Emoção e jurisdição (Parte 1)

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Emoção e jurisdição (Parte 1)


Atahualpa Fernandez(


"Qué tiempos serán los que vivimos, que hay que
defender lo obvio." Bertolt Brecht




Malgrado a profusão do conjunto de teorias elaboradas acerca da
interpretação jurídica, a maioria dos modelos sobre a tarefa hermenêutica e
a própria unidade da realização do direito parece não dar a devida
importância ao papel das emoções nos processos de tomada de decisão,
construídos que estão (nunca está demasiado repetir) a partir de hipóteses
sem qualquer escrutínio empírico-científico minimamente sério, quero dizer,
sem o domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica sólida acerca
dos problemas filosóficos e neuropsicológicos intrínsecos que implica
qualquer teoria da ação intencional humana, mas com a insolência de atrever-
se a fabular e a preconizar "cosas en un lenguaje rimbombante, para que
alguna gente quede hechizada con sus palabras grandilocuentes." (M. Bunge)
E não é somente que alguns juristas estejam vacilantes ou em desacordo
com os detalhes a respeito da magnitude que têm as emoções para a atividade
jurisdicional, senão que se dissuade ativamente discuti-las de algum modo
que não seja em termos fortemente racionalistas, o que amiúde faz com que a
evidência empírico-científica se fulmine ou, inclusive, se sacrifique no
altar de ideais metafóricos. Parafraseando a Uri Harris, para quem a saúde
das ciências sociais em geral está afetada de forma séria, quando os
juristas "se alejan del mundo por no conformarse a sus modelos, en lugar de
al revés, algo va mal", porque o que há é um problema de dogmas, de certeza
indevida e de tabus ideológicos mais profundo (onde o «faz-de-conta» se
tolera e os fatos se ignoram).[1]
Mas, qual pode ser a relação existente entre os resultados da atual
investigação científica e o processo de interpretação do direito e de
tomada de decisões judicial? Têm os juízos formulados pelos juízes como
causa preponderante a razão, a emoção ou são primariamente produto de um
processo de raciocínio fundado em princípios inconscientes e inacessíveis?
Em que medida é possível saber, nos processos de tomada de decisão
jurídica, se os juízes atuam, segundo a perspectiva de Marc Hauser, como
criaturas humeana, kantiana ou rawlsiana? Ou dito de outra maneira algo
mais retorcida: É possível dar à razão uma narrativa? Pode dotar-se assim
de sentido algo que (sem a tutela da emoção) essencialmente não o tem?
O assunto, sobra dizer, não é trivial. É delicado e sempre está
(politicamente) infectado de polêmica e ambiguidade. Primeiro, porque o
direito não é, e jamais será predominantemente um sistema racional de
pensamentos, ao menos enquanto a ciência não produza inéditos milagres nos
cérebros das pessoas. Não pode sê-lo, porque consiste em decisões sobre
distintas possibilidades de ordenação político-social para as condutas
humanas, um tipo de conhecimento que não é uma leitura direta da realidade,
senão interpretações intimamente mediadas por processos cognitivos,
emocionais e perceptivos. Decisões são tomadas por primatas humanos,
indivíduos que estão eles mesmos envolvidos - direta ou indiretamente,
quando menos ideologicamente[2] – em tais condutas.
De fato, uma decisão não costuma resultar mais racional que a vontade,
as emoções e o conhecimento de quem a produz. E os atores principais da
atividade jurisdicional que determinam sua dinâmica não são precisamente
uns "preferidores racionais", nem uma confraria de sofisticados jus-
metodólogos, senão indivíduos que basicamente respondem às orientações de
seus genes e de seus neurônios, assim como de suas experiências, memórias,
valores, aprendizagens e influências procedentes do ambiente e da
mentalidade comum.[3]
Segundo, porque parece estar irremediavelmente condenada a equivocar-
se, de ponta a ponta, e sempre, qualquer teoria sobre
hermenêutica/interpretação/argumentação jurídica que busque entendê-la, ou
programá-la, como um sistema de locutores básica ou exclusivamente
racionais. Os agentes reais do direito não são e nem tampouco funcionam
assim: não são apenas suas racionáveis "perfeições", senão que também são
suas emocionais "imperfeições". Como disse Jerome Frank (2001), também os
juízes são "humanos". E não poucas vezes – é possível agregar - até
demasiado humanos.[4]
Vejamos por partes.

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Não resulta difícil comparar, neste particular, as emoções a um «cisne
negro», um fenômeno que parece inconcebível em relação com as crenças e os
supostos assumidos prevalentes. Os acontecimentos «cisne negro» surgem
quando nossa concepção do mundo está desconectada dos acontecimentos "de
fundo".
[2] Nesse sentido, por exemplo, D. Kennedy (2010) sustenta que "una
hermenéutica de la sospecha, o búsqueda de las motivaciones ideológicas
escondidas en las sentencias judiciales que se presentan a sí mismas como
técnicas, deductivas, objetivas, impersonales o neutrales, ha sido durante
los últimos cien años la característica más importante de los debates
norteamericanos sobre la decisión judicial. En el discurso jurídico, la
evidencia de esta imputación de motivaciones casi nunca es flagrante, en el
sentido de que implique una admisión de intención. En las sentencias
judiciales, los jueces siempre "niegan", en el sentido común del término,
que estén actuando por motivos ideológicos. Esto es, afirman explícitamente
que el resultado – el desenlace que le dan a un caso al elegir una
particular resolución para una cuestión de derecho o de definición de
ciertas normas en lugar de otras – fue alcanzado siguiendo procedimientos
interpretativos impersonales que excluyen la influencia de sus ideologías
personales. Obviamente, se trata de una convención y dice poco sobre lo que
"realmente" está sucediendo.[…] Todos quieren que sea verdad que no sólo es
posible sino también habitual que los jueces juzguen desproveídos de toda
ideología. Pero todos están al tanto de la crítica, y todos saben que la
teoría ingenua del imperio de la ley es una fábula, y aquellos que lo saben
sospechan que las versiones sofisticadas de la filosofía del derecho
contemporánea no son mucho mejores.[…] Los jueces ya no pueden invocar
compulsión de ´la ley´ para justificar sus decisiones: ellos son siempre
parte de la decisión. Dios ha muerto".
[3] Sobre os fatores que influem, limitam, configuram e distorcem a maneira
como percebemos o mundo, pensamos e atuamos, cf. Csikszentmihalyi, 2008; já
sobre as limitações do cérebro evolucionado, responsáveis por gerar as
principais predisposições e fraquezas do ser humano, Linden (2010)
explica: "El cerebro no ha sido diseñado de manera elegante ni mucho menos:
es un revoltijo improvisado e incomprensible que, sorprendentemente y pese
a sus cortocircuitos, logra realizar una serie muy impresionante de
funciones – o sea, que funciona sorprendentemente bien. Pero si bien la
función general es impresionante, no cabe decir lo mismo de su diseño. Y lo
que es más importante, el extravagante, ineficaz y singular plano de
construcción del cerebro y sus partes constitutivas es fundamental para
nuestra experiencia humana. La textura particular de nuestros sentimientos,
percepciones y actos se deriva en una amplia medida del hecho de que el
cerebro no sea una máquina optimizada que resuelve problemas genéricos,
sino una extraña aglomeración de soluciones ad hoc que se han ido
acumulando a lo largo de millones de años de nuestra historia evolutiva.[…]
En concreto, que las limitaciones de un diseño cerebral extravagante y
evolucionado fueron lo que en última instancia condujo a la aparición de
muchos de los rasgos humanos trascendentes y únicos ( y que nos permite
entender algunos de los aspectos más profundos y específicamente humanos de
la experiencia): el hecho de tener una infancia prolongada, nuestra amplia
capacidad de memoria (sustrato en el que se crea nuestra individualidad a
través de la experiencia), nuestra necesidad de crear relatos convincentes,
nuestra limitada racionalidad e incluso nuestra predisposición al
pensamiento religioso". Nomeadamente no que se refere à moralidade, é
possível argumentar o seguinte: que nós e nossos cérebros evolucionamos em
pequenas comunidades culturalmente homogêneas, cada uma com sua própria
perspectiva moral. O mundo moderno, por certo, está repleto de perspectivas
morais em conflito. Nossos maiores problemas sociais, morais e jurídicos
derivam de nossa tendência inconsciente de aplicar o pensamento moral
paleolítico (também conhecido como "sentido comum") aos complexos problemas
da vida moderna. Nosso cérebro nos engana ao pensar que temos a verdade
moral de nossa parte, quando em realidade não a temos; também nos cega
diante de verdades importantes em relação às quais não foi desenhado para
apreciar. Nosso cérebro nos impede de ver o mundo desde outras perspectivas
que não seja as das crenças e convicções herdadas do passado; muitas
pessoas tomam decisões não em função do que vêem, do que consideram bom ou
mau, senão em função do que crêem, de suas convicções. Da mesma forma que
os primatas sociais mais evoluídos, decidimos de forma instintiva e
motivados por nossas emoções morais herdadas de nossos antepassados; não
somente somos incapazes de predizer, senão que tendemos a imaginar o futuro
em torno ao passado. É o que Dawkins denomina de "código dos mortos", esse
pensar em base a estruturas ancestrais, de gente do passado: pautas de
conduta excelentes há milhões de anos, que deixaram de ser úteis e que, não
obstante, seguem vigentes. Por desgraça muitas das condutas do ser humano
estão condicionadas por códigos antigos que agora resultam nefastos.
Estruturas ancestrais que inevitavelmente seguem guiando a conduta e o
pensamento do sapiens moderno, isto é, do relevante papel que ainda
desempenham as crenças e convicções herdadas do passado à hora de
configurar o futuro. Esta é a má notícia. A boa notícia é que, graças à
plasticidade neuronal, algumas partes do cérebro humano são altamente
flexíveis, e que ao depender mais desses sistemas cognitivos, podemos
adaptar nosso pensamento moral para o mundo moderno. Mas para isso devemos
deixar de lado o sentido comum e pensar na iniludível dimensão humana e
interpessoal (de uma humanidade que evolucionou por seleção natural) que
afeta a compreensão da moralidade (e da juridicidade) em toda a sua
integralidade. Nesse sentido, cf. Marcus, 2010; Chabris e Simmons, 2010;
Linden, 2010.
[4] "Los realistas fueron quines nos hicieron ver que los jueces, para
ponerse los pantalones, meten primero una pierna y después la otra, como
todo el mundo" (James Boyle, apud Pérez LLedó, 1996). Sublinho que a
razão, como afirmação da própria subjetividade, não é uma capacidade
natural, uma disposição inata, senão um desideratum do qual - isto sim -
somos conscientes por nosso natural equipamento cognitivo, que pode ser
explicado pelos milhões de anos de evolução biológica que pesam sobre nós.
Quer dizer: o ser humano não é racional por natureza. Isto forma parte do
mito da razão que a filosofia chegou a conceber e a idolatrar em
determinados momentos históricos e/ou em certas propostas de seus
pensadores. Bertrand Russell reconheceu este despropósito intelectual com
as seguintes palavras: "El hombre es un animal racional o, por lo menos,
así se me ha dicho. En el transcurso de una larga vida he buscado
diligentemente pruebas a favor de esta afirmación, pero hasta ahora no he
tenido la suerte de toparme con ellas, aunque las busqué en muchos países
esparcidos en tres continentes. Por el contrario, he visto al mundo
hundirse cada vez más en la locura". Na realidade empírica, o comportamento
do ser humano se ajusta aos processos mentais que operam de forma
subconsciente, automática, espontânea e sem uma consciência deliberada. Da
mera prolongação ideal do comportamento humano não surge a racionalidade no
julgar e proceder de seus juízos, eleições e decisões. Como explica muito
bem Massimo Piatelli Palmarini: "Simplemente, «la» razón no es una
«facultad» congénita, que actúa en nosotros de manera espontánea y sin
esfuerzo. El juicio racional moviliza muchas facultades distintas, a veces
en conflicto entre sí. La racionalidad no es, pues, un dato psicológico
inmediato, sino más bien un complejo ejercicio que tiene que ser
conquistado primero y mantenido después con un cierto coste psicológico.[…]
La racionalidad ideal es ideal." Em suma: a razão há que ser assumida e
praticada desde a consciência de sua complexidade e de seus limites, que
são naturais ao estar enterradas suas raízes no tão pouco racional húmus de
nossa psique, no compromisso que muitas de nossas tendências e capacidades
mentais mantêm com o (evolucionado) «desenho humano».
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