Emoção e jurisdição (Parte 5)

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Emoção e jurisdição (Parte 5)


Atahualpa Fernandez(




"Salvo que tengas argumentos y pruebas, no, no tienes
derecho a una opinión". P. Stokes






Métodos, «módulos» e processos mentais internos (1)


Desde logo, corresponde descartar, como sabemos, que seja factível
umas soluções puramente racionais, e que isso se possa alcançar pela via de
certos "métodos-receitas"[1]. Não pode haver tais ordens de respostas às
questões jurídicas em geral. Não somente porque semelhante receita não as
há descoberto ainda ninguém – e nem é provável que se chegue a elaborar -,
senão porque, ainda que alguém as apresentasse nada seria menos seguro que
lograr, na prática, fazê-las aplicar tal qual pelos sujeitos-intérpretes,
em casos sobre os quais os agentes do direito contendem na vida real.
(Haba, 2006)
Recordemos que a "consciência" ("cabeça") do intérprete, com a que
necessitamos contar, não se compõe somente do "módulo" conhecimento, senão
também do "módulo" emotivo-afetivo: sentimentos, intuições, experiências
pessoais, memória, ideologias, etc....etc.[2] Os métodos, sejam quais
forem, se dirigem às faculdades racionais dos homens. Mas, por mais
corretos que uns métodos sejam (suponhamos que sim!) desde o ponto de vista
intelectual, isto não basta para presumir ou decidir que serão adequados
àqueles que estão chamados a aplicar esses métodos, porque a interpretação
e tomada de decisão obedecem a muitos elementos (tão diversos como o
momento, a ideologia, os valores morais, as histórias pessoais, as emoções,
a fome, a cultura, os desejos, as preferências, a madurez...) que influem
diretamente na compreensão e interpretação prévias e que simplesmente não é
possível controlar.[3]
Para que determinados métodos sejam seguidos tem que dar-se uma das
duas condições seguintes: i) ou que o conhecimento e a prática metódicos
sirvam também para promover determinados fins fundeados na vida emocional
do sujeito em questão, e que este seja consciente disso; ii) ou que, em
todo caso, esses métodos não se oponham a ditos fins se não é para
favorecer outros que o próprio sujeito considere igualmente importantes. Em
qualquer dos dois casos, a vida emocional do intérprete dispõe, em última
instância, de uma espécie de "veto" sobre o pensamento metódico[4].
Não há nenhuma filosofia, dogmática ou metodologia jurídica, por
deslumbrante que esta seja, capaz de eliminar tal condicionamento. É assim,
queira-se ou não, simplesmente pelo dado mais trivial no que se refere ao
pensamento jurídico na prática: os agentes do direito não são menos pessoas
de carne e osso que qualquer outro ser humano. Sobre esta verdade, que não
pode ser mais elementar, passa simplesmente por encima a maneira corrente
com que as questões do discurso jurídico são propostas por parte de sua
doutrina profissional e/ou "oficial". Com efeito, esta se refere – ou, mais
habitualmente, nem sequer se refere – aos protagonistas do pensamento
jurídico, especialmente aos juízes, de uma maneira tal "como se estes
fossem pessoas distintas aos condutores de taxi, fabricantes ou
professores...".(Simon, 1985)
Em que pese toda a evidência contrária, o certo é que os filósofos e
teóricos do direito continuam a praticar distinções taxativas entre
racionalidade e emoção, reproduzindo a visão kantiana (anti-humeana) do
raciocínio prático jurídico e pretendendo reduzir toda atividade
interpretativa mediante a reflexão e a análise. Conter ou controlar o mundo
com o pensamento racional[5]. A prática jurídica não costuma tomar em
consideração as influências da vida emocional nos juízos de seus
protagonistas, especialmente no que se refere à tarefa hermenêutica que
levam a cabo. Sendo honesto, este tipo de postura já não tem absolutamente
nenhum sítio na cabeça de uma pessoa sensata.
Sejamos sérios e não nos entreguemos ao discurso hermenêutico ou
argumentativo imperante como o alcoólatra à bebida. Por quê? Pois pelo
simples fato de que a entranhada suposição da racionalidade jurídica é
equivocada, não somente porque os agentes reais do direito não são tão
racionais como se pretende (e tampouco funcionam como se o fossem), senão
também pelas circunstâncias de que: (i) simplifica ao extremo,
artificializa e distorce a análise dos múltiplos fatores e influências,
inatas e adquiridas, que condicionam nossas interpretações e nossas
decisões; e (ii) elude a evidência de que a razão não cria valores, "sino
que se configura en torno a ellos y los lleva hacia nuevas direcciones".
(S. Blackburn)
Como explica Enrique P. Haba, as teorias dominantes sobre a
hermenêutica e a argumentação jurídica pecam não tanto por boa parte de
quanto dizem, senão sobretudo pelo que não dizem. São "teorizaciones
pseudodescriptivas – basadas en unas «intellectualist assumptions» – con
respecto a los razonamientos jurídicos. Así ellas conducen a apartar la
vista de los decisivos ingredientes de anti-racionalidad, legitimando los
modus operandi tradicionales de los operadores del derecho positivo… Una
«cirugía estética» frente a los razonamientos judiciales normales y sus
consecuencias prácticas".

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Para que nos entendamos: uma das pretensões da racionalidade que
desenharam a lógica, a tecnologia e a economia hegemônica foi a de manter a
neutralidade axiológica. Todos esses intentos, fruto de um otimismo de
fundo no que respeita ao gênero humano, pretenderam dar a sensação de
exercer uma racionalidade isenta de valores, não comprometida com o mundo
axiológico, porque se creiam capazes de um saber plenamente objetivo,
axiologicamente neutral, desde o qual poder dirimir racionalmente, em seu
sentido logicista, os conflitos que surgem no mundo (supostamente)
subjetivo dos valores e os interesses (que no fundo se consideram
irracionais). No âmbito do direito, o conceito (explícito ou implícito)
fundamental e dominante de racionalidade é o de que, antes de tudo, os
juízes são essencialmente racionais e objetivos em seus juízos de valor
acerca da justiça da decisão. Examinam conscientemente e tão bem como podem
todos os fatores pertinentes ao caso e ponderam, sempre de forma neutra e
não emocional, o resultado provável que se segue a cada uma das eleições
potenciais. A opção preferida ("justa") é aquela que melhor se "ajusta" aos
critérios de racionalidade e objetividade por meio da qual foi gerada. A
ideia, em síntese, é a de um juiz ideal, plenamente consciente de suas
crenças, preferências e desejos que, ademais de dispor de um conhecimento
cabal de todas as circunstâncias do caso, pode (e deve) aplicar as normas
de forma racionalmente rigorosa [um modelo antropomórfico do "delírio
dworkiano" do ("ouriçado") juiz Hércules].
[2] Determinados aspectos do processo da emoção e do sentimento são
indispensáveis para a racionalidade. A suposta racionalidade pura não é
suficiente para a tomada de decisões e mais quando nos enfrentamos à
incerteza. A emoção e o sentimento não somente nos ajudam a predizer e
planificar, senão que a investigação neurológica demonstrou que há uma
conexão entre o cortical e o subcortical, entre o racional e o não
racional, e que a ponte entre os processos racionais e os não racionais se
encuentra nas emoções e os sentimentos: a razão humana depende de vários
sistemas (redes) cerebrais, que cooperam na constituição da razão, de tal
maneira que a emoção, o sentimento e a regulação biológica desempenham seu
papel na racionalidade humana; formam parte do edifício neural da razão.
Assim que não cabe mais manifestar nenhum gesto de surpresa constatar que o
pensamento depende das emoções, que o cérebro não separa a razão da emoção,
que não se pode tomar uma decisão sem emoção e que todas as decisões
supostamente lógicas ou racionais estão contaminadas por uma emoção. A
ideia de que a (plena, pura e absoluta) racionalidade é um dos ingredientes
da natureza humana é – redigo - um conto.
[3] Não olvidemos que a afamada «pré-compreensão» não passa de uma metáfora
ou um conceito esotérico para expressar o núcleo de uma das intuições
ínsitas em nossa arquitetura cognitiva: a conata capacidade para
interpretar («pré-compreender») os outros, para ler suas mentes, para
entendê-los e para entender a nós mesmos como seres intencionais, para ler
o que há baixo a superfície, antecipar os acontecimentos e dar sentido à
realidade que percebemos. Tal como esclarece Daniel Dennett, o cérebro
humano é uma «máquina de antecipação», e «criar futuro» não somente é o
mais importante que faz, senão que parece ser o traço definitório de nossa
humanidade: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral.
(R. Llinás)
[4] Pode-se dizer, inclusive, que a discricionariedade já não pode mais ser
tratada – à maneira de Hart e Dworkin – como uma consequência de alguma
propriedade dos materiais jurídicos (ser "determinados" ou
"indeterminados") ou dos casos (ser "fáceis" ou "difíceis"), senão que deve
ser tratada como um atributo inerradicável da tarefa cognitivo-
interpretativa (racional e emocional) que adotará cada juiz em busca de
alcançar algum resultado ao interpretar os materiais jurídicos (as fontes
jurídicas) ou resolver os casos.
[5] A ilusão de explicar e controlar tudo o que ocorre no mundo com o
pensamento (sem comprovar as hipótesis) é o primeiro feitiço descrito no
livro Cuentos que curan (2005), de Bernardo Ortín. De fato, o que enfocamos
momentaneamente com a consciência é somente um ponto no mapa e pensar que
podemos abarcar a realidade enfocando um único elemento é uma falsa ilusão.
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