Encarnação de José Rufino

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Maria de Fátima Lambert

Encarnação de José Rufino

A residência artística de José Rufino tomou, desde as primeiras conversas, rumos latinos de “Encarnação”. Sob auspícios complexos e ricos, implícitos em definições criteriosas, quer em termos semânticos, quer iconográficos, Incarnatio converteu-se em Encarnação. Convoca a disciplina de diferentes axiologias, não somente a artística e estética, também a filosófica, histórica, antropológica…entre outras cumplicidades científicas. A exposição ocupa todas as salas do Palácio das Artes, em tempos idos, Mosteiro de São Domingos (construído no séc. XIII), tendo sofrido vicissitudes e acolhido, posteriormente e até 1934, o Banco de Portugal na cidade. A carga arquitetónica propicia devaneios que acolhem impulsos de restituição a materiais tidos como obsoletos ou descartáveis, regimentando imagens e peças que o artista interfere e transfigura mediante ação de desenho, pintura, solicitando tridimensionalidades pensadas para este lugar que é todos os lugares “en-carnados”...in situ. As peças desenham-se e alastram, observando uma espécie de peregrinação pelos espaços adentro. Surpreendentes, as obras concebidas até ao ínfimo detalhe, evocam caminhos de identidade própria e de alteridade, denotando e demonstrativas dos itinerários decididos pelo artista brasileiro em Portugal e na Galiza. As viagens são parte integrante do processo criativo desenvolvido nesta oportunidade, instituindo-se como substância fundante e direcionadora das intervenções aplicadas. Os atos de percorrer, as caminhadas em estado de deriva orientada, atingiram cidades que lhe eram estranhas, conjugando-se em perplexidade e festa. A missão estética empreendida e adjacente à peregrinatio conduziu José Rufino numa celebração altruísta, autognósica e societária, na senda de José de Arimatéia ou de Francisco de Assis, destino a Santiago (mítico e efetivo) e retorno ao Porto antes de regresso à Paraíba. Para cumprir o processo criativo, o artista estabeleceu contatos com artistas, investigadores, professores e estudantes, cumprindo o dinamismo poiético e ativando mais e mais pensamento crítico multidisciplinar - exigência e rigor extremos. O artista trabalha a “matéria das memórias”, memórias ideológicas, míticas e históricas desenhando, pintando, projetando instalações onde os objetos e as esculturas dialogam em prol dessa convergência heterodoxa de motivações e ideias substantivas. Desde os anos 1980 que José Rufino apresenta as suas obras, tendo realizado cerca de 200 exposições. O projeto agora desenvolvido em Portugal, o artista confronta-se com matérias e reminiscências daquilo que, à distância, eram ainda e somente “lampejos imaginados de suas memórias profundas”. Estes exigiram ser criados para um desocultamento das raízes históricas de Portugal, enquanto país que estimulou e ramificou em fantasias, mitemas, derivações literárias, plásticas denotativas de forte simbolismo. Assim, também para além da analogia à Encarnação -

em que o Verbo tomou carne para ser identificar enquanto indivíduo pessoal e humano, haverá que agregar outras aceções, como esse dom da pele que é consciência transfiguradora – do eu na sua espessura e densidade invisível – sobre a aparência preenchida pelo magma visceral. Aqui, perante a criação de José Rufino, estreitam-se os laços entre as vertentes que retrocedem até às estéticas medievais, expandindo-se na maior atualidade refletida e comprometida com a sociedade.

Percorrer o espaço interior de uma casa, seja ela de proporções vastas [e majestosas] ou quase ínfima de si, implica assumir causas, tomar decisões erguidas. O cadeirão do séc. XVII poderia ter residido desde sempre a este enquadramento que a grande janela abre sobre o casario em frente, esquina rua Ferreira Borges com a rua de Belmonte. Na quadrícula dos vidros secionados, e quando se avança desde o lado oposto do piso, alinham-se portas sucessivas que direcionam o caminhante para uma linha de horizonte. Esse horizonte, ainda que urbano possui algo de cosmológico, impulsiona a um movimento ascensional. O cadeirão impõe-se, é o punctum, para usar a nomenclatura bartheana. Uriel da Costa, o filósofo nominado em Um Bicho da terra por Agustina Bessa-Luís, passeava-se na rua de Belmonte e, quase provavelmente, ter-se-á sentado numa cadeira grande de espaldar parecida, regressado a casa, na eminência da fuga. Num exercício pessoal, organizeime a pensar as peças concebidas e executadas por José Rufino, correspondendo aos princípios e/ou estruturas do pensamento filosófico nas suas deambulações extremas entre o período medieval, moderno, atingindo talvez e ainda visionarismos próximos de Goya (no seu tenebrismo fantasmático de bruxas e martirizados), de William Blake (no seu visionarismos, seres híbridos e apocalípticos), de Odilon Redon (na sua vertente mais sombria, das gravuras por exemplo…) ou de Arnold Böcklin (em ilhas devastadas, cujos destroços dão à costa próximo da Ribeira do Porto… Depois de lembrarmos afinidades a imagismos visionários que remetem para pensamentos místicos de Ramón Llull, êxtases místicos - relatos e iconografia das Visões de Hildegard von Bingen e, mesmo num ou outro tópico, para ilustrações do Livro das Criações/ De Aetatibus Mundi Imagines de Francisco de Holanda, eis o museu imaginário dileto [d’après André Malraux] que, perante as reminiscências e os estímulos ricos e sábios de José Rufino, cada espetador poderá edificar, se souber. E, associando às imagens compiladas e subjacentes [espécie de Atlas Mnemosine de si mesmo introjetado dos demais, lembrando Aby Warburg], passando por movimentos ecfrásticos – afetos aos reinos da literatura, convocando as visões compósitas de Edgar Alan Pöe, as efabulações superiores de Jorge Luís Borges…mas sempre sustentadas nas emanações inconsciencializáveis à maneira de Henri Michaux (na dupla aceção de autor e artista), entre outros... Tome-se, ainda e quase sempre, por referência a existencialidade visceral, de certa forma curiosamente iconoclasta, de parentesco quase paradoxal a autores que sendo díspares, podem ser-lhe cúmplices - Pirandello, Burroughs ou Samuel Beckett…Nenhum deles está diretamente mencionado ou manifesto; não se presentifica qualquer afirmação direta a uma comunhão ou afinidade explícita, nem mesmo os vestígios de textos manuscritos usados como base do trabalho gestual de desenho e pintura inscrita. As páginas impressas ou as folhas gravadas que alimentam as intervenções gráficas, sentiram na pele, foram perfuradas pela compulsividade, obsessão encarnada do pigmento, disperso no ar e cativado por líquidos químicas em busca de organismos vivos. Enfim, o artista paraíbano que coleciona palmeiras, assim como busca por dicionários e enciclopédias antigas, elegeu alguns dos seus conteúdos privilegiados nas páginas de publicações antigas, tornando-as em algo achado que – com toda a propriedade desfigura, destrói, rompe, corta, recompõe e dá a renascer, dá a ver [parafraseando Paul Éluard] através do cárneo, mediante a destreza do pensamento visceral que enforma as matérias dúcteis, do

pensamento ironista exercido sobre as certezas encorpadas pela tradição e que lhe exigem uma atuação meditada, sistemática e compulsiva. A metodologia de trabalho em processo, no contexto da presente residência artística, organizou-se – em criação - sob auspícios de acumulação de elementos que foram renascidos, recuperados de locais improváveis – isto para quem pense que a obra de arte é, exclusivamente realizada com matérias “em primeira mão”. Rufino percorreu as ruas da cidade, vezes sem conta, em busca de móveis, livros, amarras, gravuras, sapatos, lençóis de linho, vitrinas e isolando objetos improváveis e descontínuos. Anseia, numa luta sem obstáculos, por atingir objetos que se adensam nas memórias sobreponíveis, de anonimatos ou atribuições identitárias explícitas. Como antes foi afirmado: o artista trabalha com as memórias, admitindo as tipologias díspares, conferindo-lhes um sentido congregador, aglutinador de cronologias, situações, acontecimentos...sedimentações portanto. Rizomático, quiçá, também se lhe poderia outorgar esse qualificativo substantivador. É o caso da deslocação de alguém e algo – o artista, a memória, a ideia, o objeto - que se acha num lugar alheio e muda de eixo, nunca de convicção. Acerca das deslocações, das estranhezas que podem ser domadas, eis o que magnetiza o residual, proliferando de várias fontes e alteridades. Percorrer a cidade, viajar pelo interior ou pelas margens significa consolidar a sua condição de entranhado em local alheio. Ao longo de um mês, as peças recolhidas foram-se reunindo, conversaram entre si e decidiram-se. As ideias, as leituras, as perguntas sobre a vida das pessoas prováveis e imprevistas rechearam as quebras, as dobras, as insinuações cromáticas coincidindo sobre a sua convicção Encarnada. O mundo, as unidades objetuais que povoam as 7 salas endereçam uma peregrinação empreendida e que atravessa, desde início, a sua produção artística. A sua busca pelos objetos toma uma aceção quase de sair em demando do Santo Graal na sua versão mais agónica e descarnada. Pois a sua ação será exatamente a de lhe sobrepor, acarinhar pela encarnação ajustada e capaz que adquire aparências diversificadas embora convergindo numa intenção una. E retomando Uriel da Costa. Levando-o no passeio pelo interior da alma e das vísceras expostas nas 7 salas, tremendamente cansadas pelo algarismo evenemencial porque gerador, sendo superior, ascensional creio-o. O 7 (sete) é o número dos iniciados; aquele que congrega, que salda e propaga, pela adição do 3 [o ternário que pode ser o espírito; por sua vez é a soma do 1 que é o princípio masculino, com o 2 princípio feminino que no 3 significa a origem da vida; é o algarismo da síntese que resolve a dualidade] ao 4 [o quaternário que será a matriz de todas as coisas, o algarismo cósmico: os 4 elementos fundamentais, os 4 pontos cardeais, as 4 estações do ano, as 4 qualidades essenciais (frio, quente, seco e húmido), os 4 ventos principais…os 4 pontos da Cruz onde o Encarnado morreu…]. Sete (7) são os espíritos perante Deus (no Apocalipse), os 7 ciclos da Terra (4 ciclos solares, com duração de 7 dias). No rosto humano contam-se 7 orifícios: 1 > boca + 2 > nariz + 2 > olhos + 2 ouvidos. E ainda, a considerar que não é de todo por coincidência que se contam: na ordem cosmológica: 7 planetas; na ordem organizada para regular o tempo dos humanos: 7 dias da semana; na ordem do cosmogónico: 7 metais; na ordem do teológico-filosófico e do religioso: 7 pecados mortais e 7 virtudes; na ordem do sagrado: 7 divindades (que protegem o

Universo), 7 deuses originais e supremos no Egipto…7 chakras; na ordem do poiético e artístico: 7 cores principais, as sete cores do arco-íris, 7 notas musicais (Guido Arezzo, no séc. XI, isolou as 2 primeiras letras de uma canto a São João Baptista, donde resultaram: UT – queant laxis, depois substituído por DÓ, posteriormente, no séc. XVII; REsonare fibris; MIra gestorum; FAmuli tuorum; SOLve polluti; LAbii reatum; Sancte Ioannes); e assim por diante. A simbologia dos algarismos esteve implícita em teorias estéticas de diferentes períodos da sua história; associam-se as caraterísticas do espaço arquitetónico que acolhe as criações de José Rufino à dinâmica hermética, escatológica e expurgatória na qual radica. E retomando Uriel da Costa. Encarnação é constituída por intervenções poderosas, tendo Rufino atribuído designações latinas a todas e, depois, estabelecendo títulos aos conjuntos de obras que cada uma delas acolhe. Num plano superior, definem-se 3 núcleos: nascimento, passagem, morte com extensão para um impulso ascensional, transcendência quiçá. Sublinho que nos movimentamos, nesta exposição, num território empapado em sagrado, detalhado em variações de divino em aderência mítica, expandindo-se e subvertendo as constrições impostas – historicamente - por axiologias oligárquicas. Neste contexto, cada sala contém um episódio mítico-simbólico, explanando apropriações interpretativas abertas, ainda que contextualizadas no imaginário judaico-cristão e ocidental fletindo-se para culturalidades que são substância fundamental da cultura, história e política portuguesa nos seus séculos passados, mais incidindo nos emblemas, dogmas e paradoxos…emergentes nos sécs. XVI, XVII e XVIII. Todavia, através de peças de natureza múltipla, exala o retomar dos grandes mitos abeirando-se da Encarnação, quando Deus se torna carne perecedoura para redimir o humano. Sagrado e humano expõem as tragédias da humanidade, num momento em que carece sem trégua, potenciar o bem de todos, independendo de onde mas num quando o mais urgente possível. As memórias históricas, que são propriedade da humanidade, irrompem pela nossa alma rasgando o corpo holístico, onde cada um de nós assume – por exigência ética e moral - uma ação humanizadora e responsável. As memórias individuais enriquecem-se pelo pensamento autocrítico perante o compromisso inadiável. O desenvolvimento da residência artística de José Rufino implica-se do dramático Zeitgeist (espírito do tempo), expurgando as culpas passadas, transcendo as restrições impostas por mentes tautológicas (na sua aceção negativa), assinalando a possibilidade de atravessar do nascimento, às ações e convulsões até à morte da hipocrisia, do ignóbil pela decisão da oferta de sim mesmo in nomine de todos. O seu trabalho purga a culpa que não tem o porquê de ser apontada e cai de bruços sobre a terra, enquanto a ignomínia real se metamorfoseia em híbridos que deslizem sobre os tribunais da solidão, expatriada da hospitalidade mais primordial que se conhece na própria intenção da iconografia desenhada ou incisa nas paredes das cavernas (onde se liam mensagens visuais sobre as condições boas para sedentarizar os grupos que até lá tivessem chegado…). As 7 salas sucedem-se, podendo o percurso ser cumprido em sequência, da direita para a esquerda e vice-versa. A decisão é do visitante. Atendendo a que cada uma das salas tem portas quer no encadeamento, quer para o corredor sobranceiro à escadaria (Anuntiatio)

principal bifurcada que se unifica no primeiro patamar, onde a cabeceira de uma cama de estilo rebuscado se planificou, rebatendo a impossibilidade do humano para o descanso e o sono. Assim, se lhe nega a paz ao Encarnado enquanto humano, desiludindo-o e subindo a sua parada para ascensão, inalcançável pois o teto – e os outros níveis/pisos superiores – cobre, esconde o céu que sobre si pode soçobrar. Nas obras de José Rufino não há céu que se veja, com exceção daquele que está como fundo de paisagem, através das inúmeras janelas que – com regularidade quase geométrica – se afastam ou aproximam nesse percurso dentro das salas. Faça-se, então o percurso pela terra, calcando o soalho que é madeira, amálgama de tempos perdidos e retomados para serventias escatológicas na aceção de José Rufino e, não antagonicamente, estéticas.

E retomando Uriel da Costa. No 2º andar do Palácio, que outrora foi um Convento, os pináculos da igreja da Misericórdia espelham-se nos retorcidos de mogno das cadeiras altas que, afinal, são mesa-de-cabeceira implantadas com umbral da noite; nas cabeceiras das camas alteradas, nas molduras de espelhos cegos que engolem pinturas sob morfologia rorschach. Repercutem espirais, num barroquismo excessivo e adjacente que a história [re]mitologizada quis clamar para seu dogma dileto. Enfim, a madeira incha, distende-se e é transfigurada. Mudam-se vontades, aperfeiçoam-se bons augúrios em modo de suspensão. Os desenhos pontuam as paredes de salas mais austeras, destacando-se pela sanguínea atmosfera em suspensão. Suscitam vivências que oscilam entre a volúpia de organismos expostos (dissecados), manuseados pelas fantasmagorias do artista, assim quanto elevam até níveis de transcendência iniciáticos. Todas as intervenções nasceram num parto celebratório, ciente da morte incontornável. Donde os líquidos serem muitos, vomitados em pinceladas regularizadas e catárticas. O percurso é uma via-sacra, com somente 7 estações, devidamente anunciação logo na subida da escadaria. Finaliza, ou é mediada por eclosões subtis na tradição de uma expulsão de arquétipos individuados mas coletivos que os espetadores possam exorcizar ou queiram acarinhar, exacerbando assim um estado progressivamente pático. O Climax porventura é plural e partilhado nos sussurro que os recetores estéticos verbalizem ou camuflem para si próprios, evocando por certo os pilares analíticos de Eros e Thanatos. Não há deuses explícitos, não se evidencia a encarnação direta. Mas todas as qualidades, que a tradição cultural ocidental suporta, em variantes mitológicas concomitantes se levantam, emergindo de oceanos voláteis e proporcionados que o artista trouxe atrás e dentro de si. Prometeu, Sísifo, todos os demais seres que anseiam pelo castigo estão presentes neste banquete onde o Encarnado se dissipa em 1000 vestígios, rastos e insinuações cromáticas, palimpsésticas e ônticas. “A unidade é o princípio de tudo, o bem é a fonte de tudo. (…) A diversidade existe em todos os seres particulares pequenos ou grandes, e mesmo no maior e mais forte de todos os seres vivos.” (Hermes Trimegisto)

Escadaria

Sala 7 Sala 1 Sala 6

Sala 5

Sala 4

Escadaria da Anunciação > Res Sacrae, 2015 Sala 1 > Solutus, 2015 Sala 2 > Corpus Alienum, 2015 Sala 3 > Cure Locus, 2015 Sala 4 > Et verbo caro factum est, 2015 Sala 5 > Transmutatio, 2015 Sala 6 > Delictum Carnis, 2015 Sala 7 > Incarnatio, 2015

Sala 3

Sala 2

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