Enlevo e remissão na ayahuasca sob a ótica do numinoso

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Enlevo e remissão na ayahuasca sob a ótica do numinoso José Altran∗

Resumo: Sabe-se que o ritual com a ayahuasca, bebida sacramental indígena cuja ingestão induz o adepto a um estado de consciência alterado, é muitas vezes uma prova exaustiva e temível. As dificuldades em se acalmar frente ao transe, o sujeito estando suscetível a intenso desconforto físico e desregramento do pensamento, nos fazem questionar qual é o motivo que o leva a repetir tão difícil experiência. O que se relata é que, por alguma explicação que foge à apreensão racional, tamanho desafio é compensado pela purificação do eu e pelo enlevo beatífico experimentado quando em contato com o divino através do chá. O presente trabalho propõe-se a comparar depoimentos de praticantes assíduos com os aspectos Fascinans e Augustum do pensamento de Rudolf Otto, procurando flagrá-los conceitualmente nos elementos da experiência relatada, a fim de apresentar uma reflexão fenomenológica para este caráter místico que encanta e atrai o indivíduo mesmo frente à intimidação. Palavras-chave: ayahuasca. numinoso. remissão mística. enlevo místico.

Introdução

Durante meu primeiro contato com a obra mais famosa de Rudolf Otto, as especulações que lá se pretendiam assertivas não se mostraram difíceis de assimilar, mesmo carregando uma forte impressão de subjetividade ou inconstância. A isso atribuo o que se registrou de peculiarmente sensorial em minha memória após considerável número de participações em rituais com a ayahuasca. Tanto Otto insiste na importância de uma experiência religiosa positivamente vivida para acompanhar sua teoria, que foi justamente a episódios do transe que associei fragmentos de vários aspectos do "numinoso" por ele proposto, antecedendo a organização conceitual - metódica e dialética - no meu entendimento. Embora diversos pontos do livro devam estar sujeitos a uma análise mais crítica buscando a universalidade da teoria ou uma fundamentação suficientemente concreta, é na idéia de se buscar no "divino experimentado" uma essência para as religiões que, a meu ver, mora sua maior contribuição. Estudar os registros históricos, significados antropológicos ou implicações sociais têm sua inegável e crucial importância para diversas áreas do saber, mas



Mestrando em Ciências da Religião pela PUC-SP. Bolsista CAPES. [email protected]

no que tange "religião" como algo sui generis, também deve-se tomar o fenômeno do “transcendente” em seu estado vivenciado como importante objeto de estudo. "A pergunta pelo conceito e pelo termo religião leva imediatamente ao centro da Ciência da Religião e, ao mesmo tempo, a um de seus debates internos mais importantes." (HOCK, 2010, p.17). Mesmo que alguns autores sequer considerem essa definição possível – ou mesmo necessária -, é proveitoso direcionar atenção especial para onde supostamente se encontra o elemento sensorial que discerniria a religião de certos conjuntos de premissas em prol do bem coletivo sem apelo ao sobrenatural. Para tanto, devemos nos permitir especular despretensiosamente qual e como é, já que falta-nos material concreto senão a própria experiência - vale, portanto, repetidamente colocar à prova a aplicabilidade da teoria de Otto. Como o nume supostamente se manifesta através da experiência irracional, na vita religiosa, investigar sua existência no transe da ayahuasca - tão arrebatador e intenso – mostrar-se-ia mais eficaz que fazê-lo em cenário onde o enlevo e a remissão são menos frequentemente percebidos. Pelo que se alega nestes rituais, é improvável, em transe, não sentir o divino. Considerando esta premissa, mostra-se ali um campo rico a se especular a hipotética "essência das religiões" tendo como diretriz, neste primeiro momento, e enquanto escorando-se nas palavras dos ayahuasqueiros, a teoria do numinoso.

1. Numinoso Tomaremos como corpo teórico central deste estudo o livro “O Sagrado – os aspectos irracionais da noção do divino e sua relação com o racional” (Das Heilige), de Rudolf Otto, teólogo luterano alemão e pesquisador de religiões comparadas, publicado em 1917. Aproximava-se ali o fim da Primeira Guerra Mundial, eclodia a Revolução Russa e o expressionismo se expandia no país como uma reação contra a frieza da razão, possivelmente contexto pelo qual a obra tenha nascido ou atraído atenção. Recebeu duras críticas no decorrer do século e sofre descréditos principalmente nos tempos atuais, mas não deixa de ser importante marco para as Ciências da Religião, inspirando proeminentes pensadores como Mircea Eliade, Carl Gustav Jung e Paul Tillich: Seu sucesso deu-se graças, sem dúvida, à novidade e à originalidade da perspectiva adotada pelo autor. Em vez de estudar as idéias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se à análise das modalidades da experiência religiosa. Dotado de grande refinamento psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de teólogo e de historiador das religiões, Rudolf Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência. (ELIADE, 1992, p. 12)

Com o objetivo de apreender o elemento subjetivo que habita e dá forma a toda manifestação religiosa, e próprio deste campo, o autor cunha o termo “sagrado” (heilig, em alemão). Otto não deixa de considerar que tal conceito é composto ainda por um elemento originário e indivisível, fazendo-se necessário estudá-lo à parte, e para este ele aplica o termo “numinoso”1, que “designará o sagrado descontado do seu aspecto moral e - acrescentamos logo - descontado, sobretudo, do seu aspecto racional” (OTTO, 2007, p. 38). Seria este substantivo inderivável e primário que se refere a uma espécie de “presença sobrenatural” estritamente irracional – “um evento um tanto singular, que por sua profundidade foge à interpretação inteligente” (OTTO, 2007, p. 97) -, embora positivo e passível de associações racionais para se transformar em outra coisa. Defini-lo não é possível, mas, em contato com ele, o indivíduo manifestaria uma série de sentimentos bem próprios (colocados como “aspectos do numinoso”) que constatariam sua presença: Somente se pode levar o ouvinte a entendê-la conduzindo-o mediante exposição àquele ponto da sua própria psique onde então ela surgirá e se tornará consciente. (...) não é ensinável em sentido estrito, mas apenas estimulável, despertável - como tudo aquilo que provém "do espírito". (OTTO, 2007, p. 39)

Tomando como partida o “sentimento de dependência” proposto por Schleiermacher, Otto aponta o “sentimento de criatura” e o define como “um efeito colateral, subjetivo, é por assim dizer a sombra de outro sentimento (que é o “receio”), que se deve em primeiro lugar e diretamente a um objeto fora de mim” (OTTO, 2007, p.42), e sob esta condição o fiel torna-se suscetível a experimentar os efeitos sensoriais do nume. Temos o aspecto tremendum (arrepiante), que se aplica a um temor diferente dos medos “naturais” – de um acidente ou de uma agressão, por exemplo -, mas a um “receio demoníaco” que causa calafrios na espinha como se nos deparássemos com um fantasma ou rendidos pela ira deorum e, por esse motivo, apresenta-se como aspecto distanciador. O aspecto majestas (avassalador) é a consciência da hegemonia do numinoso sobre si, que impele uma impressão de impotência frente ao supremo e, assim, gera no indivíduo a nulidade própria e a criaturalidade. Com enérgico, Otto se refere àquele caráter do numinoso que “aciona a psique da pessoa, nela desperta o zelo (Eifer), ela é tomada de assombrosa tensão e dinamismo” (OTTO, 2007, p. 55), impulso motriz e inspiração que pode se converter em ascetismo, militância, abstinências voluntárias e heroísmo. 1

Por

mysterium

(“totalmente

outro”)

tomamos

o

Este termo (e variações) já havia sido usado anteriormente, em especial na filosofia.

encontro

com

uma

sobrenaturalidade oculta, o mistério, o milagre, a estranheza na fé de um “além”, uma incapacidade de incompreender funcionamentos e desígnios acompanhada, porém, da sensação de sua existência. O ungeheuer (assombroso) é aspecto que o próprio autor demonstra dificuldades em explicar, pois ele remete justamente a uma aboluta inexplicabilidade do numinoso, ou ao menos à consciência da criatura de que transcende todas suas categorias e que tais contornos estão absolutamente além de seus sentidos. Além destes, ainda há dois aspectos do numinoso que serão aqueles onde mora o foco deste artigo: o fascinans e o augustum. O que o demoníaco-divino tem de assombroso e terrível para nossa psique, ele tem de sedutor e encantador. E a criatura que diante dele estremece no mais profundo receio sempre também se sente atraída por ele, inclusive no sentido de assimilá-lo. (OTTO, 2007, p. 68)

O aspecto fascinans (fascinante), em oposição ao temor sobrenatural, é de caráter aproximador - enquanto intimida, o nume seduz o indivíduo por se apresentar prodigioso e dionisíaco. Daí surgem o amor, a misericórdia, a compaixão e a caridade da prática religiosa, mas estes não são o fascinante em si, e sim aspectos “naturais” dessa experiência psíquica pensados de forma consumada. Deste efeito irracional depreende-se a própria origem da mística, onde procura-se “tomar posse” desse poder que encanta, seja por consagração, conjuro ou possessão. Porém, logo tal fascínio passa de artifício a finalidade última, não havendo para o indivíduo meta maior que, ao invés de apoderar-se dele, simplesmente estar nele. Torna-se fim em si mesmo porque induz a criatura a um estado indescritível de completude, um enlevo salvífico que preenche suas pulsões. O homem “natural” não entende “salvação” senão por um ideograma do sentimento, analogia conceitual interpretativa que mais confunde sua percepção sobre aquilo que a esclarece, fazendo-se importante a experiência em si. Mesmo inefável, o mergulho nesse aspecto do nume mostra-se positivamente experimentável e exuberante, estonteando o convertido. Seria esta a integração absoluta com o divino acessível. Por outro lado, o último aspecto proposto no livro corresponde a uma qualidade objetiva do nume, compreendida em uma categoria axiológica e não estritamente ontológica. Para entendê-lo, basta identificar o apequenamento ao qual o indivíduo se submete, dessa vez não por ser menor ou vulnerável, mas por perceber-se com valor marcadamente inferior ao do divino. Sente-se “profano” frente a ele, cujo valor sanctum deste opõe-se diretamente àquela sensação. Assim, tem-se o termo augustum para indicar a característica que impele o devoto a

considerar-se indigno de estar próximo desta presença. Essa auto desvalorização é espontânea, imediata e quase instintiva, tendo qualquer depreciação moral ou consciência de sua condição como consequência que sucede a parcela irracional desse sentimento. “Na profanidade ele inclui não apenas os seus atos, mas toda a sua existência como criatura frente àquilo que está acima de toda criatura.” (OTTO, 2007, p. 91). O receio se manifesta, mas na forma de tímido louvor, o reconhecimento de que o nume merece veneração, mas, não devendo ser maculado por tal impureza valorativa, antes faz-se necessário “tornar-se digno” deste contato. O religioso, enfim, dispõe de medidas cuja função é viabilizar esse trânsito com o numinoso, seja “cobrindo” sua mácula, seja se purificando pela remissão.

2. Ayahuasca A ayahuasca é uma bebida indígena produzida a partir do cipó jagube (Banisteropsis caapi) e das folhas da chacrona (Psychotria viridis) sob infusão. O resultado é um chá de aspecto opaco e marrom, empregado há séculos em rituais de tribos amazônicas como ferramenta sagrada de expansão de consciência e contato com o divino. Ao longo do século XX seu uso foi sendo propagado por outras regiões do continente e do mundo, muitas vezes aliado a outras culturas e linhas religiosas, sendo os grupos mais conhecidos o Santo Daime e a União do Vegetal. No Brasil, por determinação do CONAD2, a substância pode ser utilizada legalmente desde que sob contexto religioso, por intermédio de grupos devidamente registrados com CNPJ. Independente das características particulares a cada uma dessas diversas igrejas e comunidades, o intuito que justifica o emprego ritualístico da ayahuasca é a crença de que, através do transe que induz, o chá abre os caminhos sensoriais de quem o ingere para maior compreensão acerca de si mesmo, do mundo ao redor, e do sagrado. O cenário que envolve a cultura da ayahuasca permite vários rumos de pesquisa. Abordando-a sob um viés histórico ou antropológico, podemos investigar suas origens mais remotas a partir dos poucos indícios remanescentes de tribos ayahuasqueiras antigas, a origem etimológica quíchua de seu nome3, os objetos ritualísticos e a própria dinâmica dos rituais num contexto de tribo, os registros da inserção do chá em nossa sociedade urbana, ou

2

Ver http://www.bialabate.net/wp-content/uploads/2008/08/Resolu%C3%A7%C3%A3o-Conad_1_25_01_2010.pdf 3

Ver http://www.youtube.com/watch?v=fnQUdBcG1tU&feature=relmfu

levantamentos biográficos de figuras com papel importante na sua disseminação. Sociologicamente, podemos também tratar das grandes transformações que igrejas que operam em torno da ayahuasca causam na comunidade, seu papel no combate à dependência química e o mérito que a ela são atribuídas uma série de positivas mudanças comportamentais no cotidiano familiar e social do indivíduo. Além destes há também estudos químicos que se propõe a isolar e compreender os componentes do chá, bem como a pontuar métodos clinicamente seguros para aplicá-lo no tratamento de certos distúrbios psiquiátricos como a depressão. O objeto que nos interessa aqui, porém, é justamente aquele que até hoje recebeu menos atenção das pesquisas acadêmicas, e ironicamente o ponto central do universo ayahuasqueiro: o transe. Sobre este fenômeno, é muito comum que o adepto alegue que palavras jamais transcreveriam a experiência. Chamam-na de planta professora, ou Yagé4, pois o papel do chá - agora afigurado como uma entidade consciente - é ensinar, mostrar ao dito aluno aquilo que estaria escondido pelas fronteiras de sua visão. Referem-se à experiência como uma aula, onde conclusões que a pessoa nunca conseguiu alcançar durante a vida são trazidas de supetão à mente consciente. A dialética de tal aprendizado, porém, muito embora seja amparada por sons, imagens, cheiros, narrativas e insights, é dificilmente apreensível pela racionalidade. Cabe à psicologia e outras ciências buscar a matriz destas construções argumentativas ao mesmo tempo duvidosas e coesas, seja ela o inconsciente pessoal com suas inúmeras referências biográficas armazenadas no subconsciente, seja a idéia de realidade estruturada nos discursos próprios do imaginário da cultura ayahuasqueira, ou sejam ambos, ou seja ainda algo além disso. De qualquer modo, a grande maioria dos indivíduos que já passaram por experiências com o chá - quer seja em igrejas daimistas ou oasqueiras5, na própria floresta com o intermédio de indígenas, em dissidências urbanas menores ou mesmo individualmente - atribui a autoria desse diálogo que permeia o transe a uma consciência divina, uma vivência puramente mística. Hoje em dia, a participação em um ritual com ayahuasca é algo acessível. Não só seu uso tem expandido vertiginosamente Brasil afora, mas torná-la disponível a aquele que verdadeiramente deseja a reforma íntima faz parte da própria premissa da maioria das igrejas, 4

Nome dado à entidade espiritual que conduziria intencionadamente a experiência do transe da ayahuasca (ver SHANON, 2002).

5

Os termos referem-se, respectivamente, ao Santo Daime e à União do Vegetal (ver MACRAE, 1992).

cujas doutrinas afirmam o bem como uma propriedade coletiva que se deve alcançar com esforço no cotidiano, podendo contar com a ajuda da bebida para que o indivíduo identifique em si os passos para tal. Sabe-se, porém, que lidar com o transe costuma ser tarefa árdua e desafiadora, em especial para aqueles incapazes de se tranquilizar frente às alterações sensoriais e psíquicas que promove. A pessoa começa a apresentar estranhas sensações corporais alguns minutos após a ingestão. Logo percebe uma forte distorção em sua própria consciência, que corresponde à entrada no estado de transe, conhecido nos termos próprios da cultura como força ou borracheira. "Estar na força" é "estar no transe da ayahuasca". Embora não haja uma regra para a ordem ou intensidade de certos fenômenos, o comum é que neste momento o indivíduo comece a sentir uma série de desconfortos físicos como frio ou calor excessivos, tremores, falta de ar, acompanhados por enjôos que o incitam a vomitar, urinar, defecar, chorar, transpirar ou bocejar. Essa série de expurgos recebe o termo limpeza, considerados veículos eliminatórios de fardos químicos e energéticos, e tidos como etapa necessária para que o indivíduo purifique-se, estando portanto mais apto e sintonizado a receber os ensinamentos vindouros. Ao desconforto destes processos dá-se o nome peia, mas ela não se limita nos pesares físicos. Okamoto diz: “A firmeza, ao contrário do que possa parecer, não é uma atitude de truculência e rigidez. Está mais relacionada à idéia da harmonia com a "força" e com a corrente” (OKAMOTO, 2004, p. 145). A não racionalização da experiência, o desapego e a abertura são colocados como única forma de minimizar este sofrimento, pois a peia tem também sua manifestação psicológica, bastante perturbadora. “O que você não quer ver é justamente o que verá.” (entrevistado, junho de 2012, São Paulo). Traumas do subconsciente vêm à tona sem controle aparente, e a mente encontra caminhos para trabalhar incessantemente na tentativa de controlar o que se vê, o que se sente e o que se faz no transe. Normalmente sem sucesso, essa rebeldia serve apenas para acentuar aquele incômodo. O indivíduo, quanto mais reage mais se perturba, tendo de alcançar a referida harmonização pela mera aceitação ou aguardar o término dos efeitos químicos do chá. Falemos agora da outra etapa da experiência em que nos concentraremos. É um estado bastante característico que normalmente sucede a limpeza e o enfrentamento de certas emoções, findando a peia, compreendendo uma série de sensações agradáveis e uma grande clareza de pensamentos. Este chamaremos de graça. Segundo os adeptos, ao vivenciar esta condição, toma palco no interior do indivíduo grande tranquilidade e sublime alegria, e serve

como contraponto radical ao sofrimento que muito frequentemente a antecede no ritual. Alega-se uma intensa acentuação dos sentidos, onde as cores parecem mais radiantes, os sons mais cristalinos, os odores e sabores mais característicos, e percebe-se vivamente o corpo, suas dimensões, peso, detalhes, e até mesmo a profunda sintonia com os órgãos internos. Essa alteração nos mecanismos de contato com o mundo traz uma consciência diferente acerca dele e das pessoas presentes naquele cenário, trazendo consigo, por esse motivo, uma profunda impressão de integração que, consequentemente, se desdobra em segurança, compaixão e pertencimento. “Normalmente, as pessoas sentem ter uma identidade coesa, e que suas vidas mentais aderem a um todo unificado.” (SHANON, 2002, p.199). Acompanha este fenômeno sensorial um estado mental de convicções que parece extrapolar o raciocínio, como se fosse a conclusão imediata que sintetiza o frenético contingente de informações que se apresentaram no decorrer de todo o processo do transe. Essa soma de experimentações agradáveis é tida pelos grupos como um vislumbre momentâneo da plenitude humana. Muito embora tenha-se que o objetivo do ritual com a ayahuasca é a identificação dos erros de conduta e pensamento que o adepto deve corrigir - o que normalmente toma palco no decorrer da peia - a graça surge como um momento de trégua interior e de experimentação legítima do transcendente, afigurando-se como uma amostra do estado que o praticante atingirá por conta própria ao se corrigir.

3. Pesquisa Isso posto, o propósito da presente pesquisa é verificar, através de leitura, reflexão, e auxiliada por um questionário respondido por adeptos da ayahuasca, o quão análogo ao conceito de numinoso é este elemento sensorial da experiência do transe. Ao aspecto fascinans exposto na obra de Rudolf Otto, que corresponde ao enlevo salvífico que o numinoso exerce sobre o sujeito, associamos o estado de graça ao qual a bebida induz. Já o aspecto augustum procuramos apreender através da sensação de profanidade frente ao nume, tendo como correspondência a demanda de purificação que sente o indivíduo na peia para se considerar merecedor de contato com o divino. Em suma, tendo esses dois momentos bastante específicos como cenário psicológico para o entrevistado - a peia e a graça -, perguntas são feitas de modo a conferir se tais depoimentos remetem aos dois sentimentos peculiares experimentados pelo homo religious na presença do numinoso proposto por Otto.

Faz-se importante esclarecer que este estudo é interpretativo e a pesquisa, onde se busca algumas referências, é de caráter experimental e não encerra afirmativas nem quanto aos métodos nem quanto às conclusões. O transe da ayahuasca é demasiadamente subjetivo, e devemos nos atentar para a impossibilidade de se coletar por relatos evidências sensoriais que não tenham sido modificadas pela própria construção lógica que demanda o uso da linguagem, e também de se isentar todo o referencial prévio do inconsciente pessoal do sujeito e os pressupostos da própria cultura ayahuasqueira6. Dado o caráter pioneiro desta investigação não só quanto ao objeto mas quanto à própria abordagem, seu intuito é abrir caminho para investigações cada vez mais verificáveis acerca da borracheira. O critério de escolha para os entrevistados foi considerável experiência com a bebida e vivências marcantes envolvendo a peia e a graça. Com a exceção de três sujeitos cuja familiaridade com o chá tornou seus relatos bastante promissores, foram chamados para a pesquisa apenas participantes de grupos independentes7, onde o ritual tem a característica de ser mais individualizado e, com esta medida, minimiza-se a influência de hinários8 e intervenções verbais na interpretação do transe. Com a mesma finalidade, procurou-se também uma maior variedade de entrevistados quanto a seu histórico religioso, culminando em uma divisão equilibrada entre umbanda, candomblé, kardecismo, budismo, hinduísmo, catolicismo e espiritualistas sem religião declarada. Trinta questionários respondidos foram utilizados para auxiliar a presente pesquisa. O primeiro passo para a elaboração das perguntas foi, após atenciosa leitura dos capítulos VI e IX de "O Sagrado" - referentes ao fascinans e ao augustum, respectivamente separar os dois temas principais expostos em cada aspecto e, para cada um dos quatro, elencar três afirmativas. Para serem testadas, estas doze postulações foram transformadas em doze perguntas o mais sintéticas e neutras possível, a serem respondidas com "sim" ou "não", de modo a tornar viável uma quantificação de resultados e, assim, determinar se estão em consonância com o que afirmou o autor. Estas respostas acompanharam justificativas igualmente valiosas para a interpretação dos resultados. As orientações prévias aos

6

Uma pesquisa futura que pretende reforçar a metodologia funda-se na teoria do imaginário (DURAND, 1988) e na sociologia do conhecimento (BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade - tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2012). 7

Dissidências de igrejas maiores ou fundadas por particulares sem vinculação (ver LABATE, 2004a).

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Hinos cantados no Santo Daime onde se transmite a doutrina (ver MACRAE, 1992).

questionamentos foram: a) tomar como base exclusivamente a sensação durante o transe, evitando ao máximo racionalizá-la; b) caso haja o interesse de justificar a resposta, evitar conforme possível o uso de termos e conceitos característicos de alguma doutrina; c) sanar dúvidas quanto à pergunta, caso houver, antes de respondê-la.

3.1. Sentir-se profano e meios de purificação (augustum) A primeira afirmativa extraída sobre o caráter augustum do numinoso é a percepção no devoto de que ele é profano e, portanto, precisa sublimar essa condição para se sentir digno de ter um contato com o divino. Reação superficialmente análoga toma palco na peia, o momento onde se interage com o “sobrenatural” sem nele se sentir harmoniosamente mesclado, e onde a auto-avaliação toma maior intensidade. Aqui cabe a nós flagrar, por meio do questionário, se o sujeito em contato com a hipotética presença do nume sente-se indigno. Haveria, portanto, o sentimento de impureza no praticante e possivelmente uma cobrança psicológica em anular esse desvalor para aproximar o divino ou tornar-se digno de sua presença? Se manifestaria aqui, em meio ao ritual e sob os efeitos do chá, a consciência de profundo desequilíbrio axiológico entre criador e criatura? No decorrer do livro, Otto insiste que a moral é um atributo racional que muitas vezes acompanha o numinoso, mas não é parte dele, e sim um valor dado posteriormente, normalmente após uma institucionalização da doutrina: Mesmo assim pode existir reconhecimento profundamente humilde do sanctum sem que logo esteja tomado por exigências morais, a saber, como reconhecimento de algo que exige respeito incomparável, algo que precisa ser reconhecido intimamente como mais válido, elevado, objetivo e, ao mesmo tempo, situado acima de todos os valores racionais, como valor estritamente irracional. (OTTO, 2007, p. 91)

Dessa forma, o sentimento de impureza frente ao augusto é sobretudo irracional e subjetivo, se tornando identificável em palavras ou condutas apenas num momento posterior à auto percepção de profanidade. A pergunta correspondente busca saber se o indivíduo que na peia sente-se impuro simplesmente assim se coloca intuitivamente ou se, naquele exato momento, frente ao numinoso, já toma consciência dos “pecados” e defeitos que justificam esse julgamento. Para pôr esta postulação de Otto em cheque, embora aqui não se possa comprovar empiricamente a ausência ou presença de uma parcela irracional neste sentimento quando acompanhada da parcela racional senão por argumentação análoga à dele, a solução é

verificar se o sentimento de indignidade em oposição ao sanctum toma primeira coerência e clareza quando em transe – momento anterior à moralização -, onde não é permitido interagir com o grupo, estando em “isolamento” com o divino. Muito embora o autor ao longo dos parágrafos não faça a assertiva de que não é o nume que cobra a referida purificação, e sim a própria pessoa, isso fica bastante implícito no decorrer da teoria e é de suma importância para esta abordagem fenomenológica. O numinoso intimida por seu caráter tremendum, mostra-se incrível pelo caráter majestas, é ungeheuer, mas teria ele neste contato com o indivíduo profano uma consciência julgadora para exigir a remissão, a cobertura ou a expiação? No livro não se atribui ao numinoso uma consciência. Ele apenas “é”, e o indivíduo, com seu sentimento de criatura aflorado, quem reage. Neste caso, por mais que o ser sinta uma cobrança e sinta-se obrigado a tornar-se digno para não macular aquilo que está acima de todas as coisas, o sanctum apresenta-se indiferente quanto àquela impureza, sendo a culpa algo que brota exclusivamente da psique do devoto. Cabe associar à ayahuasca essa hipótese porque o transe envolve lições de correção de conduta, e enquanto elas são tidas com insistente ênfase no momento, também o são no próprio discurso dos grupos praticantes. Porém, de onde se origina a ordem? Se ali está presente o numinoso de Otto, essa cobrança deve vir da própria “criatura” e não de uma força opressora fora de si. A segunda parte do capítulo IX é dedicada a explicitar recursos dos quais o ser frente ao numinoso dispõe para aproximar-se dele, seja por tornar-se digno deste trânsito, ou seja conseguindo veículo provisório até ele. Importante ressaltar que, pela época em que foi escrita e pela própria formação do autor, percebe-se em toda a obra uma predileção pelo cristianismo e um maior foco em religiões monoteístas e institucionalizadas no que diz respeito aos exemplos que pretendem validar a teoria. Senão, recorre-se a culturas primitivas como um contraponto extremo para buscar a raiz da mística, e é visível a falta de inserção de outras doutrinas relevantes como o taoísmo ou hinduísmo para atribuir o termo numinoso à essência de toda experiência religiosa. Desse modo, quando fala sobre os métodos de “desprofanização”, Otto se concentra em referências destes dois pólos, tornando necessária uma adaptação da teoria para aplicá-la a novos contextos. A primeira forma de trânsito proposta seria a cobertura, que não é exatamente uma purificação: Trata-se em primeiro lugar de uma manifestação do "receio", ou seja, a sensação de que o profano não pode aproximar-se do nume sem mais nem menos, o sentimento

de precisar de uma cobertura e proteção frente à sua "orgé". Essa "cobertura" então passa a ser uma "consagração", isto é, um procedimento que possibilita àquele que se aproxima o trânsito com a majestade tremenda. (OTTO, 2007, p. 94)

Adequando essa idéia ao universo da ayahuasca, consideramos toda a sorte de objetos ritualísticos. Uma vez que a bebida só pode ser utilizada legalmente em contexto religioso, variados procedimentos e alegorias estão presentes nos encontros de acordo com o perfil do grupo, onde são tidos como recursos de proteção frente aos riscos de interagir com o plano espiritual – o cruzeiro, japa mala, amuletos, objetos de cor violeta, vestes de tons claros -, purificadores de ambiente para que as energias do local se tornem mais favoráveis – incensos, defumadores, moxa, ervas em geral, pedras -, invocações para que o sagrado ali se manifeste – orações, cânticos, velas, imagens -, mecanismos de cura ou apoio para intermediar processos físicos ou psíquicos impelidos pelo transe – cachimbo com tabaco e ervas, instrumentos xamânicos, imposição de mãos, músicas, fogueira -, agradecimento pela oportunidade e graças recebidas – danças, velas, flores e toda uma variedade de reverências9. O segundo método apontado por Otto refere-se à própria purificação voluntária impelida por se ter a proximidade com o numinoso como algo muito apreciado e desejado, como se assim fosse possível possui-lo como um bem, e ao mesmo tempo não comprometê-lo na mescla com a própria profanidade: ...enquanto profano, não se é digno de ficar próximo do augusto, inclusive de que o desvalor da pessoa haveria de "macular" o próprio sagrado. (...) entra aí, portanto, o anseio pela anulação desse desvalor separador, dado pela existência como criatura e como ente natural profano. (OTTO, 2007, p. 94-95)

A este mecanismo pode-se associar o próprio discurso que fundamenta o uso da ayahuasca religiosamente: o reconhecimento dos próprios desvios e a necessidade de corrigilos. Torna-se necessário, porém, verificar se nesta objetivação há uma necessidade integradora com o nume, uma vez que o discurso dá ênfase mais dedicada aos benefícios que a reforma íntima traria no cotidiano que na transcendência. Seria, portanto, na sensibilidade do sujeito em transe, esta remissão por individuação10 o recurso que lhe extingue gradualmente a sensação de impureza que macularia o divino?

9

Ver LABATE, 2004b.

10

Ver JUNG, 2001.

Para tornar a pessoa digna da experiência mística, o último caminho apresentado pelo autor é a expiação. Aqui, mais que em qualquer outro tópico, coloca-se a doutrina cristã como exemplo central – e único – deste mecanismo de purificação: “Ele (o cristianismo) é mais religião, religião mais consumada que outras, na medida em que aquilo que religião implica nele se tornou actus purus.” (OTTO, 2007, p. 95). Otto também insiste que, na expiação, o “nume em si” nela se faz meio da remissão mediante comunicação de si próprio. Daqui depreende-se o exemplo específico – o sofrimento voluntário de Cristo – como purificação de todos. Buscando associações com outras expressões religiosas, tiramos daqui que a característica que particulariza esse empreendimento como nivelador do homem profano com o nume é a penitência como uma forma de compensação pelos erros cometidos. E, como já dito, o sofrimento é personagem muito presente na força/borracheira ao ponto de muitas vezes parecer seu elemento central – devendo ser questionado quanto à sua importância no julgamento do adepto. Concluindo, três perguntas do questionário depreendem-se destes três recursos que visam o “tornar digno”, sintetizados em: a) as ferramentas ritualísticas; b) a correção de conduta; c) a penitência. Pede-se que o entrevistado responda pontualmente quais destes três elementos têm papel “determinante” para a sensação de purificação no decorrer do transe, e não simplesmente auxiliar, uma vez que os três sempre estão presentes no ritual e parecem obedecer a uma espécie de simbiose de introspecção. Busca-se aqui o que especificamente faz emergir de sua psique um alívio que abre espaço a um desfrute da graça sem pesares de consciência, e não aquilo que se tem por convencional e obrigatório na cultura da ayahuasca como um todo.

3.2 Teor positivo e aspectos do enlevo beatífico (fascinans) Otto dá insistente ênfase ao caráter aproximador do fascinans. Ao citar Lutero11, “é como quando reverenciamos com temor um santuário, sem que por isso fujamos dele, mas desejamos nos aproximar dele” (OTTO, 2007, p.68), faz-se uma oposição àqueles aspectos que prostram a pessoa frente àquilo que está sobre todas as coisas (tremendum, majestas, mysterium, ungeheuer, augustum), e é nesse dualismo pesadamente sensorial que pulsa a experiência religiosa, mantendo criatura e numinoso não tão perto entre si, não tão distantes. 11

Cf. Sermon von den guten Werken, zum ersten Gebot der zweiten Tafel, terceiro parágrafo.

Desta propriedade depende a própria espiritualidade que permeia culturas separadas no espaço e no tempo, nascida de algo inapreensível, imprevisível e incombatível do qual, ainda assim, se procura desfrutar. A graça da ayahuasca, como representante do aspecto numinoso supostamente ali presente, há, portanto, de ser questionada quanto a seu encanto; se há indiferença, resistência ou mesmo repúdio por parte do adepto, ou se aquele fenômeno transitório de êxtase tão análogo ao descrito por Otto é entendido como um recanto que se quer cada vez mais habitar mesmo que demande árduas provações. Embora não se tenha marcadores de início e fim neste êxtase, ou mesmo um apontamento verbal que circunde-a e ainda assim pareça ao adepto que sua totalidade está ali contida, o fascinans exerce também um caráter pesadamente positivo na psique. O autor cita um hino de Ernst Lange12, traduzido do alemão: Ó Deus, profundeza sem fundo Como poderei conhecer-Te o bastante, Tu grandes alturas, como há minha boca De designar-Te pelas qualidades. És um oceano incompreensível: Submerjo em Tua misericórdia. Meu coração está vazio de sabedoria autêntica, Abraça-me com os Teus braços. Eu bem que gostaria de imaginar-Te E apresentar-Te aos outros. Mas dou-me conta da minha deficiência. Como tudo que és Não tem fim nem começo, Fico privado de todos os sentidos. (OTTO, 2007, p.71)

Aqui é possível notar que se procura atribuir adjetivos a Deus, mas só é possível fazêlo através de negativas. O numinoso “não é”, mas “está além daquilo que é”. O impressionante, porém, como Otto alerta, é que este hino, mesmo sob o intermédio de uma 12

Ernst Lange, Hino à Majestade de Deus, apud BARTELS, A., p. 273.

aproximação negativa, cria um resultado positivo – claramente existente – para o divino. Embora inefável, vivenciá-lo é uma experiência deveras concreta. Atribui-se ao fascinans o adjetivo “exuberante” quando em grau máximo. Perguntamos, portanto, se a graça dos rituais com o chá é um estado palpável e concreto, no sentido de ser claramente identificável. A terceira afirmativa sobre este aspecto justamente retoma a natureza indizível do numinoso. O autor considera a perfeita compreensão do termo “irracional” e sua distinção de “racional” requisitos majoritários para a absorção de sua teoria, tanto que dedica dois capítulos a esse esclarecimento - um iniciando a argumentação, outro na metade do livro. Aquilo que é tido por irracionalidade, ou seja, a impossibilidade de o objeto ser apreendido em palavras, é a própria particularidade que distingue o numinoso do sagrado, e evidencia-se com particularidade especial no elemento fascinante. “E ao permeá-los e incandescê-los (os bens da salvação), o enlevo beatífico faz deles mais do que a razão entende e afirma a seu respeito.” (OTTO, 2007, p. 70). Pergunta-se, para o adepto em transe no momento da contemplação do enlevo, se lhe parece possível descrever aquele estado em palavras que pareçam circundar toda sua extensão e significado, sem se importar em apresentar qual frase seria. Para procurar compreender melhor o que seria o enlevo místico, no capítulo VI fez-se uma interessante comparação com conceitos próprios de outras doutrinas que aparentam professar equivalência à salvação como sensação viva entendida pelo cristianismo, salvos seus pormenores. Otto conta que, em diálogo com um monge budista, sua filosofia pronunciada pareceu-lhe rasa, mas logo reconheceu naquilo que seria o Nirvana uma morada particularizada deste aspecto do mesmo mysterium fascinans manifestado nos exemplos ocidentais que tinha em seu repertório. Com isso, falamos de uma universalidade da sensação correspondente à graça do nume – tanto que, de início, supõe-se que o numinoso universal seja -, impelindo a curiosidade a investigá-la sob outras manifestações religiosas. Embora seja claro que assim sintetizamos um importante termo bem grosseiramente, nos permitamos associar a idéia de “iluminação” junto à idéia de “salvação” para investigar se, sob estas duas palavras, a busca por consciência do todo, completude interior e amparo divino – que se enquadram nas aproximações fenomenológicas de Otto no que concerne o fascinans – são identificáveis ao ayahuasqueiro quando desfrutando da graça. Uma das assertivas ousadas que trouxe críticas ao livro em questão foi a de que o numinoso tem como característica ontológica ser a priori. Se apoiando fortemente em Kant e

sua “Crítica da Razão Pura”, Otto conclui que o numinoso “eclode do “fundo d’alma”, da mais profunda base da psique, sem dúvida alguma nem antes nem sem estímulo e provocação por condições e experiências sensoriais do mundo, e sim nas mesmas e entre elas.” (OTTO, 2007, p. 151). Também atribui os adjetivos “inefável” e “inderivável”, como vimos. Também é algo experimentado positivamente. Logo, tem-se que o numinoso é sui generis, e a graça numinosa - efeito consequente deste - idem. Por mais que se possa associar o fascinans a várias palavras - que nada mais seriam que manifestações posteriores e racionais dele - o próprio aspecto como sensação não apresenta correspondência em nenhum outro campo da vida senão na religião. O enlevo salvífico seria algo absolutamente único em toda a vivência terrestre, um estado que só se alcança por intermédio do nume. Embora possa ter diferentes intensidades, é qualitativamente diferente de qualquer outra sensação de euforia ou de pertencimento experimentada no mundo conhecido sem o intermédio do sobrenatural. Considerando o momento de êxtase do transe causado pelo chá como sendo este fascinans positivamente desfrutável, poderia o praticante do ritual comparar a natureza daquela experiência com o registro de alguma outra vivência em sua memória? Importante apontar aqui que nos interessa apenas procurar relatos de enlevo que não tenham, em seu contexto, conotação religiosa, uma vez que, seguindo a teoria do livro, o numinoso habita toda aproximação humana do divino e, portanto, estaríamos falando da mesma graça. Por fim, é dito que a graça passa a ser fim em si mesma. Buscaremos saber se, durante este estágio do transe, a pessoa se sente completa. Se, no momento específico em que desfruta daquele fenômeno, desconsiderando que ele logo se esvai – ou seja, com atenção na situação presente sem vislumbres de futuro, como se tal júbilo fosse perene e não se dissipasse junto com os demais efeitos da bebida -, faz-se presente o sentimento de que o objetivo supremo do próprio âmago é estar ali. Assim o capítulo define sua função para a criatura, ou ao menos coloca uma

“inevitabilidade empírica” do fascinans integralmente experimentado. Ele

serviria alegoricamente como única substância capaz de preencher a “fome” de um compartimento dentro de nós que mal reconhecemos existir: ...o que se revela é uma estranha e poderosa experiência de um bem que só a religião conhece e que é irracional por excelência; a psique, por intuição e diligência, sabe a seu respeito e o reconhece por trás de símbolos obscuros e insuficientes. Essa circunstância indica que acima e por trás da nossa natureza racional está oculto algo último e supremo da nossa natureza, que não é satisfeito ao se suprirem e saciarem as necessidades das nossas pulsões e desejos físicos, psíquicos e intelectuais. Os místicos chamam-no de “fundo d’alma”. (OTTO, 2007, p. 75)

4. Resultados

Na tabela estão apresentadas as perguntas propostas e suas respostas, com caráter auxiliar à presente pesquisa. Nota-se que, enquanto alguns resultados apresentam quase unanimidade, outros divergem. Esta análise quantitativa será referência para as considerações finais, enquanto faz-se interessante interpretá-las a seguir em conjunto com as justificativas que acompanharam as respostas13.

4.1. A demanda voluntária em ser digno Pelos relatos, a sensação de profanidade é uma condição experimentada em quase todas as vivências com a ayahuasca. “Me sinto em situação intermediária entre o inferior e o divino, às vezes uma espécie de vergonha.”, "Mas quem sou eu, que grãozinho de areia eu sou?", “Pra merecer o sagrado, sei que tenho degraus a mais para subir” (entrevistas, junho e 13

As citações de todo este tópico e seus subtópicos são de autoria dos entrevistados, colhidas em São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo e imediações entre junho e julho de 2012. Sujeitos de outras regiões foram entrevistados via telefone ou internet no mesmo período. Demais fontes aparecerão mencionadas.

julho de 2012, São Paulo). Tão forte é ela, que apresenta-se como o próprio elemento que impele o retorno aos grupos - a primeira visita por vezes tem como fundo a curiosidade ou integração social. O reconhecimento do indivíduo como criatura impura e que depende do intermédio do divino para orientação quanto a sua correção - não cabendo a este a correção em si - é premissa sempre presente nos discursos da cultura ayahuasqueira e, pode-se dizer, aparentemente, seu ponto central. Por vezes o indivíduo não se sente impuro durante o transe por ter se sujeitado a uma espécie de “purificação” antecedendo o ritual - meditação, oração e outros -, ou a profanidade por vezes se esconde quando o sujeito dedica a experiência a outro fim, como a compreensão do transcendente, e deixa a auto correção para outras práticas. Isso reforça, ainda assim, seu reconhecimento prévio como ente profano. Nos raros casos em que essa condição de "não ser digno" não é sentida em meio ao transe ou seus antecedentes, a justificativa é a de que aquele indivíduo em especial tem tal familiaridade e confiança no numinoso que, embora admita sua discrepância axiológica frente a ele, não a tem como mácula, uma vez que seu ser integra a mesma entidade e a gradual transformação desse valor é esperada como processo previsto nos desígnios cósmicos: Somos todos dignos de receber a cura e o amor. Não é algo que eu possa "fazer", apenas preciso me reconhecer como filha de Deus! Achar que você é "indigno" e que precisa "barganhar" com Deus para ser digno é uma armadilha do ego que insiste em se ver como algo separado de Deus. Mas não existe separação. Jesus disse: "Vós sois Deuses.". Mas precisamos ter humildade para nos colocarmos como filhos da Criação. (entrevista, julho de 2012, São Paulo)

Por mais que a peia seja interpretada como uma punição divina, como se o nume estivesse mostrando à força ao indivíduo profano as sombras de sua psique que assim o tornam, isto sempre é sentido como uma dura repreensão maternal com o intuito de ajudá-lo. “Tenho uma sensação bem distante de Deus em relação ao que é certo e errado, eu mesmo tenho que ter a consciência disso; sinto a presença dele, mas é uma cobrança minha e para mim”, “Não sou julgado, a culpa já está dentro” (entrevistas, junho de 2012, São Paulo). Uma vez exposto o conflito, Yagé parece não fazer mais nenhuma cobrança, cabendo ao adepto decidir se irá acatar o conselho ou não, e a seu próprio tempo. A decisão parte do sujeito, não do nume, por mais incisivos que os apontamentos - atribuídos ao sobrenatural - se apresentem. Ele se intimida pelo augustum e pelo majestas, mas não se percebe, pelos depoimentos, uma ira deorum coerciva passível de punição senão a própria peia - cuja função é entendida como apontamentos e não opressão. A decisão cabe exclusivamente ao indivíduo.

4.2. Racionalização da profanidade Embora seja evidente a presença de uma irracionalidade primeira no sentimento de profanidade, sua consciência e racionalização já se apresentam de imediato no ritual ou mesmo antes dele, contrariando Otto. Isso se deve à interessante e particular dinâmica da própria experiência, que se presta justamente a pontuar tal condição. Não se deve apenas às premissas morais que inevitavelmente tomarão luz no diálogo entre os membros do grupo - o que tomaríamos por "institucionalização da moral" e concordariam com o autor -, mas à interação mútua com o numinoso que, ele próprio, transforma em "aula" conforme vista pelo indivíduo no momento de introspecção. Yagé seria entidade moralizadora trabalhando direto na psique, dispensando sua socialização. Racionalizar a impureza é o centro da experiência e acontece voluntariamente, inclusive em práticas individuais, sem contato com grupos e o imaginário destes. Importante dizer que muitos entrevistados insistiram em não chamá-los de “ensinamentos morais", mas "ensinamentos para o bem", rejeitando o que se tem socialmente como correto e acatando como verdadeiro o que se delega pela intuição, com o intermédio do nume. “Se só enxergo bem 99% de coisas que preciso mudar, o trabalho seguinte mostra o 1%”, “Falhas sempre são identificáveis, e intermináveis, apesar de às vezes demorar pra enxergar”, “São erros pontuais, coisas que eu poderia ter feito diferente” (entrevistas, junho de 2012, São Paulo).

4.3. Eficácia dos meios purificação Os entrevistados deram muito valor a todos os recursos de "purificação" disponíveis na vivência com a ayahuasca, mas foi bastante claro que o que realmente a provoca é a remissão, a correção de seus defeitos por esforço próprio e a aceitação de sua condição. As ferramentas ritualísticas têm seu importante papel por a consagração do chá tratar-se de uma prática séria, delicada e que merece respeito. Assim sendo, por questões de segurança, louvor e eficácia, não se pode simplesmente ingerir a bebida em qualquer situação física, psicológica ou mesmo geográfica. O ritual em seu aspecto alegórico e comportamental serve como auxiliar para que se tenha uma circunstância adequada para buscar a dignidade de criatura com melhor direcionamento. Exceções representam pessoas que não se julgam ainda capazes de avançar nessa busca interior pela introspecção por si, recorrendo ao ritualismo como forma de agradecimento e proteção para se tranquilizarem ao "fazer as pazes" com o nume e

intuírem melhor sua consciência estando mais confortáveis com ele. Não duvidam, porém, que a remissão seja possível sem essas ferramentas. "O sagrado não necessita de ritual pra entrar em contato com ele, mas o ritual nos coloca num estado mais suscetível a entrar em contato com ele", "O ritual tem que ser mais interno que externo", "Ajuda como forma de sintonia, mas acho que não pode ser usado como uma muleta", "O rito traz o misticismo à tona, não que seja imprescindível, mas é um catalisador para a experiência" (entrevistas, junho e julho de 2012, São Paulo). Já a pergunta quanto à penitência gerou polêmica, muitas vezes o entrevistado alterando sua resposta no decorrer da justificativa. O que se tem aqui é que o sofrimento é elemento importantíssimo para a experiência, pois, como muitos citaram, "quem não aprende pelo amor, aprende pela dor", ou “ninguém aprende com mãozinha na cabeça”. O iniciado quer a auto correção, mas ao mesmo tempo parece não querer: pois há máculas que ele quer enxergar, outras ainda não. Dessa forma, a peia se acentua em momentos de rebeldia ao ponto de a pessoa, sem sucesso, se ver obrigada a encarar aquilo a que antes recusava dar atenção, como único alívio para o sofrimento. Assim, ela é determinante não como penitência, mas como catalisador da auto percepção, quando trabalhar o percebido que é a verdadeira remissão. Deste ângulo é vista como dádiva, pois "tem que merecer para poder sofrer, senão é perversão". Podemos apontar ainda o curioso fenômeno de que muitas pessoas não sofrem na experiência, e isso aparentemente se deve a uma conduta psicológica de profunda aceitação e abertura, dispensando necessidade de controle ou racionalização do transe, onde se declara “não estamos aqui nesse mundo pra sofrer coisa nenhuma!”. Outra função atribuída à dor é que, superada, o adepto toma consciência de sua própria força, e a graça parece ainda mais sagrada pelo contraste dessas etapas. Dependendo da consciência da pessoa, o sagrado vem à tona de qualquer forma. A penitência, ela vem naturalmente quando a pessoa fora do eixo entra em contato com essa luz intensa. O sofrimento não é condição para que o sagrado venha, é apenas um efeito que ele causa. E ajuda a distinguir os dois lados. (entrevista, junho de 2012, São Paulo) As peias devem ser encaradas com um processo de "lapidação" do caráter de cada um (...) O fiel ainda relata que a peia é para todos, estejam as pessoas engajadas ou não em uma busca religiosa. A consciência a respeito das causas do sofrimento e de suas consequências, por sua vez, tendem a suavizar, ou mesmo extinguir, a peia. Quando os sintomas de uma atitude sofredora são combatidos com um estado de espírito alegre e tranqüilo, a peia se afasta. (OKAMOTO, 2004, p. 151-152)

4.4. Atrativa, positiva, inefável e final. Quando perguntado sobre a graça, um adepto diz "brinco que queria que aquele momento nunca acabasse". Esta é a sensação unânime que demonstram os resultados. Sua força atrativa apenas se esconde – mas perdura - quando o indivíduo, preenchido, abdica de sua expectativa de inclusive buscá-la. Uma pessoa alega que não precisaríamos nos mover até ela ou tomá-la, pois "parece que ela sempre esteve ali, eu é que não a percebi", outra diz que não é útil prendê-la porque “o que ela traz é sempre o suficiente”, e outra conclui que “a partir do momento que você entra em contato com ela, você tem ela”. Igualmente, o fascinans aqui se mostra escancaradamente positivo. Sente-se uma descarga de energia corporal, amplitude mental, é estonteante nos sentidos, no raciocínio e na emoção - até quando aparece sutil, sua solenidade é tão própria que se mostra evidente, à parte do que se conhece. “É tão sutil e tão plena, que justamente por isso parece tão diferente do resto.” (entrevista, julho de 2012, São Paulo) Embora aparecessem respostas menos consensuais a respeito de sua inefabilidade, tem-se em geral - em afirmativas firmes - que a graça é uma sensação além do intelecto e palavras a deturpariam. “Costumo chamar de bem-aventurança máxima, mas está além do racional, o símbolo não é o simbolizado.” (entrevista, junho de 2012, São Paulo). Quem acredita em uma descrição usou sinônimos abertos ou não soube apresentá-la. Enquanto isso, um entrevistado acredita que embora não seja possível um conceito absoluto, pessoas que já a experimentaram a identificarão numa postulação. Por outro lado, nem para todos a graça é fim em si mesma. Naquele momento do transe sente-se completude, preenchimento do fundo d'alma, é um solene estado que aplaca todo mal e acalma toda pulsão. “Se eu morresse naquele momento, estaria satisfeita.” (entrevista, junho de 2012, São Paulo). Porém, para alguns, mesmo com semelhante sentimento, perdura naquele instante a consciência de que o fascinans “não é finalidade, mas sim amostra grátis da finalidade”. O aspecto enérgico do nume surge aqui acentuadamente na fé de que deve-se aproveitar aquela inspiração para trazer os demais a ela e se esforçar na reforma íntima para que ela não seja província da ayahuasca e sim condição permanente do espírito do indivíduo. Funcionaria como “catapulta para tentar até conseguir reproduzir aquele estado sempre”. Por esta justificativa, fica claro que o fascinans é, ainda, o próprio fim - mas

quando em caráter transitório, como na graça da ayahuasca, serve como vislumbre de um caminho que ainda se deve percorrer.

4.5. Caráter sui generis da graça Talvez pela diversidade do background religioso dos sujeitos, nem todos puderam comparar iluminação e salvação à graça em conceitos equivalentes. O que se verificou na maioria, contudo, é que embora não sejam iguais conceitualmente, as três idéias nutrem-se da mesma parcela sensorial, que é a imersão total no uno. Ainda assim, alguns descartaram a associação por salvação ser um estado permanente ou por ela e a iluminação dependerem da perda do “eu”, que não ocorre necessariamente no transe. O fascinans da borracheira não corresponde à definição que temos das duas palavras citadas, mas pertencem ao mesmo campo de idéias no que tange à experiência do nume. Nos sentidos, a graça implica em um profundo pertencimento e amparo divino e uma consciência ampliada acerca do sentido das coisas e de sua própria posição no universo - salvação e iluminação. É análoga objetivamente, mas diferente conceitualmente, portanto. Justo acrescentar que alguns julgaram a pergunta infrutífera, já que termos são racionalizações e a experiência sempre transcende o intelecto, impossibilitando qualquer comparação. Ainda assim, a maior parte dos depoimentos atesta que a graça é ao menos um vislumbre destes dois conceitos pois “faz a gente sentir um pouco essa relação com a onipresença do invisível” e “utilizar o sexto sentido”. Já sobre seu caráter único frente ao que não é numinoso, a pesquisa teve sua maior surpresa. Vários episódios foram citados onde a pessoa alega ter alcançado a mesma sensação de enlevo sem presença de elementos religiosos. Foi afirmado por alguns que através de certas técnicas de meditação pode-se experienciar estado qualitativamente similar quanto à natureza do enlevo, embora seja improvável em termos quantitativos, dado o dinamismo e impacto da borracheira - para todos os efeitos, precisaríamos verificar se não há nume nesta prática particular. Um entrevistado alegou tê-la encontrado em sonhos, onde nenhuma deidade ou hierarquização “profano-sanctum” se apresentava. Outra pessoa comparou-a com estados de êxtase vivenciados com o consumo de LSD sem qualquer tipo de busca espiritual. Outro depoimento atesta que, por vezes, no cotidiano, essa graça surge e parte sem motivo aparente, como se um vento rápido a trouxesse a seus sentidos. Por fim, essa sensação de enlevo beatífico fora de contexto religioso – improvável, segundo Otto - foi relatada por duas pessoas como algo evocável nas coisas simples do dia-a-dia, especialmente no nascimento dos filhos

ou mesmo em episódios da interação cotidiana com eles. Estas longas conversas dispensam transcrição.

Conclusão Pareceu pertinente acrescentar à entrevista a seguinte pergunta: “A sensação de profanidade se esvai ou se transforma com a chegada da graça?”. Como afirmativa, essa hipótese não esteve presente no livro, mas dessa forma podemos especular como se daria a transitoriedade de sentimentos causados entre o augustum e o fascinans durante a força/borracheira. As respostas foram quase unânimes - não só o enlevo tem, sim, caráter purificador na criatura, como a própria graça parece ter como requisito a remissão para se manifestar, além de que sua presença atestaria o merecimento do indivíduo. Deduz-se disso que a graça e a peia na ayahuasca são antagônicas em substância psíquica, mas similares em substância numinosa - processos sensorialmente opostos mas complementares da lição divina. Estas observações podem ser ricamente interpretadas com o auxílio do material indicado nas referências. O único depoimento que questiona essa idéia é de uma adepta que alega ser incapaz de deixar escapar do auto julgamento, mesmo durante o enlevo, a consciência de que há erros de personalidade a corrigir, evitando seu reconhecimento como digna do nume por insistência de pensamento. Por fim, os resultados quantitativos da pesquisa em conjunto com os depoimentos, interpretados de forma preliminar, nos dão a impressão de que o numinoso proposto por Rudolf Otto não se aplica satisfatoriamente à interação divina que o indivíduo alega sentir quando em situação de transe através da ingestão da ayahuasca. Embora a teoria se mostre pontual e coerente no que diz respeito à sensação de profanidade, ao ímpeto e decisão interiores como agentes da remissão, ao caráter irracional enquanto “exuberantemente positivo” e sedutor do enlevo, e ao mérito de, na maioria dos casos, trazer profunda sensação de completude ao indivíduo, alguns pontos remanescentes mostram-se opostos ou inconstantes. As entrevistas apontam que a moralização da profanidade acompanha o contato com o numinoso e que o enlevo não é sui generis, podendo ser experimentado sem o intermédio do nume – contrariando assertivamente o que o autor afirma. Enquanto isso, a utilidade das ferramentas ritualísticas e da penitência como remissores, bem como a suposta analogia da graça com outras idéias salvíficas mostram-se relativas demais frente aos parâmetros de investigação propostos no livro. O Yagé da ayahuasca se assemelha ao

“numinoso” de Otto em seus pontos centrais, mas as dissemelhanças encontradas são o suficiente para nos impedir de assim chamar o agente do transe sobre a “criaturalidade”. Isso não significa, entretanto, que o proposto em “O Sagrado” deva ser descartado ao estudarmos a força/borracheira ou outras formas de experiência mística. Seu conceito de nume como “presença irracional que impele sensações no sujeito” mostra-se preciso e inovador ainda nos dias de hoje - dada a relevância do sensorial na vita religiosa como fonte da fé e substrato para realmente se compreender “religião” -, demandando um maior apoio empírico, inovações metodológicas com o intermédio da psicologia, linguística e possivelmente novas abordagens para chegarmos a informações mais concretas e, assim, ter subsídios para uma severa atualização e reformulação do que por Otto é tido como “aspectos do numinoso”: Minha convicção própria é a de que não há como estudar fenomenologia senão de dentro. As experiências às quais a Ayahuasca induz são extraordinárias em todos os sentidos do termo, e muitas são inefáveis. Não há como realmente compreender o que elas são sem antes experimentá-las. Afinal, por acaso alguém se arriscaria a estudar música sem de fato experimentar como música soa? (SHANON, 2002, p.32)

Referências

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