Empirismo, Lógica e o Discurso sobre a Moral: Wittgenstein e sua relação com a tradição empirista de investigação da moral

June 6, 2017 | Autor: Marcelo Carvalho | Categoria: Wittgenstein, John Locke, David Hume, Empirismo británico
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EMPIRISMO, LÓGICA E O DISCURSO SOBRE A MORAL Wittgenstein e sua relação com a tradição empirista de investigação da moral

Marcelo Carvalho Universidade Federal de São Paulo

In: PAIVA, R. (Org.). Filosofemas: ética, arte, existência. Ed. UNIFESP, São Paulo, 2010.

“Man scheint nicht mehr sagen zu können als: Lebe glücklich!” 1 “Im Anfang war die Tat”2

1 Em novembro de 1929, de volta a Cambridge após seu longo afastamento da filosofia, e no início da revisão das concepções que apresentara no Tractatus, Wittgenstein apresentou uma conferência sobre ética na Heretics Society, um grupo de debates de Cambridge. O texto publicado sob o título “A Lecture on Ethics”, que teria sido preparado por Wittgenstein para essa conferência, é particularmente relevante para a compreensão de sua concepção de ética e, para além disso, de

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“Parece que não se pode dizer mais do que: Viva feliz”.Wittgenstein, Notebooks 1914-1916, p. 78. 2 “No Princípio era a ação”, Goethe, Faust, I (Werke, Bd. 3, S. 44), citado por Wittgenstein em Über Gewissheit [Sobre a Certeza], 402. 1

elementos centrais de sua filosofia3. Nele encontramos, por exemplo, em um trabalho ainda situado no universo de referência do Tractatus, uma descrição do procedimento utilizado para caracterizar o conceito de bem que já apresenta todos os elementos do que será chamado, nas Investigações, de “semelhança de família”4. De modo mais central, o texto retoma temas do Tractatus, a forma geral da proposição e os limites da linguagem, transitando com muita habilidade entre dizer e mostrar a ética e sua singularidade, jogando-se contra as grades da linguagem e tornando palpável seu limite. O caráter inefável e transcendental da ética (e, com ela, da estética), apresentado de maneira breve e oracular no Tractatus, é retomado e elaborado no contexto de uma exposição para um público amplo (característico dos Heretics, que recebera nessa mesma época figuras distintas como B. Russell e V. Woolf5) cujo objetivo expresso é se afastar tanto de uma leitura científica que exigiria “um curso de conferências e não uma comunicação de uma hora”, quanto de uma “popularização da ciência, isto é, uma conferência que pretendesse fazer vocês acreditarem que entendem algo que realmente não entendem”. A escolha da ética como tema, por seu “interesse geral”, se associa, então, ao objetivo de que a Lecture “ajude a esclarecer suas próprias idéias a respeito [do tema] (mesmo que vocês estejam em total desacordo com o que vou dizer)”. Ao final, a Lecture se apresenta 3

Wittgenstein, “A Lecture on Ethics”, in: Philosophical Occasions, p. 36 e segs.; “Conferência sobre Ética”, tradução de D. Dall’Agnol, in: Ética e Linguagem, p. 215 e segs. Wittgenstein debateu posteriormente esse trabalho com os membros do Círculo de Viena, no início de 1930; cf. Ludwig Wittgenstein and the Viena Circle, p. 92-93 e 115-116. 4 A apresentação do que seria a ética, na Lecture, é precedida pela seguinte explicação, próxima do procedimento das Investigações, ainda que marcada pela tentativa de identificar o que há de comum à enumeração (sobre isto, cf. D. Stern, Wittgenstein on Mind and Language, p. 110 e segs.): “para que vejam da forma mais clara possível o que considero o objeto da ética, vou apresentar antes várias expressões mais ou menos sinônimas, cada uma das quais poderia substituir a definição anterior e ao enumerá-las pretendo obter o mesmo tipo de efeito que Galton obteve quando colocou na mesma placa várias fotografias de diferentes rostos com o fim de obter a imagem dos traços típicos que todos eles compartilhavam. Mostrando essa fotografia coletiva, poderei fazer ver qual é o típico – digamos – rosto chinês. Deste modo, se vocês olharem através da série de sinônimos que vou apresentar, serão capazes de, espero, ver os trações característicos que todos têm em comum e que são característicos da Ética.” Cf. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen [Investigações Filosóficas], 64 e segs. 5 R. Monk, Wittgenstein, p. 253. 2

talvez mais próxima de um exercício de ascese do que de um trabalho teórico sobre o bem ou sobre a ética (o qual, aliás, mostraria ser impossível). O primeiro passo de Wittgenstein, que prepara o exercício posterior de explicitar o “característico mau uso da linguagem” envolvido em toda tentativa de apresentar um juízo verdadeiramente ético, consiste em propor uma caracterização do que entende por juízos éticos. Tratar-se-á de explicitar a singularidade que caracterizaria os juízos éticos “em sentido absoluto”, em oposição aos “juízos éticos relativos”. Ao contrário dos juízos relativos, os juízos absolutos não são “enunciados de fatos” e não são deriváveis ou redutíveis a “enunciados de fatos”. Essa distinção se sustenta, como veremos, sobre uma certa classificação dos juízos por meio da qual o Tractatus estabelece as diferenças entre as proposições empíricas e a ética, a lógica, a matemática. A Lecture de Wittgenstein se inicia, então, remetendo à concepção de ética proposta por Moore em seu Principia Ethica: “A Ética é a investigação sobre o que é bom”. Sobre isso, duas observações são fundamentais e explicitam a particularidade da leitura de Wittgenstein e seu contraste com a concepção do próprio Moore da qual parte. Em primeiro lugar, Wittgenstein não se proporá, em nenhum momento, a investigar “o que é bom”. Pelo contrário, sua investigação se concentra na explicitação dos diferentes “sentidos” em que são usadas as expressões éticas. Tratase, assim, de uma investigação do que talvez se possa chamar “estatuto lógico” dessas expressões, no sentido em que o Tractatus já as havia considerado, bem como da ontologia a ele associado6. Mais ainda, a conclusão principal dessa investigação diz respeito à impossibilidade de se pensar ou dizer proposições propriamente éticas. Trata-se, então, de estabelecer a impossibilidade da “investigação sobre o que é bom”, caso se entenda por isso a construção de uma teoria7, e, portanto, da própria 6

Esse não será o caso, entretanto, das observações reunidas nas Vermischte Bemerkungen [Cultura e Valor], por exemplo, como consideraremos adiante. 7 Cf. Ludwig Wittgenstein and the Viena Circle, p. 116 (dez/1930): “se me dissessem qualquer coisa que fosse uma teoria [sobre o que é “valoroso”], eu diria: não, não! Isto não me interessa. Ainda 3

ética no sentido estabelecido pela definição de Moore. Essa abordagem do debate sobre a ética, para além da novidade de sua condução por meio de uma investigação da essência e dos limites da linguagem, retoma um procedimento comum da tradição empirista que remete ao não-cognitivismo que caracteriza a ética humeana e, para além dele, em última instância, à distinção entre conhecimento sobre questões éticas e conhecimento empírico estabelecida no Ensaio sobre o Entendimento Humano de J. Locke. Em segundo lugar, ao oferecer, na seqüência do texto, uma enumeração de alternativas à definição proposta por Moore, Wittgenstein parece apresentar um deslocamento significativo em relação àquilo que se suporia a princípio caracterizar sua investigação, dada a definição inicial: Ao invés de dizer que “A Ética é a investigação sobre o que é bom”, poderia ter dito que a ética é a investigação sobre o valioso, ou sobre o que realmente importa, ou ainda, poderia ter dito que a Ética é a investigação sobre o significado da vida, ou daquilo que faz com que a vida mereça ser vivida, ou sobre a maneira correta de viver. Creio que se observarem todas essas frases, então terão uma idéia aproximada do que se ocupa a Ética. O deslocamento, presente em todos os elementos da enumeração, se faz explícito, a princípio, na identificação do bem ao “significado da vida” e, mais ainda, àquilo que “faz com que a vida mereça ser vivida”. O que se deve apontar aqui é a distância a que essa caracterização se situa de uma compreensão “teórica” ou cognitivista da ética: não se trata de compreender o significado de bem ou o que se imporia como dever moral, ou de estabelecer princípios éticos e valores que se impõem como necessários, mas de investigar o próprio significado da vida e o que nos prende a ela e nos move no sentido de vivê-la. O último elemento dessa enumeração de alternativas talvez seja o que menos se ajuste a uma concepção “teórica” da ética. Wittgenstein fala aqui de uma investigação “sobre a maneira correta de viver”, o que que a teoria fosse verdadeira, não me interessaria – isto não poderia ser a exata coisa que eu estava procurando”. 4

parece apontar para a investigação de uma prática, de uma forma de vida, e não de um conteúdo cognitivo. Novamente o texto aponta para uma concepção não cognitivista (ou extra-linguística) da ética, referindo-a ao contexto da ação e da prática. O esclarecimento dessa enumeração parece fazer-se de forma mais adequada quando aproximada de observações como a feita nos Notebooks e no Tractatus a respeito do “problema da vida”8. A compreensão dessas observações pressupõe, entretanto, que se percorra a Lecture de Wittgenstein e que, nesse percurso, se compreenda a relação entre a ética e a concepção de uma certa prática que se exclui ao domínio do que pode ser dito ou pensado.

2 O percurso proposto pela Lecture tem uma estrutura que carece de explicação. Se desconsiderarmos o parágrafo inicial do texto, que se apresenta como preâmbulo e apresentação, em pouco mais de duas páginas Wittgenstein apresenta os argumentos e a conclusão que caracterizariam sua investigação: Devo dizer agora que, se considerasse o que a ética deveria ser realmente se existisse uma tal ciência, este resultado parece-me bastante óbvio. Parece evidente que nada do que somos capazes de pensar ou de dizer poderia ser tal coisa. A questão que se coloca é compreender como se estrutura esse rápido movimento inicial e de que forma essa apresentação se relaciona com o restante da Lecture. É nesse momento inicial que encontramos a relação mais direta da Lecture com o Tractatus e seu conceito de “forma geral da proposição”. O desdobramento do texto

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Wittgenstein, Tractatus, 6.521: “Percebe-se que a solução do problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por essa razão que as pessoas para as quais, após longas dúvidas, o sentido da vida se fez claro não se tornaram capazes de dizer em que consiste esse sentido?)”. 5

se proporá um outro tipo de exercício, definido a partir do cenário inicialmente estabelecido pela análise – e que será esboçado adiante. A argumentação que conduz à afirmação da impossibilidade de proposições ou pensamentos sobre a ética, que seria o núcleo de sua concepção sobre o tema, se sustenta sobre a distinção dos dois sentidos das expressões éticas, um sentido “trivial ou relativo” e outro “[propriamente] ético ou absoluto”. A diferença não se situaria nas “expressões éticas”, mas no uso que se faz delas e que passa a ser investigado segundo um procedimento que antecipa os “jogos de linguagem” das Investigações. Após uma série de exemplos do que seriam juízos éticos, identificados por sua forma (a enunciação de um valor ou dever), Wittgenstein explicita o que entende por juízo ético relativo e apresenta um critério direto para sua identificação: nesses casos fala-se de algo “bom” significando a obtenção de um certo padrão ou objetivo predeterminado. Nesse sentido, na medida em que apresentariam apenas os meios para a realização de uma certa finalidade, esses juízos seriam, na verdade, “enunciados de fatos”. Assim, todos eles poderiam ser expressos “de tal forma que percam toda a aparência de juízo de valor”. Aquilo que parecia um juízo de valor não passaria, portanto, da descrição de um fato, como se revela após a análise de sua forma lógica. Assim, por exemplo, a afirmação de que alguém é um “bom pianista” poderia, em geral, ser substituída pela afirmação de que esta pessoa é capaz de “tocar peças de certo grau de dificuldade com certo grau de habilidade”. Proposições desse tipo compartilham, por detrás da aparência de proposições sobre valores, a forma geral da proposição apresentada no Tractatus, a de um fato contingente9. Um juízo ético absoluto, por outro lado, ou um juízo ético propriamente dito, diferentemente dos juízos relativos, não pode ser colocado na forma de uma 9

Segundo o Tractatus, a forma geral da proposição seria “as coisas estão assim” (4.5) ou “algo está assim e assim” (5.552); sobre a diferença entre a forma lógica aparente e a forma lógica real, Wittgenstein comenta: “o mérito de Russell é ter mostrado que a forma lógica aparente da proposição pode não ser sua forma lógica real” (Tractatus, 4.0031). 6

descrição de fato, na medida em que apresentaria algo de importante ou sublime, e não algo contingente. A Lecture nos remete às concepções do Tractatus ao afirmar que todos os fatos descritos, como todas as proposições, estariam, digamos, no mesmo nível. Não há proposições que, em qualquer sentido absoluto, sejam sublimes, importantes ou triviais. No mesmo sentido, o Tractatus afirmava, imediatamente antes de apresentar sua concepção da inefabilidade da ética, que Todas as proposições têm igual valor. O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor. E concluía: É por isso que tampouco pode haver proposições na ética. Proposições não podem exprimir nada de mais alto.10 Essa distinção leva Wittgenstein a sustentar, em termos surpreendentemente próximos, a distinção clássica apresentada por Hume no início do Livro III do Tratado da Natureza Humana, entre juízos relativos a fatos e juízos de valor: O que agora desejo sustentar é que, apesar de que se possa mostrar que todos os juízos de valor relativos são meros enunciados de fatos, nenhum enunciado de fato pode ser nem implicar um juízo de valor absoluto.11 O conceito de significação do Tractatus, em sua aplicação à análise das “proposições da ética”, se revela contrapartida e sustentáculo da reafirmação dessa distinção entre fatos e valores. Mais do que isso, a concepção de “juízo de valor” estabelecida por essa contraposição, os “juízos absolutos de valor”, definidos por sua exclusão

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Wittgenstein, Tractatus, 6.4, 6.41 e 6.42. Wittgenstein, Lecture; cf. Hume, Tratado da Natureza Humana (THN), p. 469, trecho em que se estabelece a cisão entre afirmações sobre fatos e valores (cf. também “parte 4”, abaixo).

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completa ao domínio dos fatos, é um pressuposto à afirmação da inefabilidade da ética, elemento principal da concepção de Wittgenstein sobre o tema. O resultado da análise apresentada na Lecture guarda, ao menos a princípio, uma grande proximidade com o Tractatus: na medida em que o discurso sobre a ética em sentido absoluto nem trataria de fatos, nem seria redutível a fatos, ela se situaria para além dos limites da linguagem. Nos termos do próprio Tractatus, “a ética não se deixa exprimir. A ética é transcendental”12. Encontramos, entretanto, a concepção de ética de Wittgenstein dialogando de maneira muito mais intensa e freqüente com a tradição empirista, e com Hume dentro dela, do que talvez se imaginasse a princípio13. Certamente a argumentação que sustenta essa distinção, a saber, a afirmação da contingência de todos os fatos e do igual valor de todas as proposições, que figuram fatos, é bastante distinta da concepção humeana. Entretanto, uma releitura da distinção entre entendimento e paixões que sustenta a concepção humeana de moral se revela mais esclarecedora sobre Wittgenstein do que se esperaria a princípio. Ao considerarmos a relação das posições de Wittgenstein com essa tradição podemos não apenas reconstruir de maneira mais clara sua concepção sobre a ética e linguagem, além de identificar alguns de seus importantes precursores – “ainda que não haja nesse caso nenhuma influência direta”14. Mais do que isso, nos deparamos com uma série de distinções e dicotomias que iluminam de uma maneira mais ampla concepções centrais mesmo dos textos mais tardios de Wittgenstein.

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Wittgenstein, Tractatus, 6.421. A referência imediata a que Wittgenstein remeteria seriam Russell e Moore; no caso de Moore, o Principia Ethica apresentaria uma concepção que segundo algumas leituras (não necessariamente corretas) sustenta a distinção humeana entre fatos e valores (em sua “recusa da falácia naturalista”), ainda que não se possa caracterizá-lo de não-cognitivista; há, ainda, certamente, uma proximidade grande entre a distinção apresentada por Wittgenstein (em particular sua referência à vontade) e a distinção de Schopenhauer entre vontade e representação. 14 D. Pears, Hume’s System, p. vii; Pears se refere, no contexto em que se situa esta citação, ao naturalismo de Hume, que seria precursor das concepções de Wittgenstein. 13

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Ainda que a caracterização da ética apresentada pelo Wittgenstein da Lecture, ecoando o Tractatus, de que não se pode dela falar com sentido, seja surpreendente e intrigante, e radicalmente inovadora na forma de sua abordagem do tema a partir da investigação da forma geral da proposição, ela se revela, em certa medida, situada em uma longa tradição de distinção entre moral e ciência empírica. Esse debate remonta às alternativas de abordagem do tema construídas pelo Ensaio de J. Locke, e que possibilitam a ele, nesse texto, como a Wittgenstein (no Tractatus e na Lecture) falar da ética sem nunca falar de ética, sem nunca entrar no debate sobre o bem, etc15. Remonta ainda à estruturação de uma concepção não-cognitivista de ética por Hume, a qual sustenta sua contraposição radical entre fatos e valores.

3 Locke conta que o projeto de escrever seu Ensaio sobre o Entendimento Humano se originou de uma conversa com amigos a respeito dos “princípios da moralidade e da religião revelada” sobre a possibilidade de uma ciência moral, de um sistema moral “necessário, eternamente verdadeiro”, comparável à matemática16. Não é difícil compreender o desafio colocado pela moral (e também pela matemática) a um empirista que, como Locke, afirma que todo o material de que a mente dispõe, e, portanto, todo o conhecimento, vem “em uma palavra, da experiência”, seja da experiência externa, dos objetos sensíveis, seja do que chama de experiência interna, das operações da mente.

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“Locke foi o primeiro filósofo a, de modo consistente, dar atenção à epistemologia da moral (...). Nenhum filósofo antes de Locke contrasta ou compara nossa habilidade para descobrir fatos sobre o mundo natural com nossa habilidade para descobrir as verdades da moral, considerando ambos de uma perspectiva epistemológica. Como explicou a seu crítico James Lowde, Locke não estava interessado em ‘estabelecer regras morais’ no Ensaio, mas antes em ‘mostrar a origem e natureza das idéias morais, e enumerar as regras de que os homens fazem uso em relações morais, se essas regras são verdadeiras ou falsas...’ (E II. xxviii.11: 354 note)”; C. Wilson, "The Moral Epistemology of Locke’s Essay", in The Cambridge Companion to Locke’s Essay, p. 381-382. 16 R. I. Aaron, John Locke, p. 256. 9

Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nosso entendimento com todos os materiais do pensamento.17 Se o conhecimento se estabelece sempre a partir da experiência, e se essa, por sua vez, é sempre experiência do particular, como se poderia, então, fundar a moral como um conhecimento “necessário, eternamente verdadeiro”, como Locke supõe que deve ser? Como poderia a investigação moral constituída a partir da observação do comportamento e dos sentimentos humanos se desdobrar em um discurso normativo e universalmente impositivo? Nos termos de Kant, que retoma esse debate e recusa a possibilidade de fundar a moral na experiência, como poderia uma perspectiva empirista garantir a “absoluta necessidade” do juízo moral, e evitar a conclusão de que a moral se resume a um certo conhecimento empírico, antropológico, dos hábitos e costumes de cada povo? A identificação da experiência como fonte de conhecimento se desdobraria, ainda no vocabulário de Kant, na redução de toda a moral a uma “antropologia prática”, capaz de identificar regras e preceitos, algumas delas até mesmo universalmente presentes, mas que não se poderia, segundo seu critério, identificar à moral. Essa “antropologia prática” que se funda na experiência não teria validade absoluta e a priori e não se imporia universalmente como obrigação18. A tentativa de estabelecer a moral a partir da experiência não resultaria, então, senão em um outro bastardo da imaginação, de caráter antropológico, que não se deveria confundir com a verdadeira moralidade. O próprio Ensaio observa que a opinião comum dos homens sobre a moral e sobre Deus resulta, em geral, da limitação do contexto em que ocorre. Ao recusar o caráter inato da idéia de Deus, Locke se refere aos povos “completamente sem idéias sobre Deus e princípios de moralidade”. Sua ignorância resultaria de não

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Locke, Ensaio, II, i, 2. Kant, Die Metaphysik der Sitten [Metafísica da Moral], “Vorrede” (Kant-W Bd. 8, S. 322). 10

usarem de modo adequado suas faculdades e de se contentarem com as "opiniões, maneiras e coisas de seu país como as encontraram, sem procurar nada além”19. Houvesse você ou eu nascido na Baía de Soldania, possivelmente os nossos pensamentos e noções não teriam ultrapassado os mais brutos dos Hottentots que lá habitam. E houvesse o rei da Virgínia, Apochancana, sido educado na Inglaterra, ele teria sido talvez tão considerado divino, e tão bom matemático, quanto qualquer um nela; a diferença entre ele e um inglês mais elaborado consiste apenas em que o exercício de suas faculdades foi limitado às formas, modos, e noções de seu próprio país, e nunca dirigida a qualquer outro, ou a outras investigações. E se ele não tinha nenhuma idéia de um Deus, era só porque não seguiu os pensamentos que o teriam levado a ela. Essa passagem do texto é clara na indicação da insuficiência do conhecimento empírico em assuntos morais e no condicionamento da opinião dos homens sobre o tema pelo contexto em que se coloca. O conhecimento, na medida em que é derivado da experiência, é limitado, mas Locke o considera mais do que suficiente em diversos domínios. Não é esse, entretanto, o caso na construção da ciência moral. Tentar fundá-la na experiência resultaria, segundo o próprio Locke, em negar-lhe qualquer validade. O risco de se reduzir a moral à psicologia ou à antropologia, e, assim, eliminar da regra moral seu caráter normativo e a própria possibilidade de se falar de prescrição, já está presente desde o início do debate empirista sobre a moral. Tratase de evitar que a concepção empirista sobre o conhecimento se desdobre, em última instância, no absoluto relativismo e no esvaziamento de todo valor para além do simples hábito ou costume de cada grupo social. Isso é explicitamente recusado por Locke. Como se poderia, então, garantir, a partir de uma concepção empirista, a universalidade e a necessidade que se supõe caber ao discurso sobre o dever, o justo e o bem? Como evitar que os juízos de valor sejam tão frágeis e circunstanciais quanto o contexto em que são afirmados? Como impedir que a moral se apresente,

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Locke, Ensaio, I, iii, 12. 11

como diz Wittgenstein, como um conjunto de proposições tão contingentes quanto a descrição de fatos da experiência? A resposta a que chega o Ensaio é, paradoxalmente, de que não só a ciência moral é possível, mas que pode ser tão certa quanto a matemática. A idéia de um Ser supremo, de infinito poder, bondade e sabedoria, cuja obra somos nós, e do qual dependemos, como ainda a idéia de nós mesmos, como criaturas racionais e inteligentes, por serem tão claras em nós, ofereceriam, suponho, se bem consideradas e pesquisadas, tais fundamentos para nosso dever e regras para nossa ação que poderiam situar a moral entre as ciências capazes de demonstração. A respeito disso não duvido que as proposições evidentes, por si mesmas, de conseqüências necessárias, tão incontestáveis como aquelas em matemáticas, as medidas do certo e errado devem ser estabelecidas por qualquer um que se aplicar com a mesma indiferença e atenção para uma como para a outra dessas ciências.20 Essa concepção de Locke se estabelece a partir de uma estratégia que marcará o debate posterior, não só no âmbito do empirismo. Diferentemente da tradição racionalista, que diferenciam a moral das demais ciências pelos princípios a partir dos quais se estabelece e pela posição que ocupa na cadeia de deduções21, Locke identifica uma diferença de natureza entre a moral e a ciência empírica. O Ensaio contrapõe, de um lado, o conhecimento intuitivo, da identidade e diferença, associado diretamente à percepção, o conhecimento da associação de idéias, constituído a partir da observação e da identificação de conexões constantes, e, ainda, o conhecimento da existência real, todos eles dependentes da experiência interna ou externa, e de outro, o conhecimento das relações de idéias na matemática e na moral, que não envolveria qualquer referência aos objetos da 20

Locke, Ensaio, IV, iii, 18 (itálicos acrescentados). Assim, para Descartes, por exemplo, a moral é apenas a última, e, portanto, a mais complexa das investigações, mas se insere ainda no mesmo terreno de todas as outras; a caracterização do conhecimento (la vrai philosophie) se faz, em uma famosa passagem dos Príncipes, nos seguintes termos: “toute la philosophie est comme un arbre, dont les racines sont la métaphysique, le tronc est la physique, et les branches qui sortent de ce tronc sont toutes les autres sciences, qui se réduisent à trois principales, à savoir la médecine, la mécanique et la morale ; j’entends la plus haute et la plus parfaite morale, qui présupposant une entière connaissance des autres sciences, est le dernier degré de la sagesse”; Descartes, Les Príncipes de la Philosophie, “Préface”, p. 566.

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experiência, que, em última instância, apesar de construídos a partir de material oferecido pela experiência, não trata dela, Desde que eles [os discursos sobre moral] são acerca de idéias na mente, que não é nenhuma delas falsa ou desproporcionada, não tendo eles quaisquer seres externos para os arquétipos aos quais se referem e lhes podem corresponder.22 Locke explicita por meio de um exemplo a autonomia em relação à experiência que atribui ao conhecimento sobre a moral, na medida em que produz na mente seus próprios arquétipos. É muito mais fácil para os homens construir em suas mentes uma idéia que deve ser o padrão daquilo a que darão o nome justiça, e dar essa denominação a todas as ações que concordarem com o padrão assim estabelecido, do que, depois de ter visto Aristides, construir uma idéia que deve em tudo ser exatamente como ele, que é como ele é, independente da idéia que os homens tenham dele. Para um, não é necessário senão saber a combinação de idéias que são colocadas juntas em suas próprias mentes; para os outros, eles devem investigar em toda a natureza características abstrusas e ocultas, e diversas qualidades, da coisa existente fora deles.23 A referência à relação entre Aristides e a idéia de Aristides, em que há a necessidade de ajustar a idéia à experiência, pretende evidenciar o que há de particular no caso dos conceitos morais e da matemática: não haveria para Locke qualquer objeto ao qual devem essas idéias se adequar. Elas são seu próprio critério: liberdade, justiça, bem, são construções que se dão unicamente na mente, e que, portanto, podem ser claras e distintas, e das quais se pode derivar conclusões para além da possibilidade de duvidar. A particularidade desse domínio de conhecimento é justamente que, ao contrario dos demais, em seu caso as idéias às quais se referem não derivam de objetos realmente existentes, senão em partes separadas ou indistintas, “não existem em nenhum lugar juntas”:

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Locke, Ensaio, III, xi, 17. Locke, Ensaio, III, xi, 17. 13

É a mente sozinha que as coleciona e lhes dá a união de uma idéia.24 Assim, em certo sentido, a moral, como a matemática, não existem no mundo, não representam nada realmente existente nele. Por isso a explicitação do significado desses conceitos (da moral e da matemática) se dará pela “enumeração” das idéias simples que foram unidas pela mente, às quais se refere o termo, em que os sentidos são irrelevantes (diferente do que ocorre no caso dos nomes de idéias sensíveis ou de substâncias)25. Locke não é claro quanto ao que compreende ser esse processo de “construção na mente” dos conceitos morais, nem quanto a porque conceitos assim construídos poderiam ser relevantes no contexto de nossa experiência. Mas é claro que é por serem uma construção que não carece de adequação a nada de exterior, que se apresente como objeto da experiência, e, portanto, à possibilidade de serem plenamente conhecidos em sua essência, e de suas relações serem desveladas, que se deve a afirmação de que a moral, como a matemática, seria passível de demonstração e de conhecimento certo. Estou inclinado a pensar que a moral é capaz de demonstração, tanto quanto as matemáticas, pois a essência real e exata das coisas que as palavras morais significam pode ser perfeitamente conhecida, e assim a congruência e incongruência das próprias coisas serem descobertas certamente, em que consiste o perfeito conhecimento.26 Segundo seu exemplo, a proposição "Onde não há propriedade não há injustiça" é “tão certa quanto qualquer demonstração em Euclides” na medida em que derivaria dos conceitos de propriedade ("um direito a algo”) e de injustiça (“a invasão ou violação 24

Locke, Ensaio, II, xi, 18. Locke, Ensaio, II, xi, 18. 26 Locke, Ensaio, III, xi, 16; o texto continua: “nor let any one object, that the names of substances are often to be made use of in morality, as well as those of modes, from which will arise obscurity. For, as to substances, when concerned in moral discourses, their diverse natures are not so much inquired into as supposed: v.g. when we say that man is subject to law, we mean nothing by man but a corporeal rational creature: what the real essence or other qualities of that creature are in this case is no way considered”. 25

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desse direito”), que são por nós estabelecidas e às quais “anexamos” os nomes aqui citados – como seria o caso da geometria euclidiana (e, portanto, "posso saber com tanta certeza que esta proposição é verdadeira como que um triângulo tem três ângulos iguais a dois retos”). Ou, ainda, do conceito de governo (“o estabelecimento da sociedade com base em certas regras ou leis que exigem conformidade a elas”) e do conceito de “liberdade absoluta” (“cada um fazer o que for de seu agrado”) deriva a verdade necessária de que "nenhum governo permite liberdade absoluta." Sou tão capaz de estar seguro acerca da verdade desta proposição como de qualquer uma nas matemáticas.27 O Ensaio nos oferece, portanto, uma demarcação do terreno do conhecimento no qual a moral é situada à parte do conhecimento empírico, contrapondo-se moral e matemática à investigação que trata dos objetos da experiência (ainda que todas as idéias tenham origem na experiência). Dessa forma, a posição de Locke se desdobra, curiosamente, em um racionalismo extremado no que se refere à investigação moral: ela não só pode ser certa e absoluta, ao contrário da incerteza que caracteriza o conhecimento em geral, mais ainda, esse conhecimento se estabelece segundo “o mesmo método” da matemática, como esclarecimento conceitual inteiramente independente da experiência.28 Dada a exigência de clareza na delimitação do conceito e a precisão na identificação de sua relação com os demais conceitos envolvidos, o esclarecimento conceitual passa a ocupar lugar central, como principal pressuposto na constituição da moral e de sua estruturação como modelo dedutivo.29

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Locke, Ensaio, IV, iii, 18. “Estou confidante que, se os homens com o mesmo método, e com a mesma indiferença, investigassem a verdade moral como o fazem com a da matemática, descobririam que eles têm entre si uma conexão mais forte, e uma conseqüência mais necessária de nossas idéias claras e distintas, e que se aproximam bastante da demonstração perfeita do que habitualmente se tem imaginado.”; Locke, Ensaio, IV, iii, 20. 29 Cf. Locke, Ensaio, II, xi, 17. 28

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A concepção de Locke parece estranha, seja quando enunciada no contexto contemporâneo, seja quando considerada da perspectiva das convulsões da Inglaterra do século XVII, em meio às quais foi concebido. Entretanto, para além das dificuldades em sua aceitação e de uma longa história de críticas, já desde os leitores seus contemporâneos30, o projeto de uma demarcação dos estatutos e métodos característicos da ciência moral (bem como da matemática), diferenciandoa do conhecimento empírico, o qual se desdobraria, para ele, na possibilidade de conhecimento exato na matemática e na moral, diferente da irreparável incerteza quanto ao conhecimento das causas ou das essências, se revela duradouro e bastante influente, não só na tradição empirista. De modo mais específico, a delimitação de um terreno particular para a moral, a partir da qual se estabelece sua tentativa de resposta à pergunta por uma ciência dos valores, a exclusão da matemática e da ética do domínio da experiência e a conseqüente particularidade do estatuto do conhecimento sobre esses temas, é em geral, mantida, mesmo por seus críticos.

4 No início do Livro III do Tratado da Natureza Humana31 Hume apresenta objeões que podem ser dirigidas em particular à concepção de Locke sobre a moral. Ele se refere aos filósofos que concebem a ética como ciência demonstrativa, segundo os quais a virtude não passa de uma conformidade com a razão; que existe uma eterna adequação e inadequação das coisas, e esta é a mesma para todos os seres racionais que as consideram; que os critérios imutáveis do que é certo e do que é errado impõe uma obrigação, não apenas às criaturas humanas, mas também à própria Divindade – todos esses sistemas concordam que a moralidade, como a verdade, é discernida meramente por meio das idéias, de sua justaposição e comparação. 32

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Cf. e.g. J. B. Schneewind, “Locke's moral philosophy”, in: The Cambridge Companion to Locke. Hume, THN, III, I, i. 32 Hume, THN, III, I, i, 4. 31

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A desproporção entre esse racionalismo extremado33 e a concepção empirista não parecia aceitável, e não se ajustava ao naturalimo de Hume, levando-o a elaborar uma outra alternativa a respeito da singularidade da moral e de sua relação com o conhecimento em geral. Frente à impossibilidade de que a “razão sozinha” estabeleça a distinção entre “entre o bem e o mal morais”, trata-se de identificar outros princípios que concorrem e nos possibilitam “fazer essa distinção”34. Sua recusa de que a razão sozinha possa fundar a distinção entre “o bem e o mal morais” se apresenta como um resultado da investigação sobre o entendimento no Livro I do Tratado e na Investigação acerca do Entendimento Humano. Resulta ainda, nesse contexto, da distinção entre os vários “objetos” da mente, a qual, por sua vez, se desdobra na caracterização de diferentes formas de conhecimento ou em diferentes relações com as percepções da mente. Hume apresenta uma divisão de todas as percepções da mente em duas classes ou espécies, as quais se distinguem pelos seus diferentes graus de força e vivacidade. As menos fortes ou vivazes são comumente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie (...) chamemo-las impressões, usando a palavra num sentido algo diferente do usual.35 O termo “impressão” se refere, portanto, às percepções “mais vivas”, que temos quando ouvimos, vemos, amamos, desejamos.36 Nossa relação com as impressões é passiva e imediata. Não cabe nesse caso falar de conhecimento, na medida em que o conhecimento é uma relação, o que não ocorre no caso das impressões.

33

“Certos filósofos propagaram persistentemente a opinião de que a moralidade é passível de demonstração. E embora jamais ninguém tenha sido capaz de dar um único passo nessas demonstrações, dá-se por suposto que essa ciência pode alcançar uma certeza igual à da geometria ou da álgebra”; Hume, THN, III, I, i, 18. 34 Hume, THN, III, I, i, 4. 35 Hume, EHU, II. 36 Hume, EHU, II. 17

A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade e a falsidade consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de idéias [real relations of ideas], seja quanto à existência e aos fatos reais [real existence and matter of fact]. Portanto, aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão.37 Já as percepções da mente, sobre as quais cabe falar de conhecimento, Hume as divide entre relações de idéias e questões de fato. As proposições que apresentam relações de idéias poderiam ser descobertas “pela simples operação do pensamento, sem dependerem do que possa existir em qualquer parte do universo”. Ainda que jamais existisse um círculo ou um triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre a sua certeza e evidência. Caracteriza-se, portanto, a partir dessa classificação das diferentes operações da mente (ou dos “objetos da razão humana”), um tipo particular de conhecimento que inclui a geometria, a álgebra e a aritmética, e, em uma palavra, toda afirmação que seja intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre essas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre esses números.38 Essa caracterização da matemática como verdadeira na medida em que se refere a relações de idéias e não a fatos do mundo ou a questões de existência real não se situa muito distante daquela proposta por Locke, exceto por não se situar junto a ela, como um conhecimento demonstrativo, também a ética. O domínio das questões de fato, por outro lado, aquele em que se encontra o conhecimento empírico, tem uma natureza bastante distinta. Não se pode nesses casos falar de contradição e demonstração. Seu contrário é sempre possível e pode

37 38

Hume, THN, III, I, i, 9. Hume, EHU, IV, I. 18

ser concebido pelo intelecto “com a mesma facilidade e clareza, como perfeitamente conforme à realidade”. 39 A moral não é situada por Hume em nenhum dos terrenos demarcados pela investigação dos objetos da razão: não seria nem relação de idéias como a matemática, como suporia Locke, nem questão de fatos ou objeto de uma ciência empírica (o que, como vimos, a aproximaria da antropologia empírica). Para compreendê-la é necessário explicitar que para além da dicotomia comumente identificada aqui, entre o conhecimento dessas diferentes operações, que se desdobra no caráter certo e demonstrativo da matemática, e na impossibilidade de demonstração no caso de todo conhecimento sobre questões de fato, há um terceiro termo a ser considerado. Da distinção anterior, entre impressões e idéias, e da limitação das operações da razão às idéias, Hume deriva (ou explicita) uma cisão radical entre a razão e a prática, entre pensamento e paixão. "Um princípio ativo nunca pode ser fundado em um princípio inativo” 40. A razão, sendo “inativa”, não teria nenhuma influência sobre nossas paixões ou ações. Assim, na medida em que os preceitos morais “têm uma influência sobre as ações e os afetos”, segue-se que não pode ser derivada da razão, porque a razão sozinha, como já provamos, nunca poderia ter tal influência. A moral desperta paixões, e produz ou impede ações. A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse aspecto. As regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão.41 A singularidade da moral e sua separação do domínio do conhecimento empírico, bem como da matemática, resulta, portanto, de sua associação às paixões, de seu caráter ativo, e, assim, de sua situação no terreno das impressões. Hume formula o problema nos seguintes termos: na medida em que todas as percepções da mente se 39

“Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível e não implica mais contradição do que a assertiva contrária, de que o sol nascerá. Seria vão, por isso, tentar demonstrar a sua falsidade. Se isso fosse demonstrativamente falso, implicaria uma contradição e jamais poderia ser claramente concebido pelo intelecto”; Hume, EHU, IV, I. 40 Hume, THN, III, I, i, 7. 41 Hume, THN, III, I, i, 6. 19

distinguem em impressões e idéias, toda sua investigação da moral parte da resposta à questão sobre se é por meio de nossa idéias ou impressões que distinguimos entre o vício e a virtude, e declaramos que uma ação é condenável ou louvável?42 Hume se contrapõe à caracterização da moral por Locke como uma ciência demonstrativa como a matemática por isso implicar que a moral se situaria entre os objetos da razão. Como vimos, a razão para Hume é a “descoberta da verdade ou da falsidade”. Verdade e falsidade, por sua vez, “consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de idéias, seja quanto à existência e aos fatos reais”, de forma que aquilo que não é suscetível desse acordo ou desacordo “será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão”43. Esse seria o caso da moral, e o terreno particular em que Hume o situa. Ora, é evidente que nossas paixões, volições e ações são incapazes de tal acordo ou desacordo, já que são fatos e realidades originais, completos em si mesmos, e não implicam nenhuma referência a outras paixões, volições e ações. É impossível portanto, declará-las verdadeiras ou falsas, contrárias ou conformes à razão.44 As paixões e ações não se constituem como objeto da razão e, portanto, não há sentido em se falar de sua verdade ou falsidade. Na medida em que a moral tem por objetivo prevenir ou produzir ação, ela não poderia se situar entre os objetos da razão.

42

Hume, THN, III, I, i, 3. O argumento se construirá por redução ao absurdo; cf. Hume, THN, III, I, i, 18: “Se o pensamento e o entendimento sozinhos fossem capazes de fixar os limites do certo e do errado, a qualidade de virtuoso ou vicioso teria de estar em algumas relações de objetos, ou então ser uma questão de fato, descoberta por nosso raciocínio”. 44 Hume, THN, III, I, i, 9; o texto segue (§10): “Esse argumento é duplamente vantajoso para nosso propósito presente. Pois prova diretamente que as ações não extraem seu mérito de uma conformidade com a razão, nem seu caráter censurável de uma contrariedade em relação a ela; e prova a mesma verdade mais indiretamente, ao nos mostrar que, como a razão nunca pode impedir ou produzir imediatamente uma ação, contradizendo-a ou aprovando-a, tampouco pode ser a fonte da distinção entre o bem e o mal morais, os quais constatamos que têm tal influência”. 43

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As distinções morais, portanto, não são frutos da razão. A razão é totalmente inativa, e nunca poderia ser a fonte de um princípio ativo como a consciência ou sentido moral. 45 O que significa essa exclusão da moral do terreno sobre o qual se estendem as operações da razão? A moral passa a ser associada, no terreno das impressões, a um “sentido moral”46, situado no terreno dos “sentimentos”, no sujeito e não no objeto (e, nesse sentido, a moral não estaria no mundo). Mas haverá alguma dificuldade em se provar que o vício e a virtude não são questões de fato, cuja existência possamos inferir pela razão? Tomemos qualquer ação reconhecidamente viciosa: o homicídio voluntário, por exemplo. Examinemos sob todos os pontos de vista e vejamos se podemos encontrar o fato ou a existência real que chamamos de vício. Como quer que a tomemos, encontraremos somente certas paixões, motivos, volições e pensamentos.Não há nenhuma outra questão de fato neste caso. O vício escapa-nos por completo, enquanto consideramos o objeto. Não encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra essa ação. Aqui há um fato, mas ele é objeto de sentimento [feeling], não de razão. Está em nós, não no objeto.47 A moral concebida nesse contexto empirista, como sentimento situado no sujeito, é aproximada da descrição das “qualidades secundárias” e funda uma certa “revolução copernicana” proposta por Hume na investigação sobre a moral que o leva ao reencontro da perspectiva utilitarista esboçada por Locke. O vício e a virtude, portanto, podem ser comparados a sons, cores, calor e frio, os quais, segundo a filosofia moderna, não são qualidades nos objetos, mas percepções na mente.48 Trata-se, então, de caracterizar um “sentido moral”49, ou, em última instância, uma forma moral de perceber, completamente excluído do terreno da razão e da 45

Hume, THN, III, I, i, 10. Hume, THN, III, II. 47 Hume, THN, III, I, i, 26. 48 Hume, THN, III, I, i, 26. 49 Hume, seção II do Livro III do Tratado, intitulada “As distinções morais são derivadas de um sentido moral”, §1: “Assim, o curso de nossa argumentação leva-nos a concluir que, uma vez que 46

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representação. À moral é atribuído um terreno próprio, contraposto ao domínio das representações e da ciência empírica, mas não mais compartilhado pela matemática. A caracterização humeana da moral funda uma cisão completa e radical entre conhecimento e ação. A famosa passagem do Tratado que estabelece a “navalha de Hume”, recusando a possibilidade de que se derivem obrigações ou deveres morais (“what ought to be”) a partir da descrição de fatos (“what is”) encerra o capítulo dedicado a situar a moral em relação às paixões, ao conhecimento e à razão. Esse texto se apresenta como uma expressão sintética da cisão entre conhecimento e ação estabelecida nas páginas anteriores do Tratado: Não posso deixar de acrescentar a esses raciocínios uma observação que talvez se mostre de alguma importância. Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendome ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância, posi como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, essa precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parecesse inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-la aos leitores. Estou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre o vício e a virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão.50

o vício e a virtude não pode ser descoberto unicamente pela razão ou comparação de idéias, deve ser por meio de alguma impressão ou sentimento por eles ocasionados que somos capazes de estabelecer a diferença entre os dois. Nossas decisões a respeito da retidão e da depravação morais são evidentemente percepções; e, como todas as percepções são ou impressões ou idéias, a exclusão de umas é argumento convincente em favor das outras. A moralidade, portanto, é mais propriamente sentida que julgada, embora essa sensação ou sentimento seja em geral tão brando e suave que tendemos a confundi-lo com uma idéia, de acordo com nosso costume corrente de considerar tudo que é muito semelhante como se fosse uma só coisa”. 50 Hume, THN, III, I, i, 27. 22

Não parece se tratar aqui especificamente sobre a forma lógica das proposições ou sobre os pressupostos de uma dedução de juízos de valor, mas de indicar que a própria distinção entre impressões e idéias é colocada em questão nessa tentativa de derivação: idéias implicariam impressões (sentimentos e vontades), invertendo a ordem entre elas situada na base da filosofia humeana. A impossibilidade de derivar um dever a partir de uma descrição de fatos é uma forma de apresentar a impossibilidade de derivar a regra moral da razão, ou da exclusão absoluta entre o que é objeto de conhecimento (relações de idéias ou questões de fatos) e a regra moral, que se situa no domínio das impressões (paixões, volições, ações), no sujeito. Para Hume a moral se exclui ao terreno do conhecimento possível – como se excluirá para Wittgenstein (no Tractatus e na Lecture) do terreno do discurso significativo. A moral se apresenta para ambos não como algo no mundo, ou mesmo como algo que se possa conhecer, mas como uma maneira de ver o mundo, ainda que isto seja compreendido em sentido psicológico pelo primeiro e em sentido metafísico pelo segundo. A singularidade da moral é tal que ela se distingue radicalmente de tudo o que pode ser conhecimento. A Lecture de Wittgenstein não se situa muito distante dessa topologia que situa a ética em uma perspectiva radicalmente não-cognitivista.

5 Hume abre o Livro III do Tratado reafirmando a base de sua epistemologia, que todas as percepções da mente são impressões ou idéias, e, a partir dela, estabelece o percurso de sua investigação sobre a moral Como as percepções se reduzem a dois tipos, impressões e idéias, essa distinção era uma questão com que abriremos a presente investigação a respeito da moral: será por meio de nossa idéias ou impressões que distinguimos entre o vício e a virtude, e declaramos que ima ação é condenável ou louvável?

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O Tratado se apresenta antes de tudo como uma investigação sobre a moral51. Sua estrutura, entretanto, explicita uma abordagem em que a investigação epistemológica precede a abordagem dos temas morais52. O esclarecimento das operações do entendimento (sobre as idéias) e das impressões da mente (sensações e paixões53) precede a caracterização da moral na medida em que esta é apresentada a partir de sua relação com essas “percepções da mente”: recusa-se que se situe entre os objetos da razão e as operações do entendimento, concebendo-a como um “sentido moral” que excita paixões e produz ou previne ações54. Esse percurso, que apresenta a moral não apenas como uma investigação mais complexa, situada após as demais ciências, mas que demarca terrenos distintos nos quais se situariam a ciência empírica, a matemática e a moral, e que, portanto, apresenta uma “epistemologia da moral” como algo que deve preceder a investigação sobre temas específicos da moral, deriva diretamente do Ensaio de Locke. É na análise da matemática e da ciência moral elaborada no Ensaio que encontramos a filosofia apresentada como um “indicador de lugar” de cada ciência, em particular da moral – uma concepção da filosofia que encontraria em Kant sua expressão mais explícita55, e que se reconstrói, em novos termos e por novos meios, no Tractatus e na Lecture. Ainda que a concepção de moral como “ciência tão exata quanto a matemática” tenha sido fortemente criticada, e que o tenha sido inclusive por Hume, o projeto de explicitar a diferença de natureza entre ciência empírica, matemática, ética, etc., sustentado em uma análise do entendimento humano, se reconstrói em diferenciações equivalentes, mas que substituem a análise do entendimento pela 51

Já desde seu título: Tratado da Natureza Humana – Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. 52 Assim, o Livro I é dedicado à análise do Entendimento, o Livro II às Paixões e apenas no Livro III se apresenta como tema a Moral. 53 Hume, THN, II, I, i, 1-2. 54 Hume, THN, III, I, i, 5-6. 55 J. Habermas, “A filosofia como indicador de lugar e como intérprete”, in Consciência Moral e Agir Comunicativo, p. 18-20. 24

análise da natureza humana, da razão ou dos juízos. No caso do Tractatus e da Lecture de Wittgenstein a investigação sobre o entendimento dá lugar à “crítica da linguagem”, à análise lógica da linguagem56.

6 O Tractatus apresenta a proposição como figuração de um fato. Este, por sua vez, se apresenta como uma relação entre objetos, os quais, na proposição, são significados por nomes. A proposição seria, assim, a figuração de uma relação entre objetos. Aquilo que não é uma relação entre objetos, um objeto simples, por exemplo, não pode ser figurado por uma proposição e, portanto, não pode ser dito, situando-se para além dos limites da linguagem. De maneira aparentemente equivalente a Hume, que caracteriza o conhecimento como uma relação (e, portanto, necessariamente entre idéias), Wittgenstein apresenta a proposição como complexa e articulada, figuração de uma relação entre objetos. Como para Hume aquilo que não é uma relação se exclui à possibilidade de ser conhecido, para Wittgenstein o que é simples, ou que não é relação entre objetos, se exclui à possibilidade de ser dito. A simetria parece plausível, assim como a proximidade entre seu desdobramento aqui considerado: um fosso intransponível que separa fatos e valores. Como vimos, Hume justifica a impossibilidade de se situar a ética entre os objetos ou em suas relações, explicitando que ela não se encontraria no mundo, mas sim no sujeito57. De forma similar, Wittgenstein, já nos Notebooks, afirmava que a ética não se encontrava no domínio dos fatos ou da experiência58:

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Wittgenstein, Tractatus, 4.0031; ainda no Tractatus, lemos: “A filosofia não é uma das ciências naturais. (A palavra “filosofia” deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciências naturais). / A filosofia limita o território disputável da ciência natural”. (4.111 e 4.113) 57 Hume, THN, III, I, i, 10. 58 “Como seja o mundo é completamente indiferente para o Altíssimo. Deus não se revela no mundo. / Os fatos fazem todos parte apenas do problema, não da solução”; Wittgenstein, Tractatus, 6.432 e 6.4321. 25

Se estou certo, então não é suficiente para o julgamento ético que um mundo seja dado. / Então o mundo em si próprio não é nem bom nem mau. A contrapartida dessa afirmação de que os valores éticos não se encontram entre os fatos do mundo é a concepção da ética a partir da subjetividade, mas não de um sujeito empírico ou psicológico: de um sujeito transcendental. Como o sujeito não é uma parte do mundo, mas um pressuposto de sua existência, assim bem e mau que são predicados do sujeito não são propriedades no mundo.59 Este sujeito, “apresentado” a partir de sua exclusão do mundo, como perspectiva e unidade desse mundo, nos remete à ética, ela própria apresentada como forma de ver o mundo. O que é a marca objetiva da vida feliz e harmoniosa? Aqui é novamente claro que não pode haver tal marca, que possa ser descrita. / Essa marca não pode ser física, mas apenas metafísica, transcendental. / O que é bom e mau é essencialmente o Eu, não o mundo.60 Na medida em que o Tractatus apresenta a ética como uma forma de ver o mundo, é recusado a ela qualquer conteúdo cognitivo. Se a boa ou má volição altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os fatos; não o que pode ser expresso pela linguagem. Em suma, o mundo deve então, com isso, tornar-se a rigor um outro mundo. Deve, por assim dizer, minguar ou crescer como um todo. O mundo do feliz é um mundo diferente do mundo do infeliz.61 Essa concepção da ética como forma de ver, como característica do próprio mundo da experiência, e não de algo que se dá nele ou que dele faz parte, um tema que se tornará central em seu trabalho posterior, ajuda a compreender as caracterizações

59

Wittgenstein, Notebooks 1914-1916, p. 79. Wittgenstein, Notebooks 1914-1916, p. 78-79. 61 Wittgenstein, Tractatus, 6.43; sobre esse tema, encontramos nos Notebooks 1914-1916, p. 78: “O mundo do feliz é um mundo feliz. / Mas isso é realmente em certo sentido profundamente misterioso! É claro que a ética não pode ser expressa!”. 60

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da ética que Wittgenstein apresenta na sequência de descrições propostas na Lecture, e que culminam em sua identificação a “the right way of living”. A ética se caracteriza não como um discurso ou conjunto de afirmações, mas como uma perspectiva e uma prática, uma forma de ver o mundo e viver.62 A solução do problema da vida é visto no desaparecimento do problema. (Não é esta a razão pela qual aqueles que consideram que após um longo período de dúvida o sentido da vida se tornou claro para eles sejam incapazes de dizer o que constituía esse sentido?) / Há, de fato, as coisas que não podem ser postas em palavras. Elas se fazem manifestas. Eles são o que é místico.63 A ética se exclui ao domínio dos fatos, do espaço e do tempo, do que pode ser dito, do que é verdadeiro ou falso, na medida em que é valor, ação, aquilo que não se põe em palavras mas se faz manifesto, explicitando o fosso identificado por Wittgenstein entre esses dois terrenos, dos fatos e dos valores, ou do discurso e da ação. Um balanço inicial desse percurso poderia ser a identificação da proximidade da concepção apresentada na Lecture, derivada do Tractatus, da tradição empirista, e em particular de Hume, ainda que não se possa falar de uma relação de influência direta. Ao menos da perspectiva da investigação da relação da ética com o conhecimento empírico e a matemática, o Tractatus e a Lecture on Ethics ainda se situam no contexto dos debates e das escolhas presentes no Ensaio e no Tratado, com a particularidade que a abordagem lógico-linguística agrega ao tratamento do tema. A cisão humeana entre conhecimento e ação, transposta para a análise da linguagem e da significação, parece se manter presente com todo o vigor na filosofia de Wittgenstein, tanto no Tractatus quanto nas Investigações Filosóficas.64

62

“A solução do enigma da vida no espaço e do tempo está fora do espaço e do tempo. (Não são problemas da ciência natural o que se trata de solucionar.)”; Wittgenstein, Tractatus, 6.4312. 63 Wittgenstein, Tractatus, 6.521 e 6.522. 64 De passagem, cumpre indicar que a compreensão da importância da cisão entre fatos e ação aqui identificada na base da Lecture se encontra, para além dessa posição específica e sob outras formas, nos textos posteriores de Wittgenstein. Este parece ser o caso do debate sobre seguir uma regra, nas Investigações, e da concepção de uma prática que deve “cuidar de si”, apresentada em Über Gewissheit [Sobre a Certeza]. 27

7 Mas no caso da concepção do Tratado de Hume, a recusa do cognitivismo e a impossibilidade de que se conceba que os valores se situem nos próprios objetos se desdobra na suposição de um “sentido moral” e na caracterização do valor como uma “impressão”, associada ao prazer e à dor, e de natureza inevitavelmente psicológica. Wittgenstein, entretanto, recusa vigorosamente o psicologismo65. A construção de sua investigação a partir da análise da forma geral da proposição e da natureza da linguagem não se apresenta apenas como uma tradução para esse novo terreno daquilo que já havia sido apresentado pela análise humeana ou kantiana do conhecimento. A forma lógica da investigação traz consigo uma natureza bastante diversa. A análise do conhecimento encontrada em Locke e Hume é recebida como um psicologismo incapaz de nos possibilitar uma visão adequada do mundo, do sujeito, da ciência, da matemática, da lógica, da ética. A diferença entre a apresentação da ética por Wittgenstein e aquela encontrada na filosofia anterior explicita a distância a que se situam. Como vimos, Hume concebe um sentido moral e, nesses termos, apresenta a ética como algo que se encontra no sujeito, como uma paixão, um sentimento, e, assim, entre as impressões. O sujeito aqui, entretanto, é concebido em termos inevitavelmente psicológicos, comparado-se o senso moral, inclusive, às “qualidades secundárias”. Exemplo disso é a análise proposta por Hume do vício que estaria presente em um homicídio voluntário. Como vimos, seu texto pretende estabelecer que o vício encontra-se não no fato, mas na forma de percebê-lo, no sentimento da pessoa que o avalia. Examinemos [o homicídio] sob todos os pontos de vista e vejamos se podemos encontrar o fato ou a existência real que chamamos de vício. Como quer que a tomemos, encontraremos somente certas paixões, motivos, volições e 65

Cf. Wittgenstein, Tractatus, 4.1121, 5.641 e 6.423. 28

pensamentos. Não há nenhuma outra questão de fato neste caso. O vício escapa-nos por completo, enquanto consideramos o objeto. Não encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra essa ação. Aqui há um fato, mas ele é objeto de sentimento [feeling], não de razão. Está em nós, não no objeto.66 Para Wittgenstein, entretanto, essa caracterização cometeria o equívoco de não reconhecer na descrição do sentimento “em nosso próprio íntimo”, ainda, uma descrição de fato, e, portanto, impossível de ser apresentada como verdadeiramente ética. Talvez agora alguém de vocês esteja de acordo e invoque as palavras de Hamlet: “Nada é bom ou mal, mas é o pensamento que o faz assim”. Mas isso poderia levar novamente a um mal-entendido. O que Hamlet diz parece implicar que o bom ou o mau, embora não sejam qualidades do mundo externo a nós, são atributos de nossos estados mentais. Mas o que quero dizer é que um estado mental entendido como um fato descritível não é bom ou mau no sentido ético.67 A Lecture retoma o mesmo exemplo usado pro Hume, o assassínio, mas apresenta uma análise bastante distinta, recusando que a ética seja confundida com os sentimentos ou processos psicológicos do sujeito empírico, eles próprios situados entre os fatos do mundo. Por exemplo, em nosso livro do mundo lemos a descrição de um assassinato com todos os detalhes físicos e psicológicos e a mera descrição nada conterá que possamos chamar de uma proposição Ética. O assassinato estará exatamente no mesmo nível que qualquer outro acontecimento como, por exemplo, a queda de uma pedra. Certamente a leitura dessa descrição poderá causar-nos dor ou raiva ou qualquer outra emoção, ou poderíamos ler acerca da dor ou da raiva que esse assassino suscitou em outras pessoas que tiveram conhecimento dele, mas seriam simplesmente fatos, fatos e fatos e não Ética. Se a análise de Wittgenstein parece próxima da que encontramos no Tratado da Natureza Humana ao afirmar a distinção entre valores e fatos, e recusar que um fato 66 67

Hume, THN, III, I, i, 26. Wittggenstein, “A Lecture on Ethics”, in: Philosophical Occasions, p. 39-40. 29

qualquer seja dotado de valor moral, ele se distancia da herança humeana ao recusar que esse valor seja identificado com o sentimento subjetivo suscitado por qualquer fato. A ética para Wittgenstein é “transcendental”, “mística”, é inefável, impossível de ser descrita por não ser o sentimento ou a visão de mundo de um sujeito psicológico, mas a própria “forma perceber” esse mundo, no pleno sentido kantiano que o termo “transcendental” pode ter. Não se trata aqui de analisar o conjunto da Lecture de Wittgenstein. Mas deve-se notar que, após a exposição do caráter inefável da ética, que retoma aqueles do Tractatus, ela se propõe a mostrar o equívoco envolvido em qualquer tentativa de falar de ética. A partir disso, conclui não apenas por sua inefabilidade, mas, ao mesmo tempo, evidencia nossa tendência a continuarmos a nos jogar contra os limites da linguagem, a falar de experiências como “assombrar-se ante a existência do mundo” ou de “sentir-se seguro aconteça o que acontecer”, formas singulares de “ver” o mundo que explicitam nossa “experiência” da ética. Ao nos jogarmos, sem sucesso, contra as grades da linguagem mostramos, “a partir de dentro”, isso que estaria para além dos limites da linguagem. Trata-se de compreender que a linguagem se limita à figuração de fato, mas também que há algo para além dos fatos, para além dos limites do que pode ser apresentado na linguagem, e que se trata não apenas de algo a mostrar. Trata-se, antes, de aprender, sem palavras, a viver bem. Se o Tractatus é composto de duas partes e a segunda delas, a mais importante, é aquela que não foi escrita, que seu tema é a ética, e que nele o ético é delimitado de dentro68, como diz Wittgenstein, então se faz legítima a afirmação da semelhança entre seu projeto e o de Kant: 68

“O livro não lhe será estranho, dado que sua temática é ética. Eu pretendia incluir algumas palavras a respeito no prefácio que não foram incluídas, mas que transcrevo em seguida porque talvez possam lhe fornecer uma chave. Eu pretendia escrever o seguinte: minha obra consiste em duas partes: a que está aqui e tudo aquilo que eu não escrevi. E a parte mais importante é precisamente a segunda. Meu livro delimita a ética, por assim dizer, de dentro, e estou 30

Um pouco como Kant dizia: “tive que limitar o conhecimento para dar lugar à fé”. Wittgenstein diria: “tive de delimitar o campo do dizível para dar lugar à ética, à arte e à religião, isto é, à vida”.69 A ética não se apresenta como um corpo teórico-discursivo, mas como formas de agir e de viver, da qual se exclui qualquer conteúdo significativo ou cognitivo. Já desde os Notebooks a concepção da linguagem como figuração de fatos não impediria a presença de afirmações a respeito da vida e da felicidade: A única vida que é feliz é a vida que pode renunciar às amenidades do mundo.70 A uma análise sistemática da moral, como a apresentada por Hume no desdobramento do Livro III do Tratado, Wittgenstein contrapõe não apenas a impossibilidade do discurso sobre a ética, mas também uma série de observações fragmentárias, explicitações de certa forma de ver o mundo71, do que se poderia mostrar como uma ética, coletadas por G. H. Von Wright em Cultura & Valor, a “minima moralia” wittgensteiniana. Nesse livro onde encontramos uma coleção de fragmentos, narrativas, comentários de situações e obras, por meio dos quais se mostra um esboço de perspectiva da vida e do mundo, e por meio das quais as ações são revistas e influenciadas. Não se deve subestimar o lugar desses fragmentos na produção de Wittgenstein. Dentre eles encontra-se, por exemplo, a expressão de seu desconforto com o

convencido de que esta é a única forma rigorosa de traçar esses limites. Em resumo, penso que tudo aquilo sobre o que muitos hoje estão discorrendo a esmo eu defini em meu livro simplesmente calando-me a respeito. Portanto, a menos que muito me engane, o livro terá muitas coisas a dizer que você próprio gostaria de dizer, embora possa não se dar conta que estão ditas nele. Por ora, recomendaria que você lesse o prefácio e a conclusão, pois expressam seu intento de forma mais imediata.”; carta de Wittgenstein a L. von Ficker de 1919, apud R. Monk, Wittgenstein, p. 170171 (tradução revista). 69 Bento Prado Jr., “Wittgenstein: Cultura e Valor”, in Erro, Ilusão, Loucura, p. 127. 70 Wittgenstein, Notebooks 1914-1916, p. 81. 71 “A verdadeira realização de um Copérnico ou de um Darwin não foi a descoberta de uma verdadeira teoria, mas de um fértil novo ponto de vista.” Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen [Cultura e Valor], p. 18. 31

mundo que lhe é contemporâneo e com a concepção da ciência como uma perspectiva privilegiada para sua interpretação72. É indiferente para mim se o cientista ocidental típico compreende ou aprecia o meu trabalho, pois de qualquer modo ele não entende o espírito em que eu escrevo. Nossa civilização é caracterizada pela palavra progresso. Progresso é a sua forma, não é uma de suas propriedades que ela faça progresso. Tipicamente ele constrói. Sua atividade é construir uma estrutura mais e mais complicada. E mesmo clareza é apenas um meio para este fim e não um fim em si mesmo. Para mim, pelo contrário clareza, transparência, é um fim em si mesmo. / Eu não estou interessado em erguer um edifício, mas em ter as fundações de possíveis edifícios transparentes ante mim. / Assim, viso algo diferente dos cientistas e os meus pensamentos se movem de forma diferente do deles.73 Distante da psicologia empirista, Wittgenstein nos apresenta a ética como, de um lado, certa perspectiva e forma (metafísica) de ver o mundo, e de outro, como uma prática. Mais que um senso: uma forma de agir.

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Bento Prado Jr., em “Wittgenstein: Cultura e Valor” (in: Erro, Ilusão, Loucura), apresenta uma proposta de leitura das Vermischte Bemerkungen que explicita essa perspectiva do texto de Wittgenstein. 73 Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen [Cultura e Valor], p. 7. 32

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