experiências sensoriais de caráter emocional contribuem de
maneira decisiva ao processo de tomada de decisão (embora os cientistas e
filósofos do direito, sempre imunes ou resistentes à ideia de que a ciência
contemporânea afete nossa sacrossanta noção de racionalidade, não saibam ou
se neguem a saber exatamente "por que" isso ocorre). Ao encontrar-se o
sujeito intérprete em interação com os valores, princípios, regras e fatos,
seus estados afetivos acabam por revelar suas crenças, preconceitos,
preferências e julgamentos em relação aos fatores desencadeadores de tais
sensações.
Desse modo, as emoções – que para Denton (2009) são "qualia esenciales
para la consciência" - mantêm uma relação privilegiada com o processo de
realização (interpretação e aplicação) do direito, já que, por meio delas,
o agente jurídico percebe e compreende o conteúdo e a configuração das
normas, dos fatos e das situações do mundo. Reagir emotivamente, portanto,
significa não apenas conferir um valor ao elemento desencadeador da emoção,
senão também, em muitos casos, manifestar um comportamento condizente com o
conteúdo dessa avaliação.
Ademais, é possível identificar uma relação íntima de correspondência
entre as emoções e o direito, na medida em que inúmeras intuições e/ou
emoções morais orientam o julgamento axiológico e determinam a tarefa
interpretativa do sujeito autorizado. É nesse sentido que para Solomon
(1976) as emoções se constituem como atitudes cognitivas atreladas a juízos
normativos ou avaliativos, dado que são elas (as emoções) as que fornecem
os meios necessários para uma deliberação racional.
Por certo que a filosofia hermenêutica, a teoria da racionalidade e a
lógica ajudam a interpretar e aplicar o direito, e não se deve subestimar a
importância de transformar nossos vagos instintos em um conjunto explícito
de justificações e/ou argumentos jurídicos. Mas nossas emoções e intuições
morais, sem as quais não seríamos capazes de valorar (e sobreviver),
existem muito antes que os teóricos e filósofos do direito propusessem as
primeiras teorias e métodos para orientar a interpretação jurídica.[7]

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Nas palavras de D. Kennedy (2010): "No sólo se trata del proceso de
toma de decisiones, sino también de las imágenes de objetividad, prudencia,
imparcialidad o justicia asociadas íntimamente a la figura del juez – acaso
con mayor intensidad que respecto de cualquier otro ícono circulante en al
imaginario de nuestra cultura".
[2] Embora a maioria dos filósofos da mente (e alguns juristas) estejam de
acordo e sustentem (direta ou indiretamente) que temos um acesso
privilegiado a nossos pensamentos e que é geralmente imune ao erro (alguns
filósofos, inclusive, afirmam que temos uma faculdade de "sentido interior"
que supervisa a mente do mesmo modo que nossos sentidos externos controlam
o mundo), o filósofo contemporâneo Peter Carruthers propõe uma visão
similar a de Haidt (ainda que por diferentes motivos) e sustenta que as
crenças sobre nossos pensamentos e decisões são o produto da
autointerpretação e soem estar equivocadas: não temos pensamentos
conscientes nem tomamos decisões conscientes. Como explica Keith Frankish:
"Lo que parece que ocurre es que los sujetos desarrollan una
autointerpretación inconsciente. Desconocen la explicación real de su
acción o decisión, así que infieren algún posible motivo y se lo atribuyen;
es decir, no saben que están interpretando y describen sus acciones y
decisiones como si fueran directamente conscientes de sus motivos… La gente
es hipócrita pero de manera inconsciente".
[3] Haidt (2001) define a intuição moral como a repentina aparição na
consciência de um juízo moral, junto a uma valência afetiva (bom-mau,
agrado-desagrado), "sin ninguna consciencia de que haya tenido lugar a
través de pasos de búsqueda, valorando la evidencia o infiriendo una
conclusión. La intuición moral es por tanto el proceso psicológico del que
hablaron los filósofos escoceses, un proceso similar al juicio estético:
alguien ve o escucha un evento social e instantáneamente siente aprobación
o desaprobación". O estado emocional produz uma intuição moral, que pode
impulsar a um indivíduo a atuar; uma habilidade que se encontra integrada
no mesmo ato de percepção, de tal forma que não necessitamos reflexionar
para reconhecer que um ato ou pessoa é moral ou imoral, senão que o
percebemos já como algo bom ou mau de maneira intuitiva, fugaz,
inconsciente, involuntária e sem esforço, mediante uma sensação (ou
pressentimento) que provoca em nossa consciência a formação de um juízo
moral, e atuamos em consequência. O razoamento sobre o juízo ou a ação vem
depois, quando o cérebro busca uma explicação racional para uma reação
automática sobre a que não tem nenhuma pista. Resumindo: os termos intuição
e razoamento tratam de capturar o contraste realizado por dezenas de
filósofos e psicólogos entre duas formas de cognição. As diferenças mais
importantes são que a intuição acontece sem esforço, rápida e
automaticamente, de modo que o resultado, mas não o processo, resulta
acessível à consciência, enquanto que o razoamento tem lugar de modo mais
lento, requer mais esforço e implica ao menos alguns passos que são
acessíveis à consciência (Haidt, 2012; Kahneman, 2012; Mischel, 2015).
[4] Aplicando ao campo da moral os conceitos sobre a linguagem postulados
por Noam Chomsky, Marc Hauser (2008) sugere fracionar as normas morais em
duas dimensões: i) uma "gramática" moral universal, constituída por
elementos de nossa bagagem biológica, e ii) um sistema de normas dependente
da realidade cultural na qual está inserto o individuo. A gramática moral
universal constituiria o substrato para a formação de um sistema de normas
morais culturalmente dependentes e restringiria o repertório de valores
morais possíveis. Para dizer a verdade, a tese principal de Hauser resulta
clara desde a primera linha do prólogo de seu livro: "Nacemos con un
instinto moral, una capacidad que crece de forma natural en cada niño,
desarrollada para generar juicios rápidos sobre lo que es correcto o
incorrecto, y basada en unos procesos que actúan de forma inconsciente.
Parte de este mecanismo fue diseñado por la mano ciega de la selección
darwiniana millones de años antes que nuestra especie evolucionase. Otros
aspectos fueron añadidos o actualizados durante la historia de nuestros
antepasados, y son exclusivos de los humanos y su psicología moral."
Segundo Hauser, "existen unos principios universales e inconscientes que
subyacen a nuestros juicios sobre lo correcto y lo incorrecto. Las
diferencias culturales afectan a cómo actuamos frente a dilemas morales
concretos (pena de muerte), pero no tanto en cómo los valoramos de una
forma abstracta (matar es malo). En esto todos los humanos compartimos una
innata lógica común."
[5] A proposta de Haidt é a de "que un estímulo induce un proceso
automático de aprobación (aproximarse) o desaprobación (retirarse) que
puede llevar a un estado emocional en toda regla. El estado emocional
produce una intuición moral, que puede impulsar a un individuo a actuar. El
razonamiento sobre el juicio o la acción viene después, cuando el cerebro
busca una explicación racional para una reacción automática sobre la que no
tiene ninguna pista. Este proceso incluye juicios morales, que raramente
son el resultado de un verdadero razonamiento moral. Alguna que otra vez,
sin embargo, el yo racional participa realmente en el proceso del juicio"
(Gazzaniga, 2010). Para uma crítica filosófica ao "intuicionismo social" de
Haidt, cf. Appiah, 2010.
[6] Nos dias que correm se carece de evidência científica para concluir se
este modelo explica a globalidade dos juízos morais ou se estes resultam da
interação entre processos intuitivos e inconscientes, processos emocionais
e cognitivos, propostos neste último modelo. Pesquisas desenvolvidas no
âmbito da biologia, da neurociência e da psicologia em torno da moral – ou
seja, o conhecimento descritivo da moral – estão relacionadas a concepções
filosóficas mais gerais, tanto de caráter metaético quanto de caráter
prescritivo. De uma maneira geral, os cientistas investigam os processos de
produção dos julgamentos morais mediante técnicas que vão desde a aplicação
de questionários e testes, passam pela observação de pessoas expostas a
situações conflitivas ou a dilemas e chegam ao estudo do cérebro por
ressonância magnética funcional. Mas uma conclusão parece consolidar-se na
literatura científica a partir das pesquisas empíricas: a de que a moral é
inata e que a maior parte de nossos julgamentos morais se dá de forma
automática e imediata; são as chamadas "intuições morais". Mesmo
discordando nos detalhes ao acentuar diferentes aspectos deste fenômeno,
muitos cientistas colocam-se em oposição não somente às concepções
dominantes em filosofia desde os gregos, senão também à psicologia de
Piaget e de Kohlberg (segundo a qual, como dito antes, a moral é
fundamentalmente uma questão de razões e de consciência, de escolhas
ponderadas e iluminadas por motivos – ainda que, registre-se, não se trate
de um consenso; cf. Dupoux e Jacob, 2008). Uma das provas do caráter
intuitivo dos julgamentos morais estaria no fato de que é comum as pessoas
terem fortes convicções, mas se encontrarem em uma verdadeira situação de
"mudez moral" (moral dumbfounding) ao tentar justificá-las. Quer dizer, nem
sempre encontram razões para suas intuições ou, no melhor dos casos, as
razões e justificativas surgem depois de feito o julgamento. Como regra, os
investigadores utilizam o dilema do trem desgovernado (trolley problem)
para investigar as intuições morais. A matéria, no entanto, é polêmica e as
explicações divergem: alguns, como Joshua Greene e Jonathan Haidt, acentuam
o papel do componente afetivo e emocional nas intuições morais; outros,
como Marc Hauser, pensam as intuições como informadas por princípios, isto
é, carregadas de um componente cognitivo inconsciente.
[7] Convém recordar que apesar de serem importantes e influírem
decisivamente na formação de nossas crenças, nossos prejuízos, nossas
preferências e em nossas tomadas de decisão, as emoções, inversamente,
podem afetar nossas escolhas racionais de diversas maneiras e, como tal,
não somente nos fazem ser boas pessoas ou bons julgadores. Na moral, diz
Haidt (2006), "hay mucho más que altruismo y bondad. Las emociones que nos
impulsan a exhibir conductas de ayuda a los demás son fácilmente
etiquetadas de emociones morales, pero las emociones que conducen al
ostracismo, a la humillación y a la venganza asesina son una parte no menos
importante de nuestra naturaleza moral. El mundo social humano es una
milagrosa y frágil construcción colectiva de sus participantes, y cualquier
emoción que lleve a las personas a preocuparse por este mundo y apoyar,
promover y mejorar su integridad debería ser considerada una emoción moral,
aunque las acciones emprendidas con este fin no sean «bonitas»".
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