Empregada doméstica: Modos de usar. A PEC das Domésticas como acontecimento no jornalismo de revista

May 23, 2017 | Autor: Natália Otto | Categoria: Gender Studies, Media and Cultural Studies, Journalism, Work and Labour, Social Class
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

NATÁLIA BITTENCOURT OTTO

EMPREGADA DOMÉSTICA: MODOS DE USAR A PEC DAS DOMÉSTICAS COMO ACONTECIMENTO NO JORNALISMO DE REVISTA

Porto Alegre 2013 1

NATÁLIA BITTENCOURT OTTO

EMPREGADA DOMÉSTICA: MODOS DE USAR A PEC DAS DOMÉSTICAS COMO ACONTECIMENTO NO JORNALISMO DE REVISTA

Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de graduação em Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientadora: Dra. Ana Carolina Damboriarena Escosteguy

Porto Alegre 2013 2

NATÁLIA BITTENCOURT OTTO

EMPREGADA DOMÉSTICA: MODOS DE USAR A PEC DAS DOMÉSTICAS COMO ACONTECIMENTO NO JORNALISMO DE REVISTA

Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de graduação em Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em: ___ de _____________ de ______.

BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________ Prof. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind __________________________________________________ Prof. Dr. Juremir Machado da Silva __________________________________________________ Prof. Dra. Ana Carolina Damboriarena Escosteguy

PORTO ALEGRE 2013 3

AGRADECIMENTOS

Gratidão: Aos meus pais, Clarice e Emílio, por todo o amor e apoio incondicional. À professora Ana Carolina Escosteguy, pela orientação cuidadosa. Às redações do Sul21 e do Tabaré, pelo carinho, a experiência e o jornalismo. Ao Eduardo, porque somos mucho más que dos. À Carolina, Débora, Gabrielle, João e Júlia: crescer ao lado de vocês foi o maior aprendizado que a faculdade me deu. À Lívia e à Marina: we are a lighthouse. we leave, and we stay. A todos os amigos que pacificam e curam e contam histórias e amam, que me inspiram todos os dias: “O mundo não precisa de mais pessoas bem sucedidas. O mundo precisa, desesperadamente, de mais pessoas que pacifiquem, que curem, que reconstruam o que está quebrado, que contem histórias, que sejam amantes de todos os tipos e formas. Precisa de pessoas que saibam viver bem em suas comunidades. Precisa de pessoas que tenham a coragem moral para continuar na luta para transformar o mundo em um lugar habitável e humano. E essas qualidades pouco têm a ver com sucesso, no modo em que nossa cultura o definiu.” David Orr

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hire her. for your children. for your kitchen. for your clothes. for your house. give her a room with an unmade twin bed and a dresser. an alarm clock. set her hours past her own children’s bed time. shorten her name. change her name. talk through her. call her a part of the family. without ever asking if she wants you this close to her skin. do not be surprised the day you accidently look in her eyes and her spirit pulls your heart out through your mouth. -- the maid nayyira waheed 5

RESUMO

Este trabalho tem como objeto de estudo a cobertura da aprovação da emenda constitucional 72/2013, a “PEC das Domésticas”, que garantiu os direitos trabalhistas às empregadas domésticas, nas revistas semanais Época e Veja. O corpus textual selecionado são duas reportagens de capa, uma de cada veículo, ambas publicadas em abril de 2013. Parte-se do argumento de Jessé Souza (2003, 2009) de que a desigualdade social brasileira é legitimada devido à manutenção de sua invisibilidade. Assim, com enfoque nesta problemática, analisa-se como o contexto cultural e socioeconomico do Brasil incide sobre a segunda vida do acontecimento, ou seja, a construção de sentido acerca deste evento através de sua transformação em discurso jornalístico (FRANÇA, 2012), bem como busca-se compreender de que maneira esta cobertura contribui para a cegueira brasileira quanto a sua própria disparidade social. Conclui-se que a aprovação da PEC foi constituída como um evento que diz respeito às classes dominantes. Nas coberturas, os patrões, e não as domésticas, foram tidos como os protagonistas deste acontecimento. Através do apagamento da empregada doméstica de suas narrativas sobre a categoria, as revistas contribuem para a manutenção da invisibilidade destas trabalhadoras e, assim, para a legitimação da desigualdade social.

PALAVRAS-CHAVE:

Jornalismo

de

Revista,

Teoria

do

Acontecimento,

Desigualdade Social, Classe Social

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ABSTRACT

This paper analyses the media coverage of the passing of the Constitutional Amendment 72/2013 (the “Maid’s Amendment”) in Brazil, which guarantees labour rights to domestic workers, in news magazines Época and Veja. Two cover stories are analyzed, one from each magazine, both published in April 2013. The paper takes in consideration Jessé Souza’s (2003, 2009) argument that Brazilian social inequality is maintained by its invisibility. Focusing on this issue, this study investigates how Brazil’s cultural and socioeconomic context impact the construction of the second life of this event – the ideas that are articulated through the event’s transformation in discourse (FRANÇA, 2012). Therefore, it aims to understand the ways in which media coverage contributes to the maintenance of such invisibility, and, therefore, to the legitimization of social inequality. It is concluded that the passing of the amendment was portrayed as an event that concerns mostly the upper classes. In these magazines’ coverage, the bosses are the protagonists of the event, not the maids who gained labour rights. Through the erasure of the maid’s experience in their narratives about the “Maid’s Amendment”, these magazines contribute to the preservation of these workers’ unrecognition and, therefore, to the invisibility of social inequality.

KEY WORDS: Magazine Journalism, Class, Social Inequality, Event Theory

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10 2

DA

CASA

GRANDE

À

PEC

DAS

DOMÉSTICAS:

CONJUNTURA

SOCIOECONÔMICA E CULTURAL DO SERVIÇO DOMÉSTICO ........................... 14 2.1 A RALÉ ESTRUTURAL: A CLASSE QUE É SÓ CORPO ................................... 15 2.2 CAMA ADENTRO E PORTA A FORA: TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS DO SERVIÇO DOMÉSTICO ........................................................................................... 19 2.3 ENTRE ELAS: A MULHER-PATROA E A MULHER-EMPREGADA ................... 24 3

DECIDINDO

“O

QUE

IMPORTA

NO

MUNDO”:

JORNALISMO

E

ACONTECIMENTO ................................................................................................... 28 3.1 O ACONTECIMENTO ......................................................................................... 28 3.2 AS DUAS VIDAS DO ACONTECIMENTO .......................................................... 31 3.3 O ACONTECIMENTO E OS CRITÉRIOS DE NOTICIABILIDADE ..................... 33 3.4 O DISPOSITIVO DE AUTORIDADE: JORNALISMO DE REVISTA E A LEGITIMAÇÃO DA VERDADE.................................................................................. 34 3.5 DOMINADOS E DOMINANTES: O EU E O OUTRO NA MÍDIA ......................... 36 4 ANÁLISE DO CORPUS ......................................................................................... 41 4.1 DESCRIÇÃO DOS VEÍCULOS ........................................................................... 41 4.1.1 Revista Veja .................................................................................................... 42 4.1.2 Revista Época ................................................................................................. 44 4.2 ANÁLISE DO CORPUS TEXTUAL ..................................................................... 45 3.2.1. Robô, espanador e pano: a classe que é corpo ......................................... 46 4.2.2 Entre a negação do direito e a compra dos sonhos: exploração e intimidade no espaço público e privado ............................................................... 48 4.2.3 Quem consegue viver sem empregada? Dependência, conflito e afeto entre patroa e doméstica ........................................................................................ 53 4.2.4 Tirando a poeira: a PEC das Domésticas como ruptura ............................. 57 4.2.5 Oito contra um: quem tem o poder de falar ................................................. 58 4.2.6 Estado, família e doméstica: Mesmidade e outridade na cobertura da PEC .................................................................................................................................. 65 4.2.6.1 Família de quem? A totalidade do Mesmo em Veja ...................................... 66 4.2.6.2. Serviço pela metade: a culpabilização do Estado em Época ....................... 73 8

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 79 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 86 ANEXO A - Capa da revista Veja...............................................................................89 ANEXO B - Índice da revista Veja..............................................................................90 ANEXO C - Fotografia de abertura da reportagem de Veja, p. 74-75.......................91 ANEXO D - Fotografia de Yasmin Brunet em Veja, p. 76..........................................92 ANEXO E - Fotografia da doméstica Roberta em Veja, p. 80....................................93 ANEXO F - Fotografia da patroa Sônia Nascimento em Veja, p. 81..........................94 ANEXO G - Capa da revista Época...........................................................................95 ANEXO H - Fotografia de abertura da reportagem de Época, p. 64-65....................96 ANEXO I - Fotografia de Lídice e Conceição em Época, p. 66-67............................97 ANEXO J - Fotografia da patroa Paula e dos empregados Maria Lúcia e Adenilson, em Época, p. 69.........................................................................................................98 ANEXO L - Fotografia do casal Rodrigo e Claudia Dias em Época, p. 71................99

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1 INTRODUÇÃO

Das amas que amamentaram os “sinhozinhos” nas casas grandes de ontem às moças uniformizadas que passeiam com os filhos dos patrões pelos shoppings de luxo das grandes cidades de hoje, o trabalho doméstico – e a dependência dele por parte das elites – é um dos elementos constituintes da cultura brasileira. Na figura empregada doméstica encontram-se diversas estruturas que compõe a sociedade brasileira, em sua diversidade e brutalidade: a herança escravocrata, o patriarcado, a divisão sexual do trabalho, a luta de classes, a exploração da mão-deobra e a invisibilidade social, para nomear algumas. À medida que os direitos trabalhistas avançaram no Brasil, a categoria dos empregados domésticos – composta, em sua maioria, de mulheres1 – conquistou direitos, embora muito mais lentamente do que as demais categorias. Em 2013, uma lei aprovada no Senado Federal tornou-se um marco na história destas trabalhadoras: a Proposta de Emenda Constitucional 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, garante a essas profissionais os mesmos direitos de demais categorias. Este trabalho pretende analisar a cobertura da aprovação da emenda na mídia semanal impressa através do estudo de caso das reportagens de capa da Veja e Época a respeito dessa temática. Segundo Robert Yin, um estudo de caso é uma investigação de um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, “especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos” (2001, p. 32). Assim, optou-se pelo estudo de caso pois, se fará, neste trabalho, uma análise textual da cobertura da PEC (sendo este o “fenômeno”) com enfoque na problemática da desigualdade social (o “contexto na vida real” de Yin). Os dois veículos foram selecionados por serem, das quatro maiores revistas semanais de informações gerais do Brasil (são estas, na ordem decrescente de tiragem: Veja, Época, IstoÉ e Carta Capital)2, as únicas a noticiarem a aprovação da PEC com reportagens de capa. Ademais, optou-se pela análise das revistas 1

Em 2009, 94,5% dos empregados domésticos eram mulheres. Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego, 2003-2009. 2 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EDITORES DE REVISTAS. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2013.

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semanais impressas justamente pela posição de credibilidade e autoridade que estas ocupam perante o público no Brasil (BENETTI, FINATTO e STORCH, 2011). Dadas as diversas intersecções culturais e sociais que se encontram na figura da empregada doméstica, este trabalho busca analisar de que maneira o contexto socioeconômico e cultural do Brasil incide sobre a produção de sentido feita pela mídia acerca do trabalho doméstico, da classe trabalhadora e das classes dominantes. Embora muitos autores da área da comunicação tenham deixado de utilizar a classe social como categoria analítica fundamental da sociedade, substituindo-a por debates como os referentes às relações de consumo (RONSINI, 2012), acredita-se que a classe permanece sendo um fator relevante para se pensar a realidade brasileira, principalmente no que tange as questões referentes ao trabalho doméstico. Afinal, segundo Jessé Souza, a luta de classes contemporânea é, sobretudo, “a luta pelo poder de definir seus próprios termos”, isto é, de definir os esquemas classificatórios irreflexivos através dos quais o comportamento de todas as demais classes sociais é orientado (SOUZA, 2003, p. 58). E a mídia é um dos espaços sociais no qual termos são definidos e esquemas classificatórios são reproduzidos. O referencial teórico utilizado será dividido em duas partes: um conjunto de autores das áreas da sociologia, da antropologia e da história serão revisados para a descrição de um contexto socioeconômico e cultural do qual se partirá para analisar as reportagens. Um outro conjunto de obras, essas da área da comunicação, constituirão a definição de termos acerca da mídia e, especificamente, do jornalismo de revista semanal, que também será utilizado como base para a elaboração dos problemas de pesquisa. Dentre os autores que estabelecem o contexto referente às classes sociais no Brasil, destaca-se a obra de Jessé Souza (2003, 2009) como aquela que será a principal referência neste trabalho. Souza (2009) argumenta que a profunda desigualdade social do Brasil se mantém e se reproduz cotidianamente, através da linguagem, de símbolos, de gestos e discursos, e encontra sua força em sua própria invisibilidade. A cegueira coletiva das classes abastadas brasileiras, que não enxergam que existe uma classe de indivíduos despossuídos (os quais Souza chama, como forma de provocação, de “ralé”, terminologia que será utilizada

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também neste trabalho) cuja única fonte de renda é a venda de sua própria energia muscular à baixo preço para a elite, é tida pelo autor como a maior tragédia do país. Tendo a perspectiva de Souza de que há uma constante manutenção da invisibilidade da desigualdade social como premissa, formulou-se um dos problemas de pesquisa deste trabalho: de que forma a cobertura da PEC das Domésticas da Veja e da Época contribui para a legitimação da desigualdade social e a manutenção de sua invisibilidade? O aporte teórico para pensar a construção de sentido na mídia impressa será, principalmente, a perspectiva de Louis Quéré a respeito do acontecimento, abordado pela revisão de Vera França (2012). A teoria do acontecimento estabelece que eventos têm uma vida dupla: sua primeira vida é sua dimensão existencial, é o modo como o acontecimento é sentido diretamente pelos indivíduos. A segunda vida, a qual interessa investigar neste trabalho, é a transformação do acontecimento em discurso e em símbolo – um processo através do qual este evento pode ter seu significado inicial totalmente transfigurado. Partindo dessa perspectiva, formulou-se o outro problema de pesquisa que orienta este trabalho: de que modo se constrói a segunda vida da PEC das Domésticas como acontecimento na cobertura da Veja e da Época? Para responder a essas perguntas, serão utilizados os procedimentos metodológicos de revisão documental (das revistas selecionadas) e de revisão bibliográfica. Através da bibliografia acerca do contexto social brasileiro e dos modos em que sentidos são produzidos na mídia, perguntas específicas ao corpus textual serão formuladas. Estas perguntas nortearão a análise textual das reportagens e, a partir das conclusões obtidas, serão respondidos os problemas de pesquisa. Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro, será apresentado o contexto social, cultural e econômico no qual está inserida a empregada doméstica. Em um primeiro segmento, será exposta a teoria social de Jessé Souza (2003, 2009) a respeito das classes sociais no Brasil. Em seguida, uma revisão bibliográfica apresentará o histórico do serviço doméstico brasileiro, desde a escravidão até a aprovação da PEC, expondo também sua relação com a divisão sexual do trabalho e com o patriarcalismo, bem como o seu espaço de tensão entre o público e o privado (BRITES, 2008; BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000; CAMPOY, 2012; DAMATTA, 1987; SILVEIRA, 2011). Ao final do capítulo, será abordada a relação 12

entre patroa e empregada, uma dinâmica marcada pelo gênero e pela classe social (ALMEIDA, 1982; BROWN, 1992). O segundo capítulo é dedicado às teorias da comunicação. Em um primeiro momento, expõe-se a teoria do acontecimento de Quéré, sob as perspectivas de França (2012) e Prado (2013). A seguir, aborda-se a importância dos critérios de noticiabilidade para a construção de sentido nos meios de comunicação (SILVA, 2005), o “dispositivo de autoridade” conferido às revistas impressas, que legitima seu conteúdo como verdadeiro (BENETTI, FINATTO e STORCH, 2011), e a construção de mesmidade e outridade, ou seja, de posições discursivas com as quais o leitor deve ou não se identificar (ROCHA, 2007; BAIRON e PRADO, 2007) No terceiro e último capítulo, faz-se um breve histórico das revistas Veja e Época, bem como de suas editoras, Abril e Globo. Em seguida, segue-se a análise do corpus textual selecionado, na qual são respondidas questões específicas sobre a instrumentalização do corpo da empregada doméstica; a discussão estabelecida na cobertura acerca do espaço público e do espaço privado; a questão da dependência entre patroa e empregada; o caráter de ruptura da PEC das Domésticas; o espaço de fala dado aos membros das classes abastadas e às empregadas domésticas; e a construção de um “Mesmo” e um “Outro” nas coberturas. Por fim, conclui-se que o acontecimento da PEC das Domésticas teve sua segunda vida construída como um evento que diz respeito às classes dominantes, e não às empregadas domésticas. Em ambas as coberturas, os veículos constroem narrativas cujos protagonistas são os patrões. São eles que usufruem dos possíveis “benefícios” da lei (em Veja, demonstrado como uma possibilidade de mudança na divisão sexual do trabalho nos lares de classes médias e altas) e que sofrem com seus “malefícios” (o aumento dos “gastos” com os empregados). Assim, a cobertura contribui para a legitimação da desigualdade social ao mantê-la invisível, através do foco nas experiências vividas apenas por patrões; da naturalização da profissão da empregada doméstica como necessidade da “família brasileira”, e não vista como um luxo ou uma categoria nascida de um contexto social e cultural específico; e da absolvição da responsabilidade das classes dominantes pelos anos de exploração do serviço doméstico sem as devidas garantias trabalhistas.

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DA

CASA

GRANDE

À

PEC

DAS

DOMÉSTICAS:

CONJUNTURA

SOCIOECONÔMICA E CULTURAL DO SERVIÇO DOMÉSTICO

Em Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura, o antropólogo Clifford Geertz, citando Max Weber, escreve que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (1978). Geertz conceitua cultura, então, como essa teia de significados. Apesar de a cultura ser objeto próprio da antropologia, cita-se o conceito de Geertz, pois neste trabalho se fará uma análise da produção jornalística sobre a PEC das Domésticas através do contexto socioeconômico e cultural do Brasil, visto que o jornalismo, como qualquer outra instituição moderna, não vive desamarrado das teias as quais o autor se refere. Para compreender o sentido produzido pela mídia impressa sobre o tema escolhido, portanto, é necessário entender o contexto que circunda a figura da empregada doméstica. É o propõe o primeiro capítulo deste trabalho. Em um primeiro segmento, será exposto o contexto social e econômico no qual a doméstica brasileira se insere. Serão respondidas as perguntas: A que classe social pertence à empregada doméstica? Como a existência da doméstica se insere em um contexto de desigualdade social? De que maneira se legitima a desigualdade social da qual a precariedade do serviço doméstico é produto? A obra do sociólogo contemporâneo Jessé Souza (2003, 2009) será utilizada para elucidar essas questões. Na segunda parte deste capítulo, será abordada a história do trabalho doméstico em países periféricos como o Brasil, sua relação com a escravidão, com a divisão sexual do trabalho e com o patriarcalismo (BRITES, 2008; BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000; CAMPOY, 2012; SILVEIRA, 2011). No terceiro e último segmento, se apresentarão reflexões acerca das relações de poder constituídas entre as duas mulheres que dividem o espaço doméstico: a patroa e a empregada (ALMEIDA, 1982, BROWN, 1992). Busca-se, com este capítulo, estabelecer as bases do conhecimento necessário para analisar as reportagens selecionadas, para que melhor se possa compreender de que modo a mídia participa na construção desta “teia de significados” que amarra os entendimentos culturais sobre a empregada doméstica. 14

2.1 A RALÉ ESTRUTURAL: A CLASSE QUE É SÓ CORPO

O debate sobre classe social é amplo e próprio da sociologia. Em meio à diversidade de correntes de pensamento sobre essa categoria analítica, pode-se destacar dois principais polos para os quais o debate converge: o marxismo e o liberalismo. No entanto, nenhuma das duas perspectivas, por si só, parece adequada para pensar a figura da empregada doméstica e a conjuntura social na qual ela está inserida. Assim, neste trabalho, opta-se por utilizar o pensamento de Jessé Souza (2003, 2009) sobre o sistema de classes brasileiro. Souza pensa o Brasil contemporâneo através da obra de Pierre Bourdieu e foca-se no tema da invisibilidade da desigualdade social e da sua legitimação. Sua perspectiva interessa a este trabalho porque o autor pensa a classe social para além de fatores materiais como renda, relações de produção e acesso a direitos civis. Para Souza (2009), as classes são marcadas pelo acúmulo de capital econômico e de capital cultural – sendo este último a soma da herança imaterial transmitida de geração para geração no ambiente familiar, que faz com que pessoas nascidas em determinadas classes tenham chances de competir no mercado produtivo e outras não, e do conhecimento técnico adquirido nas instituições educacionais. Em uma pesquisa da área da comunicação que pretende pensar a produção de sentido sobre um grupo social que pertence a uma classe específica, é importante enxergar o conflito entre as classes não apenas como uma realidade material, mas como um fenômeno social que se estabelece no cotidiano, através da linguagem, de gestos e de símbolos invisíveis. Souza foi escolhido como referencial teórico também porque a reflexão acerca da figura da empregada doméstica, objeto deste trabalho, não se esgota no conhecimento de sua renda e de seus direitos. Para compreendê-la em sua plenitude, é necessário pensar nas teias de significados, nos “consensos inarticulados” (SOUZA, 2009, p. 420) que a envolvem e legitimam sua existência. Neste segmento, será exposta a compreensão de Souza sobre a desigualdade brasileira e os motivos de sua invisibilidade. Para o autor, a histórica cegueira brasileira para a desigualdade do país é o que legitima o que ele chama de “o maior conflito social brasileiro”: o abandono social e político da classe de 15

indivíduos chamada por ele, provocativamente, de ralé. A ralé estrutural do Brasil é composta por indivíduos desprovidos tanto de capital econômico quanto de capital cultural e, ademais, desprovidos das “precondições sociais, morais e culturais” que permitem a apropriação destes capitais (SOUZA, 2009, p. 21). Esses indivíduos, portanto, encontram lugar no mercado capitalista apenas ao vender sua força muscular para as classes mais abastadas. É precisamente o caráter de “mero corpo, dispêndio de energia muscular” que marca estes indivíduos como uma classe social única, a “ralé” (ibid., p. 426). É nessa classe que Souza categoriza as empregadas domésticas. Em sua obra A Ralé Brasileira (2009), a parte dedicada às mulheres da ralé coloca o trabalho doméstico e a prostituição como praticamente os únicos meios de sobrevivência e de inserção no mercado disponíveis às mulheres despossuídas. Já aos homens da ralé são reservados os trabalhos de pedreiros, garis, lixeiros e, aos que fogem a este padrão, a delinquência. É relevante ressaltar que as experiências e realidades das empregadas domésticas são plurais e que a categoria conquistou inegáveis direitos trabalhistas ao longo das últimas décadas, os quais elevaram suas condições de vida e de trabalho, conforme veremos no segundo segmento deste capítulo. No entanto, optase por classificar estas mulheres como membros de uma mesma classe vulnerável e despossuída, pois elas possuem a “marca” da ralé: apenas corpo e força muscular. A coisificação da empregada doméstica, sua transformação em mero corpo e até em objeto da casa dos patrões, está presente nas representações midiáticas da categoria, conforme veremos no terceiro capítulo deste trabalho. O fator do não reconhecimento social do serviço doméstico também contribui para a categorização destes indivíduos como membros da ralé, visto que a miséria dessa classe também é uma miséria moral, que “inclui, mas não se esgota na falta de dinheiro” (SOUZA, 2009, p. 129). Uma vez compreendido que o Brasil abriga um enorme contingente de pessoas despossuídas, ignoradas pelo Estado e pelas demais classes sociais, é difícil não se perguntar: como a sociedade permite que isso ocorra? E mais especificamente pensando no caso das domésticas, uma instituição tão encravada no cotidiano da família burguesa brasileira, é possível se perguntar: como é razoável que não se questione a existência de uma mulher cuja vida é dedicada a servir outra 16

família, em detrimento da sua própria? Como a sociedade brasileira aceita essa realidade social tão diferente da de países em geral admirados pela elite, como as nações consideradas “desenvolvidas” da Europa3? É este silêncio inconsciente, porém cúmplice da desigualdade social, que Souza diz que ao mesmo tempo esconde e legitima a exploração da ralé:

Não se trata de intencionalidade aqui. Nenhum brasileiro europeizado de classe média confessaria, em sã consciência, que considera seus compatriotas das classes baixas não-europeizadas “subgente”. […] A dimensão aqui é objetiva, subliminar, implícita e intransparente. […] Ela implica […] toda uma visão de mundo e uma hierarquia moral que se sedimenta e se mostra como signo social de forma imperceptível a partir de signos sociais aparentemente sem importância como a inclinação respeitosa e inconsciente do inferior social, quando encontra com um superior, pela tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc. (2003, p. 175).

Mas o que sustenta essa invisibilidade? Para Souza (2009), o fator fundamental que legitima e naturaliza a desigualdade social brasileira é a crença economicista: o ato de pensar os problemas sociais e políticos do país através de uma lógica puramente econômica. O economicismo é um subproduto do liberalismo, por meio do qual se entende a sociedade como sendo composta por indivíduos racionais, que têm as mesmas capacidades e, portanto, podem competir igualmente em busca de capital econômico e cultural. Assim, sob essa lógica, o “miserável e sua miséria” são percebidos como um “acaso do destino”, indivíduos que, apesar de terem tido as mesmas oportunidades que todos os outros, falharam na competição social, e não como uma classe que tem gênese e destino comum (ibid., p. 17). O economicismo, assim, falha em enxergar os valores imateriais na reprodução das classes sociais, bem como a maneira através da qual esses valores se mantêm como privilégios com o passar do tempo. Souza explica que, nas classes abastadas, que possuem capital econômico, os filhos terão a mesma vida dos pais apenas se aprenderem a reproduzir seu “estilo de vida”, através da convivência com a família. Conforme o autor:

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Conforme Brites (2008), na Suécia, em 1990, havia apenas duas empregadas domésticas em todo o país.

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Tudo na realidade social é feito para que se esconda o principal: a produção de indivíduos diferencialmente aparelhados para a competição social desde seu “nascimento”. [...] A legitimação do mundo moderno como mundo “justo” está fundamentada na “meritocracia”, ou seja, na crença de que superamos as barreiras de sangue e nascimento das sociedades pré-modernas e que hoje só se leva em conta o “desempenho diferencial” dos indivíduos. (SOUZA, 2009, p. 22).

O economicismo, portanto, está diretamente relacionado à crença na meritocracia. E, se todos têm oportunidades iguais, por que a sociedade questionaria a existência de mulheres que passam a vida “no fundo da cozinha dos outros”4? Sob essa ótica, elas seriam apenas pessoas que não foram capazes de encontrar trabalho “melhor”, mais reconhecido – um trabalho que exige capital cultural e conhecimento técnico, não apenas corpo e força muscular – tornando, assim, justa a condição em que se encontram. A ideia de um mundo “justo” aparece atrelada ao conceito de “dignidade”, atribuído, nas sociedades ocidentais e ocidentalizadas, ao trabalhador útil e “honesto”, independentemente das condições – violentas ou não – nas quais ele realiza seu trabalho. Tal noção é imprescindível para a naturalização da desigualdade, pois, conforme afirma Souza, “é precisamente a ilusão da ausência de dominação social injusta” que legitima a dominação social (ibid., p. 388). Nesse segmento, foram expostos brevemente os conceitos de Souza que dão respaldo a esse argumento. O debate, certamente, é mais amplo, e não se pretende esgotá-lo aqui. No entanto, pode-se resumir que o autor nos mostra que a sociedade moderna ocidental é “comandada por consensos sociais opacos e inarticulados”, mais do que por presidentes, senadores, pelo mercado ou por uma “elite abstrata” (ibid., p. 420). É a partir dessa percepção que se pensará, ao longo deste trabalho, a figura da empregada doméstica na sociedade de classes brasileira. O contexto socioeconômico e cultural do qual se partirá, portanto, é o de uma desigualdade social invisível e naturalizada, que permite às classes médias e altas usufruir da existência de “uma classe despossuída que trabalha para ela a baixo preço, cuida de seus filhos, de sua casa, de sua comida, previne a luta de gênero pela divisão de tarefas domésticas” (SOUZA, 2009, p. 410).

ALMEIDA, Maria Suely Kofes. “Entre nós mulheres, elas as patroas e elas as empregadas”. In: Colcha de retalhos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. 4

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2.2 CAMA ADENTRO E PORTA A FORA: TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS DO SERVIÇO DOMÉSTICO

Conforme exposto no segmento anterior, no cerne da “luta de classes intestina, cotidiana, invisível e silenciosa” (SOUZA, 2009, p. 24) que define o Brasil moderno, está a figura da empregada doméstica. Essas trabalhadoras talvez sejam um dos maiores exemplos da naturalização da desigualdade e do caráter aristocrático das elites de países modernos periféricos, como o Brasil e as demais nações da América Latina. Para a realização de uma análise da produção de sentido sobre as domésticas na mídia impressa, faz-se necessário pensar sobre as peculiaridades da vida dessas mulheres, as condições de trabalho às quais elas estão sujeitas e a história do serviço doméstico como atividade remunerada. Neste segmento, serão abordados os dados contemporâneos sobre a categoria, o histórico da conquista de seus direitos e exposta uma sintética revisão da literatura sociológica e antropológica a respeito das domésticas. Segundo dados do IBGE5, em 2011, 14,5% das mulheres ocupadas no Brasil exerciam a atividade de empregadas domésticas, dessas, 36,6% possuíam carteira assinada, o que garante a elas acesso a direitos trabalhistas. Em 2003, apenas 9,6% das domésticas possuíam onze ou mais anos de estudo. Já em 2011, o número subiu para 19,2%. No entanto, apenas 0,3% das domésticas, em 2011, possuíam ensino superior completo e a média de horas da jornada de trabalho era 36,5 com rendimento médio, de R$ 621,81. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2011 apontam um fator determinante na história do trabalho doméstico no Brasil: pela primeira vez, a atividade deixou de representar a maior categoria profissional feminina, passando para a terceira posição no ranking. Em primeiro lugar estão as comerciárias e, em segundo, professoras e profissionais das áreas da saúde e serviços sociais. A pesquisa mostra uma redução do número de domésticas desde

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IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. Disponível em: . Acessado em: 16 de novembro de 2013.

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2009, quando havia 6.702 milhões de mulheres empregadas nessa atividade, para 6.160 milhões em 20116. Apesar das domésticas representarem um contingente tão expressivo da população feminina brasileira e serem uma, conforme Maria Suely Kofes de Almeida, “peça já imbricada em todos os mecanismos da organização familiar das classes superiores” (1982, p. 192), a literatura mostra que suas condições de trabalho, historicamente, são problemáticas. Bruschini e Lombardi, no artigo “A Bipolaridade do Trabalho Feminino no Brasil Contemporâneo” (2000), localizam o serviço doméstico no que as autoras chamam de “polo da precariedade” do trabalho feminino. Um dos importantes fatores históricos e culturais que influencia não apenas as condições práticas do trabalho doméstico, mas também a maneira como ele é percebido socialmente, é a herança escravocrata presente nos países colonizados da América do Sul, como o Brasil. No século XIX, o serviço doméstico chegou a absorver praticamente um quinto das trabalhadoras brasileiras: o censo de 1872 revela que 22,4% das mulheres com profissões realizavam esse tipo de atividade (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000). Segundo Beatriz Campoy, em “O Trabalho Doméstico Remunerado no Brasil: desigualdades, direito e saúde” (2012), após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, os escravos libertos – principalmente os que já realizavam o serviço doméstico – não possuíam condições de vida fora da casa do senhor e permaneceram nas casas grandes trabalhando em troca de comida e abrigo. Assim, percebe-se que o estigma de “trabalho de escravo” se soma à visão do trabalho doméstico como não lucrativo e de baixa qualificação, realizado apenas por mulheres pobres de grupos étnicos desfavorecidos, para construir uma imagem negativa do serviço doméstico. Desse modo, a atividade se constituiu como algo “sem valor social, excluída inclusive dos direitos adquiridos pelos outros trabalhadores” (CAMPOY, 2012 p. 14). A desvalorização da categoria se reflete também na indisposição histórica do Estado em interferir no trabalho que ocorre no

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IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro; 2012.

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âmbito privado, o que “perpetuou uma condição de quase absoluta subordinação do serviço doméstico” aos chefes das casas (BRITES, 2008, p. 8). Além da herança de uma cultura escravocrata, a condição da empregada doméstica também é influenciada pelo caráter patriarcal da sociedade e pela divisão sexual do trabalho, conforme revisão bibliográfica realizada por Jurema Brites em “Cinderela domesticada – gênero e reprodução da desigualdade na sociedade brasileira” (2008). Segundo a autora, o tema do trabalho doméstico começou a ter visibilidade nas ciências sociais a partir dos anos 70, influenciado pelas teorias da modernização e pelas discussões do movimento feminista. O fato de ser uma atividade exercida no âmbito privado, majoritariamente por mulheres (no Brasil, em 2011, 94% dos trabalhares do setor eram do sexo feminino 7), suscitou discussões sobre a definição de “trabalho”, as relações de poder entre mulheres e os laços de dependência entre patrões e funcionários. Brites aponta que, na perspectiva da maioria dos autores que pesquisaram o trabalho doméstico, a atividade “conjuga formas capitalistas de exploração do trabalho com velhas estruturas de dominação no âmbito da família” (p. 2). A precariedade da qual sofrem as domésticas, portanto, estaria ligada a uma sociedade patriarcal e a laços clientelistas. Logo, a divisão sexual do trabalho seria fruto da desigualdade entre homens e mulheres, que tornou-se ainda mais complexa na sociedade de classes devido à soma da exploração masculina à exploração produtiva. Assim, estabeleceu-se, na sociedade judaico-cristã Ocidental, uma dicotomia entre o mundo público, masculino, objetivo e o mundo da casa, feminino, familiar, doméstico e afetivo (BRITES, 2008), que relega às mulheres o trabalho reprodutivo e aos homens, o produtivo. Essa é a divisão que o antropólogo Roberto DaMatta (1987) estabelece como o contraste entre a casa e a rua. Segundo ele, “casa” e “rua”, para a cultura brasileira, não são apenas espaços geográficos, e sim “entidades morais” e “esferas de ação social” (p. 15), ambas dotadas de ética própria. Assim, alguns eventos são lidos através do código da “casa”, que é avesso à mudança, à história, à economia e 7

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. Disponível em: . Acessado em: 16 de novembro de 2013.

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ao progresso; outros pelo código da “rua”, aberto ao legalismo jurídico, ao mercado e ao progresso individualizante (DAMATTA, 1987, p. 52). Por conjugar elementos da casa e da rua simultaneamente, portanto, a empregada doméstica encontra-se em um ponto de tensão e tem seus direitos, como trabalhadora, negados ou diminuídos. Um processo histórico contemporâneo importante para se pensar a conjuntura social das empregadas domésticas é a diminuição do número de empregadas que dormem no emprego – as chamadas pela literatura hispânica de “empregadas cama adentro” (BRITES, 2008, p. 4). Conforme aponta Brites, as funcionárias que dormem na casa dos patrões vêm perdendo espaço para as “empregadas porta a fora”, devido a mudanças culturais e econômicas nos países modernos, principalmente a partir da década de 80. Dentre estas transformações estão a valorização da privacidade familiar, o aumento do número de creches e escolas infantis, o maior acesso a bens de consumo que facilitam o trabalho doméstico, entre outros fatores. É importante ressaltar que, em geral, as empregadas cama adentro são mulheres em situação de maior vulnerabilidade que as que não dormem no emprego. Segundo Bruschini e Lombardi (2000), elas são jovens, solteiras, e, em sua maioria, negras ou pardas. São também mulheres que não formaram sua própria família e, por isso, podem “se sujeitar às longas jornadas de trabalho e às restrições de sua liberdade de circulação” (ibid., p. 73). A diminuição do número de empregadas que dormem na casa dos patrões tem relação também com a crescente formalização da atividade, que culminou na promulgação da Emenda Constitucional 72/2013, a PEC das Domésticas, em 2013, cuja representação na mídia impressa é objeto de estudo deste trabalho. Durante décadas, a categoria teve seus direitos trabalhistas negados, a começar pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), em 1943, que excluiu a atividade do elenco de categorias cujos direitos foram garantidos. Apenas em 1972 a profissão foi regulamentada através da Lei n. 5.859, que considerou como empregado doméstico “aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial desta”. No entanto, a definição excluía indivíduos que trabalhavam eventualmente em casas de famílias distintas, como faxineiras e diaristas. Já em 1973, o Decreto n. 71.885 garantiu aos empregados domésticos férias remuneradas após 12 meses de prestação de serviços; seguro 22

obrigatório da previdência social, garantindo-lhes, portanto, os benefícios da Previdência; e obrigatoriedade do registro na carteira de trabalho (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000). Com a redemocratização, a Constituição de 1988 assegurou às domésticas, em seu artigo 7º, os seguintes direitos: salário mínimo, irredutibilidade do salário, 13º salário, licença-gestante, aviso prévio, vale-transporte e inscrição na Previdência Social. A partir do ano 2000, a doméstica passou a ter acesso, de modo facultativo, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e ao seguro-desemprego (ibid.). A Emenda Constitucional 72, a PEC das Domésticas, promulgada em dois de abril de 2013, reescreve o 7º artigo da Constituição de modo a garantir às domésticas mais direitos trabalhistas. São eles: recebimento de um salário mínimo ao mês garantido por lei (ou seja, o patrão não pode deixar de pagar o salário de maneira alguma); jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais; hora extra remunerada; proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivos de sexo, idade, cor ou estado civil ou para portador de deficiência; e proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre ao trabalhador menor de 16 anos. A Emenda também lista uma série de direitos que ainda deverão ser regulamentados pelo poder Legislativo: adicional noturno; obrigatoriedade do recolhimento do FGTS; auxílio-creche e pré-escola; seguro contra acidentes de trabalho e indenização em caso de despedida sem justa causa. A conquista de direitos é um marco histórico para a categoria, cuja atividade sempre foi compreendida como uma tarefa do âmbito privado, regida por laços afetivos e de confiança, e não como profissão. Segundo Liane Maria Braga da Silveira, na dissertação “Como se Fosse da Família: A (In)Tensa Relação Entre Mães e Babás” (2011), a regulamentação da atividade “repagina cada vez mais o papel da empregada doméstica, relegando ao segundo plano a sua dimensão de como se fosse da família”. No entanto, a autora ressalta que, embora as relações de trabalho

entre

domésticas e

patrões tenham

sofrido uma

“reorganização

socioeconômica”, o comportamento atual de ambas as partes ainda aparenta ser “emocionalmente promíscuo”, atrelado ainda a visão de que o serviço doméstico é um “emaranhado de emoção e trabalho” (SILVEIRA, 2011, p. 85).

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Neste segmento, foi abordada a trajetória da conquista de direitos das domésticas – um longo caminho desde a abolição da escravatura, quando escravas libertas permaneceram na casa dos ex-senhores trabalhando em troca de abrigo e comida, até a aprovação da emenda constitucional que garante às domésticas todos os direitos trabalhistas das demais categorias. Foi exposta também a conjuntura cultural na qual a doméstica se insere, sua difícil posição entre o público (a rua e o trabalho) e o privado (a casa e a família), que acarreta em uma situação de invisibilidade e não-reconhecimento social ao serviço doméstico.

2.3 ENTRE ELAS: A MULHER-PATROA E A MULHER-EMPREGADA

Nesse capítulo já foi abordada a conjuntura socioeconômica e cultural acerca das classes sociais no Brasil, bem como o histórico do serviço doméstico e da conquista de direitos da categoria. Como esse capítulo se propõe a estabelecer um quadro das “teias de significados” que amarram e constroem a figura da doméstica, neste último segmento se discorrerá sobre um fenômeno peculiar que circunda a vida das domésticas e de seus patrões, ou melhor, patroas: as relações de poder entre duas mulheres. Conforme já exposto nesse trabalho, a produção acadêmica acerca do trabalho doméstico nas ciências sociais cresceu a partir dos anos 70, devido, entre outros fatores, ao fortalecimento do feminismo, tanto como movimento social quanto como área de conhecimento acadêmico. No entanto, no encontro entre o pensamento feminista e o trabalho doméstico localiza-se uma tensão fundamental: é possível falar em mulher, como um grupo social, ignorando as demais interseccionalidades de classe e etnia? Se o feminismo pretende repensar e combater o patriarcado – a dominação da mulher pelo homem – podem-se estabelecer diferenças e se pensar as relações de poder entre uma mulher-patroa e uma mulher-empregada? As figuras da patroa e da doméstica trazem ao feminismo a ideia de que é preciso pensar as relações de gênero para além de uma hierarquia na qual o (todo e qualquer) homem oprime (toda e qualquer) mulher. Nesse segmento, serão 24

abordadas obras de autoras da área das ciências sociais para uma maior compreensão deste fenômeno de dominação e dependência entre patroa e empregada – tão intrínseco ao debate sobre o trabalho doméstico que encontraremos diversas referências a essa relação nas reportagens analisadas no terceiro capítulo deste trabalho. A antropóloga Maria Suely Kofes de Almeida, em “Entre nós Mulheres, Elas as Patroas e Elas as Empregadas” (1982), estabelece um ponto de partida que será base para esta reflexão: o fato de que ser mulher é “constituir-se a partir do mundo doméstico e ser parte constitutiva dele”. A casa, portanto, é o local definidor da feminilidade e a mulher, a dona do espaço doméstico (ALMEIDA, 1982, p. 186). Essa definição é compartilhada tanto por patroas quanto por empregadas. A bifurcação, então, que divide a mulher-patroa e a mulher-empregada é esta: a mulher-patroa, embora precise, por pressões sociais, saber como o lar deve ser organizado e mantido, o sabe apenas para mandar na doméstica. Segundo Almeida (1982), mulheres de classes abastadas de sociedades escravocratas, aprendem desde criança a se relacionar com empregadas e a dar as devidas ordens a elas. Essa socialização só se faz possível porque a empregada doméstica é uma instituição

histórica

da

família

burguesa

brasileira,

estando

presente

em

praticamente todos os lares de classe média e alta. Almeida ressalta, para exemplificar sua tese, que a frase "minha empregada” incorpora-se cedo e cotidianamente na socialização das mulheres-patroas (ALMEIDA, 1982, p. 189). As brasileiras das classes altas, portanto, vivenciam seu papel feminino por meio não da realização de tarefas domésticas, mas pela “incorporação” destas através do ato de dar ordens à doméstica. Logo, o universo doméstico brasileiro “é recriado nos termos de uma relação de mando e obediência” (ibid., p. 190). Em “Between Women: Domestics and Their Employers”, Judith Rollins (1987) defende a existência de um “maternalismo” que justifica a subserviência das domésticas e legitima essa relação de mando/obediência. Para a autora, ocorrem “rituais impessoais” de dominação entre a patroa e a doméstica, onde “a dominação maternalista assume contornos afetivos” (ROLLINS, 1987 apud BRITES, 2008, p. 5). As relações de poder e afetividade, conforme relatado no segmento anterior, marcam profundamente as relações entre patroa e doméstica.

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Além de pensar as relações simbólicas de poder entre a mulher-patroa e a mulher-empregada, a reflexão sobre o trabalho doméstico produz tensões em relação ao pensamento feminista também por sua dimensão prática. A “emancipação feminina”, entendida muitas vezes como a entrada das mulheres no mercado de trabalho produtivo, foi possível, em sociedades periféricas, através de uma “troca de mulheres” no ambiente doméstico. Saíram as esposas e entraram as empregadas domésticas, cujo trabalho evita que mulheres de classes abastadas precisem abdicar de suas carreiras para cuidar dos filhos e da casa, ao mesmo tempo que torna desnecessário que os maridos dessas mulheres realizem tarefas domésticas, tipicamente femininas. Conforme explicam Bruschini e Lombardi (2000), o aumento da escolarização e da qualificação de mulheres da elite, que levou-as a exercer ocupações intelectuais de nível superior, fez com que elas buscassem trabalhadoras pouco qualificadas para fazer seu serviço doméstico. Esse quadro, desencadeado a partir dos anos 70 e 80, estabeleceu uma polarização do trabalho feminino, na qual as domésticas ficaram relegadas ao “polo da precariedade”. Conforme Bruschini e Lombardi: De um lado, a ampliação de mulheres, em sua maioria brancas, altamente escolarizadas, domiciliadas nas grandes metrópoles mundiais, com alta renda e ativos organizacionais, e de outro, mulheres migrantes, com baixa escolaridade, negras e latinas domiciliadas na periferia mundial, reféns da precariedade e da desregulamentação trabalhista, compõe um quadro novo na história do capitalismo, definido pelo confronto de interesses diretos, não mais mediados pela figura masculina do pai e esposo, entre esses dois grupos. [...] à medida que crescem as oportunidades para as mulheres altamente escolarizadas nas ocupações de nível superior, cresce também o número de mulheres lançadas à sorte das correntes migratórias e das ocupações precárias e desreguladas. (2000, p. 3).

A feminista estadunidense Elsa Brown, em seu artigo “What Has Happened Here: The Politics of Difference in Women’s History and Feminist Politics” (1992), critica as correntes contemporâneas do feminismo por ignorar esse fenômeno histórico abordado por Bruschini e Lombardi. Segundo Brown, feministas, tanto ativistas como acadêmicas, compreendem que há diferenças entre mulheres brancas de classe média e mulheres negras/latinas de classes vulneráveis (ou, para 26

usar o conceito de Souza, da ralé). No entanto, o reconhecimento da existência dessas diferenças não é o bastante: é necessário abordar a natureza “relacional” das diferenças. Para Brown, a vida das mulheres brancas de classe média não é apenas diferente da vida das negras de classes trabalhadoras. É necessário reconhecer que as mulheres de classe média vivem a vida que vivem em grande medida porque mulheres da classe trabalhadora vivem a vida que vivem (1992). É a partir desse pressuposto que serão analisadas as reportagens no terceiro capítulo deste trabalho, questionando-se de que maneira a mídia aborda o caráter relacional, de dependência, entre a mulher-patroa e a mulher-empregada. Nesse capítulo, expôs-se a conjuntura socioeconômica e cultural da qual a autora partirá para pensar a representação e os sentidos produzidos acerca da empregada doméstica nas reportagens selecionadas. Logo, estipulou-se que se entenderá a doméstica como um indivíduo membro de uma “ralé estrutural”, formada por pessoas que não possuem condições de acessar o mercado produtivo capitalista e, portanto, vendem a força de trabalho para as classes abastadas, sendo por elas interpretadas como “meros corpos”. Neste trabalho, se entenderá que a existência dessa ralé enquanto classe que sofre abuso e exploração por parte da elite e da classe média se legitima através da invisibilidade da desigualdade social brasileira, mantida, entre outras maneiras, por meio de uma crença na meritocracia e na ascensão social pelo aumento de renda. Também se pensará a doméstica moderna, aquela que conquistou seus direitos trabalhistas através da PEC, inserida em um histórico e em uma cultura escravocrata, a qual negou por muitos anos os direitos dessa categoria. Por fim, se abordará a doméstica também como uma instituição constituinte da família burguesa brasileira, cuja existência permite que mulheres das classes abastadas busquem carreiras no mercado produtivo – o que produz uma tensão no ambiente doméstico dividido por estas duas mulheres.

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3

DECIDINDO

“O

QUE

IMPORTA

NO

MUNDO”:

JORNALISMO

E

ACONTECIMENTO

No segundo capítulo deste trabalho, será exposto o referencial teórico sobre mídia, jornalismo e acontecimento que será utilizado para pensar acerca da cobertura da PEC das Domésticas. Mas, afinal, por que pensar as relações entre classes sociais e o discurso produzido acerca do serviço doméstico na mídia semanal impressa? Este trabalho parte da premissa de que a mídia é parte não apenas integrante, mas constituinte da realidade. De acordo com o sociólogo Patrick Champagne, os meios de comunicação produzem efeitos diretos na realidade, produzindo uma “visão mediática” (2003, p. 75) do mundo. Dessa forma, a mídia cria a própria realidade que pretende descrever. Portanto, para compreender a realidade, é imprescindível observar a produção de sentido midiático acerca dos fatos analisados. Neste trabalho, optou-se pela utilização da teoria do acontecimento de Louis Quéré, exposta por França (2012), como principal aporte teórico, por motivos explicados no primeiro e segundo segmento deste capítulo. Além de expor a teoria do acontecimento e a noção das duas vidas do acontecimento, este capítulo aborda a influência dos critérios de noticiabilidade (SILVA, 2005) na construção do discurso midiático; o dispositivo de autoridade das revistas semanais, o qual legitima seus discursos como verdadeiros e dignos de confiança (BENETTI, FINATTO, STORCH, 2011); e a construção de oposições discursivas entre “mesmos” e “outros” simbólicos na mídia (BAIRON, PRADO, 2007; ROCHA, 2007).

3.1 O ACONTECIMENTO

Em “O Acontecimento e a Mídia” (2012), Vera França argumenta que o conceito de “mídia” é bastante abrangente: esta pode ser um instrumento, pois cria linguagem e veicula produtos; um espaço de convivência, encontro e troca entre 28

sujeitos, como são a rua, os bares, as praças; ou mesmo um sujeito em si, produtora de seu próprio discurso. Se a mídia pode ser, então, um local de troca entre indivíduos, como um bar, sobre o que falam os que estão sentados em torno da mesa? Se ela pode ser um sujeito, que discurso produz? Neste trabalho, a teoria do acontecimento de Louis Quéré, abordada por Vera França, será utilizada para argumentar que a mídia trata, sobretudo, de acontecimentos. Conforme França, o conceito de acontecimento é significativo para a área da pesquisa em comunicação, visto que uma de suas práticas, o jornalismo, “se constrói exatamente em torno dos acontecimentos” (2012, p. 12). A teoria do jornalismo desenvolveu uma “tipologia da notícia” para definir e classificar fatos relevantes o suficiente para serem transformados em notícias. Sob essa compreensão, esses fatos noticiados seriam os “acontecimentos”, e seria a “natureza intrínseca” do fato que definiria seu caráter noticiável (ibid.). Já para outros pesquisadores, esses da linha teórica construtivista, o acontecimento em si é uma construção midiática, “a transformação do fato em narrativa” (ibid.). Conforme

José

Luiz Aidar Prado,

em

“Arqueologia

do

Acontecimento” (2013), sob essa perspectiva, os acontecimentos não existem antes de sua construção como tal pelos meios (ibid., p. 2). França, citada por Prado, explica que, sob a ótica construtivista: [...] não existe de um lado o real, de outro, no espaço da mídia, a informação - esta última penetra e atua no real, enquanto ferramenta de leitura e de extração. O acontecimento seria aquilo que o paradigma da informação seleciona e formata enquanto tal. (FRANÇA, OLIVEIRA, 2012, p. 42 apud PRADO, 2013, p. 2).

O conceito que França utiliza para falar de acontecimento, no entanto, é o do sociólogo Louis Quéré, que difere da lógica construtivista elencada por Prado (2013). Para Quéré, o acontecimento é algo que acontece a alguém ou a uma coletividade, não sendo, portanto, independente ou autoexplicativo – ele existe na medida em que afeta sujeitos. O acontecimento “acontece” porque “rompe uma rotina, atravessa o já esperado e conhecido” (FRANÇA, 2012, p. 13). Os acontecimentos, sob essa ótica, são fatos que se inserem na experiência humana – é justamente essa a primeira característica do acontecimento de Queré. A segunda

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é o caráter de ruptura do fato que se transforma em acontecimento. Conforme França:

O acontecimento é portador de uma diferença e de uma ruptura. Ele rompe o esperado, a normalidade; ele quebra uma sequência e, num primeiro momento, desorganiza o nosso presente. Ele penetra sem aviso prévio, e gera um impasse. O desdobramento se vê comprometido. O acontecimento gera uma interrogação. (2012, p. 13).

Logo, o acontecimento é um fato que faz pensar em novos sentidos e alternativas. Para França, “ele alarga o leque do possível – e descortina (ainda que por pequenas brechas) o horizonte do que não havia ainda sido pensado” (2012, p. 13). Essa essência é a terceira característica fundamental do acontecimento: o ato de introduzir uma diferença (ibid., p. 14). Uma vez expostas as características do conceito de acontecimento de Louis Quéré, cabe a explicação do porquê da utilização do autor para pensar a cobertura da PEC das Domésticas. A aprovação da emenda constitucional, conforme exposto no primeiro capítulo deste trabalho, causou uma ruptura na história de desigualdade e precariedade dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas brasileiras. Assim, a aprovação é um fato que acontece tanto a sujeitos específicos (domésticas e patrões) quanto à coletividade da sociedade brasileira, pois trouxe para o debate público a temática do serviço doméstico. Outra característica fundamental para relacionar o conceito de Quéré à PEC é o fato do acontecimento convocar “passado e futuro”. Ele faz a sociedade olhar para trás e indagar: “onde ele estava anunciado e não foi percebido? De onde ele vem, e que causas vieram a provocá-lo?” (QUÉRÉ, 2005, p. 62-63, apud FRANÇA, 2012, p. 13). O acontecimento, portanto, é capaz inclusive de “modificar o passado, desvelar o não-visto, iluminar o opaco, estabelecer distinções que não haviam sido percebidas” (FRANÇA, 2012, p. 13), do mesmo modo que a aprovação da emenda fez. De que forma essa ruptura foi abordada pela mídia impressa é onde se foca um dos pontos de análise deste trabalho. Nesse segmento do capítulo, conceituou-se o acontecimento, sob a ótica de Quéré, como fatos que ocorrem a alguém ou a uma coletividade; que causam rupturas e desorganização social; que fazem pensar e introduzem novos sentidos ao 30

pensamento coletivo; e que articulam o presente, “convocam o passado e reposicionam o futuro” (FRANÇA, 2012, p. 14). Ademais, se estabeleceu a relação entre o acontecimento e a PEC das Domésticas: optou-se por pensar a aprovação da emenda constitucional como um acontecimento, pois o fato apresentou uma ruptura com o histórico de desigualdade dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas brasileiras.

3.2 AS DUAS VIDAS DO ACONTECIMENTO

O acontecimento, para Louis Quéré, tem outra dimensão que o torna ainda mais apropriado para ser utilizado como conceito neste trabalho: a noção das “duas vidas” do acontecimento. Como explica França, o acontecimento se desdobra em mais de um significado, pois eles fazem indivíduos falarem, e esses indivíduos são seres simbólicos, “capazes o tempo todo de duplicar nossa realidade a partir de construções imagéticas e representacionais” (2012, p. 14). Seres humanos constroem narrativas acerca dos acontecimentos, o que faz com que esses adquiram uma nova vida – uma vida que se dá devido a sua transformação em discurso. A primeira vida do acontecimento, então, é sua dimensão existencial, sua inscrição na experiência humana: é o acontecimento como o indivíduo o percebe e sente. Já a segunda vida é o acontecimento transformado em narrativa e, por isso, em símbolo. Segundo França: Vivemos acontecimentos que se vêem marcados não apenas por suas características intrínsecas, mas também por outras representações que fazem parte de nosso repertório e são a eles associadas no processo de sua simbolização. (2012, p. 14).

A autora explica que, para Quéré, os acontecimentos em sua primeira vida (na dimensão existencial) podem acontecer em qualquer espaço da vida social: nas estradas, cidades, estádios, e também na televisão, no rádio, no jornal e na internet. A segunda vida do acontecimento também não ocorre apenas na mídia: ela pode se dar em rodas de conversa ou em qualquer lugar onde se produz discurso. No 31

entanto, França ressalta que a mídia é “a instituição central pela qual a sociedade fala de si mesma, a si mesma”, e, portanto, é principalmente nesse domínio que os acontecimentos adquirem sua existência simbólica (FRANÇA, 2012, p. 16). Logo, a noção de primeira e segunda vida do acontecimento é adequada para a análise proposta por este trabalho, pois percebe-se que a aprovação da PEC das Domésticas difere-se em sua dimensão prática (o fato “em si”) e existencial (como repercutiu na vida dos indivíduos afetados), e em sua dimensão discursiva, quando foi transformada em narrativa e notícia pelos veículos Veja e Época. Para compreender essa segunda vida, no entanto, uma mera análise discursiva – focada apenas nos textos midiáticos em si – não é suficiente. A visão de França sobre a relação entre mídia e acontecimento não coloca os meios de comunicação como uma instância separada da sociedade, como fazem vários pesquisadores e às vezes o senso comum (2012). Para a autora, a mídia está inserida na sociedade e é parte dela, como são “os postos de saúde, as defensorias públicas, os estádios esportivos”. A mídia é, portanto, uma instituição social e congrega os “dispositivos através dos quais a sociedade produz e faz circular suas informações e representações” (ibid., p. 12). A reflexão de Aidar Prado sobre o acontecimento também parece pertinente à análise proposta por este trabalho. Para o autor, discursos operam a partir da fragmentação do social. Ele se pergunta: a partir de quais pontos várias interpretações disputam sentidos de um mesmo acontecimento? Para ele, cada versão parcial do acontecimento produz vários acontecimentos diferentes, “tornando plural algo que estaria ligado a um fato primeiro, que se esfumaça” (2013, p. 7). Também é possível observar esse fenômeno na cobertura da PEC analisada, conforme consta no terceiro capítulo. Nesse segmento do capítulo, destacou-se o conceito de acontecimento, abrangendo a dimensão de primeira e segunda vida determinada por Quéré. Também se expôs de que maneira a noção de duas vidas se aplica à análise da cobertura da PEC das Domésticas proposta por este trabalho.

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3.3 O ACONTECIMENTO E OS CRITÉRIOS DE NOTICIABILIDADE

Para melhor compreender uma cobertura jornalística, é possível estabelecer uma relação entre os conceitos de acontecimento e os critérios de noticiabilidade, abordados por Gislene Silva (2005). A ideia de noticiabilidade pode ser compreendida, de acordo com a autora, como todo fator capaz de agir no processo de produção da notícia. Isto inclui as características do fato ocorrido (o valor-notícia), mas também os julgamentos pessoais do jornalista, a cultura profissional da categoria, a linha editorial e a política da empresa, a relação do jornalista com as fontes, fatores éticos e circunstâncias históricas, políticas, econômicas e sociais (ibid., p. 96). Portanto, além de pensar a dimensão existencial do acontecimento da aprovação da PEC das Domésticas, que seria sua primeira vida (ou seja, o modo com que o fato foi sentido e percebido pelos sujeitos envolvidos), é necessário levar em consideração os critérios de noticiabilidade para melhor compreender sua segunda vida – isto é, sua transformação em discurso pela mídia. Segundo Silva, é possível encontrar conjuntos diferenciados de critérios de noticiabilidade em diversas instâncias: na origem dos fatos e em suas características; no tratamento dos fatos pelo veículo; e na visão dos fatos, “a partir de fundamentos éticos, filosóficos e epistemológicos do jornalismo, compreendendo conceitos de verdade, objetividade, interesse público” (2005, p. 96). Destas três instâncias, destaca-se a terceira, a “visão dos fatos”, como aquela que será mais relevante na problemática deste estudo, uma vez que ele se foca na relação entre cultura e discurso midiático. Para esta análise, também é relevante a percepção de Nelson Traquina de que as notícias resultam de um processo de produção definido como percepção, seleção e transformação de um acontecimento em um produto (TRAQUINA, 2001, p. 94, apud SILVA, 2005, p. 97). Dentre as influências no processo de moldar esse produto para vendê-lo a um consumidor está a necessidade de narrar o acontecimento de modo atraente para um determinado público. A relação entre a segunda vida de um acontecimento determinado pela mídia e o público do veículo em questão é, portanto, estreita.

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Os critérios de noticiabilidade, então, são relevantes para esta análise pois permitem que se suscitem as seguintes perguntas, a serem respondidas através da análise do corpus selecionado: De que forma a tendência a narrar o acontecimento como um produto a ser vendido a um público específico operam na produção da segunda vida do acontecimento em questão? Quais são os conhecimentos consensuais sobre o mundo expostas na maneira como os veículos analisados abordaram o acontecimento? Nesse segmento foi exposta a reflexão de Gislene Silva sobre os critérios de noticiabilidade. Esses fatores vão muito além de meras características neutras de determinado acontecimento. Conforme a autora, a decisão do “quê” e “como” é notícia é influenciada pela visão de mundo dos jornalistas, pela linha editorial dos veículos, pela necessidade de narrar os fatos de maneira atraente ao público do veículo e pelo contexto cultural no qual os profissionais da mídia estão inseridos.

3.4 O DISPOSITIVO DE AUTORIDADE: JORNALISMO DE REVISTA E A LEGITIMAÇÃO DA VERDADE

As revistas semanais, objeto de estudo deste trabalho, têm peculiaridades que as tornam diferentes dos demais meios de comunicação. Para contribuir com a reflexão sobre as relações entre acontecimento, critérios de noticiabilidade e jornalismo de revista, é relevante consultar as perspectivas abordadas por Marcia Benetti, Laura Storch e Paulo Finatto em “Jornalismo de Revista, Metaacontecimento e Dispositivo de Autoridade” (2011). Conforme os autores, esses veículos elegem para suas capas, com frequência, temas de longa duração, como reportagens de comportamento, guias sazonais e análises de tendências (ibid., p. 55). Pode-se dizer, portanto, que as revistas têm maior liberdade quanto aos seus critérios de noticiabilidade e ao valor-notícia dos acontecimentos escolhidos para figurar em suas capas. Não necessariamente os editores deste tipo de veículo precisam estampar suas capas com as “últimas notícias” da semana ou do mês – ao contrário, eles podem pautar demais meios ao eleger temas atemporais para narrar. 34

Segundo os autores, as revistas recorrem ao “dispositivo de autoridade” para assim procederem. Esse dispositivo de autoridade se estabelece através de um contrato, um “jogo de relações” entre leitor e produtor de conteúdo, que faz com que textos jornalísticos digam “isto é jornalismo” e leitores pensem “isto que leio é jornalismo”. Como gênero discursivo, o jornalismo só pode ser compreendido e legitimado através desse contrato, que é construído e reafirmado “em seu próprio processo de acontecer ao longo do tempo”. As características que compõem o gênero jornalístico são abrangentes e complexas, mas ainda assim “aprendidas, internalizadas e reconhecidas pelos sujeitos envolvidos no contrato de comunicação” (2011, p. 58). É justamente essa autoridade concedida às revistas semanais que as tornam um objeto de pesquisa relevante para este trabalho, visto que se busca relacionar contextos socioculturais com a cobertura da PEC das Domésticas. O discurso sobre as domésticas nas revistas analisadas (Veja e Época) encontra algum grau de legitimação social pelo simples fato de se encontrarem nesses periódicos com a marca do “isto é jornalismo”. Conforme recente trabalho de Benetti e Hagen (2010), os núcleos de sentidos que constituem o ethos jornalístico das revistas Veja, Época, Carta Capital e IstoÉ são a defesa da democracia, a independência, a competência e o compromisso com o leitor (BENETTI, HAGEN, 2010 apud BENETTI, FINATTO, STORCH, 2011 p. 69). A partir de um consenso entre jornalistas e leitores acerca deste ethos, então, o discurso desses veículos se legitima e se torna “verdade”. Conforme Benetti, Finatto e Storch: É assim que qualquer uma das revistas semanais de informação deseja ser vista: “Faço jornalismo, portanto trago a verdade sobre o mundo; faço jornalismo de modo competente e independente, portanto o que digo é confiável; defendo a democracia, portanto estou comprometida com o debate, a pluralidade e a tolerância; meu compromisso é com o leitor, portanto estou conectada aos interesses de quem me lê”. (2011, p. 70).

O jornalismo é, segundo os autores, regulado e regulador ao mesmo tempo. Regulado por ser uma prática discursiva, submetido aos processos que regulam todos os demais discursos, e regulador porque se atribui (e atribuem a ele) o direito de dizer a verdade sobre o mundo, “sobre quem está habilitado a enunciar e, principalmente, sobre o que importa no mundo” (BENETTI, FINATTO, STORCH, 2011, p. 67). Neste trabalho, a dimensão “reguladora” do jornalismo, conforme 35

proposta pelos autores, apresenta-se mais relevante. Através dela pode-se questionar: De que maneira a abordagem do acontecimento analisado expõe “o que importa no mundo”? Quem, sob a perspectiva dessas coberturas, está habilitado a falar sobre o acontecimento em questão? Benetti, Finatto e Storch ressaltam que todo discurso é “intersubjetivo e relacional” e se dá no espaço entre os sujeitos, que são sempre colocados uns em relação aos outros. Para cada “eu” enunciado no discurso, um “outro” é imaginado. Segundo os autores: “É na relação eu-outro – e na forma como todos nos imaginamos nesses diferentes lugares, criando ora ‘nós’, ora ‘eles’, ora ‘todos’, ora ‘ninguém’ – que o jornalismo institui a força de seu dizer” (2011, p. 68). Ao se observar as reportagens analisadas nessa pesquisa, percebe-se que a enunciação de “eus” e “outros” é fundamental na construção da segunda vida do acontecimento analisado, a aprovação da PEC das Domésticas. Neste segmento, se expôs as peculiaridades do jornalismo de revista como produtor de sentido. Segundo Benetti, Finatto e Storch, as revistas se utilizam de um dispositivo de autoridade (um contrato através do qual o leitor compreende que o que lê “é jornalismo”) para construir sentido acerca de determinados acontecimentos – esses, por vezes, atemporais, diferentes das notícias da semana e do mês veiculadas por jornais diários, cuja escolha é legitimada pela autoridade dos veículos. Somando-se ao contrato de comunicação entre jornalistas e leitores, o ethos jornalístico destes veículos, que se promovem como independentes e amantes da

democracia,

colabora

para

que

seus

discursos

sejam

legitimados

e

compreendidos como “verdade”.

3.5 DOMINADOS E DOMINANTES: O EU E O OUTRO NA MÍDIA

Uma vez expostos os conceitos e as relações entre o acontecimento, os critérios de noticiabilidade e as particularidades do jornalismo de revista, é relevante agora focar na relação entre dominantes e dominados – que serão interpretados aqui como classes superiores e a “ralé”, conforme Souza (2009) – que se estabelece através do discurso midiático, visto que este trabalho se foca no contexto da 36

desigualdade social brasileira e sua legitimação, por tratar do enfrentamento entre patroas/ões e empregadas domésticas. Para tal, serão utilizadas as noções de Patrick Champagne abordadas em “A Visão Mediática” (2003). Primeiramente,

é

importante

ressaltar

que,

para

Champagne,

um

“acontecimento” nada mais é do que o resultado da mobilização, espontânea ou provocada, dos meios de comunicação em torno de algum fato. No entanto, para o sociólogo, quando os sujeitos do acontecimento são populações marginais, os “efeitos da mediatização” não são favoráveis a esses grupos. Segundo o autor, devido ao poder de constituição da verdade do jornalismo, a produção de sentido sobre o acontecimento foge do controle dos grupos vulneráveis envolvidos (2003, p. 67). Para Champagne, os dominados são os menos aptos a controlar suas próprias representações, pois suas vidas cotidianas são desinteressantes para os jornalistas. O autor ainda aponta que o fato dos grupos vulneráveis serem “desprovidos de cultura” os torna incapazes de se expressar na maneira que a mídia considera adequada (ibid., p. 68). Portanto, “fala-se deles mais do que eles falam” (ibid., p. 69). Quando os dominados conseguem falar, segundo o sociólogo, muitas vezes tendem a tomar o discurso do dominador emprestado. Conforme Champagne: Os jornalistas tendem, sem o saber, a recolher seu próprio discurso sobre os subúrbios e encontram sempre, à toa nos conjuntos à espera dos meios de comunicação, pessoas prontas a dizer, “para a televisão”, o que eles têm vontade de ouvir. (2003, p. 69).

As provocações de Champagne incitam questões a serem analisadas na cobertura da PEC das Domésticas pelos veículos selecionados, tais como: É possível observar a prevalência de uma fala dos dominadores (em termos de classe social) a respeito do serviço doméstico? É possível encontrar, no texto, lugares de fala nos quais os dominados falaram com discursos “emprestados” dos dominadores? Champagne explica que os dominados têm pouco controle sobre suas representações. Mas o que são representações e qual sua relevância para grupos vulneráveis? Segundo Simone Rocha e Vanessa Rodrigues de Lacerda e Silva (2007), representações sociais são formas construídas, atualizadas e partilhadas por sujeitos ao decorrer de um tempo histórico. Na medida em que vão criando raízes, 37

elas “são conformadas discursivamente por diferentes campos do saber e instituições sociais, atuam na própria conformação do social, ao mesmo tempo que são por ele transformadas” (2007, p. 62). A representação pode ser também uma articulação que permite reconhecimento e ativação dos signos presentes no discurso: A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos [...]. Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar [...]. A mídia nos diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito particular (WOODWARD, 2007, p.17 apud RONSINI e OLIVEIRA-CRUZ, 2012, p. 79).

Simone Rocha, em “Mídia e politização de identidades" (2007), contribuiu para o debate acerca da representação ressaltando a importância da mídia para a construção de uma identidade, o autoconhecimento de um “nós” e o reconhecimento de um “outro” (2007, p. 53). Para Rocha, a identidade dos indivíduos não é um produto acabado, e sim uma construção sócio-histórica que se dá através de sentimentos

e

interesses

compartilhados

e

da

tentativa

de

“apreender

cognitivamente a si mesmo – o que implica uma dinâmica segundo a qual o vínculo entre si e os demais parceiros e é sempre mediada pela presença do outro” (2007, p. 58). A questão da construção do “outro” é abordada também no artigo “A Invenção do Outro na mídia semanal”, de José Luiz Aidar Prado e Sérgio Bairon (2007). Segundo os autores, o contrato entre leitor e público, como o exposto por Benetti, Storch e Finatto (2011), depende desta construção:

Os veículos assumem posições discursivas bastante concretas em relação ao que eles consideram as melhores posições políticas frente aos fatos e discursos do mundo social, marcando diferenças em relação a outros veículos, a outras posições discursivas, menos ou mais hegemônicas, por meio de estratégias bastante específicas em que certos valores são euforizados frente a outros, descartados. (BAIRON e PRADO, 2007, p. 252).

38

A escolha e o descarte de assuntos e abordagens passam por uma seleção de “mesmos” e “outros”, ou “mesmidade” e “outridade”, como colocam os autores. “Mesmos” são as “paisagens culturais e políticas, juntamente com seus valores, euforizadas pela mídia e homólogas à valorização média de seus público”, enquanto “outros” são aquelas paisagens culturais contra as quais a mídia estabelece “distâncias relativas, calculadas, homólogas ao afastamento que seus públicos mantêm” (BAIRON e PRADO, 2007, p. 252-253). Nesse processo, o outro pode ser escondido, vilificado ou exotificado, em uma tentativa da mídia de assimilá-lo ou segregá-lo. Os “mesmos”, para Bairon e Prado, são aqueles fatos ou personagens que obedecem a uma lógica aceita pelas classes médias e altas como modelos benéficos de crescimento e sucesso pessoal – o foco na livre iniciativa e no ato de “galgar degraus na escola socioeconômica de posicionamento social” (ibid., p. 253) – são exemplos de “mesmidades” que ganham o holofote na mídia semanal. Já a “outridade” é composta por figuras que não pertencem ao imaginário dos leitores e produtores de conteúdo, ou, se pertencem, o fazem de modo não confiável ou perigoso, notáveis no que difere os “outros” dos “mesmos”. Uma vez expostas as noções de Bairon e Prado, em complemento às de Rocha (2007) e Benetti, Finatto e Storch (2011) acerca das relações entre “eu” e “outro” na mídia, cabem os questionamentos a respeito do objeto de análise deste trabalho: De que modo a cobertura midiática da aprovação da PEC das Domésticas estabelece uma relação identitária entre um “eu” e um “outro”? Quem é o “mesmo” e o “outro” representado nesta cobertura? Nesse segundo capítulo, abordou-se o caminho teórico que será percorrido para pensar a PEC das Domésticas sob a ótica dos estudos da comunicação social, mais especificamente, dos estudos sobre o acontecimento. Assim, foi estabelecido que a PEC das Domésticas será pensada como um acontecimento, conforme França (2012), que tem duas dimensões: uma existencial, na medida em que é percebido e sentido pelos sujeitos envolvidos, e uma discursiva, a partir do momento que é transformado em discurso pela mídia e, portanto, transformado em símbolo e representação. É a construção da segunda vida deste acontecimento nas reportagens de capa das revistas Veja e Época que será abordada neste trabalho. Os critérios de noticiabilidade trazidos por Gislene Silva (2005), especialmente o 39

critério da “visão de mundo” dos jornalistas, será compreendido como um dos fatores que influenciam a construção dessa segunda vida. Ademais, foram expostas nesse capítulo as noções de Bairon e Prado (2007), Rocha (2007) e Benetti, Finatto e Storch (2011) a respeito da construção de um “eu” – ou um “mesmo” – em contraposição a um “outro” simbólico em discursos midiáticos. Assim, será analisado de que maneira isso se verifica na cobertura da PEC das Domésticas e de que modo influencia na construção da segunda vida deste acontecimento.

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4 ANÁLISE DO CORPUS

Neste capítulo, apresenta-se uma breve contextualização do histórico dos veículos selecionados para a análise, Veja e Época, bem como os dados acerca de tiragem e público alvo dos mesmos. Estas informações são relevantes a este trabalho, pois determinadas perguntas ao corpus textual tratam, por exemplo, da construção de um Eu imaginário com o qual o leitor pode se identificar – e este leitor prioriário se mostra nos dados acerca do público dos veículos. A seguir, será explicada e a sistemática de análise e, por fim, exposta a análise textual, dividida em seis segmentos. A seguir, será explicado a sistemática de análise.

4.1 DESCRIÇÃO DOS VEÍCULOS

Veja e Época foram selecionadas para compor o corpus deste trabalho, pois das quatro maiores revistas de informação do Brasil (na ordem crescente de tiragem: Veja, Época, IstoÉ e Carta Capital)8 essas foram as únicas que noticiaram a aprovação da PEC das Domésticas com uma reportagem de capa. As edições que serão analisadas são a edição 2315 da Veja, publicada em três de abril de 2013; e a edição número 775 de Época, publicada em primeiro de abril de 2013. O corpus selecionado para análise é posto pelas reportagens especiais de capa, pela capa e pelo índice de ambas as revistas. A reportagem de Época, cujo título é “SERVIÇO PELA METADE”, ocupa oito páginas e é assinada por Rafael Ciscati e Marcos Coronato. A de Veja tem como título “NADA SERÁ COMO ANTES”, é assinada por Laura Diniz e também ocupa oito páginas.

8 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EDITORES DE REVISTAS. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2013.

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4.1.1 Revista Veja

Veja é a revista de maior circulação nacional, com 1.625.262 exemplares de tiragem, 902.416 assinaturas e um total de mais de 10 milhões de leitores. Destes, 47% são homens e 53%, mulheres. Seus leitores pertencem às classes altas (50% à classe B, 26% à classe C e 21% à classe A) e residem majoritariamente no Sudeste (57%). Já a idade dos leitores é um fator mais variável: 24% têm entre 25 e 34 anos, 20% têm entre 35 a 44 e 26% possuem mais de 50 anos9. O periódico é publico pela Editora Abril, pertencente ao Grupo Abril, fundado em 1950 por César Civita, Giordano Rossi e Victor Civita. A Abril é um dos maiores empreendimentos de comunicação do Brasil e da América Latina, publicando revistas de segmentos variados, como moda, cultura, saúde, carros, entre outros (MIRA, 1997). É relevante levar em consideração, neste trabalho, a linha editorial do Grupo Abril. Em “A Construção do Sujeito Representativo da Oposição Liberal nas Páginas da Revista Veja (1979-1988)”, Caren Santos da Silveira (2010) argumenta que a Abril segue o método conhecido como “padrão liberal de jornalismo” para produzir seu conteúdo. Trata-se de um padrão jornalístico norte-americano, que se caracteriza por “imputar ao produto jornalístico uma característica empresarial e mercadológica”. Assim, o objetivo principal da editora aparece como a venda de um produto para a obtenção do lucro. Baseado nesta premissa, esse tipo de jornalismo tende a se relacionar com ideias de neutralidade, competência, autonomia e imparcialidade, visto que a informação deve ser um produto que atinja o máximo possível de “compradores” (p. 27). Destaca-se também a posição político-ideológica neoliberal de Victor Civita, cofundador da Editora Abril. Silveira traz um trecho de uma “Carta ao Leitor” publicada em Veja e assinada por Civita em 1978, na qual ele expõe abertamente a posição da empresa:

Para começar, queremos afirmar que nos consideramos liberais. Muito se tem discutido, com variados graus de sofisticação, sobre se

9 EDITORA ABRIL S/A. Publieditorial - Veja [2013]. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2013.

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estas velhas e tradicionais definições ainda são válidas. Para nós são. E ser liberal para nós, é querer o progresso com ordem, a mudança pela evolução, e a manutenção da liberdade e da iniciativa individuais como pedra angular do funcionamento da sociedade. Acreditamos, assim, no capitalismo democrático e estamos convencidos de que a livre iniciativa é o meio mais eficiente para se promover o progresso social. Isso porque consideramos a livre iniciativa o único sistema compatível ao mesmo tempo com uma sociedade pluralista, com as liberdades fundamentais do indivíduo, com a eficiência, com o dinamismo, com a inovação. E o lucro não é apenas legítimo: é essencial como motivador, aferidor de eficiência e fonte de recursos para os investimentos inadiáveis de amanhã. (SILVA, 2005, p. 65 apud SILVEIRA, 2010, p. 30-31).

O apoio à ideologia neoliberal e o método de jornalismo liberal, que enxerga a notícia como um produto a ser comercializado, portanto, são dois fatores que têm ressonância na produção de conteúdo da revista Veja e devem ser levados em consideração na análise deste trabalho. Veja, inicialmente chamada de Veja e Leia, foi fundada em 1968, sob a direção do italiano Mino Carta, no contexto da Guerra Fria e da ditadura militar brasileira. Segundo Larissa Lauffer Reihnardt Azubel, em “Revistas Veja e Época: um olhar complexo” (2012), em seu primeiro editorial, a revista se propôs a oferecer informação rápida e objetiva para que o Brasil pudesse “escolher novos rumos” (AZUBEL, 2012, p. 31). O periódico pretendia oferecer aos leitores um jornalismo interpretativo focado no contexto e nos possíveis desdobramentos de cada fato. A revista também foi pioneira em desenvolver um estilo de texto impessoal, que fazia com que o leitor tivesse a impressão que a revista inteira havia sido escrita pelo menos redator (ibid.). Conforme conta Azubel, a revista sofreu perseguição da ditadura militar até meados de 1970, tendo a cobertura política entre suas prioridades. Atualmente, no entanto, o periódico é criticado por ter adotado o estilo neocon, termo que refere-se a um jornalismo inspirado no neoconservadorismo estadunidense, de “ultradireita”. O estilo é reconhecido pelo caráter opinativo em matérias apresentadas como isentas, “pela linguagem agressiva, pelo jornalismo de denúncias, por ataques em nome da liberdade de imprensa e pela promoção [...] de acontecimentos que se afinam com a linha editorial do veículo” (ibid., p. 33).

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4.1.2 Revista Época

Época é a segunda revista semanal de maior circulação no país. Ainda assim, sua tiragem é bastante inferior a da Veja, com 389.506 exemplares. Apesar da diferença de tiragem, os demais indicadores das duas publicações são semelhantes: o público leitor de Época é igualmente dividido entre os dois sexos e pertence às classes altas (68% às classes A e B e 28% à C). Já a idade dos leitores do periódico é mais diversificada que a de sua principal concorrente, e aponta para um contingente de leitores mais jovens. A maior parte dos leitores de Época (26%) tem entre 25 e 34 anos; 20% têm entre 35 e 44; 16% têm entre 18 e 24; 13% têm entre 45 e 54 anos e 7% têm entre 10 e 17 anos10. A revista é publicada pela Editora Globo, o braço editorial das Organizações Globo, maior conglomerado de empresas do setor da comunicação da América Latina. A Globo surgiu em 1925, com a fundação do jornal O Globo, por Roberto Marinho. Desde então, a empresa estabeleceu-se no mercado da mídia impressa, radiofônica, televisiva e cinematográfica, além do setor das telecomunicações (SANTOS, 2005). Época foi fundada no Brasil 30 anos depois do surgimento do periódico que seria sua principal concorrência, Veja, em 1998, no contexto da reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso. Com abordagens que investiam tanto em assuntos cotidianos quanto em fatos políticos e macroeconômicos, o periódico inovou no mercado de revistas brasileiro ao usar textos curtos de fácil leitura, tabelas, imagens e infográficos (SILVEIRA, 2010, p. 35). Semelhante ao enfoque da Veja, a revista se foca na ideia de auxiliar na compreensão do mundo contemporâneo por meio do jornalismo interpretativo. Em 2011, a revista inaugurou um novo projeto editorial. No editorial da edição 698, de setembro de 2011, Época afirma que sua missão é sustentada por três pilares: “Em Época você sabe antes; em Época você entende melhor; em Época você aprende”

EDITORA GLOBO S/A. MídiaKit – Época [2013]. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2013. 10

44

(SILVEIRA, 2010, p. 36). A partir da nova reestruturação, a revista se divide nas editoriais “Tempo”, “Ideiais” e “Vida”. Assim, de acordo com Silveira, nota-se a tentativa de Época de manter-se na vanguarda do mercado editorial. Com uma cobertura mais plural que a da Veja, menos focado na política, a revista produz conteúdo de temáticas diversas, desde economia até moda, arte e espetáculos (ibid., p. 37).

4.2 ANÁLISE DO CORPUS TEXTUAL

A análise desta cobertura será orientada por seis perguntas específicas ao corpus textual selecionado, construídas a partir da revisão bibliográfica exposta nos capítulos anteriores deste trabalho. São elas: •

De que forma se manifesta na cobertura o caráter de “mero corpo, dispêndio de energia muscular” colocado por Souza (2009) como a característica da classe dominada?



Como a cobertura aborda a questão do público e do privado?



Como a cobertura aborda a questão da relação entre patroa e empregada?



De que maneira a cobertura analisa a PEC das Domésticas como “ruptura”?



É possível observar a prevalência de uma fala dos “dominadores” (Champagne, 2003) a respeito do serviço doméstico? É possível encontrar, no texto, lugares de fala nos quais os dominados falaram com discursos “emprestados” dos dominadores?



De que modo a cobertura midiática da aprovação da PEC das Domésticas estabelece uma relação identitária entre um “eu” e um “outro”? Quem são o “mesmo” e o “outro” representados nesta cobertura?

Optou-se por incorporar a descrição do corpus juntamente com a análise para que a leitura do trabalho permanecesse dinâmica. 45

3.2.1. Robô, espanador e pano: a classe que é corpo

Conforme Jessé Souza (2009), a característica que une os membros de “ralé estrutural” como classe social despossuída é seu caráter de existência apenas enquanto corpo – mais especificamente, como corpos que vendem energia muscular para as classes dominantes. Esse segmento da análise pretende pensar, portanto, como ocorre a “instrumentalização” da empregada doméstica na presente cobertura, ao responder a pergunta: De que forma se manifesta na cobertura o caráter de “mero corpo” como característica da classe dominada? Destaca-se, primeiramente, a imagem escolhida pelos jornalistas da Veja para ilustrar o índice da revista, na página 6 (ANEXO B): uma fotografia de uma réplica do robô em formato de empregada doméstica do desenho animado Os Jetsons,

cujos

protagonistas

são

uma

família

que

vive

em

um

futuro

hipertecnológico. A máquina veste um uniforme de doméstica e segura uma bandeja com alimentos típicos de café da manhã. A escolha do robô para representar a empregada doméstica e anunciar a matéria, dentre todas as imagens possíveis presentes na reportagem, reflete uma visão desumanizadora da empregada doméstica, que é representada como alguém sempre à disposição dos patrões: uma máquina, afinal, nada mais é do que um objeto que dispende energia para realizar determinada função ou tarefa. O uso de imagens de objetos para representar a questão da PEC das Domésticas também ocorre em Época. Para ilustrar sua capa (ANEXO G), a revista optou por uma imagem de um espanador limpando a poeira do título “EMPREGADA DOMÉSTICA”. O objeto se destaca diante do fundo branco e é segurado por uma mão feminina e caucasiana que aparece na parte superior direita da capa. A imagem se relaciona com a linha de apoio, na qual se lê “POR QUE NOSSAS LEIS TRABALHISTAS AINDA PRECISAM DE UMA BOA FAXINA”. O espanador, então, aparece figurativamente “tirando a poeira” da categoria empregada doméstica, como se revelasse fatos que permaneceram escondidos ou intocados por muito tempo. A revista utiliza recurso semelhante também na fotografia de abertura, que ocupa as páginas 64 e 65, que retrata um braço, vestindo uma luva de limpeza, passando um pano no título “SERVIÇO PELA METADE” (ANEXO H). 46

Apesar de haver um sentido figurado na escolha da imagem, para significar a revelação de algo que estava escondido e empoeirado, sujo, a escolha de representar a temática da PEC das Domésticas através de um espanador e um pano denota a objetificação da empregada doméstica. A doméstica, sujeito desta “limpeza”, pessoa cujos direitos trabalhistas foram “limpos”, não é protagonista destas imagens. É a “limpeza” em si, ou seja, o ato que a empregada doméstica realiza em seu trabalho, que é retratado na capa. A doméstica, então, é invisibilizada e, ao mesmo tempo, reduzida à energia muscular que dispende em seu trabalho. Além da escolha das imagens, a coisificação da empregada doméstica se manifesta de outras maneiras ao longo das coberturas, o que pode ser observado através dos diversos trechos estabelecidos como “manuais” para ajudar o empregador a se adaptar aos novos direitos trabalhistas. Em Veja, há um box nas páginas 80 e 81, intitulado “Quanto vai custar: como calcular o custo mensal de uma empregada doméstica após as mudanças”. Lacunas de valores como “salário-base”, “horas extras”, “salário final”, “FGTS” e “INSS” podem ser preenchidas pelo leitor para formar uma equação e chegar ao valor final. Desse modo, as conquistas trabalhistas das domésticas aparecem descontextualizadas, apenas como um fator material em uma equação na vida dos patrões. Não há, neste box nem no texto completo da reportagem, espaço onde se aborde de que modo estas conquistas – expostas aqui como lacunas – transformam a vida de membros dessa categoria. Já em Época, um box chamado “Quanto custam as novas regras” (p. 70) simula as taxas a serem pagas para uma “doméstica, mãe de um filho de 4 anos, que trabalha 44 horas semanais, faz três horas extras por semana (uma delas com adicional noturno)”, destacando o valor total a ser pago e o valor que o empregado de fato receberá, descontados os impostos. Diferente da Veja, Época contextualiza a realidade da funcionária, em uma abordagem menos coisificada. Porém, ainda assim, os novos valores são abordados em termos de “custo ao empregador”, e não de ganhos ou conquistas das empregadas, o que mantém seu caráter de manual direcionado aos patrões. Em Veja, a doméstica é citada, na maioria dos casos, em termos numéricos, a exemplo do trecho da página 77, que expõe que “o aumento médio no custo de uma empregada que trabalha até oito horas por dia não passa de 8%, o de outra, que cumpre uma jornada de apenas duas a mais, chega a 72%”. Em Época isso também 47

ocorre, embora de maneira menos frequente, conforme se verá com melhor precisão nos segmentos seguintes. O aumento do salário das domésticas é mais descrito como custo aos patrões do que como ganho das empregadas, como nos trechos: “A garantia dos direitos desses empregados levará os patrões a gastar pelo menos 8% a mais na contratação formal do serviço” (p. 65) e “Paula estima que seu gasto anual aumente em torno de R$ 6 mil” (p. 68). Importante ressaltar que, em Veja, com exceção da citação da única doméstica entrevistada na página 80 e do trecho acerca da relação entre público e privado no trabalho doméstico, que será abordado a seguir, todas as demais menções a empregadas domésticas aparecem atreladas a questões de custo e obrigações dos patrões. Assim, a revista não desfaz a imagem coisificada que estabeleceu com a escolha da fotografia do robô para representar o tema da matéria, visto que em poucos momentos as domésticas são tratadas como sujeitos da reportagem, existentes e importantes em si mesmas e não apenas em relação aos patrões. Em Época, há mais foco na autonomia e na conquista de direitos da categoria,

conforme

se

abordará

nos

próximos

segmentos.

No

entanto,

determinadas escolhas da revista – como o uso de imagens de um pano e de um espanador e a construção de boxs que servem como manuais da nova lei – denotam, ainda que menos que Veja, uma objetificação destas trabalhadoras.

4.2.2 Entre a negação do direito e a compra dos sonhos: exploração e intimidade no espaço público e privado

A empregada doméstica se encontra em um ponto de tensão entre o público e o privado na sociedade brasileira, conforme exposto no primeiro capítulo deste trabalho. Segundo Silveira (2011), as relações entre patrões e funcionárias são emocionalmente promíscuas devido à ideia de que as domésticas são tratadas “como se fossem da família”. Assim, neste segmento da análise, será respondida a pergunta: como a cobertura aborda a questão da empregada doméstica em sua relação com o espaço público e o espaço privado?

48

Essa temática é abordada com bastante ênfase na reportagem da Veja, principalmente em dois momentos: em parte do texto principal e na legenda de uma fotografia na página 81. Primeiramente, será analisada a imagem. Ao lado da fotografia de uma empregada doméstica, há uma fotografia que contém, em primeiro plano, uma mulher de meia idade, de expressão séria, sentada em uma poltrona em uma sala de estar (ANEXO F). Em segundo plano, é possível ver uma empregada doméstica lavando o chão. A legenda traz o título “[...] E O DESCONTENTAMENTO DA PATROA”, uma continuação da legenda da fotografia ao lado, intitulada “A SATISFAÇÃO DA DOMÉSTICA...”. No texto que segue, lê-se que a mulher que aparece em primeiro plano, uma advogada chamada Sônia Mascaro Nascimento, “não vê sentido” em uma jornada de trabalho rígida para as domésticas: “Elas têm contato com a intimidade da família, é uma relação mais próxima e, portanto, flexível. Não dá para tratar como negócio.” Sônia argumenta que sua empregada serve o café às 8 da manhã e o jantar às 8 da noite, mas descansa parte do dia. “Não tem cabimento burocratizar a relação que tenho com alguém que vê TV comigo.” (p. 81). [grifo do autor]11.

A fala de Sônia ilustra a indisposição histórica do Estado e das classes dominantes de regular o trabalho que ocorre no âmbito privado, mantendo, assim, a condição de “quase absoluta subordinação” das domésticas aos chefes das casas onde estas trabalham (BRITES, 2008, p. 8). A fala da advogada sobre assistir televisão ao lado da doméstica parece tentar estabelecer uma relação de afetividade e igualdade entre ela e sua funcionária. No entanto, a fotografia escolhida pela Veja para ilustrar a reportagem não remete a uma ideia de igualdade e solidariedade entre as duas: a imagem da advogada sentada em primeiro plano, olhando diretamente para a lente da câmera, de cabeça erguida, contrasta com a doméstica em segundo plano, de rosto abaixado, lavando o chão, quase como se fosse um dos objetos luxuosos da sala de estar onde a entrevistada se encontra, de modo que não se estabelece uma relação de igualdade ou mesmo de carinho entre patroa e empregada.

11

Optou-se por grifar, nos exertos das reportagems, as palavras e expressões que terão destaque na análise textual, por representarem as ideias centrais expostas pela reportagem.

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Veja aborda a questão do espaço público e do espaço privado também no texto principal da reportagem, em três parágrafos dedicados ao tema. Na página 77, a historiadora Mary Del Priore é entrevistada para explicar que o serviço doméstico deriva da escravidão e ainda guarda as marcas deste período: Ao estabelecer regras de microempresa em território doméstico, em mais de um aspecto regido pela informalidade, ela [a PEC] vai alterar a natureza de uma relação que nasceu ambígua e cresceu confusa. “A relação empregada-patroa, que mistura exploração e solidariedade, tem origem no período da escravidão, quando a senhora da casa não tinha outra função que não a de acompanhar o serviço da cozinha e passava o dia ao lado das escravas e seus filhos”, diz a historiadora Mary del Priore. “A situação acabava gerando intimidade, mas não anulava o caráter de exploração da relação. Isso deixou marcas nos dias de hoje, ainda que o cenário e as condições tenham mudado”, afirma. [grifo do autor].

Percebe-se no trecho “regras de microempresa em território doméstico” a demarcação clara, estabelecida pela revista, entre o espaço público e o espaço privado, a casa e a rua (DAMATTA, 1987). Destaca-se também a escolha do termo “ambígua” para caracterizar o nascimento da relação patroa-empregada, que, conforme a historiadora entrevistada, nasceu durante o período escravocrata. A revista, então, escolhe caracterizar uma relação entre senhor e escravo como ambígua, e não como puramente violenta e exploratória. Após a explicação de Priore, a reportagem segue afirmando que dizer que a doméstica é “como se fosse da família” pode ser, nas palavras da Veja, uma “verdade sentimental”, mas pode também acarretar o “escamoteamento de obrigações empregatícias” (p. 79). Em seguida, a repórter coloca que este “sistema de solidariedade” também tem benefícios para as domésticas: É graças a ele que muitos contam há tempos com benefícios que a lei não previa, mas que sempre lhes foram facultados por empregadores que achavam justo proceder assim. É também por causa dele que muitos patrões custeiam a educação de suas empregadas, providenciam atendimento médico para seus filhos, bancam sonhos e desejos daquelas que lhes servem, aturam e querem genuinamente bem. (p. 79).

Destaca-se esse trecho, pois ele revela a tentativa da reportagem de não classificar, de forma generalizada, a relação entre patrões e domésticos como 50

“exploração”. Após a explanação de Priore, que traz a relação do serviço doméstico com a escravidão, a reportagem lembra o caráter afetivo e solidário da relação entre empregadores e domésticas – exposto especialmente no uso dos termos “bancam sonhos” e “querem genuinamente bem”. Há, através desta ressalva, um apagamento e uma negação da ideia de que exista uma luta de classes no Brasil, um conflito intrínseco, estrutural, entre a ralé e a classe que explora sua força muscular. A revista estabelece, assim, uma democracia entre as classes – semelhante àquela que o senso comum afirma que existe em relação às raças e etnias no Brasil. Importante trazer a contribuição de Souza (2009), exposta no primeiro capítulo deste trabalho, de que a noção da existência de justiça e dignidade nas relações entre as classes é imprescindível para a naturalização da desigualdade, pois “é precisamente a ilusão da ausência de dominação social injusta” que legitima a dominação social (SOUZA, 2009, p. 388). A reportagem segue fazendo a ressalva de que esse sistema deixa as domésticas à mercê da sorte de encontrar um “bom patrão”, o que a revista classifica como “uma injustiça”. Essa injustiça seria finda, segundo Veja, com a PEC das Domésticas. Mas o texto coloca que a lei poderá “complicar” a situação e fazer com que os patrões sofram injustiças: fazer um chá para o patrão seria considerado trabalho? E brincar com as crianças? O texto esclarece que o que for “ordenado” é trabalho, e o que for “voluntário” não, mas lembra que esta é uma zona cinzenta que poderá trazer “uma avalanche de processos judiciais, não necessariamente fundados, contra patrões”. O risco de processos judiciais, então, é um problema causado pelo lugar confuso que a doméstica ocupa entre público e privado, uma tensão que está lastrada na cultura brasileira. Percebe-se que, para a revista, esse seria o maior malefício da situação, visto que não se encontra, no texto, nenhuma ressalva ou “porém” – diferentemente do problema do “sistema de solidariedade” entre empregadores e funcionárias, que é exposto como uma situação que leva à negação dos direitos trabalhistas, mas redimido pelos “bons patrões” que “bancam os sonhos” das empregadas. Apesar das ressalvas quanto ao caráter de exploração do serviço doméstico, que parece tentar absolver os patrões ao lembrar que alguns desses são benevolentes, é preciso destacar que os três parágrafos sobre a questão do público 51

e do privado são o momento em que a reportagem da Veja aborda o serviço doméstico de maneira mais crítica. É também o único espaço em que as possíveis mazelas da profissão – a exploração, a negação de direitos – são apresentadas no texto. Além disso, é um dos dois trechos nos quais a empregada doméstica é o sujeito principal da argumentação, e não mencionada em relação às mudanças na vida dos patrões. O segundo trecho é a legenda da fotografia da doméstica Roberta de Oliveira Lima, a ser analisado nos seguintes segmentos. Diferentemente da Veja, Época não tem a questão do espaço público e privado como um dos focos de sua reportagem. O texto caracteriza as antigas condições de trabalho das domésticas como “precárias” e informais (p. 64), mas não explica essa informalidade através da cultura e da herança escravocrata, como Veja o faz. O único momento em que a tensão entre público e privado é mencionada na reportagem é em seu último parágrafo, em uma fala da socióloga Luana Pinheiro. Ela afirma que “o emprego doméstico muitas vezes se mistura com relações pessoais, desprovidas de profissionalismo” (p. 67). Ao contrário da Veja, Época não elenca pontos positivos desta proximidade. A fala de Pinheiro aparece em um contexto no qual a reportagem trata da diminuição do número de mulheres que desejam trabalhar no serviço doméstico, mostrando esta “pessoalidade” da relação entre patrão e empregada como um ponto negativo deste tipo de trabalho. Conclui-se, então, que ambas as revistas abordam a temática da empregada como figura de tensão entre o público e o privado com criticidade, mas não estabelecem uma relação direta e totalizante entre essa “proximidade” de patrões e empregados e a possível exploração destes. Embora Veja coloque que essa tensão entre público e privado é central para a manutenção da precariedade no serviço doméstico, a revista também expõe um lado positivo do que chama de “sistema de solidariedade”, significando que não só exploração pode resultar desta dinâmica. Já Época não aponta benefícios desta intimidade, mas não a coloca como causadora da falta de direitos trabalhistas das domésticas.

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4.2.3 Quem consegue viver sem empregada? Dependência, conflito e afeto entre patroa e doméstica

A questão de gênero é um tema inseparável do debate acerca do serviço doméstico, questão para onde convergem as discussões de classe, gênero e etnia de maneira complexa. Aqui, é relevante lembrar-se do argumento de Elsa Brown (1992), mulheres da classe dominante só vivem a vida que vivem graças ao trabalho de mulheres da classe trabalhadora. Tomando essa afirmação como premissa, pergunta-se: como a cobertura aborda a relação entre patroas e domésticas? A abordagem centrada no gênero aparece na cobertura da Veja, a começar pela fotografia da capa, na qual um homem é mostrado lavando louça, acompanhada do título “VOCÊ AMANHÔ. A questão da construção de um “eu” com o qual o leitor se identifica será abordada ainda neste capítulo. Neste momento, a análise se focará no sentido que Veja quis oferecer a seus leitores ao escolher a imagem de um homem: a alusão a uma mudança na divisão sexual do trabalho doméstico. Assim como a capa, a fotografia que abre a reportagem (ANEXO C), nas páginas 74 e 75, também é marcada pelo gênero: a imagem de uma mulher caucasiana jovem sentada em frente a uma escrivaninha, com duas crianças pequenas em seu colo. Em cima da escrivaninha é possível ver papéis, um smartphone e um notebook. A mulher não sorri; a criança da direita olha para a mãe, também sem sorrir; a criança da esquerda parece chorar enquanto coloca um smartphone na boca. A legenda, em formato de um pequeno texto, pode ser lida no canto inferior direito da página 75: o título “A NOVA JORNADA DUPLA” refere-se à mulher da imagem. O texto informa que ela, uma advogada, possui duas empregadas domésticas – “daquelas que fazem tudo”, nas palavras da entrevistada. Lê-se que, antes da lei, as funcionárias não tinham horário fixo de trabalho, mas, depois da PEC, trabalham das 9 às 18h. Devido à mudança, a advogada “tenta adaptar sua rotina” adiantando reuniões de trabalho para evitar que as empregadas façam hora extra. A reportagem informa que ela mesma colocará os filhos para dormir e depois fará o trabalho de casa.

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Fica evidente, através dessa narrativa, o enfoque na dependência da mulher de classe média ou alta da empregada doméstica. A fotografia sugere as dificuldades que a advogada enfrentará agora que suas empregadas têm uma jornada fixa, através da imagem dos dois bebês com expressões apreensivas, como se fossem chorar, e dos objetos de trabalho espalhados sobre a mesa de maneira caótica. Na página 75, uma fotografia da modelo brasileira Yasmin Brunet, sentada em uma poltrona segurando um espanador, aparece acompanhada por uma legenda intitulada “A PATRICINHA QUE DÁ CONTA DO SERVIÇO” (ANEXO D). O título estabelece a rotina de Brunet como uma exceção, pois deixa subentendido que “patricinhas”, ou seja, moças pertencentes à elite, não fazem tarefas domésticas no Brasil. Brunet é trazida para exemplificar a vida das mulheres das classes médias e altas nos países desenvolvidos, visto que conta à reportagem que “aprendeu a lavar, passar e cozinhar” quando morava em Nova York, nos Estados Unidos, onde dividia as tarefas com o marido. Destaca-se que a abordagem positiva da divisão de tarefas é, em si, um discurso antissexista, pois desvirtua a norma cultural patriarcal que estabelece que as mulheres devem cuidar do lar, do espaço privado, e os homens, do espaço público. No entanto, a revista escolheu o termo pejorativo “patricinha”, que remete à futilidade de mulheres jovens, para referir-se à modelo, caindo assim em um jargão sexista. Na legenda da fotografia, Brunet é citada explicando que o marido a ensinou a ser “mais mulherzinha” – significando que, para ela, realizar tarefas domésticas a coloca mais próxima de sua feminilidade, uma feminilidade tradicional, submissa, marcada pelo diminuitivo. A ideia de Maria Suely Kofes de Almeida (1982) de que a identidade da mulher é constituída a partir do ambiente doméstico comprova-se, então, no discurso de Brunet selecionado pela revista. A modelo ainda é citada falando que “a casa é minha, sou eu que tenho que mantê-la bonita”, ao explicar porque não contrata uma doméstica. Assim, Brunet reafirma que a manutenção do espaço doméstico é sua obrigação, mas difere-se da maioria das mulheres de classes abastadas brasileiras, cujo ato de cuidar do lar se mantém através das ordens dadas às domésticas (ibid.).

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A diferença de rotina das mulheres dos países desenvolvidos, como os da América do Norte e da Europa, e das mulheres dos países periféricos é novamente abordada na reportagem, na página 77. A repórter afirma que, na Europa, as domésticas representam apenas 0,3% da força de trabalho. Porém, ressalta que “evidentemente, a europeia só consegue viver sem empregada porque sua realidade é diferente, a começar pelo fato de que seu marido lava os pratos e suas crianças fazem a própria cama”. A reportagem faz, assim, um recorte não apenas de gênero, mas de classe. Obviamente, há mulheres que “conseguem viver sem empregada” também no Brasil: as mulheres da classe trabalhadora ou, conforme Souza (2009), da ralé estrutural. O texto cita também a qualidade e o bom preço dos eletrodomésticos na Europa como outro fator que faz com que famílias não precisem de domésticas. A falta de referências às questões socioeconômicas e culturais de países desenvolvidos da Europa que contribuem para a inexistência de empregadas domésticas – entre elas, a ausência de uma cultura escravocrata e a maior distribuição de renda entre as classes – mostram uma naturalização da necessidade da família brasileira de contar com serviços domésticos. Assim, para a reportagem, os culpados pela existência da doméstica são a divisão sexista das tarefas e a falta de acesso a bons eletrodomésticos. Na conclusão do texto principal da matéria, na página 81, a reportagem volta ao tema da divisão de tarefas ao elencar as “saudáveis mudanças de hábitos nas famílias” que poderão ocorrer a partir da PEC. Entre elas estão uma divisão “mais igualitária” das tarefas domésticas e o aumento das cobranças do poder público por melhorias nos sistemas de creche e transporte público – tudo para tornar “menos sacrificada a vida de quem trabalha, precisa cuidar do lar, e, a partir de agora, terá de contar cada vez menos com ajuda profissional em casa”. Nota-se, então, que a revista naturaliza o serviço doméstico ao estabelecê-lo como uma necessidade das “famílias brasileiras” (no caso, as famílias de classes dominantes, embora Veja não faça essa ressalva em nenhum momento, conforme veremos no sexto segmento desta análise), principalmente das mulheres, e não como um luxo ou um traço da sociedade brasileira, derivado de um contexto cultural (a cultura escravocrata) e social (a desigualdade entre as classes) específico.

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Época opta por uma abordagem bastante diferente da Veja ao não estabelecer uma relação de conflito entre patroas e domésticas. O assunto da divisão sexual do trabalho é mencionado apenas em um box intitulado “PESO SOBRE AS MULHERES”, que revela o número de empregados domésticos no mundo e no Brasil, a parcela feminina de cada um e a porcentagem de domésticas no total de trabalhadoras (p. 67). Também não há menção às dificuldades das famílias de classes abastadas de viver sem empregadas domésticas, como na Veja. Das três fotografias que ilustram a reportagem de Época, duas mostram patroas e empregadas juntas e uma mostra um casal de patrões. A senadora Lídice da Mata (PSB-BA), relatora da PEC das Domésticas, e a empregada que trabalha em sua casa, Maria da Conceição, aparecem sorrindo em uma fotografia nas páginas 66 e 67 (ANEXO I). Maria serve café para Lídice em uma cozinha simples. A imagem não parece ser posada e as duas olham uma para a outra, Lídice sentada à mesa e Conceição de pé, sendo fotografada de costas, com seu rosto aparecendo apenas de perfil. O primeiro parágrafo da reportagem introduz Lídice e Conceição e expõe que “ambas ficaram felizes” com a aprovação da PEC. Ao optar por entrevistar Lídice, Época denota que não há um conflito de interesses intrínseco entre patroas e empregadas: a própria relatora da lei, afinal, é uma patroa. Outra fotografia, essa de página inteira, mostra a advogada Paula Almeida de pé entre seus dois empregados, a doméstica Maria Lúcia e o motorista Adenilson (ANEXO J). Os funcionários estão sentados em cadeiras, uniformizados, e Paula tem as mãos colocadas sobre os ombros dos dois. Todos sorriem olhando diretamente para a câmera. Na legenda, intitulada “NOVOS DIREITOS, NOVAS CONTAS”, lê-se que Paula “já fez as contas” de quanto gastará com seus empregados. Ela pagará FGTS e seguro de trabalho para Maria e horas extras para Adenilson, que já recebe FGTS. Ao final do texto que compõe a legenda, a revista explica que o gasto anual de Paula aumentou em torno de R$ 6 mil. A pose de Paula, de pé entre os dois funcionários, sugere uma posição de autoridade sobre os dois, ao mesmo tempo em que suas mãos colocadas sobre os ombros de Maria e Adenilson denotam afetividade e proteção. A legenda da fotografia, apesar de qualificar os R$ 6 mil de benefícios como um “gasto”, não demonstra frustração ou infelicidade por parte da patroa a respeito da nova lei.

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A última fotografia da Época apresenta um jovem casal sorrindo, cada um segurando uma de suas filhas gêmeas, ainda bebês (ANEXO L). A legenda intitulase “DUAS BABÁS A MENOS” e conta que o casal chegou a contratar duas babás quando as gêmeas nasceram, mas, com a nova lei, dispensaram-nas e colocaram as crianças em uma creche de tempo de integral. Assim como a fotografia mencionada anteriormente, esta mostra patrões sorridentes e não menciona reclamações ou malefícios da nova lei, apenas demonstra o que estes patrões mudarão em suas vidas, sem emitir juízo a respeito destas mudanças. Logo, Época opta por construir uma narrativa em que domésticas são beneficiadas pela PEC e patroas têm suas vidas alteradas devido à lei, mas não para pior. A demarcação desta relação de afetividade, e não de conflito, entre patroa e doméstica é demonstrada especialmente pela escolha de entrevistar a senadora Lídice da Mata e sua funcionária Maria.

4.2.4 Tirando a poeira: a PEC das Domésticas como ruptura

A autora pensa na PEC das Domésticas como um acontecimento nos moldes de Louis Quéré. Segundo França, o acontecimento “é portador de uma diferença e de uma ruptura” (2012, p.13), é um fato que desorganiza o presente e altera o futuro. Então, neste segmento da análise, responde-se a pergunta: De que maneira a presente cobertura significa a PEC como ruptura? Percebe-se que a revista Veja aborda a aprovação da PEC das Domésticas como uma ruptura com o passado, um ponto definidor de uma nova vida para as “famílias brasileiras”. Já na linha de apoio presente na capa, a revista coloca que as novas regras trabalhistas são um “marco civilizatório” para o Brasil. O título da reportagem, exposto na página 75, também conjuga este significado de ruptura: “NADA SERÁ COMO ANTES”. As primeiras frases do texto seguem a mesma lógica: “Não, ainda não é o fim. Mas, sim, é certo que nada será como antes.” O final do primeiro parágrafo atenta especificamente para o caráter de transformação do passado, de “desvelar o não-visto, iluminar o opaco” (FRANÇA, 2012, p.13) do

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acontecimento, ao colocar que “[a aprovação da PEC é] uma oportunidade para o Brasil se livrar de uma poeira que há muito ficou sob o tapete”. A ideia de ruptura e de “grandes mudanças” (VEJA, p. 81) permeia toda a reportagem, que se conclui praticamente repetindo seu título: “A vida não será como antes. Mas pode até melhorar”. O inevitável questionamento de quem sofre essa ruptura, segundo a Veja, será respondido neste capítulo, quando forem abordados a segunda vida do acontecimento e a construção da mesmidade. A Época também utiliza a metáfora da poeira para significar a PEC como um acontecimento que revela o passado e transforma o futuro: em sua capa, um espanador tira a poeira do título “EMPREGADA DOMÉSTICA”. A revista utiliza recurso semelhante em sua imagem de abertura da reportagem, nas páginas 64 e 65: um pano limpa o título “SERVIÇO PELA METADE”, que parece escrito em uma parede ou no chão. Na linha de apoio, lê-se “o Brasil se prepara para fazer uma faxina nas condições precárias e na informalidade dos serviços domésticos” (p. 64). A doméstica, então, é significada como uma categoria que havia sido esquecida pela legislação trabalhista e é resgatada de seu ostracismo e de sua invisibilidade pela nova lei.

4.2.5 Oito contra um: quem tem o poder de falar

Patrick Champagne (2003) argumenta que grupos classificados como “dominados”, em sua maioria, não têm direito à fala na mídia. Assim, segundo o autor, os acontecimentos midiáticos são sempre narrados sob a ótica dos dominadores, independentemente de “a quem” o acontecimento tenha ocorrido. Nesta análise, tomaremos como grupo dominado os indivíduos pertencentes à ralé estrutural (SOUZA, 2009), no caso em tela como as domésticas, e, como grupo dominante, indivíduos pertencentes às classes médias e altas, potenciais empregadores. O objetivo deste segmento, então, é analisar quem tem o lugar privilegiado de fala nas reportagens da Veja e da Época e responder às perguntas: É possível observar a prevalência de uma fala dos “dominadores” a respeito do serviço

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doméstico? É possível encontrar, no texto, lugares de fala nos quais os dominados falaram com discursos “emprestados” dos dominadores? Primeiramente, cabe elencar as fontes citadas nas reportagens. A matéria da Veja contém nove entrevistados, contando tanto as entrevistas presentes no texto principal quanto as falas citadas em legendas de fotografias. A primeira entrevistada é Flávia Galtti Gamba (p. 75), uma advogada que conta como precisou transformar sua rotina de trabalho após a aprovação da PEC, pois não pode mais pedir que suas duas empregadas trabalhem à noite. O depoimento de Flávia faz parte da legenda que acompanha sua fotografia. Na página 76, outra mulher é entrevistada: a modelo Yasmin Brunet, que fala sobre sua experiência de divisão de tarefas domésticas com o marido quando morava nos Estados Unidos. A fala de Yasmin, assim como a de Flávia, aparece na legenda de um retrato seu. O financista estadunidense William Skillman é citado na página 77 para explicar que o uso de aparelhos domésticos foi o grande responsável pela redução da contratação de domésticas no Reino Unido. Na mesma página, o professor Samy Dana, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, um especialista em finanças pessoais, aponta que as vendas de máquinas de lavar aumentarão nos próximos anos no Brasil. Ainda na página 77, a historiadora Mary del Priore é citada lembrando da relação histórica do serviço doméstico com a escravidão e argumentando acerca do caráter de exploração que nasce da ideia de que o relacionamento entre patroa e empregada é íntimo e solidário. Nas páginas 79 e 81, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Ives Gandra da Silva Martins Filho afirma que é preciso que Juízes do trabalho apliquem a nova lei “com ponderação” para não serem injustos com patrões. A única empregada doméstica citada pola Veja aparece na página 80. Roberta de Oliveira Lima afirma que não tem vergonha de ser doméstica e que essa é uma “carreira como outra qualquer”. A citação aparece no texto que compõe a legenda de uma foto na qual ela estende um lençol branco sobre uma cama (ANEXO E). Na página 81, a advogada Sônia Mascaro Nascimento critica a nova lei ao afirmar que “não dá para tratar como negócio” a relação entre patroa e empregada. A citação de Sônia faz parte da legenda de uma fotografia sua que aparece ao lado da fotografia da doméstica Roberta. Na mesma página, Luiz Guilherme Scorzafave, economista e professor da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto, afirma que a empregada doméstica “já vinha sendo 59

valorizada pelo mercado” e que a PEC reconheceu essa realidade. O professor Samy Dana, citado anteriormente, aparece novamente no penúltimo capítulo da reportagem com a previsão de aumento dos contratos de serviços de passadeiras, lavadeiras e motoristas. Dos nove entrevistados, cinco são especialistas (os financistas William Skillman e Samy Dama, a historiadora Mary del Priore, o ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho e o economista Luiz Guilherme Scorzafave); três são mulheres de classes dominantes (as patroas Flávia Gamba e Sônia Nascimento e a modelo Yasmin Brunet, que não tem uma doméstica contratada); e uma é a empregada doméstica Roberta de Oliveira Lima. Então, conclui-se que, desses entrevistados, oito pertencem ao grupo dominante e apenas uma ao grupo dos dominados. Dos oito dominantes, destaca-se que apenas a historiadora Mary del Priore fala “a favor” dos dominados em um discurso que não naturaliza e instrumentaliza a profissão, oferecendo uma visão crítica da exploração do trabalho doméstico. Apesar de poder se argumentar que o economista Luiz Guilherme Scorzafave falou positivamente do serviço doméstico como uma profissão “valorizada pelo mercado”, entende-se aqui que o foco na “valorização” da profissão sob um viés mercadológico opera como uma naturalização da desigualdade social. Ao aceitar acriticamente a existência da profissão da empregada doméstica sem problematizar a desigualdade social e o contexto cultural dos quais essa deriva, o entrevistado e, por não estabelecer nenhum contraponto, a revista naturaliza a estrutura de classes brasileira, na qual, como argumenta Souza, uma classe despossuída trabalha a baixo preço para a classe dominante (2009, p. 410). Conclui-se, portanto, que o argumento de Champagne encontra respaldo na reportagem da Veja. Apesar de tratar de um assunto que diz respeito em grande medida às empregadas domésticas – afinal, são elas que conquistaram os direitos trabalhistas, – a revista escolheu abordar o assunto através da perspectiva de mulheres da classe dominante e de especialistas. Esses últimos, à exceção da historiadora, comentam a temática da PEC sob um viés econômico e/ou mercadológico e sempre em relação à vida dos patrões: ora um financista aborda a importância das máquinas de lavar para as mulheres europeias que não têm domésticas, ora um ministro do Judiciário alerta para a possibilidade dos patrões serem processados pelas funcionárias. 60

O depoimento da única doméstica entrevistada é este: “Não tenho nenhuma vergonha de ser doméstica, hoje é uma carreira como qualquer outra”. Destaca-se, então, outro argumento de Champagne (2003): o de que, quando os meios de comunicação oferecem voz aos dominados, eles buscam sempre – por vezes de maneira inconsciente – encontrar alguém que reforce o discurso dos dominantes. Obviamente há domésticas que de fato se sentem, como a entrevistada Roberta, confortáveis em suas profissões. Porém, é preciso notar que a revista deliberadamente escolheu dar voz a essa doméstica e não buscar um contraponto. Não há, na reportagem, nenhuma doméstica expondo as agruras da profissão, nem mesmo quando o caráter de exploração do serviço doméstico é lembrado pela historiadora entrevistada. Assim, a fala de Roberta reforça o discurso naturalizante de que o emprego doméstico “é como qualquer outro”, embora a própria reportagem coloque, em dado momento, que há um caráter exploratório por parte das classes que usufruem deste serviço. A Época, por sua vez, traz seis entrevistados e três fontes que aparecem em fotografias, mas não dão depoimentos diretos. A primeira entrevistada é a doméstica e estudante Maria da Conceição de Jesus, que afirma que, com os novos direitos, sua categoria se igualou aos outros trabalhadores (p. 64). Maria trabalha na casa de outra entrevistada, a senadora Lídice da Mata (PSB-BA), relatora da PEC das Domésticas. Lídice diz estar orgulhosa com a aprovação da lei e justifica sua felicidade ao dizer que a PEC trata de pessoas que, “em pleno século XXI”, trabalham 12 horas por dia e não têm garantias (p. 65). O próximo entrevistado é Mário Avelino, presidente da ONG Doméstica Legal. Avelino afirma à Época que a mudança é “justa”, mas faz a ressalva de que a lei deveria vir acompanhada de “medidas que tirassem os encargos de cima do empregador” (p. 65). Na página 66, Gabriel Ulyssea, coordenador da área de pesquisas de trabalho e renda do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), afirma que é provável que ex-domésticas assumam novas vagas em outros setores da economia. O pesquisador é citado novamente, na página seguinte, explicando que os setores de serviços e de comércio requerem contratos de trabalho mais flexíveis que, por hora, a legislação trabalhista brasileira não fornece. O pesquisador Naércio Menezes, da escola de negócios Insper, expõe, na página 67, que “quem insiste em trabalhar como doméstica” deixa de “surfar na onda” das novas oportunidades de emprego em 61

outros setores. A última entrevistada do texto principal da reportagem é a socióloga Luana Pinheiro, do Ipea. Luana afirma que o serviço doméstico se mistura com relações pessoais e torna-se desprovido de profissionalismo, e que algumas domésticas se sentem amigas das patroas, “mas sabem que não são próximas o bastante para ser convidadas a sair juntas” (p. 67). Na página 69 a advogada Paula Almeida aparece em uma fotografia entre sua empregada doméstica e seu motorista. Apesar de os empregados estarem na fotografia, considera-se que Paula é uma fonte da reportagem e eles não, pois a legenda da foto trata da vida de Paula: o texto expõe que a advogada “já fez as contas”, que pagará FGTS, seguro-trabalho e hora extra para os funcionários, e que ela gastará R$ 6 mil por ano com os novos encargos. Nas páginas 70 e 71 uma fotografia mostra o casal Rodrigo e Claudia Dias segurando suas filhas gêmeas. Na legenda, lê-se que eles dispensaram as duas babás contratadas para cuidar dos bebês depois da aprovação da nova lei e colocaram as filhas em uma escola de tempo integral. Paula, Rodrigo e Claudia não são citados diretamente na reportagem, as informações a respeito dos três patrões são incorporadas no texto das legendas de suas respectivas fotografias. Conclui-se, então, que a reportagem apresenta quatro fontes que são patrões (Lídice da Mata, Paula Almeida, Rodrigo e Claudia Dias), uma fonte que é empregada doméstica (Maria da Conceição) e quatro especialistas (Mario Avelino, Gabriel Ulyssea, Naércio Menezes e Luana Pinheiro). Dos nove entrevistados, oito pertencem ao grupo dos dominantes e apenas um ao grupo dos dominados, da mesma forma que a Veja. Confirma-se, novamente, a tese de Champagne (2003) de que os dominados não recebem o mesmo espaço de fala na mídia, nem mesmo quando os acontecimentos dizem respeito diretamente a eles, como a PEC das Domésticas. No entanto, é importante ressaltar que a Época diferencia-se da Veja em sua abordagem, pois nem todos os entrevistados do grupo dominante falam diretamente a favor das classes superiores, nem em termos que dizem respeito apenas à vida dos patrões. Entre o grupo de empregadores entrevistados, a senadora Lídice da Mata, patroa de duas empregadas, critica a situação precária do serviço doméstico antes da aprovação da lei: “Estamos falando de pessoas que, em pleno século XXI, trabalham 12 horas por dia. Trabalham dez anos numa casa e depois são demitidas sem direito a nada” (p. 65). Há, assim, uma exposição clara dos abusos cometidos 62

contra as domésticas, sem espaço para ressalvas e sem a demonstração de exceções, como os “bons patrões” da Veja. Já os demais patrões – Paula, Rodrigo e Claudia Dias – falam a respeito das mudanças em suas vidas e do aumento de seus gastos. Logo, falam a partir do ponto de vista dos dominantes. Ainda assim, eles não estabelecem um conflito entre patrões e empregadas nem criticam a PEC. Entre os especialistas, também há um equilíbrio entre os que falam pelos dominados ou pelos dominantes. O pesquisador Gabriel Ulyssea, do Ipea, explica que o possível contingente de domésticas que serão demitidas devido à PEC deverá ocupar novas vagas em outros setores da economia, como o comércio e os serviços (p. 66). Em sua explanação, a realidade das domésticas é abordada em si mesma, e não em relação aos patrões ou à classe abastada. No entanto, ao ser citado novamente, desta vez na página 67, Ulyssea fala que os contratos de trabalho dos setores de serviço e comércio deveriam ser mais flexíveis. Seu depoimento surge em um contexto no qual a revista argumenta que a legislação trabalhista brasileira é ultrapassada e não é dinâmica o suficiente para acompanhar a atual economia – essa abordagem será analisada em profundidade no próximo segmento. Apesar de tratar da legislação trabalhista, que supostamente diz respeito a todos os brasileiros, trabalhadores e empregadores, Época aborda a “dificuldade de contratar” no Brasil, tornando essa uma questão relacionada diretamente à classe dominante. Assim, a segunda fala de Ulyssea trata mais da realidade dos dominadores do que dos dominados. Outros dois especialistas entrevistados pela Época falam da realidade das domésticas sem relacioná-las à vida dos patrões. Na página 67, o pesquisador Naércio Menezes trata das novas oportunidades de emprego disponíveis às mulheres que trabalham como empregadas domésticas. Ele afirma, inclusive, que quem “insiste” em trabalhar no serviço doméstico está deixando de lado essas outras oportunidades. A escolha da palavra “insistir” denota que o serviço doméstico está chegando ao fim, algo que sobrevive ainda da teimosia de algumas trabalhadoras, mas que há de se extinguir. O depoimento do pesquisador, então, desnaturaliza o serviço doméstico ao apontar que há outras opções de trabalho, e que é natural e lógico que as mulheres da classe trabalhadora migrem para outros setores.

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A socióloga Luana Pinheiro traz outra crítica ao serviço doméstico: “O emprego doméstico muitas vezes se mistura com relações pessoais, desprovidas de profissionalismo.” E segue: “As empregadas às vezes se sentem amigas das empregadoras, mas sabem que não são próximas o bastante para ser convidadas a sair juntas.” (p. 67). Interessante notar que, diferente da crítica trazida por Lídice da Mata a respeito da precariedade enfrentada pelas domésticas em seu ambiente de trabalho, a crítica de Luana não se resolve com a aprovação da PEC. A fala aparece em um contexto que versa sobre a nova geração de mulheres da classe trabalhadora, as filhas de domésticas que não seguirão a carreira das mães. A revista afirma que essa mudança geracional se deve à autoestima crescente dessas mulheres que cresceram com mais acesso à educação. Há, então, o reconhecimento de que existe uma dimensão moral e social a respeito do emprego doméstico que o difere de outras profissões, visto que, por questões de autoestima, mulheres não buscariam a profissão. Com o exemplo da impossibilidade de uma doméstica e uma patroa saírem para jantar juntas, o depoimento de Luana expõe um conflito de classe que é intrínseco à relação entre dominados e dominantes. Ao fazê-lo, a socióloga contribui para a desnaturalização da profissão como um “emprego como qualquer outro”. Dos especialistas, apenas Mário Avelino, presidente da ONG Doméstica Legal, critica a PEC e fala inteiramente nos termos dos dominadores. Ele afirma que considera a mudança “justa”, mas que essa “deveria vir acompanhada por medidas que tirassem encargos de cima do empregador” (p. 65). Sua fala se foca nos problemas trazidos pela nova lei aos membros da classe dominante, e não sobre as conquistas das domésticas. Então, conclui-se que, dos quatro especialistas entrevistados, dois falam sobre as domésticas (Menezes e Luana), um fala a respeito dos empregadores (Avelino) e um fala tanto sobre as domésticas quanto sobre questões referentes aos empregados (Ulyssea). Por fim, foca-se no único membro do grupo dos dominados a ser entrevistada: a doméstica Maria da Conceição. Seu depoimento, o primeiro a aparecer na reportagem, na página 64, é sucinto: “É bom saber que você tem seus direitos. Você se iguala aos demais trabalhadores”. Semelhante à fala da doméstica Roberta na Veja, o depoimento de Maria também reitera o argumento de Champagne (2003) a respeito da escolha, por parte da mídia, de dominados que reforcem o discurso das 64

classes dominantes. No entanto, é importante ressaltar que, diferentemente do modo como ocorre em Veja, Maria tem seu depoimento incorporado no corpo do texto principal da reportagem, é a primeira fonte a ser citada e não é definida por ser empregada doméstica – inclusive, ela é apresentada primeiramente como “estudante”. Assim, nota-se que Época concede à Maria maior protagonismo do que Veja concedeu à Roberta. É interessante perceber que, em ambas as revistas, há espaço para a exposição da precariedade do serviço doméstico – na Época, nas falas de Luana Pinheiro e Lídice da Mata, e na Veja, na explicação de Mary del Priore. No entanto, as falas que tratam de questões negativas em relação ao serviço doméstico vem dos especialistas ou da patroa (no caso, a senadora Lídice), e não da domésticas. Não é possível saber, a partir deste estudo, se os veículos selecionaram trechos das entrevistas com as domésticas nos quais elas tratam positivamente do serviço doméstico e optaram por deixar de fora trechos em que elas contam experiências de violência e exploração, ou se de fato nenhuma doméstica falou aos veículos sobre suas experiências mais conflituosas com patrões. Apesar disto, pode-se estabelecer que, dada a distribuição desigual de depoimentos de membros dominantes e dominados, as falas de Maria e Roberta operam como apaziguadoras de uma tensão (a exploração das domésticas por parte da elite) sugerida pelos especialistas, mas nunca como sujeitos que reiteram este conflito. As domésticas entrevistadas agem, então, como naturalizadoras de sua própria condição, apesar de em ambas as revistas haver depoimentos de especialistas que contradizem a ideia de um “emprego como qualquer outro”.

4.2.6 Estado, família e doméstica: Mesmidade e outridade na cobertura da PEC

Conforme se destacou no segundo capítulo deste trabalho, José Luiz Aidar Prado e Sérgio Bairon (2007) argumentam que o texto midiático é baseado na construção de oposições entre o “mesmo” e o “outro”, ou entre a mesmidade e a outridade. É através destas construções que os veículos assumem posições discursivas acerca de questões sociais e políticas. A mesmidade trata dos valores 65

culturais e políticos estimados pelo público do veículo, enquanto a outridade trata das questões das quais o público mantém distância. Os autores colocam que, dependendo de quem for o “outro” na narrativa, esse pode ser transformado em um ente exótico ou em um vilão perigoso. Assim, os meios de comunicação têm o poder de assimilar o “outro”, naturalizá-lo dentro dos padrões aceitos pelo público e falar dele através dos termos da mesmidade; ou de segregá-lo, através da construção de imagens negativas ou do ato de manter essa outridade invisível. Portanto, perguntase: quem é o “mesmo” e o “outro” na cobertura da PEC das Domésticas da Veja e da Época? Devido à extensão das análises e aos diferentes temas abordados em cada veículo, optou-se por subdividir este segmento em duas sessões, nas quais a Veja será analisada primeiro, e a Época em seguida.

4.2.6.1 Família de quem? A totalidade do Mesmo em Veja

A demarcação de um “eu” ou de um “mesmo” com o qual o leitor se identifica pode ser percebida desde a capa da Veja. O título “VOCÊ AMANHÔ refere-se ao sujeito da fotografia de capa, um homem caucasiano, de meia idade, vestido com roupa social, lavando louça. O leitor da Veja, portanto, é representado como este sujeito, dominante em todos os sentidos – no gênero, na etnia e na classe social, a indicar pela vestimenta. Através de sua capa, a revista também expõe qual sujeito será o protagonista da reportagem sobre a conquista de direitos das empregadas domésticas: os membros da classe dominante, e não as domésticas em si. O “você”, então, dialoga com o público do veículo e, simultaneamente, com a fotografia da capa, construída “a imagem e semelhança” do leitor. A demarcação da mesmidade como indivíduos e valores atrelados às classes médias e altas continua através da fotografia de duas páginas que abre a reportagem, nas páginas 74 e 75. A imagem é de uma mulher caucasiana com dois bebês no colo, sentada diante de uma escrivaninha com documentos de trabalho. Através da legenda descobre-se que a mulher é uma advogada que teve a rotina alterada com a aprovação da PEC, pois precisou mudar seu horário de trabalho para cuidar dos filhos, uma vez que suas duas domésticas não devem mais trabalhar à 66

noite. O título da reportagem, “NADA SERÁ COMO ANTES”, significa uma ruptura, mas é a através da linha de apoio que a reportagem demarca, novamente, quem é o sujeito dessa transformação: “Como as famílias estão se reorganizando para se adaptar à lei que melhora a vida das empregadas domésticas, mas torna mais caro seus serviços”. As “famílias” referidas, como se pode deduzir através das fotografias de capa e de abertura, são as famílias brasileiras de classes médias e altas, que contam – ou contavam – com os serviços das domésticas. Percebe-se, então, que uma característica da construção da mesmidade é o fato dessa construção ser inarticulada, subentendida: a revista não qualifica, na linha de apoio, quais famílias são essas que estão se reorganizando. Certamente, há famílias no Brasil que não foram afetadas pela PEC (aquelas que não contratam domésticas), e famílias que foram afetadas por serem compostas por mulheres que são domésticas, não por dependerem de seus serviços. É possível dizer, seguramente, que “nada será como antes” na vida das famílias da ralé estrutural que contam com o salário recebido por mulheres que realizam o serviço doméstico, principalmente aquelas cujas chefes de família são parte dessa categoria. No entanto, não é a essas famílias que a Veja se refere. É precisamente na universalização do termo “famílias” como famílias de classes abastadas que reside seu caráter de mesmidade, pois aí se percebe a quem a revista dirige seu discurso, em uma construção que não encontra necessidade de se expor como tal. É desnecessário falar que essas famílias são “famílias de classes dominantes”, pois há um contrato subentendido entre veículo e leitor a respeito dos assuntos a serem tratados, que são somente aqueles que dizem respeito à mesmidade. A repórter inicia o texto reforçando o caráter de novidade, transformação, trazido pela PEC das Domésticas às “famílias”: Não, ainda não é o fim. Mas, sim, é certo que nada será como antes. As mudanças provocadas pela aprovação no Senado da PEC das Empregadas começarão nesta semana, quando os quase 20 milhões de brasileiros que contam com os serviços de algum tipo de empregado notarão a presença de um objeto estranho na mesa do café da manhã: o caderninho de ponto. [...] A nova lei vai mudar um bocado a rotina das famílias brasileiras. (p. 75).

Novamente percebe-se a escolha da revista de introduzir o assunto da PEC evocando uma imagem que diz respeito aos patrões, e não às domésticas: a 67

chegada do caderninho de ponto. A “família brasileira” é utilizada novamente como sujeito da reportagem e como forma de denominar, implicitamente, as famílias de classes abastadas. O texto segue explicando que, “no microuniverso familiar”, as mudanças serão proporcionais à dependência dos patrões das empregadas, devido ao “potencial de causar rombo no bolso” causado pela instituição da hora-extra remunerada. Essa é a primeira das diversas menções a questões financeiras referentes aos patrões na reportagem. Não há menção a questões econômicas que dizem respeito à vida da empregada doméstica, como o aumento de seu salário e como isso possivelmente pode influenciar sua vida e a de sua família. O pagamento de horas-extras, por exemplo, é tratado como custo aos patrões, nunca como ganho das domésticas, a exemplo deste trecho da página 77: “Enquanto o aumento médio no custo de uma empregada que trabalha até oito horas por dia não passa de 8%, o de outra, que compre uma jornada de apenas duas a mais, chega a 72%”. Após fornecer esses percentuais, a repórter coloca que “a consequência dessa equação” será a diminuição do trabalho das funcionárias, o que levará a um rearranjo radical nos hábitos da família “em muitas casas” – casas de patrões, entende-se. Um infográfico ocupa metade das páginas 76 e 77. A frase “O que muda com a nova lei” aparece como título, acima dos dizeres “PARA QUEM TEM...”. O infográfico leva o leitor a seguir por chaves até encontrar a situação na qual se encontra: A) “...DIARISTA QUE VAI UMA VEZ POR SEMANA”; B) “...DIARISTA QUE VAI DE DUAS A TRÊS VEZES POR SEMANA”; C) “...EMPREGADA DOMÉSTICA FIXA”, subdividida em “VALE A PARTIR DE AGORA” e “VAI VALER, MAS PRECISA SER REGULAMENTADO”; e D) “...EMPREGADA QUE DORME NA CASA”. Deste modo, fica aparente a escolha da Veja de retratar “o que muda na lei” apenas para quem tem empregada doméstica. As páginas 78 e 79 também apresentam um infográfico, esse chamado “20 respostas”. A reportagem responde 20 dúvidas de patrões sobre a nova lei, referentes à hora-extra, expediente noturno e processos judiciais, como “Quem já tem empregada ou vai contratar agora precisará fazer um contrato de trabalho e adotar livro de ponto?” e “É permitido fazer banco de horas em vez de pagar horaextra?”. As perguntas são acompanhadas por seis ilustrações: uma doméstica assinando um caderno de ponto; uma doméstica indo viajar com a patroa, sorridente 68

e carregada de malas; uma doméstica lavando louça enquanto a patroa lhe mostra um relógio; uma doméstica dormindo em uma poltrona diante da televisão; uma doméstica, de braços cruzados e expressão fechada, acompanhada de um advogado segurando processos; e um patrão trabalhando em frente ao computador, com um braço estendido lhe entregando uma xícara de café – o corpo a qual o braço pertence não está desenhado, mas subentende-se que é o da empregada doméstica. Ressalta-se que a empregada doméstica é desenhada como negra ou mulata, com o tom de pele colorido com tons escuros e com o cabelo com aparência encaracolada, diferente do desenho que representa os patrões ou o advogado. Não há, no texto da reportagem, momento em que se aborda o fato da maioria das domésticas serem negras ou pardas12. A predominância dessa etnia, no entanto, é reconhecida na ilustração. Importante destacar também a construção desta imagem de doméstica – mulher e negra – em oposição à imagem que representa o “VOCÊ”, ou seja, o leitor da revista, na capa da Veja, refletindo a demarcação de um “mesmo” e de um “outro”. Uma temática recorrente nas “20 respostas” aos patrões é o risco de processos trabalhistas, construídos pelo texto como algo a ser evitado através do cumprimento da lei. As respostas a perguntas como “É possível proibir um empregado de fazer hora-extra?” abordam o tema do processo judicial de maneira objetiva, sem discutir questões éticas ou problematizar o que seria justo. A resposta para essa dúvida, por exemplo, é: “sim, isso tem de constar no contrato. Mas, se mesmo assim o empregado fizer hora-extra, ele poderá ganhar na Justiça”. Há questões sobre direitos trabalhistas que ainda dependem de decisão judicial, como “a nova lei obrigada o empregador a pagar plano de saúde?” e “o patrão pode diminuir o salário da empregada para compensar o aumento dos encargos?” que são respondidas com um simples “não”. Na resposta da pergunta 20 – “se o patrão trabalha em casa, como profissional liberal, consultor ou dono de microempresa, a empregada é doméstica?” – a reportagem coloca novamente os direitos trabalhistas construídos a partir de uma perspectiva de custo, não de ganho dos funcionários. Na resposta, a Veja explica que, se a funcionária atender telefonemas do trabalho, pode

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IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego, 2003-2009.

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ser considerada “uma empregada urbana [sic], outra categoria trabalhista, com todos os direitos previstos na CLT, o que gera mais encargos”. O tema do risco de processos judiciais está presente também no texto principal da reportagem. Na página 79, a repórter expõe que “antes de pôr ordem na situação, a PEC deverá complicá-la um pouco”. Essa complicação, subentende-se, ocorrerá na vida dos patrões. Destaca-se este trecho, na página 79:

Toma-se o exemplo de uma babá ou o de um cuidador de idoso não registrados que morem com os patrões. É o tipo de situação que poderá abrir as comportas para uma avalanche de processos judiciais, não necessariamente fundamentados, contra patrões. Sob a influência de um “advogado de porta de cozinha”, eles podem alegar que trabalhavam oito horas por dia e faziam dezesseis horas extras porque estavam sempre à disposição do patrão, inclusive quando dormiam. Se um juiz acatar o argumento, a fatura pode passar de 100 000 reais por apenas um ano de trabalho. [grifo do autor].

Há, portanto, por parte da revista, o apontamento de fatores negativos da PEC, que podem levar a injustiças como a “avalanche de processos” – uma imagem que remete a um exagero, algo que pode “soterrar” o leitor-patrão. A Veja utiliza ainda o termo pejorativo “advogado de porta de cozinha”, em uma referência ao termo “advogado de porta de cadeia”, que designa profissionais do Direito supostamente interesseiros, que ficam à espera de pessoas leigas e necessitadas de ajuda legal para explorá-las. O uso da expressão “sob influência de...” remete a uma imagem de passividade por parte da empregada doméstica, que seria apenas “usada” por um advogado para lucrar injustamente dos patrões, e não alguém ciente de seus direitos trabalhistas. Destaca-se que não há um debate no que tange questões éticas – e mesmo trabalhistas – a respeito do exemplo proposto. Se de fato existem cuidadores de idosos ou babás que permanecem 24 horas à disposição dos patrões, isso não é debatido pela Veja: o custo absurdo – “100 000 reais por apenas um ano de trabalho” – desse trabalho fala por si, tornando a exigência do pagamento de horas-extras naturalmente injusta. A seguir, na página 81, a reportagem expõe a opinião do ministro do Tribunal Superior do Trabalho Ives Gandra da Silva Martins Filho a respeito da devida postura do Judiciário diante da nova lei:

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“É importante que os juízes do Trabalho apliquem a lei com ponderação para não gerar passivos fabulosos. Não dá para imaginar que um trabalhador ficou à disposição 24 horas por dia pelo fato de morar com uma família. Há que ver o que efetivamente houve de esforço produtivo, sob pena de criar uma distorção em que a empregada ganha mais que a patroa”. [grifo do autor].

Novamente não há uma problematização por parte da revista a respeito da possibilidade de que, de fato, alguns empregados fiquem à disposição dos patrões 24 horas por dia. Embora em determinado momento da reportagem, conforme exposto no segundo segmento dessa análise, a historiadora Mary del Priore seja citada para abordar o caráter de exploração que pode haver no serviço doméstico, essa fala não é relacionada com a realidade dos empregados que moram no emprego, nem mesmo para sugerir a possibilidade de uma exploração. Destaca-se também a fala do ministro a respeito da “distorção” que seria uma empregada “ganhar mais” do que a patroa. Através desse discurso, o ministro coloca o serviço doméstico em uma situação de inferioridade e desvalorização. Há também, em sua fala, o desejo de manter uma estrutura de classe intacta: seria uma “distorção” que um membro da ralé ganhasse mais do que um membro da classe dominante. Pode-se dizer, certamente, que essa é a fala da fonte, e não o posicionamento da revista. Porém, a escolha da Veja de não problematizar essa questão demarca sua posição de concordância com o entrevistado. Após a declaração do ministro, a reportagem não retoma a questão dos processos e se encaminha para a conclusão. O economista Luiz Guilherme Scorzafave é citado para explicar que a empregada doméstica já vinha sendo “valorizada pelo mercado”, devido à simultânea diminuição da oferta, graças ao aumento da escolaridade da classe trabalhadora, e aumento da procura, graças ao aumento das mulheres da classe dominante que ingressaram no mercado de trabalho. O financista Samy Dama é citado novamente (na página 77, ele fala sobre a importância do acesso aos eletrodomésticos para as famílias europeias que não têm empregadas, conforme abordado no terceiro segmento dessa análise) para explicar que deve crescer o número de domésticas contratadas por hora para fazer serviços específicos, como lavar e passar roupas. O último parágrafo, então, conclui a reportagem desta forma:

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Como ocorre em toda grande mudança, transtornos serão inevitáveis. Mas, a médio prazo, acabarão absorvidos e poderão provocar não apenas saudáveis mudanças de hábitos nas famílias, como a divisão mais igualitária das tarefas domésticas entre seus membros, mas também intensificar a cobrança do poder público por melhorias no sistema de creches, transportes coletivos e tudo o que contribui para tornar menos sacrificada a vida de quem trabalha, precisa cuidar do lar, e a partir de agora, terá de contar cada vez menos com ajuda profissional em casa. A vida não será como antes. Mas pode até melhorar.

Na conclusão da reportagem, o foco se mantém nas transformações na vida das famílias de classes dominantes. A revista faz um balanço do que há de negativo e positivo na aprovação da PEC, mas faz essa análise sempre pensando nos termos da vida dos patrões: dentre os “transtornos inevitáveis” estão a redução da jornada de trabalho das domésticas; o aumento do custo do serviço e o risco de processos judiciais; dentre os pontos positivos estão as “saudáveis mudanças de hábitos”: como uma maior equidade na divisão das tarefas domésticas em lares formados por casais de homens e mulheres. Nota-se que os pontos negativos são de caráter econômico e os positivos, de caráter cultural. A conclusão da Veja, então, não é inteiramente positiva a respeito da conquista de direitos das empregadas domésticas, conforme sinalizado pelo uso da expressão “pode até melhorar” – há uma incerteza quanto a essa melhoria. Importante destacar que não há, na conclusão da reportagem, nenhuma referência aos ganhos e as mudanças na vida das empregadas domésticas. Confirma-se, então, o que a fotografia da capa da Veja já insinuou: o “mesmo” nessa reportagem, o sujeito construído para que o leitor se identifique e se enxergue, é o indivíduo de classe média ou alta. O “outro” é a doméstica, cuja vida e trabalho são retratados, na grande maioria do texto, em relação à vida dos patrões, ou seja, nos termos do aumento de custo, da redução da jornada e do risco de processos judiciais. Ao construir uma imagem de outridade, os meios midiáticos têm o poder de assimilar este “outro”, tornando-o naturalizado; de torná-lo invisível ou de torná-lo perigoso (BAIRON e PRADO, 2007). Percebe-se que a Veja realiza os três feitos. A revista naturaliza a condição da empregada doméstica ao retratá-la como uma necessidade das classes dominantes, sem abrir espaço para o debate acerca de questões de ordem social, econômica e histórica que permeiam a imagem da 72

doméstica. Ademais, a empregada doméstica, como indivíduo e grupo social, é invisibilizada pela reportagem ao ter suas conquistas trabalhistas retratadas apenas em termos de “custo”, “transtornos” e “mudanças” na vida dos patrões. A escolha da Veja de continuamente usar expressões como “família” e “família brasileira” para se referir especificamente a famílias de classes altas reitera essa invisibilidade. Por fim, a insistência na abordagem dos riscos de processos judiciais, com as reiterações de que esses não seriam “necessariamente justos”, causariam “passivos absurdos” e poderiam ser motivados por “advogados de porta de cozinha” coloca o “outro”, a doméstica, na posição de um sujeito de quem se deve desconfiar.

4.2.6.2. Serviço pela metade: a culpabilização do Estado em Época

Na Revista Época, a distribuição da mesmidade e da outridade ocorre de maneira diferente. A reportagem não trata apenas da realidade da classe média e alta e, em diversos momentos, aborda questões referentes à realidade das empregadas domésticas, sem relacioná-las diretamente com a vida dos patrões. A demarcação de um “eu” imaginário, então, é mais sutil do que na Veja, embora ainda presente. Prevalecem, na reportagem, abordagens que dizem respeito à vida das classes dominantes. Para construir essa análise, primeiramente se abordará as passagens da reportagem que tratam da empregada doméstica. A chamada de capa da Época, “EMPREGADA DOMÉSTICA”, já demonstra que haverá, ao longo do texto, um foco nas questões referentes à categoria. A reportagem se inicia com o seguinte parágrafo: A economista Lídice e a estudante Conceição convivem e têm rotinas bem diferentes. Lídice viaja toda semana entre suas duas residências: um apartamento em Salvador, para onde se mudou ainda jovem, a fim de cursar economia, e o apartamento em Brasília, onde passa a semana de trabalho. Maria da Conceição, aos 42 anos, faz faculdade de história e trabalha em Brasília. Na semana passada, ambas ficaram felizes. Lídice da Mata, por ser a senadora (PSB-BA) responsável pela relatoria de um texto que fez história – a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que equipara os direitos dos trabalhadores domésticos aos dos demais profissionais. Maria da Conceição de Jesus, empregada da senadora, por saber que seu trabalho é respeitado. (p. 64).

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É relevante observar o uso do elemento surpresa na narrativa para revelar que Conceição é empregada doméstica da senadora Lídice. Ao ser apresentada, primeiramente, como uma estudante de história, Maria da Conceição não é definida por ser doméstica. Ela é representada como uma mulher autônoma, cuja profissão de doméstica é apenas um dos fatores que compõe sua identidade. A Época reforça ainda a autonomia de Conceição ao expor que ela “só aceitou o trabalho [de doméstica] ao confirmar que teria tempo para estudar”, na legenda da fotografia em que Maria e Lídice aparecem sorrindo (p. 66). É importante notar que, na reportagem da Época, não há uma discussão sobre se há ou não abuso e precariedade no serviço doméstico. A situação da categoria é exposta como “precária” (p. 64) e “vergonhosa” (p. 66), e não há, na reportagem, contraponto a essa visão. Um parágrafo da página 66 é dedicado ao tema da informalidade: a reportagem informa que as leis de proteção ao serviço doméstico no Brasil começaram a valer a partir de 1970, com uma década de atraso em relação à Argentina e meio século em relação à Áustria. O texto segue informando que, diferente do que pode parecer para quem contrata domésticas em grandes cidades – locais onde, segundo a Época, tem-se a impressão de que elas “estão por cima nas negociações” – cerca de 70% da categoria ainda trabalha informalmente. No Nordeste, a parcela chega a 85%. Três infográficos nas páginas 66 e 67 trazem os números do trabalho doméstico: o gráfico “O PAÍS DAS EMPREGADAS” mostra a quantidade de trabalhadores da categoria no Brasil, comparada a outros países como EUA, França e Peru; “ELAS AINDA SÃO MUITAS” aponta para a quantidade de domésticas no Brasil em 1995, 2005 e 2011; “A INFORMALIDADE RESISTE” demonstra a porcentagem de domésticas que têm o emprego formalizado, de 2005 a 2011; e “PESO SOBRE AS MULHERES” mostra a parcela feminina do contingente de empregados domésticos ao redor do mundo. Semelhante ao parágrafo sobre informalidade, essas são abordagens que tratam da categoria das domésticas sem relacioná-la diretamente com a vida dos patrões. A reportagem ainda argumenta que há uma forte tendência de que as empregadas domésticas deixem o emprego e assumam novas vagas em outros setores da economia, como o de serviços e o do comércio. Nos últimos dois 74

parágrafos de seu texto principal, a Época sentencia que domésticas se tornarão uma raridade no Brasil nas próximas décadas. Os motivos, segundo a revista, são dois: um econômico e um social. O econômico diz respeito à crescente demanda por trabalhadores com baixa qualificação em outros setores da economia. Destaca-se a explicação do motivo considerado “social” na conclusão da reportagem: O outro motivo para o desaparecimento das empregadas é social. Está ligado à autoestima de uma geração de filhos de empregadas que cresceu com mais acesso à educação (embora ainda de qualidade sofrível) e com poder de compra inédito. Muitas das jovens que podem escolher preferem não ser empregadas domésticas, mesmo que tenham de ganhar menos. [...] Hoje, 51% das empregadas têm mais de 40 anos. As filhas dessas mulheres encontram e escolhem outras opções profissionais. Bom para elas e para o país. (p. 67). [grifo do autor].

Ao abordar a dimensão social do serviço doméstico e expor que a desistência desse tipo de serviço por parte de uma nova geração de mulheres se deve a questões de autoestima, a Época demonstra que há um conflito entre as classes envolvidas na relação patroa-empregada que não pode ser resolvido nem mesmo através da nova lei. Com a observação de que mulheres preferem ganhar menos a serem domésticas, a reportagem demonstra que esse não é “um emprego como qualquer outro”. É relevante observar que a Época argumenta, sem ressalvas, que o processo de extinção do serviço doméstico é inteiramente positivo, fato que é demarcado pela última frase do texto: “Bom para elas e para o país”. Há, então, um reconhecimento por parte da revista de um conflito de classes gerado pela desigualdade e, simultaneamente, a celebração da autonomia conquistada por uma nova geração de mulheres da ralé estrutural que se recusarão a vender sua energia muscular às classes dominantes através do serviço doméstico. Exposto o espaço que a Época confere à realidade social das domésticas, abordam-se agora as narrativas a respeito dos patrões e das classes dominantes na reportagem.

Apesar

da

principal

chamada

de

capa

da

reportagem

ser

“EMPREGADA DOMÉSTICA”, as duas chamadas secundárias se referem aos empregadores: “COMO AS NOVAS REGRAS AFETAM O BOLSO DE TODOS NÓS” e “POR QUE NOSSAS LEIS TRABALHISTAS AINDA PRECISAM DE UMA BOA FAXINA”. 75

O “todos nós” presente na capa poderia incluir, obviamente, tanto patrões quanto empregadas, visto que ambos têm sua vida financeira transformada pela PEC: empregadores passam a gastar mais e empregadas, a receber mais. Porém, percebe-se ao longo da reportagem que a questão econômica é abordada sempre em termos do gasto dos empregadores, de maneira semelhante ao que ocorre na Veja. Em relação às domésticas, as conquistas são significadas como “direitos”. No entanto, quando a revista aborda questões financeiras, essas são significadas como gasto, como no trecho: “A garantia dos direitos destes empregados levará os patrões a gastar pelo menos 8% a mais na contratação formal do serviço” (p. 65). A Época opta, então, por representar estes 8% como custo, e não como aumento de renda dos empregados. Da mesma maneira que na Veja, não há depoimentos de domésticas abordando a questão financeira, nem menção a mudanças na vida dessas trabalhadoras que poderiam ser acarretadas a partir do aumento do salário. Dessa maneira, a revista demarca a mesmidade de sua narrativa: os empregadores das classes dominantes, como na Veja. A mesmidade é demarcada fortemente na segunda parte da reportagem, intitulada “8 DÚVIDAS SOBRE A LEI DAS DOMÉSTICAS”, que se estende da página 68 à 71. A revista oferece um manual sobre como proceder a respeito da nova lei. No texto, expressões como “pode-se pagar de forma proporcional ao tempo trabalhado”, “será preciso pagar as horas extras”, “como pagar quem dorme em casa?” e “como pagar o seguro de acidentes de trabalho?” demonstram de forma clara a quem a Época está falando: aos patrões. Caso contrário, a revista poderia optar por construções frasais que indicassem que o texto se refere tanto aos empregadores quanto às empregadas, ou dedicar parte do quadro a responder dúvidas próprias das trabalhadoras. A maior demarcação da mesmidade na Época, no entanto, não é o foco no aumento dos salários das domésticas como gasto. É em sua explicação para a precariedade do serviço doméstico brasileiro. Na página 66, após informar que 85% das domésticas no Nordeste trabalham de maneira informal, a reportagem introduz um novo assunto: O problema está na própria Lei Trabalhista brasileira, que não se ajusta a uma economia dinâmica e desestimula a geração de novos empregos. É bom que uma parte maior dos 7 milhões de

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empregados domésticos do Brasil e seus patrões perceba como é difícil trabalhar e contratar formalmente no país. Quando uma família ou empresa contrata um funcionário, os encargos sobre essa admissão podem ultrapassar 100% do valor do salário. Esse dinheiro não vai nem para o patroa nem para o empregado, mas para o governo. [grifo do autor].

Para a Época, o problema da informalidade reside, então, na lei trabalhista. Não há menção ao histórico do serviço doméstico e à cultura escravocrata como possíveis fontes da exploração vivenciada pelas domésticas. A reportagem argumenta que os patrões da era pré-PEC das Domésticas não pagariam os encargos trabalhistas, pois esses seriam muito altos e grande parte do valor iria para o governo, em forma de impostos. Essa temática, na verdade, é o foco principal da reportagem, a indicar pelo título expostos nas páginas 64 e 65, “SERVIÇO PELA METADE”, e pela chamada de capa já citada anteriormente, “POR QUE NOSSAS LEIS TRABALHISTAS AINDA PRECISAM DE UMA BOA FAXINA”. Na linha de apoio da reportagem, lê-se: “O Brasil se prepara para fazer uma faxina nas condições precárias e na informalidade nos serviços domésticos. Só falta tirar a poeira da Lei Trabalhista”. Assim, entende-se que o “serviço” que está incompleto é a reforma na regulamentação dos encargos trabalhistas. Após introduzir o assunto da legislação trabalhista, o texto segue afirmando que os encargos fiscais brasileiros para contratações são mais altos que os do Japão, do Reino Unido e do Canadá, “onde o governo oferece serviços de educação e saúde de primeira”, e que o Brasil ficou em 138º lugar no quesito “facilidade para contratar”, entre os 183 países analisados pelo Banco Mundial em 2010. Na passagem seguinte, a Época critica a Consolidação das Leis do Trabalho, afirmando que ela “congela o país nessa situação” e mencionando que foi inspirada na Carta del Lavoro, “da Itália fascista de Benito Mussolini” (p. 66). Para a Época, “em vez de contemplar apenas grandes contingentes de operários”, a legislação trabalhista deveria levar em conta trabalhadores autônomos, prestadores de serviços e a necessidade de empresas de se adaptarem a mudanças no cenário econômico, especialmente as empresas dos setores da “economia criativa”, como tecnologia, moda, design e lazer. Ao reduzir a questão da precariedade ao alto custo dos impostos trabalhistas que o Estado cobra dos empregadores, a Época demonstra uma das características fundamentais da construção da mesmidade: o posicionamento ideológico referente à 77

livre iniciativa e aos “modelos aceitos pelas classes médias e médias-altas como modalizadores típicos para o crescimento e sucesso pessoal e social” (BAIRON, PRADO, 2007, p. 253). Segundo Jessé Souza (2009), é típico da classe dominante brasileira culpabilizar o Estado pelas mazelas sociais. Há, segundo o autor, uma falsa oposição entre mercado e Estado que faz com que o último seja identificado com corrupção e privilégio:

Como todo conflito social é dramatizado nessa falsa oposição entre mercado divinizado e Estado demonizado, os reais conflitos sociais que causam dor, sofrimento e humilhação cotidiana para dezenas de milhões de brasileiros são tornados literalmente invisíveis. (2009, p.16-17).

Ao culpar o Estado pela situação precária em que se encontraram, historicamente, as empregadas domésticas, a Época torna invisível todos os conflitos de ordem cultural e social entre a ralé e as classes dominantes que também são causadores da exploração dessa categoria. Assim, a revista demarca o “mesmo” com o qual dialoga ao construir uma argumentação que é típica das classes dominantes. Também é relevante perceber que a reportagem, supostamente sobre a PEC das Domésticas, desvia sua temática para tratar da questão da “dificuldade de contratar” no Brasil: um “problema” que diz respeito, especificamente, às classes que contratam, ou seja, as altas e médias. Conclui-se, então, que a doméstica se estabelece como o “outro” nessa reportagem, assim como na Veja. No entanto, este “outro” não é vilificado, pelo contrário: a mulher empregada doméstica é representada com empatia, tendo sua autonomia celebrada ao longo da reportagem. A outridade da empregada doméstica, então, não reside em sua invisibilidade, nessa narrativa, e sim na invisibilidade dos reais motivos para a sua exploração. Ao culpar apenas os altos tributos do Estado pela precariedade e informalidade que os patrões impõem às domésticas, a Época nega as condições sociais do Brasil e absolve a classe dominante de sua responsabilidade histórica no que diz respeito aos direitos trabalhistas da categoria.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir acerca dos sentidos construídos por veículos que gozam de prestígio e autoridade, como a Revista Veja e a Revista Época, é, ao fim e ao cabo, refletir sobre o que uma grande e importante parte das classes dominantes entende por “o que importa no mundo” (BENETTI, FINATTO, STORCH, 2011, p. 67). Esse foi o objetivo desse estudo, que buscou investigar de que maneira consensos culturais a respeito das classes sociais operaram na construção da chamada “segunda vida” (FRANÇA, 2012) do acontecimento que é a aprovação da PEC das Domésticas. A PEC das Domésticas aconteceu. Mas a quem? Essa nova lei é, em sua dimensão mais factual possível, uma emenda constitucional que garante direitos trabalhistas à categoria das empregadas domésticas no Brasil. Estabeleceu-se, no segundo capítulo deste trabalho, que essa é a primeira vida deste acontecimento. A segunda vida, que nasce com a transformação do evento da aprovação da PEC em discurso, é o que expõe o sentido produzido pelos veículos sobre a lei. Nessa nova vida, direitos trabalhistas transformam-se em “gastos”, conquistas se tornam “transtornos”. As coberturas dos veículos analisados abordam a conquista de direitos das domésticas – a Veja de maneira mais breve que a Época, conforme exposto no terceiro capítulo deste trabalho. No entanto, o sentido a respeito da PEC produzido pelas revistas trata, majoritariamente, dos patrões e patroas. Veja e Época constroem narrativas que colocam a classe dominante como protagonista de um acontecimento que, à priori, não diz respeito a ela. Ao optar por essa construção, os veículos fazem mais do que apenas sinalizar quem é seu público alvo. Por serem meios de comunicação dotados de um dispositivo de autoridade que estabelece que seu conteúdo é jornalismo e, portanto, tem compromisso com a democracia e a imparcialidade, os veículos estabelecem sua abordagem da aprovação da PEC como a verdade – não como a verdade para determinada classe social, mas como a verdade total sobre aquele acontecimento. O acontecimento da PEC das Domésticas, na Veja, tornou-se, na pior das perspectivas, um problema financeiro para os patrões e, na melhor das hipóteses, uma chance de alterar hábitos culturais referentes à divisão sexual do trabalho, 79

fazendo com que as famílias de classes médias e altas distribuam com maior equidade as tarefas domésticas entre homens e mulheres. Na Época, a cobertura da aprovação da PEC se configurou em formato de uma crítica à “dificuldade de contratar” empregados, domésticos ou não, no Brasil – dificuldade essa causada por um Estado e uma lei trabalhista atrasados, segundo o veículo. Em ambas, portanto, a segunda vida do acontecimento é experienciada pelos patrões. Reconhecida a segunda vida desse acontecimento, pode-se perguntar: qual a relação dessa segunda vida discursiva do acontecimento da PEC das Domésticas com questões de desigualdade e conflituosidade de classes sociais? Conforme Souza (2009), a desigualdade social se manifesta em uma luta simbólica, que tange inclusive a linguagem e a produção de sentido discursivo acerca da realidade das classes sociais. Assim, entende-se que essa segunda vida dada à PEC, na qual a classe dominante é protagonista, contribui para a legitimação dessa desigualdade de diversas formas, que serão elencadas a seguir. Primeiramente, em sua cobertura, a Veja promove a naturalização da desigualdade social ao representar a empregada doméstica como uma necessidade da vida das classes dominantes. A reportagem retrata o serviço doméstico como se fosse impossível viver sem ele no Brasil (embora, obviamente, grande parte das famílias do país vivam assim, principalmente aquelas pertencentes à ralé) e não como um luxo. Embora a reportagem reconheça que o serviço doméstico nasceu durante o período escravocrata e carrega até hoje suas marcas, o texto não constrói uma ligação entre esse fator histórico e a existência da profissão de doméstica. Assim, a Veja naturaliza a profissão de empregada doméstica e, ao fazê-lo, naturaliza e reproduz de maneira irreflexiva a existência de uma classe social de despossuídos que vendem sua força de trabalho nos lares das elites. A invisibilidade dos membros da ralé é outro fator presente na reportagem da Veja. Conforme exposto em detalhes no terceiro capítulo deste trabalho, a reportagem utiliza os termos “família” e “família brasileira” para referir-se às famílias de classes médias e altas e, assim, ignora que existam famílias que não vivenciam as mesmas condições que as colocadas pela revista – no caso, que tenham empregadas domésticas trabalhando em suas casas. Soma-se isso à inexistência, na reportagem, de trechos que tratem especificamente da realidade das empregadas domésticas, que abordem seus novos direitos ou suas dificuldades 80

cotidianas. Assim, o veículo reitera aquilo que Souza (2009) classificou como o maior conflito brasileiro: o esquecimento, o abandono e a invisibilidade social de todo um contingente de despossuídos. Já a reportagem da Época apresenta um dos fatores mais sutis dentre os elencados, por Souza, para a manutenção da desigualdade social: a culpabilização e demonização do Estado. A cobertura do veículo usou a aprovação da PEC das Domésticas como gancho para construir uma crítica à legislação trabalhista e aos altos impostos cobrados pelo Estado, que dificultariam a contratação de profissionais liberais no Brasil. Embora não pareça que, diretamente, a Época legitima a desigualdade social ao estabelecer essa crítica – afinal, a revista abordou o trabalho doméstico com criticidade, o estabelecendo como precário, e celebrou a nova autonomia das domésticas – Souza (2009) argumenta que a colocação do Estado como raiz de todos os males é uma das bases da ideologia liberal. Essa, por sua vez, sustenta a crença economicista e meritocrática que faz com que a sociedade entenda a miséria da ralé não como um fator estrutural, do qual esses indivíduos não podem escapar, e sim como uma característica pessoal de cada despossuído, que teria falhado pessoalmente em entrar no mercado de trabalho. Esse sistema de crenças, então, naturaliza a condição de determinados trabalhadores como as empregadas domésticas, pois estabelece que essas se encontram nessa profissão pois falharam em encontrar um emprego melhor. A culpabilização do Estado que ocorre na reportagem da Época soma-se a diversos fatores presentes em ambas as coberturas para construir um outro sentido, esse bastante abrangente: o apagamento do conflito entre as classes sociais no Brasil. Época, embora coloque que as empregadas domésticas enfrentam um trabalho precário e informal, justifica essa informalidade através da dificuldade de contratar causada pela legislação trabalhista. A reportagem, portanto, absolve a classe dominante de sua responsabilidade de fornecer garantias trabalhistas dignas a seus funcionários, ao afirmar, literalmente, que a “culpa” pela precariedade do serviço doméstico é do Estado. Dessa maneira, a revista nega a existência de um conflito entre as duas classes, a ralé e a elite: há um explorado – a ralé, que trabalha sob condições “vergonhosas” –, mas não há um explorador. Em Veja, o apagamento do conflito se dá através do reconhecimento da violência simbólica do serviço doméstico, seguido de uma ressalva focada na 81

existência de “bons patrões”. O mau patrão, na reportagem, é sempre o outro, visto que a Veja não suscita debates sobre ética e responsabilidade por parte dos empregadores e parece instruir seus leitores a cumprirem as novas regras mais a fim de evitarem processos judiciais do que, de fato, para garantir uma vida melhor às trabalhadoras domésticas. Assim, embora a revista coloque que existe, de fato, uma herança escravocrata que influencia na informalidade e precariedade do serviço doméstico, ela absolve seus leitores ao lembrar que há bons patrões – escapando, assim, de colocar o próprio público na posição de algoz. Há um apagamento do conflito de classes, portanto, em ambas as coberturas. Ora há a ressalva dos bons patrões para apaziguar as menções aos problemas sociais e culturais que circundam a temática, como na Veja; ora há menção à existência de uma exploração, porém da qual a classe dominante não tem culpa, e sim o Estado, na Época. A negação deste conflito se manifesta, também, através do silenciamento dos membros da classe dominada. Conforme, do total de dezoito fontes entrevistadas em ambas as coberturas, apenas duas eram empregadas domésticas – sendo esses números distribuídos igualmente, com uma trabalhadora entrevistada em cada revista. As duas domésticas entrevistadas oferecem depoimentos que reiteram a felicidade de ambas em exercerem seu trabalho, que se tornou, após a aprovação da PEC, “como qualquer outro”. Assim, além de silenciar os membros da ralé ao concedê-los um espaço de fala proporcionalmente muito menor do que aos membros das classes dominantes, os veículos apresentam discursos apaziguadores entre os dominados. Não há, na fala das duas domésticas entrevistadas, menção a um conflito entre as classes, à exploração, à violência ou ao abuso. Não é possível saber, baseando-se apenas nesta análise textual, se os repórteres deliberadamente selecionaram trechos das entrevistas das domésticas em que elas celebram seu trabalho, ignorando outros em que elas poderiam ter relatados vivências de abusos. Pode-se perceber apenas que, nestas coberturas, as poucas falas das domésticas demonstram sua satisfação com as novas leis trabalhistas e com seu trabalho e não tratam de exploração ou abuso. É relevante notar que existem entrevistados que abordam a questão da precariedade a qual domésticas são submetidas em ambas as coberturas – em Época, inclusive, as críticas expostas não são passíveis de serem superadas pela 82

PEC, sendo intrínsecas ao serviço doméstico. No entanto, essas falas vêm de especialistas, e não de domésticas entrevistadas. Assim, os membros da classe dominante criticam sua própria classe, não estabelecendo um conflito direito entre ralé e elite. Não há dedos apontados de baixo para cima, apenas comentários reflexivos de historiadores e sociólogos sobre as condições de trabalho do serviço doméstico. Dessa forma, o conflito fundamental, a maior tragédia da realidade brasileira (SOUZA, 2009), que seria o abandono social e o descaso das classes abastadas para com a ralé, pode ser anunciado pela própria elite, mas nunca pela doméstica. Uma fala de uma doméstica relatando experiências de violência seria expor o conflito e colocar, mesmo que apenas simbolicamente, uma classe contra a outra – ou antes, uma classe denunciando a outra. Ambas as coberturas não o fazem – não se sabe se por opção, deliberadamente, ou se porque, de fato, as domésticas entrevistadas naturalizaram sua condição, falando sobre si mesmas através dos termos da elite. O fato de ambas as coberturas colocarem a figura destas trabalhadoras como apaziguadoras de um conflito social, ao tratar da questão apenas em termos positivos, pode ser explicado pelo “horror ao conflito” presente na cultura brasileira, outro fator trazido por Souza como um dos mantenedores da desigualdade social:

No caso brasileiro, a justificação da desigualdade pelo “esquecimento” do pertencimento de classe e, portanto, da gênese social das diferenças individuais que aparecem como atributo (miraculoso) do mérito individual é mil vezes potencializada por uma aliança invisível com a brasilidade. [...] o mito da brasilidade tem a ver tanto com a construção de uma ficção de homogeneidade e de unidade entre brasileiros tão desiguais quanto com “horror ao conflito”. (2009, p. 47).

Essa tendência a negar a conflituosidade brutal da sociedade brasileira parte da necessidade de manter a dominação social invisível – pressuposto fundamental para sua manutenção e reprodução. Percebe-se que a cobertura da Veja e da Época, ao construir uma narrativa sobre o serviço doméstico que absolve as classes dominantes de suas responsabilidades quanto aos direitos trabalhistas, contribui para a negação dessa luta de classes cotidiana.

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Resume-se, então, que os “consensos inarticulados” e as “retaguardas sociais” (SOUZA, 2009, p. 420) que contribuem, discursiva e simbolicamente, para a manutenção da invisibilidade do conflito de classes brasileira, nas coberturas analisadas, são a naturalização da desigualdade social, a invisibilidade dos membros da ralé, a culpabilização e demonização do Estado, o apagamento dos conflitos entre as classes sociais e o silenciamento dos membros da ralé. Todos estes fatores são, conforme as descrições de Souza, introjetados no cotidiano de todos os brasileiros, reproduzidos por eles muitas vezes sem consciência ou racionalização. No entanto, é necessário lembrar que esses consensos obtêm muito mais força ao serem reproduzidos pela mídia do que por discursos comuns, individuais, visto que a mídia é “a instituição central pela qual a sociedade fala de si mesma” (FRANÇA, 2012, p. 16). Concluída essa análise, expõe-se agora questionamentos surgidos a partir dos resultados, que poderiam levar a novas pesquisas na área da comunicação. Nesse caso, caberia um estudo de recepção com o público alvo da Época e da Veja a fim de descobrir em que medida eles, de fato, não têm interesse em ler sobre acontecimentos que não dizem respeito diretamente a sua própria classe, e em que medida os veículos tomam essas decisões pelo seu próprio público, sem saber se ele estaria disposto a ler sobre a realidade da classe trabalhadora. Os estudos de recepção com o objetivo de investigar a relação que os leitores estabelecem com o “eu” identitário construído pelas narrativas desses veículos também trariam contribuições a esse debate. Haverá espaço para negociação de sentido entre audiência e narrativa, no que diz respeito à construção do “mesmo” e do “outro”? A questão do espaço dedicado à exposição da conflituosidade de classes também é intrigante e parece ser bastante relevante para a compreensão do Brasil. Assim, surgem novos problemas de pesquisa que tangem justamente esta temática: Qual o lugar de fala que o dominado ocupa na mídia semanal impressa? Em que momento é dada voz a um membro da ralé para que esse fale sobre o conflito entre as classes? Se a reflexão a que se propõe este trabalho trata de entender, ao menos em parte, como a mídia semanal impressa significa “o que importa no mundo”, então as conclusões não são muito otimistas: o que importa são as finanças das classes abastadas – às vezes “ameaçadas” pelos direitos trabalhistas de seus próprios 84

funcionários, outras vezes, pelos altos encargos de contratação de trabalhadores. No entanto, Stuart Hall lembra que a cultura – e aí se inclui a produção jornalística – é um campo de luta, no qual a batalha ocorre nas “linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação” (2008, p. 245). Assim, o fato de que uma categoria como a das empregadas domésticas recebeu reconhecimento o suficiente para levar sua temática à capa das duas maiores revistas semanais de informação do país, a parte da maneira como o acontecimento foi narrado, é por si só motivo de comemoração. E talvez seja um indicativo de que, apesar de todas as tentativas de mantê-lo, uma rachadura começa a corroer o muro que esconde a desigualdade brasileira.

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ANEXOS ANEXO A – Capa da revista Veja

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ANEXO B – Índice da revista Veja

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ANEXO C – Fotografia de abertura da reportagem de Veja, p. 74-75

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ANEXO D – Fotografia de Yasmin Brunet em Veja, p. 76

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ANEXO E – Fotografia da doméstica Roberta em Veja, p. 80

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ANEXO F – Fotografia da patroa Sônia Nascimento em Veja, p. 81

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ANEXO G – Capa da revista Época

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ANEXO H – Fotografia de abertura da reportagem de Época, p. 64-65

96

ANEXO I – Fotografia de Lídice e Conceição em Época, p. 66-67

97

ANEXO J – Fotografia da patroa Paula e dos empregados Maria Lúcia e Adenilson, em Época, p. 69

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ANEXO L – Fotografia do casal Rodrigo e Claudia Dias em Época, p. 71.

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