ENFRENTANDO O RACISMO E O PATRIARCADO E TECENDO A EQUIDADE: UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS DE DECOLONIALIDADE DA MULHER NEGRA

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FERNANDES, Cláudio. "Família patriarcal no Brasil"; Brasil Escola. Disponível em . Acesso em 05 de julho de 2016.
Disponível em . Acesso em: 02 de Julho de 2016.
3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em 2001 pelas Nações Unidas, em Durban – África do Sul (ZA).
Esta secretaria trata de temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação escolar indígena, diversidade étnico-racial e educação especial, temas antes distribuídos em outras secretarias. 
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ENFRENTANDO O RACISMO E O PATRIARCADO E TECENDO A EQUIDADE: UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS DE DECOLONIALIDADE DA MULHER NEGRA
RESUMO: O presente artigo, por meio das lentes teóricas dos Estudos Pós-Coloniais, analisa as relações existentes na configuração histórica do nosso país por meio das categorias de raça e gênero, partindo do pressuposto de que ambas foram decisivas para o sucesso do projeto colonial de exploração e dominação dos povos e culturas africanos e americanos. Nosso objetivo é analisar a atual situação das mulheres negras no Brasil e suas organizações de resistência política para a afirmação de existência e visibilidade. Para tanto, a partir dos critérios da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2004) selecionamos o corpus e procedemos a uma análise documental do Plano Nacional de Política para as Mulheres 2013-2015. Este artigo faz parte de pesquisa ainda em desenvolvimento, portanto, nossos resultados são preliminares, mas indicam que as diretrizes expostas no referido Plano avançam em direção à construção de uma sociedade antirracista e intercultural.
PALAVRAS-CHAVE: Colonialidade; Patriarcalismo; Lutas das Mulheres Negras.
Introdução
O presente artigo versa sobre a intersecção entre Colonialidade e Patriarcado, destacando como o colonialismo e o patriarcalismo engendraram a sociedade moderna ocidental e capitalista. Estas duas estruturas definiram a configuração do mundo moderno, hierarquizado pela divisão de trabalho, saberes, raças e gêneros, assim como voltado a uma cultura etnocêntrica e apática, que resultaria na negação do outro enquanto sujeito. Por isso, nesse artigo focamos na discussão sobre gênero e raça.
As motivações que nos levaram ao desenvolvimento deste artigo giram em torno da luta dos movimentos sociais na atualidade brasileira contra o preconceito forjado durante anos de invasão e dominação europeia sobre o Brasil, bem como de outros países da América e do Caribe. Além disso, entendemos que a abordagem deste assunto é importantíssima para a organização de resistências políticas contra a opressão e para que cada vez mais pessoas possam se identificar como negras/os, mulheres, lésbicas, gays e afins.
Adotamos como lentes teóricas, para compreender tais relações, os Estudos Pós-Coloniais, De acordo com os EPC a independência política e jurídica das ex-colônias não significou que o processo de descolonização foi concluído, dada à força da colonialidade que mantém viva as marcas do colonialismo através de estruturas subjetivas e da colonização epistemológica. A descolonização só será completa quando as ex-colônias concluírem o processo de decolonialidade.
Colonialidade (QUIJANO, 2005) é um termo que se refere à outra face da modernidade que, ao contrário do que somos estimulados a acreditar, não foi constituída apenas de glórias e sucessos. A modernidade ocidental se funda sob a hegemonia eurocêntrica que impõe sua racionalidade e seus postulados científicos, linguísticos, históricos e filosóficos sobre todas as outras epistemologias e culturas existentes, os quais contribuem para evidenciar os impactos da colonização, sejam eles visíveis – política, economia, sociedade – e invisíveis – cultura, ideologia. É por meio dessa abordagem teórica que realizaremos nossa análise, considerando como pressuposto que as concepções de raça e gênero foram construídas política e culturalmente com o objetivo de hierarquizar e consolidar o poder por parte de quem estava no domínio: homens brancos, europeus, cristãos, heterossexuais.
É com a consolidação da colonialidade e do patriarcado que o colonialismo atuou nos lugares invadidos pela Europa (Ásia, América e África) e é com a persistência dessas estruturas coloniais até os dias atuais conforme Silva, et al. (2013) que raça e gênero vão se naturalizando na nossa sociedade, até se chegar ao ponto de tornarem-se quase imperceptíveis. Os Estudos Pós-Coloniais e o Feminismo, neste caso, são justamente a retomada desta questão e a problematização do assunto para que ele seja analisado e discutido como forma de contribuir com a mitigação dos impactos da colonialidade sobre os grupos subalternizados, uma vez que eles servem de base para a organização política de mulheres e de negras/os.
O objetivo deste trabalho é analisar quais as relações existentes na configuração histórica do nosso país entre raça e gênero, partindo-se do pressuposto de que ambos foram decisivos para o sucesso do projeto colonial de exploração e dominação dos povos e culturas africanos e americanos. Além disso, procuraremos discutir a atual situação das mulheres negras no Brasil e suas organizações de resistência política para a afirmação de existência e visibilidade. Para tanto, a partir dos critérios da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2004) selecionamos o corpus e procedemos a uma análise documental do Plano Nacional de Política para as Mulheres 2013-2015.
Assim, dividimos o texto em quatro seções, além da presente introdução: a) a articulação da colonialidade e do patriarcado na construção da ideia de raça, de gênero e de racismo; b) o protagonismo dos movimentos sociais para a adoção de políticas de promoção da igualdade racial e de gênero; c) o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015; d) as considerações.
Raça e gênero: construções para a legitimação de poder
Na presente seção discutimos as articulações históricas entre raça e gênero para a legitimação do poder branco, masculino, heterossexual, cristão, urbano. Partimos da crise das estruturas feudais na Europa Ocidental e a ascensão de uma nova classe dentro da antiga trifuncionalidade medieval (a burguesia), na qual o comércio se tornou o principal meio econômico nos emergentes países do hemisfério norte.
Dentro desta nova realidade, a exploração de terras recém-descobertas se tornou vital para o Mercantilismo, marcando, assim, a passagem do Feudalismo para o Capitalismo. É em meio a esse período de transição que se desenvolve e se consolida as políticas econômicas do Colonialismo.
De acordo com Silva, et al. (2013, p. 254), o colonialismo pode ser definido como
um padrão de dominação e de exploração que exercia o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma determinada população com identidades diferentes e situados em jurisdição territorial diferente.
Assim, entende-se por colonialismo o conjunto de práticas e políticas de dominação e exploração que os países europeus exerciam sobre os povos e regiões da América, Ásia e África, com o objetivo de exportar matérias-primas, metais preciosos e escravos humanos pelo mundo dominado pelo seu imperialismo. O período em que tais práticas existiram inicia no final do século XV e se estende até o século XX, quando as últimas colônias africanas conseguem alcançar sua independência, como Cabo Verde, em 1964.
Durante os quase quinhentos anos de implantação do projeto colonial nos países subjugados pela Europa, uma nova forma de se enxergar a disparidade entre norte e sul é gerada. Os Estudos Pós-Coloniais denominam de colonialidade o padrão de poder que tem objetivos de dominação que mantém o colonialismo vivo até os dias atuais, mesmo após a descolonização das ex-colônias. A colonialidade se apresenta sob quatro eixos: colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza, mas devido ao espaço nos detemos à Colonialidade do Poder (QUIJANO, 2005). Esta se refere a um sistema de classificação social da população mundial baseada na ideia de raça, formando identidades sociais e desenvolvendo uma hierarquia social que classifica os brancos como superiores. De acordo com Walsh (2008), mestiços, índios e negros são tomados como identidades homogêneas e negativas com suas diferenças negadas e tendo como referência o padrão branco e europeizado.
Além disso, a colonialidade do poder está ligada à exploração do trabalho baseada na hegemonia do capitalismo mundial. De tal modo, Quijano (2005, p. 231) nos mostra que "as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global do controle do trabalho" para manter a acomodação social onde o padrão hegemônico do branco se situa acima dos "outros".
A colonialidade propaga a ideologia de que todos os lugares dominados pela Europa seriam inferiores e mereciam passar pela exploração porque nunca seriam tão desenvolvidos e prósperos quanto os seus invasores, seja por causa da cor de pele e cultura – que irá pouco tempo depois originar a ideia de raça – seja por causa de crenças e línguas diferentes. Além disso, ainda havia outra ideia de superioridade: a do saber. Acreditava-se que apenas o saber científico europeu era o que, de fato, era válido e correto, ao passo que os conhecimentos externos a esse eram considerados como senso comum e místico. Portanto, a colonialidade dividia o mundo em raças – racializava – e em saberes superiores e inferiores – racionalização – com o objetivo de hierarquização e segregação.
Ao contrário do colonialismo, a colonialidade não era visível nem oficial. Como se tratava de uma ideologia, era aderida à força pelos próprios povos subjugados, que começavam a acreditar que, de fato, pertenciam a uma raça inferior e que mereciam passar por aquilo. O discurso da colonialidade legitimava o racismo: "trazer os negros da África para a América era realizar um ato de caridade, era libertá-los da barbárie, de um clima agressivo, de um estágio selvagem de civilização" (Queiroz, 1987, p. 54). A ideia de raça foi criada para se estabelecer uma hierarquia e se consolidar o poder dominante europeu e era aderida até mesmo pelos mais ilustres pensadores da época. O negro, raça inferior, deveria passar pela exploração, pois "o cativeiro era até um benefício, assumindo aspecto civilizador sobre seres tão abaixo dos brancos na escala humana" (Ibid.).
Além da criação da ideia de raça com a colonialidade, o colonialismo se fundou sobre outro grande pilar nos lugares em que atuou – o patriarcalismo. Entende-se por patriarcalismo a ideologia que submete os assuntos de liderança política, econômica e familiar a uma figura masculina. Ao contrário da raça, esta ideologia não foi criada na época colonial, mas muito antes dela, remontando ao período arcaico da Grécia Antiga. O termo patriarcalismo deriva do grego pater, ou seja, pai, e se tornou ideologia dominante no período colonial brasileiro, excluindo as mulheres de lideranças e da economia. O patriarca não era apenas o chefe de uma família; ele era o grande chefe de todos os seus domínios e, mesmo com o fim do período colonial e o advento da monarquia e república, o modelo de família patriarcal permaneceu na cultura brasileira. De acordo com Fernandes, "o modelo patriarcal (...) caracteriza-se por ter como figura central o patriarca, ou seja, o 'pai', que é simultaneamente chefe do clã (...) e administrador de toda a extensão econômica e de toda influência social que a família exerce".
O patriarcalismo se tornou ideologia fundante do modelo de família tradicional judaico pelos hebreus e isto influenciou o Cristianismo, religião a qual toda a Europa aderia durante o período colonial e que foi imposta forçadamente pelos invasores colonizadores aos povos africanos e americanos. Com isso, a ideia de superioridade do homem sobre a mulher se tornou unânime e, ao lado da criação da ideia de raça, consolidou o poder do homem branco (descendente de) europeu nas colônias. É importante destacarmos, com isso, o papel da ideia do que significa "ser homem" e "ser mulher" ao longo da História, em outras palavras, do gênero. O gênero, ao contrário do sexo – macho ou fêmea – ou da orientação sexual – heterossexual, bissexual, homossexual, assexual, etc. – não é natural. O gênero é uma construção sociocultural baseada em estereótipos atribuídos ao sexo masculino e feminino. Por exemplo, antes mesmo de nascer uma criança, os seus pais já imaginam que, se for do sexo masculino, pintarão seu quarto de azul, comprarão carrinhos, bonecos e videogames; se for do sexo feminino, o quarto será rosa, seus brinquedos serão bonecas no tamanho de bebês reais ou cozinhas de brinquedo. Apesar de, à primeira vista, parecer um pensamento inocente, a construção da ideia de gênero é mais problemática do que se imagina.
O gênero é "a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser" (BUTLER, 2003, p.59). De acordo com a autora, o gênero não é natural, mas sim, uma naturalização, a aparência de ser natural, de uma série de atos atribuídos a um sexo. Não é no momento do nascimento de uma criança que se pode já definir o seu gênero, mas ao longo da vida, pois este é construído gradativamente.
Na História do Brasil, o gênero adquire uma importância relevante na fundação da estrutura da família patriarcal. Muito mais do que simplesmente a divisão do que é ser homem e mulher, o gênero no patriarcalismo serviu para classificar o superior e o inferior. Ao lado da concepção de raça, extremamente hierarquizada entre a evoluída e a atrasada, a concepção de gênero criou a noção de homem competente, valente e heroico, e de mulher bela, recatada e do lar. Com estas duas ideologias extremamente discriminatórias e, pior, aceitas pela população em geral, a colonialidade vigorou durante o colonialismo e o ultrapassou, chegando até os nossos dias atuais, como dissemos anteriormente.
Uma vez que raça e gênero são invenções criadas com o objetivo de consolidação de poder, percebemos o peso que foi lançado sobre mulheres e negros, mas, ainda mais, sobre as mulheres negras. Estas, nas palavras de Werneck (2010), não existem, pois,
são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos.
Portanto, a mulher negra é uma invenção desta modernidade racista e misógina em que vivemos. Hoje, após o fim da escravidão e do colonialismo e a gradativa quebra dos valores da família patriarcal, a denominação se tornou política e identitária. Por 388 anos o Brasil forjou a raça e o gênero com o objetivo de exploração e hierarquização, e, durante todo este tempo, a mulher negra teve seus direitos negados por pertencer a duas concepções discriminatórias. Hoje, com ambos os termos repolitizados, a raça se tornou uma expressão de força política ao lado do gênero, e a mulher negra luta pela sua liberdade, vida, segurança e direitos, ao lado de outros grupos subalternizados pela colonialidade, como veremos na próxima seção.
Ressignificando raça e gênero: o protagonismo dos movimentos sociais para a adoção de políticas de promoção da igualdade racial e de gênero
Com o fim da escravidão no final do século XIX e o advento da República, o Brasil se ajustava às novas realidades globais. No entanto, a realidade social nacional permaneceu muito semelhante aos períodos anteriores, em que brancos eram minorias privilegiadas, enquanto que negros e índios a maioria excluída (em termos populacionais).
O papel da mulher negra ao longo do processo histórico colonial no Brasil não se restringiu apenas à condição de escravidão a qual ela foi lançada, mas também às resistências. Mesmo com a diáspora africana no Brasil, as crenças tradicionais dos povos escravizados permaneceram, seja através de cultos e rituais escondidos ou pelo sincretismo com o catolicismo. Divindades femininas diversas como Nanã, Oxum, Iansã, Iemanjá, Obá, etc., as quais representam muito mais a força feminina do que em outras culturas, resistiram à travessia do Atlântico. Guerreiras, trabalhadoras, que não se submetem ao poder masculino e são donas de si. Tais representações mitológicas refletiam muito mais do que apenas uma religiosidade: elas exprimiam a realidade da mulher negra. É se apoiando na crença que pequenas e grandes revoltas, fugas, assassinatos de escravocratas e organização de quilombos, durante o período da escravidão pela colônia, foram organizadas e lideradas por mulheres negras (WERNECK, 2010).
É perceptível esta relação quando se observa a resistência das mulheres negras no século XX, quando lutam, após o fim da escravidão, contra o racismo, com a fundação, por exemplo, em 1950, do Conselho Nacional da Mulher Negra, que, 35 anos depois, em 1985, irá ser substituído pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – ironicamente, no entanto, tendo apenas uma mulher negra entre dez conselheiras (WERNECK, 2010, p. 9).
Mesmo diante de tudo o que já foi exposto até aqui, muitas pessoas negam e tentam silenciar as desigualdades geradas pela articulação entre as duas categorias que vimos nos debruçando sobre elas até o momento - raça e gênero. Mas estas desigualdades são apresentadas por meio de várias fontes. Entre elas do próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que aponta a pirâmide que foi construída ao longo de mais de trezentos anos de colonização e dominação europeia e que hoje revela significantes desigualdades acerca da nossa realidade social. Os dados do IBGE em 2014 mostram que 53,6% da população brasileira é negra, em contraste com 45,5% de brancos. No quesito Ensino Superior, apenas 40,7% dos negros cursavam em 2013, enquanto 69,4% de brancos estavam na mesma situação. Há uma disparidade observável, uma vez que, logicamente, a população de negros e brancos cursando o Ensino Superior deveria ser, no mínimo, equivalente. A realidade das mulheres negras é ainda mais complicada, pois,
de acordo com o Ipea (...), em 2007, a taxa de desocupação entre mulheres negras chegava a 12,4%, contra 9,4% entre mulheres brancas, 6,7% entre os homens negros e 5,5% entre os homens brancos. Já a renda média das mulheres negras era de R$ 436, contra R$ 649 dos homens negros, R$ 797 das mulheres brancas e R$ 1.278 dos homens brancos.
Percebe-se, portanto, com clareza a desigualdade de gênero e raça que há no Brasil, tanto pelo acesso aos estudos ou mercado de trabalho, quanto pelo acesso aos serviços básicos de saúde e saneamento básico. A violência é outro fator que é semelhante tanto ao gênero quanto à raça, pois seus tipos, devido à nossa história e cultura, dependerão de que gênero e raça a vítima pertence. Em 2010, de acordo com a Nota Técnica Vidas Perdidas e Racismo no Brasil, divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), além das características econômicas e sociais, a cor da pele faz as chances de homicídio aumentarem em até oito pontos percentuais. O estado de Alagoas é o que apresenta maior mortalidade da população negra no país, em que morrem dezoito negros para cada uma pessoa de outra cor.
A realidade brasileira apresenta uma guerra civil não declarada. Desde a invasão portuguesa em 1500, até os dias atuais, os aspectos de raça e gênero vêm sendo determinantes para a nossa sociedade, uma vez que a colonialidade ainda vigora em nosso país.
Sabemos que a mulher negra em nosso país sofre mais do que a mulher branca, ou o homem negro ou branco, uma vez que ela foi duplamente colonizada, uma vez pelo Colonialismo, na segunda pelo Patriarcalismo (OLIVEIRA; PARADISO, 2012). Os impactos destes projetos exploratórios e discriminatórios são vistos e vividos até os dias atuais nas ruas das cidades e no campo, frutos de uma história marcada por uma ideologia que racionalizava e racializava o mundo. Dessa forma, Moreira (2002, p. 18) afirma que "'minorias', identificadas por fatores relativos à classe social, gênero, etnia, sexualidade, religião, idade, linguagem, têm sido definidas, desvalorizadas e discriminadas por representarem 'o outro', 'o diferente', 'o inferior'".
Nesse contexto, percebemos que são várias as questões que levam as mulheres à luta, dentre elas, a importância da linguagem, dos discursos enquanto práticas sociais que mobilizam ou estagnam as relações humanas no âmbito da modernidade. Por exemplo, podemos destacar: negra/o ou afrodescendente; gay ou homossexual; mulher ou indivíduo do sexo feminino. Estas não são meras palavras para se referir a categorias específicas da sociedade. Os primeiros termos são denominações políticas e de militância, enquanto os segundos se restringem a características fenotípicas ou biológicas. E mais do que isso, os primeiros termos incidem sobre as identidades que são social, política e culturalmente construídas. Enquanto que os segundos, buscam negar as diferenças por meio da naturalização, essencialização, ou mesmo negação das mesmas. Destituindo esses sujeitos de sua condição humana e, portanto, de sujeito de sua história.
É necessário a luta pela decolonialidade. Esse é um conceito que pressupõe a viabilidade de lutas contra a colonialidade a partir das pessoas e de suas práticas sociais, políticas e epistêmicas. É nesse contexto que Walsh (2007) concebe a Interculturalidade como estratégia e princípio que orienta a construção do pensamento outro, através de pensamentos, ações e enfoques epistêmicos distintos do eurocentrismo. Nesse sentido a autora associa a Interculturalidade a um projeto social, cultural, educacional, político, ético, estético e epistêmico que conduz à decolonização e à transformação.
O fato de o país ter assumido seu racismo oficialmente na Conferência de Durban, proporcionou a adoção de medidas de ações afirmativas, inclusive no cenário educacional, que apontam para um processo de decolonialidade.
O Movimento Negro lutou para "desconstruir a perpetuação da desigualdade racial no sistema brasileiro de ensino" (BATISTA, 2010, p. 308) percebendo que se fazia necessário adotar políticas de formação de professores, combater as expressões de racismo no livro e materiais didáticos e nas atitudes preconceituosas no ambiente escolar. Dessa forma, a autora destaca a participação do Movimento Negro Unificado de Pernambuco no sentido da mobilização e sensibilização de educadores e da "classe política para a inclusão no currículo escolar do estudo da história do continente africano e dos africanos, além da luta dos negros no Brasil e a sua contribuição na formação da sociedade quanto aos aspectos culturais, econômicos e políticos" (Ibid., 308).
E as mulheres lutam por meio de várias estratégias pela adoção de políticas públicas que venham garantir a correção das distorções sociais, políticas e econômicas derivadas das desigualdades de gênero, bem como, pela adoção de medidas de combate à violência, como veremos na próxima seção.
O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015
A partir de 2003 as políticas de ações afirmativas no Brasil assumiram um caráter mais sistemático e institucional, com a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPRIR), ligada à Presidência da República, e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), ligada ao Ministério da Educação, depois, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) de acordo com o Decreto nº 7480/2011, e hoje, esvaziada pelo governo golpista exercido pelo presidente interino. Bem como, com a criação da Secretaria de Política para as Mulheres, também criada em março de 2003.
Mas é importante afirmar que "as políticas de ações afirmativas não se reduzem ao âmbito do ensino superior e estritamente a uma de suas metas, cotas destinadas a garantir o ingresso de negros, indígenas e empobrecidos nesse nível de ensino" (SILVA, 2009, p. 263). Vejamos a definição de Silva (2009, p. 264):
Ações afirmativas são um conjunto de metas articuladas e complementares que integram programas governamentais, políticas de Estado, determinações institucionais, com as finalidades de corrigir desigualdades no acesso à participação política, educação, saúde, moradia, emprego, justiça, bens culturais; reconhecer e reparar crimes de desumanização e extermínio contra grupos e populações; reconhecer e valorizar a história, cultura e identidade de grupos sociais e étnico-raciais, bem como a importância de sua participação na construção de conhecimentos valiosos para toda a humanidade.

Neste sentido, as políticas de ações afirmativas também se materializam no enfrentamento das diversas distorções causadas na sociedade, referentes a questões salariais, acesso aos direitos sociais, aspectos culturais, combate à violência entre tantos outros.
Por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2004), a qual nos leva, através da inferência, a ultrapassar o limite da mera descrição, conduzindo-nos à interpretação através da atribuição de sentidos dada as características do objeto que foram criteriosamente levantadas e organizadas, procedemos à análise do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015. O qual foi elaborado em diálogo com vários segmentos sociais e no âmbito dos dez anos da institucionalização de políticas para as mulheres. O referido Plano aborda dez linhas de enfrentamento, sendo elas: 1) Igualdade no mundo do trabalho e autonomia econômica; 2) Educação para igualdade e cidadania; 3) Saúde integral das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; 4) Enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres; 5) Fortalecimento e participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; 6) Desenvolvimento sustentável com igualdade econômica e social; 7) Direito à terra com igualdade para as mulheres do campo e da floresta; 8) Cultura, esporte, comunicação e mídia; 9) Enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia e 10) Igualdade para as mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência. Para este trabalho, focamos no ponto 9. De acordo com o referido Plano:
A articulação entre o sexismo e o racismo incide de forma implacável sobre o significado do que é ser mulher negra no Brasil. O racismo constrói uma postura hierárquica que ser negra significa ser inferior. O sexismo por sua vez desqualifica a mulher, hierarquiza as relações de gênero, impõe a heteronormatividade como única forma do exercício da sexualidade e considera desviante e negativa o exercício das relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Assim, estimula a discriminação, autoriza o preconceito e promove a cultura de ódio e criminaliza na prática as relações entre pessoas homossexuais (BRASIL, 2013, p. 84).
A partir da constatação exposta acima, o Plano define objetivos, metas e estratégias para combater todas as formas de violência institucional que atingem as mulheres em razão do racismo, sexismo, lesbofobia e de todas as formas de preconceito e discriminação baseadas em gênero, orientação sexual e identidade de gênero, ressaltando seu caráter transversal e estruturante da realidade social. Isso fica evidenciado em várias ações do mesmo (1.1.11., 1.1.13., 1.4.1., 1.4.4., 2.1.3., 2.4.5., 2.5.2., 2.5.3., 2.5.7., 2.6.2., 2.6.3., 2.6.5., 3.2.1., 3.2.4., 3.2.6., 3.2.9., 3.3.4., 3.3.5., 3.8.9., 3.10.1., 3.10.3., 3.11.3., 4.3.18., 4.3.19., 5.2.5., 5.3.5., 5.3.6., 5.3.7., 5.5.7., 5.5.8., 5.5.9., 6.3.2., 7.1.3., 7.5.1., 8.1.3., 8.1.4., 8.1.9. e, da seção de Gestão e Monitoramento, também as ações 2.1., 2.2., 3.5., 3.6., 3.7. e 3.9).
As ações são pensadas para realização conjunta entre as diversas esferas do poder público articulando os entes federados em regime de colaboração para realização das metas de curto, médio e longo prazos.
Destacamos que o Plano, do ponto de vista do texto legal, é um grande passo para a decolonialidade das relações constituídas no âmbito da colonialidade e do patriarcado, pois enfrentam de forma direta tais questões. O diálogo com a sociedade fica bem explícito, pois demonstra tensões entre as definições por exemplo dos prazos e das formas de materialização das estratégias e ações.
Porém, o que mais nos preocupa nesse momento, é que o referido plano que terminou sua vigência em 2015, não tendo todas as metas alcançadas, coloca a situação das mulheres no atual momento em uma condição ambígua de maior vulnerabilidade e de maior propensão a à luta. Estamos nos referindo a atual situação política que nosso país atravessa, pois as políticas desencadeadas até o momento não se constituíram necessariamente em políticas de estado, senão de governo. E este se encontra ameaçado por meio do golpe que vem sendo forjado nos últimos tempos.
A relação de ambiguidade se coloca no sentido de que as conquistas alcançadas até aqui se veem ameaçadas por outras perspectivas que vêm à tona em um governo constituído de homens brancos, ricos e velhos. Porém, nos convoca a continuar na luta para que as conquistas alcançadas até aqui se consolidem e se aprofundem para que de fato possamos celebrar a constituição de uma sociedade antirracista e decolonializada.
Considerações
A construção da ideia de raça e o racismo têm negado as diferenças culturais e silenciado as formas de pensamento outro. Um agravante a esta situação era a negação da existência do racismo no Brasil, que sob a falsa ideia de uma pretensa democracia racial, mantinha-se uma acomodação social na qual apenas os brancos, e raros casos de negros e indígenas, por exemplo, chegavam às universidades. O fato de o país ter assumido seu racismo e se comprometido em adotar políticas para a promoção da igualdade racial, proporcionou a adoção de medidas de ações afirmativas, inclusive no cenário educacional, que apontam para um processo de decolonialidade dos negros no Brasil no cenário educacional.
As desigualdades de gênero engendradas no âmbito do patriarcado também vêm sendo combatidas por meio das lutas das mulheres para a adoção de políticas de combate a essas desigualdades e à violência. Especialmente as mulheres negras que sofrem com a articulação das duas categorias trabalhadas nesse artigo.
Como observamos a promulgação dos dispositivos legais, percebidas aqui no âmbito do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, surgem num contexto de lutas dos movimentos sociais que pressionam e garantem espaços dentro do corpo legal. Nestes dispositivos evidencia-se a preocupação em construir uma sociedade antirracista e intercultural, a partir da compreensão da formação multi-étnica e pluricultural do Brasil, onde a diferença deve ser respeitada e valorizada. Nosso próximo passo é analisar como estes dispositivos se materializam na prática e a que passo estamos da construção de uma sociedade decolonial.

Referências
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