Enquanto isso... Notas iniciais sobre o positivismo pós-moderno - II

June 15, 2017 | Autor: J. de Castro Rocha | Categoria: Cultural Studies, Anthropology, Brazilian Studies, Cultural Theory, Literary Theory, Cultural Anthropology
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outubro de 2015 |

Desnaturalizar-se é o efeito produzido pelo ato de dépaysement, sem o qual a antropologia perderia sua razão de ser. 8. A história recente da antropologia estimula uma reflexão nova sobre os impasses atuais da crítica. Alguns dos motivos pelos quais se advoga a sua crise recordam um involuntariamente divertido “positivismo pós-moderno”. Vejamos. É cada vez mais comum ler frases do gênero: “nas atuais condições de fragmentação da experiência, de volatilização de todos os valores, de aceleração da fruição do tempo, de predomínio de meios audiovisuais e digitais, etc., a literatura já não é mais possível e muito menos a crítica”. Não importa a sofisticação dos argumentos desenvolvidos a partir de tais premissas, já que se estabelece uma relação simplista de causa e efeito entre sintomas contemporâneos e consequências consideradas necessárias. Imaginemos, porém, que os adeptos do positivismo pós-moderno tenham razão e que, por A + B, se demonstre que a literatura e a crítica estejam fora de lugar; na verdade, já não disponham de lugar algum. Como resposta possível, uma pergunta brutal: “E daí?” Nada nos impede de tornar o anacronismo deliberado e as atribuições errôneas as regras de um método a ser inventado. Em que medida, os diagnósticos correntes da atual crise dos estudos literários escamoteiam o que deveria ser tematizado? A crise não é exclusivamente da atividade crítica ou da experiência literária, mas das formas tradicionais de legitimação, que costumavam depender de uma autoridade determinada;

a legitimação agora passa por esferas múltiplas, resistentes a um centro único de orientação. Não estaremos maliciosamente transferindo a crise que afeta professores universitários e críticos para o objeto de pesquisa normativo? Hoje, e não apenas no Brasil, o que ocorre é a expansão considerável da atividade crítica e a apropriação vigorosa da experiência literária. E não se trata da emergência de um espaço hegemônico, que permitiria o resgate da legitimação perdida. Experimentam-se territórios possíveis, articuladores de intervenções pontuais: o jornal, o livro, a revista, o blog, o vlog, o Twitter, o Facebook, a Academia, as listas de endereço eletrônico, a televisão, o rádio, a web, os festivais literários, as casas de saber, as livrarias, os clubes de leitura, os cafés, etc. Afirmar que tais expansão e apropriação não são exatamente “crítica”, tampouco “literatura”, engendraria um paradoxo pouco produtivo, pois não é possível abrir mão da especificidade de uma prática discursiva e, ao mesmo tempo, definir hierarquias sobre o que deva ou não ser considerado literatura ou crítica. Não é tudo: nunca existiu

algo próximo tanto a uma prática discursiva unívoca denominada “literatura” quanto a um exercício regrado e uniforme chamado “crítica”. A diversidade de modelos e de procedimentos sempre prevaleceu; apenas decidimos negligenciar essa pluralidade constitutiva. Por que não pensar em termos de experiências literárias em lugar de terminar no eterno beco sem saída das definições normativas de “literatura”? No fundo, o que professores e críticos associados à universidade denominam literatura limita-se a um repertório estreito que corresponde às exigências do método desenvolvido na universidade. Método esse que privilegia uma experiência literária que define seus campos de força por meio da metalinguagem e da autorreferencialidade. Os estudos literários se desenvolveram através da naturalização da escolha de seu objeto de pesquisa normativo, que, de forma muito conveniente, reduplicava as teorias e os métodos defendidos por este ou aquele pesquisador. (Os estudos literários também acham feio o que não é espelho.)

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Reitero: a crise contemporânea não se explica apenas pela precariedade do objeto de pesquisa normativo; ela envolve sobretudo o grupo de indivíduos reconhecidos como seus praticantes e que a si mesmo assim se vê. Hora de encerrar. Por que não fazê-lo recordando o vaivém intelectual de Leo Sptizer? Na comparação filológica, está encarnado um constante trazer do distante para perto e um constante levar do perto para longe (...). O filólogo alemão, que analisa a cultura francesa, deve poder se apropriar desse francês quase ao ponto de as fronteiras nacionais desaparecerem. Ao mesmo tempo, o alemão que procura penetrar a cultura alemã deve poder manter uma distância quanto ao objeto estudado, quase como se fosse um estrangeiro (a última meta é muito mais difícil e rara.) Um duplo quase; como se Mario de Sá-Carneiro associasse experiência literária, atividade crítica e deslocamento antropológico. 9. Em concurso de abrangência vetusta, promovido pela Biblioteca Nacional, ele e ela manipulam seu resultado, atribuindo notas ínfimas à obra do desafeto — ah! a alma ressentida do mestre-escola nos tristes trópicos; ah! as angústias alencarianas da aluna brilhante de futuro incerto. Isso sem comprometer em nada princípios éticos permanentes — dela e dele, claro está. Aliás, princípios rigorosamente elevados. (Enquanto isso.)

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