ENQUANTO O MUNDO DURAR... CASOS DE DESTRUIÇÃO DO PATRIMÓNIO NOBRE EDIFICADO NA REGIÃO DE COIMBRA

May 30, 2017 | Autor: P. Duarte de Almeida | Categoria: Coimbra (Portugal), Património, Casa Nobre, Famílias de Coimbra, Quinta do Rangel, Quinta do Nogueira
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ENQUANTO O MUNDO DURAR... CASOS DE DESTRUIÇÃO DO PATRIMÓNIO NOBRE EDIFICADO NA REGIÃO DE COIMBRA

Paulo Duarte de Almeida1

É comum os estudiosos do património nobre português afirmarem que a região de Coimbra não é particularmente rica nesse tipo de património, quando comparada com outras do nosso país. Carlos de Azevedo, por exemplo, no seu livro Solares Portugueses (1988) – uma referência quando se fala deste tema – apresenta apenas, a propósito desta zona, o Paço de Maiorca e o Palácio Sottomayor (Condeixa). Penso, contudo, que tal afirmação não corresponde à verdade, podendo ter-se por válida apenas quando considerado um certo tipo de património. A verdade é que, quando se fala de casa nobre ou solar, se pensa muitas vezes no protótipo da arquitectura setecentista do Norte do país, no típico solar minhoto – a grande casa senhorial, construída na horizontal, com as suas imponentes escadas, torre ou torres, profusos e trabalhados elementos decorativos de granito, múltiplas janelas, varandas e jardins bem desenhados de que são belíssimos exemplares muitos dos solares apresentados por Anne de Scoop em Palácios e Casas Senhoriais do Minho (1993), e, claro está, o mítico Solar de Mateus. Ora, nesse tipo de casas a região de Coimbra é de facto pobre. A razão é simples e foi apontada por Carlos Azevedo: enquanto no Norte, se deu um verdadeiro salto do Gótico para o Barroco, não se tendo explorado a estética do Renascimento; pelo contrário, a região do Centro e do Sul, mais permeável a experiências e teorias, revelou melhor a nova corrente iniciada com o Renascimento e dificilmente se libertou dessa arquitectura erudita, podendo mesmo afirmar-se que as formas barrocas não chegaram a subjugá-la (AZEVEDO 1988: 57). Há, a este propósito, que não esquecer que Coimbra foi 1

Sócio do Instituto de Genealogia e Heráldica da Universidade Lusófona do Porto.

[email protected] 1

o grande centro da arte renascentista, no qual trabalharam escultores como Nicolau Chanterrenne, João de Ruão e Odart2, cujas oficinas encheram as igrejas e capelas da região com retábulos e esculturas do novo estilo (DIAS 2003) e cuja influência se exerceu de forma efectiva, pelo menos, até meados do séc. XVII. Este facto, associado a outros de cariz político e social ocorridos no século seguinte (a decadência da velha nobreza e a sua consequente fuga para outras regiões mais atractivas do ponto de vista económico), justifica então a existência na região de um número muito significativo de casas nobres do séc. XVII e muito poucas do séc. XVIII. No entanto, se há regiões em que, para além de já contarem com um valioso património arquitectónico civil e nobre construído, a iniciativa particular e estatal se preocupa com a sua preservação – é o caso do Minho, o mesmo não se tem passado em Coimbra. Com o presente estudo pretende dar-se a conhecer dois casos de destruição recente (por incúria e demolição) de dois belos exemplares de casas nobres seiscentistas, esperando que esta chamada de atenção possa, de alguma forma, contribuir para a preservação do que ainda resta deste património.

1. Quinta do Rangel

A, relativamente recente, circular externa de Coimbra, que liga a Av. Fernão de Magalhães à zona de St.º António dos Olivais e do Tovim, expôs um aglomerado de ruínas que despertou a minha atenção desde a primeira vez que por ali passei. O conjunto localiza-se do lado direito da via, no sentido referido, nas coordenadas que a imagem indica.

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Sem “H” como defende Pedro Dias.

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Imagem 1 – Localização da Quinta do Rangel

Apesar de, da estrada, não se vislumbrar mais do que uma interessante verga de pedra – entretanto desabada -, a minha curiosidade obrigou-me, contudo, um dia a parar e a tentar perceber do que se tratava. Rapidamente percebi que a porta que me levara até ali era o menos interessante daquelas ruínas.

Imagem 2 – Aspecto da construção vista da estrada

O elemento que despertara a minha atenção não passava, afinal, de uma entrada posterior de uma construção secundária num conjunto arquitectónico mais antigo e vasto que incluía uma casa de boa e requintada arquitectura e uma Capela ainda mais interessante. 3

Impossibilitado de penetrar no interior da habitação não só pela grande quantidade de mato e silvas que impedem o acesso, mas sobretudo pela falta do piso no andar superior, resolvi entrar na Capela, a que se acede por uma elegante e alta escadaria de pedra. O artístico trabalho dos baixos relevos dos caixotões da abóbada do altar, do arco e das colunas, assim como a riqueza e qualidade do trabalho de marcenaria dos fragmentos do altar visíveis pelo chão fizeram-me perceber que estava no interior daquilo que tinha sido uma grande e importante Capela particular. Mas, que casa é esta? De quem seria? Fascinado, não me apercebi imediatamente de algo que se revelaria fundamental para a identificação da casa e de que só dei conta quando já estava de saída: uma inscrição gravada em pedra, emoldurada por uma cartela, colocada por cima da porta, ainda do lado de dentro. Mas se desconfiei prontamente da importância daquele testemunho, a verdade é que a sujidade que o cobre não me permitiu decifrá-lo de imediato. Por isso, abandonei o local entusiasmado com a descoberta e resolvido a voltar.

Imagem 3 – A inscrição existente por cima da porta da Capela

Lembrei-me depois que um registo fotográfico talvez me ajudasse a lêla, recorrendo à ampliação que permitem as fotografias de resolução elevada. Assim fiz. Voltei à Capela munido da máquina e tirei as fotografias que considerei necessárias.

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Já em casa – maravilha das maravilhas! – as letras saltaram, uma a uma, da massa informe e ilegível do primeiro contacto. E, pouco a pouco, com esforço e atenção, as palavras foram surgindo, formaram frases e, por fim, surgiu o texto: ESTA ERMIDA FOI FEITA POR IOAO ALVRES RANGEL FID/ALGO DA CASA 3

DEL REY DOM AFFONSSO O Sº DESTE NOME/ NO ANO DO SNRO DE 1463 COM LICENCA DE

DOM IORSE/

DE

ALMEIDA BISPO

Q NO DITO ANO ERA EN

COIMBRA E/

POR ESTAR 4

QVASI ARVINADA DO TEMPO FOI FEITA TODA/ DE NOVO NO ANO DO SNRO DE 1658 POR

BRAS RANGEL PRª DE SAA/ FIDALGO DA CASA DEL REY NOSSO SENHOR. … a acrescentar à beleza do lugar, havia afinal a sua muita antiguidade… Em poucos segundos, as ideias acorreram. Pereira Rangel? São, de certeza, ascendentes dos Viscondes de Maiorca. Em pouco mais de meio segundo, já tinha o volume do Nobiliário nas mãos e lia: “Goncallo Goncalves he o prº de que há notissia viveo junto da cidade de Coimbra na q.ta chamada de Ronge e hoje Rangel que he sollar desta Famillia…” e em nota “Esta situada a q.ta de Ronge e hoje chamada Rangel na Ribeira q chamão Coselas pouco mais de hua q.ta de legoa pª a p.te do Norte tem hua capella magnifica …”. (GAYO: 212). Estava tudo explicado. As ruínas não são, nem mais nem menos, do que o que resta da antiga e muito centenária Honra de Rangel, solar e cabeça dos morgados desta família, hoje representada pelo Senhor Visconde de Maiorca (Dr. Vasco Maria Vasques da Cunha d’Eça Costa e Almeida). A identificação da família permitiu-me recolher mais informação sobre a propriedade. Comecei pelo, já antigo, mas sempre imprescindível, Inventário Artístico de Portugal, no caso, da Cidade de Coimbra, onde se pode ler: “O conjunto da quinta, do século XVII, é muito sugestivo apesar de as suas dimensões não serem grandes. Tem casa de habitação, capela, uma corrente de água que move um moinho, casas agrícolas.” (CORREIA 1947: 172).

3

Deve ser engano uma vez que, como já apontou Vergílio Correia, D. Jorge de Almeida só entrou no governo da diocese a 23.06.1483. (CORREIA 1947: 172) 4 E não 1635 como diz Vergílio Correia (idem).

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Imagem 4 – A fachada principal da casa, virada a Nascente

Imagem 5 – Perspectiva da fachada Sul tomada das escadas que dão acesso à Capela

Na esperança de que o mais recente Património Edificado com Interesse Cultural



Concelho

de

Coimbra

(2009)

fornecesse

informações

complementares, fui depois consultá-lo. Que desilusão! Como é que, passado mais de meio século, não se diz mais e ainda se consegue dizer menos?!... Insatisfeito e determinado a recolher mais informações sobre a história daquela casa, já que sobre a família pouco mais há a acrescentar para além do publicado5, lembrei-me que o 1.º Visconde de Maiorca, na sequência das restrições impostas pela Lei de 30.07.1860, foi um dos fidalgos do distrito de Coimbra que procedeu ao registo de todos os seus vínculos. E foi no Arquivo 5

GAYO: 212 e ss., CANEDO, vol. II: 48, 58, ANUÁRIO 1985, tomo I: 696 e ss.

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da Universidade de Coimbra, diante de um dos grandes livros que serviram ao registo vincular que, por entre as mais de 200 páginas usadas para registar os vínculos daquele titular e as propriedades que os compunham, entre as inúmeras transcrições de documentos, encontrei preciosas informações sobre a Quinta do Rangel, beneficiando do feliz acaso de aí se transcrever uma curiosa escritura do séc. XVIII... Em 1736, Calisto Rangel Pereira de Sá, Fidalgo da Casa Real, bisavô do 1.º Visconde e 6.º do actual, depois de um violento incêndio que destruiu a sua Casa de Santo Varão6 (para onde se mudara havia poucos meses), assim como todos os seus pertences, necessitou de fazer uma escritura de registo de todas as suas propriedades, cujos títulos, foros, prazos e doações tinham sido consumidos pelo fogo. Foi assim que, na presença de testemunhas, e sobre a Quinta do Rangel disse que: “… tendo ele a sua casa neste couto de St.º Varão e nela todos os seus papéis e bens móveis, sucedeu lançar-se-lhe o fogo a ela na noute de sete para oito de Outubro do ano de mil setecentos e trinta com tanta voracidade que em poucas horas se consumiram as casas do suplicante e tudo que nelas tinha sem se poder salvar cousa alguma, e entre os mais papéis que se queimaram foi um alvará que o Senhor Rei Dom Afonso Henriques Primeiro de Portugal passou a Gonsalo Gonsalves décimo sexto avô do suplicante em um grande pergaminho com seu selo de cera vermelha com as armas antigas que usaram os primeiros reis deste reino, pelo qual, em prémio de um perigoso recontro que teve com os mouros junto da quinta do Rangel, que naquele tempo se chamava do Ronge, em que os derrotou emboscando-se em uns grandes bosques de romanzeiras que naqueles sítios havia com seu irmão Mem Gonçalves em cuja memória lhe concedia pelo dito alvará que em campo azul tinha por armas uma bordadura de ouro com sete romãs de sua cor com os bagos à mostra e por timbre um ramo de romanzeira com três romãns na mesma forma e que se não podesse prender na dita quinta criminoso algum

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Herdada de sua avó D. Margarida de Aguiar, pertencente à família dos Saros daquela localidade.

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senão por crime de lesa Majestade7 ficando assim por honra e solar desta família que hoje usa das mesmas armas e do mesmo alvará constava que o mesmo Rei armara aos ditos dois irmãos Cavaleiros por suas reais mãos e segundo se podia colher da muita antiguidade do mesmo alvará parecia ser feito na era de mil cento e quarenta e seis 8 cuja summa se transcreveu em um livro que fez Bernardo Rangel Pereira de Sá, pai do suplicante, das memórias desta família no ano de mil e setecentos que existe.”9

Não sendo possível determinar a época de construção da primeira casa de habitação na propriedade, é pelo registo vincular que ficamos a saber que no ano de 1300 Águeda Gonçalves10 vinculou em morgadio parte da propriedade, com obrigação do uso das armas e do apelido Rangel, de que nomeou administrador seu irmão - Martim Afonso Rangel - e seus descendentes11. No final do séc. XV (1483), João Álvares Rangel mandou construir a primeira Capela da quinta. E em 1611, Catarina de Sequeira12 fez vínculo de morgado dos seus bens – que eram a parte restante da quinta – unindo-o ao vínculo instituído por Águeda Gonçalves, ficando desde então a propriedade reunida num só vínculo. Já na segunda metade do séc. XVII, no período pós-Restauração, seguindo a tendência apontada por Carlos Azevedo (AZEVEDO: 56), Brás Rangel Pereira de Sá13 procedeu a obras de restauro na sua Capela, 7

Efectivamente, uma das testemunhas do acto - José Feio, de St.º Varão – informou no seu testemunho que “… ouvira dizer e é tradição constante de pessoas antigas que na dita quinta do Rangel que é do suplicante houvera antigamente umas cadeias que serviam de baliza para suspender a execução da Justiça em chegando a ellas algum criminoso.” Arquivo da Universidade de Coimbra, Registo vincular, liv. 5, fol. 204v. 8 José Mattoso comprova que a região de Coimbra era então “… constantemente atravessada por exércitos depredadores. Sabe-se que em 1144 houve um importante ataque de mouros ao Castelo de Soure e que no ano seguinte se apelava em Coimbra para a necessidade de os seus habitantes auxiliarem os do Castelo de Leiria. Um documento deste ano exorta os voluntários, alegando que quem morresse em combate alcançaria méritos idênticos aos dos peregrinos de Jerusalém.” (MATTOSO 1992, 69). 9 Arquivo da Universidade de Coimbra, Registo Vincular, livro 5, fols. 201v.-202. A versão da doação e o constante da petição foi confirmado por várias testemunhas, entre as quais Francisco Coelho da Cunha, outro fidalgo de St.º Varão. 10 GAYO: 213. 11 Arquivo da Universidade de Coimbra, Registo vincular, livro 5, fol. 206. 12 Filha de Pedro Homem da Costa e de D. Maria Rangel. GAYO: 214. 13 Nascido em Coimbra a 02.02.1629. Fidalgo Cavaleiro da Casa Real com 1$600 réis de moradia (1665); Familiar do St.º Ofício (carta de 10.07.1667) (ANTT, Habilitações a Familiar do St.º Ofício, maço 1, doc. 16).

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dedicando-a a N.ª Senhora da Conceição – havia poucos anos proclamada padroeira do Reino por D. João IV (1646). A Capela fica na continuação da casa para Poente, acedendo-se à porta, que é lateral e virada a Sul, por uma alta escadaria visto que a construção fica em ribanceira. A porta é em verga arquitravada com um frontão interrompido de volutas enrolando ao centro. O tecto é de abóbada de aresta e o da nave em berço, de tijolo. A capela-mor é de cantaria e toda decorada, mostrando a cada lado dois altos arcos, em função de sacristias. Os caixotões da abóbada têm baixos-relevos, que são uma verdadeira obra de arte, representando: a Visitação de Nossa Senhora a St.ª Isabel, Anunciação, Adoração dos Pastores, Adoração dos Reis Magos, Fuga para o Egipto, Apresentação de Jesus no templo, Circuncisão e Assunção. O trabalho de cantaria deve ter saído de uma das muitas oficinas que no séc. XVII existiam em Coimbra e cujos artífices continuavam a trabalhar segundo os protótipos ruanescos 14. O retábulo do altar – hoje completamente destruído - era de madeira entalhada, sem pintura nem douramentos. Vergílio Correia, que ainda o viu intacto, descreve-o da seguinte maneira: “Divide-se em altura em três andares na largura em três panos, por meio de pequenas colunas coríntias, dispostas aos pares e decoradas em todo o corpo por enrolamentos de acantos e aves. Os pedestais das colunas e dos espaços intermédios, nos dois primeiros andares, têm pequenos e delicados baixos-relevos, que devem ter sido copiados de boas gravuras, pois que contrastam com as esculturas dos nichos. No grupo inferior vêem-se a Senhora da Conceição, ladeada de S. Bento e de S. Brás, no imediato Santo André e Santa Margarida, faltando o central; no do alto, um calvário mutilado, Santa Bárbara e outro Santo. No nicho médio está colocada uma cabeça-relicário, de barro, quase de tamanho natural.” (CORREIA 1947: 173). A nascente tem uma tribuna alta, aberta em dois vãos, com pilastras e coluna medial, coríntia.

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DIAS: 158-159.

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Imagem 6 – Abóbada da capela-mor

Imagens 7 a 10 – Pormenores da abóbada da capela-mor (Adoração dos Pastores, dos Reis Magos, Fuga para o Egipto e Apresentação de Jesus no Templo)

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Imagem 11 – A tribuna da Capela

Na Informação Paroquial de 1721, sobre a Capela diz o informador: “... nella se diz Missa, e della se admenistra o Sagrado Viático aos infermos quando he necessario; não tem obrigação de Missas algumas por ser o morgado mais antigo do que a Capella; he particular de quem pessue este morgado [do Rangel], o qual tem obrigaçam de a reedificar e paramentar do necessario. Sete annos [em 1714, portanto] em dia de Nossa Senhora da Assunçam, ouve na ditta Capella jubileo que lhe concedeo Sua Santidade com indulgências a todas as pessoas que se confessassem e comungassem. Tudo isto consta por papeis que em seu poder tem hoje o pessuidor.” 15

Por o edifício de habitação se caracterizar pela tipologia típica das casas seiscentistas, estou convicto de que o mesmo terá tido obras de restauro na mesma altura da Capela. A entrada principal está virada a Nascente, fazendose, pelo que se pode perceber, por uma escada hoje desaparecida. Na frontaria, podem ainda ver-se duas janelas e uma porta com verga de cornija. Na fachada virada a Sul, seis sacadas do mesmo tipo, já sem grades e com parte do vão tapado a formar parapeito de janela. A fachada Norte tinha apenas uma porta que dava acesso, através de um pequeno corredor, à cozinha da casa, independente da mesma. E a fachada Poente confina, através de um pequeno pátio-passadiço hoje fechado, com o coro da Capela.

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Arquivo Coimbrão III: 201.

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Trata-se de alçados de grande simplicidade, reflectindo o espírito erudito e conservador da região, que, durante quase todo o século XVII, adoptou um tipo de arquitectura mais verdadeiramente maneirista do que barroca, numa altura em que este estilo se espalhara já pela Europa (AZEVEDO 1988: 56).

Imagem 12 – Parte da fachada principal

No piso térreo, ficavam as lojas e arrumos, aos quais se acedia por uma porta localizada na frontaria, fazendo-se deste modo a separação entre o andar nobre, de habitação, e o andar inferior destinado a serviços indispensáveis, arrecadações, etc. (AZEVEDO 1988: 57). Em 25.05.1747, Calisto Rangel Pereira de Sá e sua mulher, D. Maria de Vilhena da Cunha e Melo, nomearam os bens que compunham os seus vínculos, anexaram-lhes outros e instituíram um só morgado, cuja cabeça seria a Quinta do Rangel16, com obrigação do uso do apelido Rangel “logo depois do nome ainda que lhe venha por fêmea” e uso das armas dos Rangéis “sem mestura de algumas outras como chefes desta família e sendo caso que sucedam em outros morgados que tenham obrigação de usarem de armas ou apellidos differentes, querem (…) que sempre o appelido do Rangel seja o primeiro e as armas no melhor logar do escudo conforme as leis da armaria (…) porque querem seus constituintes que a memória de sua família por este

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Arquivo da Universidade de Coimbra, Registo vincular, liv. 5, fol. 206.

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modo se conserve perpetuamente ainda que haja de succeder fêmea neste morgado”17.

Imagem 13 – Pedra de armas do séc. XVIII com o brasão dos Rangéis existente num dos portões da quinta do Paço de Maiorca

Com o casamento da filha e herdeira destes, D. Caetana Rangel Pereira de Sá, com Luís Vaz da Cunha, Senhor da Casa de Maiorca, os bens dos Rangéis entram nesta Casa e a família instala-se na sua grande Casa de Maiorca, ficando as restantes – a da Quinta do Rangel e a de St.º Varão – destinadas à habitação dos irmãos solteiros. A 23.02.1863, no registo dos seus vínculos, o 1.º Visconde de Maiorca descreve a Quinta do Rangel do seguinte modo: “Quinta denominada o Rangel que é próxima a Coselhas, aros de Coimbra, que se compõe de casas de um andar com suas lojas, casas térreas de habitação com sua Capela nobre intitulada de Nossa Senhora da Conceição, com suas azenhas, uma de duas pedras e outra de uma pedra, com outra azenha de moer farinha ao cimo do Rangel a que chamam o Pisão que em outro tempo chamaram a Azenha do Remédio, e bem assim com um lagar de fazer azeite que tem quatro varas e duas fornalhas trabalhando com uma roda tocada com água; bem assim com sua pequena mata de sobreiros, alguns pinheiros, pomares de fruta, com suas terras lavradias, suas ribeiras, olivais, vinhas e terras foreiras anexas à dita quinta que parte de nascente com o Padre António de São José, de Coimbra, 17

Idem, fol. 206v., sublinhado meu.

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do poente com o Conde de Camarido, do norte com João Lopes de Sousa, da mesma cidade, e do sul com a quinta das Sete Fontes e outros vários inquilinos.”18 Na verdade, não sei até quando foi habitada por membros da família nem até quando se produziu azeite na Quinta do Rangel, mas a tranquilidade e a placidez de que gozou nos séculos passados, quando, afastada da urbe e do bulício, no meio de bosques e pomares, desfrutava do bucolismo que lhe conferia a ribeira de Coselhas – curso de água inspirador do poeta árcade brasileiro Cláudio Manuel da Costa (1729 – 1789), foram substituídas pelo movimento e pelo ruído provocados pelo intenso tráfego automóvel que diariamente circula na estrada que a cortou ao meio e que expropriou parte dos terrenos, retirando-lhe o enquadramento paisagístico primitivo. A propriedade, embora permaneça ainda hoje na posse de herdeiros dos Rangéis, pertencendo à Fundação Maria Eduarda Vasques da Cunha d’Eça (falecida em 2005) e a seu irmão, o actual Visconde de Maiorca, está em completo estado de abandono e parcialmente em ruína, tendo a recente construção do novo Hospital Pediátrico de Coimbra muito contribuído para a sua degradação. Não se pode, por isso, deixar de lamentar que uma quinta tantas vezes centenária, com raízes nos primórdios da nacionalidade e que uma casa e Capela com tanto interesse arquitectónico estejam em tal estado de abandono e ruína…

3. Quinta do Nogueira

Outro caso de incúria que afectou, neste caso irreversivelmente, o património nobre edificado da região de Coimbra ocorreu com a Quinta do Nogueira, localizada na margem esquerda do Mondego, na freguesia de St.ª Clara, na estrada que liga a cidade às vilas e aldeias daquela margem. A sua zona de implementação, hoje densamente urbanizada e povoada, era ainda na segunda metade do século passado uma zona de quintas como por exemplo a que constituía a cabeça do morgado da família Tavares de

18

Idem, fol. 72.

14

de Carvalho a Quinta do Almegue, com o seu portão armoriado, pertencente aos Cunha Figueiredo e Melo (por mim já estudados noutras circunstâncias19), a Quinta de St.º António, a Quinta de N.ª Senhora da Conceição e aquela que agora me ocupa.

Imagem 14 – Localização da Quinta do Nogueira20 (carta topográfica de 1932/1936)

A casa de habitação que nela existia era do séc. XVII, como se pode perceber no único registo fotográfico que dela consegui.

Imagem 15 – Vista parcial da casa da Quinta do Nogueira 19

os

Ascendência e Descendência dos 1. Viscondes, Condes e Marqueses de Reriz (Porto, Instituto de Genealogia e Heráldica da Universidade Lusófona do Porto, 2006). 20 Agradeço ao Arq.º Eduardo Mascarenhas de Lemos o ter-me facultado o acesso a esta carta topográfica.

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Em 1841, no inventário feito por morte de um dos seus proprietários a que me referirei adiante, a propriedade foi descrita da seguinte forma: “Huma quinta denominada a Quinta do Almegue, cita na Estrada do Campo que vai para Pereira sobre o rio Mondego que hé da freguesia da Sé desta cidade que parte do sul com a quinta do Reverendo Padre Manuel José Ferreira e do norte com a quinta de António da Cunha21 do lugar de Taveiro, cuja quinta tem suas casas sobradadas com suas lógeas, adega e mais pertenças e hé toda fechada e murada e paga foros a diversos senhorios que importão em 28 alqueires de azeite às safras e em dinheiro paga a quantia de mil duzentos e oitenta réis e a mesma quinta tãobem parte com a mesma estrada e com quem mais deva e haja de partir”22. Nessa ocasião, a propriedade foi avaliada em 1 conto e oitocentos mil réis. No Inventário Artístico da Cidade de Coimbra, e sobre o estado da casa no final da primeira metade do séc. XX, diz-se: “Restam ainda na fachada da casa antiga duas sacadas a cada extremo, dos séculos XVII-XVIII, com verga de friso e cornija e bacia pouco saliente, conservando as grades de ferros recortados.” (CORREIA: 173). Mas hoje nada resta da antiga casa, na medida em que a mesma foi demolida aquando da construção de uma grande área comercial implantada, em parte, nos terrenos que constituíam a propriedade. Embora o relatório arqueológico que acompanhou o projecto referisse o interesse da sua arquitectura, o “avançado estado de abandono” talvez tenha sido o suficiente para se considerar o mesmo despiciendo. Restou apenas a Capela - talvez por escrúpulo moral ou superstição – e parte da parede que sustém o campanário, numa solução de gosto duvidoso. A Capela, situada a nascente da casa, em posição recuada, tem um pequeno campanário, colocado no topo da casa. De construção mais tardia do que esta, foi mandada construir na década de 80 do séc. XVIII. A 23 de Agosto de 1783, o então proprietário da quinta, Dr. Francisco Lopes Teixeira23, Lente 21

António da Cunha de Figueiredo e Melo (ALMEIDA: 56-58). AUC, Inventários Orfanológicos, Custódio Manuel Teixeira de Carvalho, 1841, maço 11, 3.º ofício, escrivão Lima, VI, I-D, 10, 4, 7, fol. 77v. 23 Baptizado na freguesia de S. Bartolomeu, Coimbra, a 09.12.1714. Sendo estudante da Faculdade de Artes (1732), habilitou-se a um partido médico e nesse mesmo ano (a 1 de Outubro) matriculou-se na Universidade a 01.10.1732, onde obteve os seguintes graus: Bacharel (02.04.1732) e Licenciado em Artes (06.06.1733); Bacharel (18.05.1737), Licenciado (02.04.1740) e Doutor em Medicina (08.05.1740), seguindo depois o magistério nessa mesma faculdade, onde leccionou diversas cadeiras até à Reforma Pombalina da Universidade, tendo 22

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da Universidade, pediu licença às autoridades eclesiásticas da diocese para “erigir uma capela junto às suas casas que possui na Quinta do Almegue”.

Imagem 16 – Vista actual do que resta da Casa e Capela da Quinta do Nogueira

Havia pouco mais de duas semanas (06.08.1783), tinha feito uma escritura de dote e obrigação – obrigatória em tais circunstâncias - com que assegurava o sustento e conservação da Capela. O documento reza assim:

sido jubilado por portaria de 28.09.1772 e carta régia de 04.10.1772 . Familiar do Santo Ofício (carta de 21.09.1741) , tendo sido nomeado médico dos cárceres da Inquisição (provisão de 22.09.1750, do Inquisidor-Mor Cardeal da Cunha). Cavaleiro da Ordem de Cristo por mercê d’el-Rei com tença de 20$000 réis (21.02.1759). Morou em Coimbra, na Rua de Sargento-Mor, e depois na sua Quinta do Almegue. Faleceu na freguesia de S. Cristóvão, Coimbra, com todos os Sacramentos e com testamento, a 19.04.1790, tendo sido sepultado na Igreja do Colégio da Estrela, para onde foi transportado por pobres, de acordo com a sua vontade testamentária. Casou com D. Bárbara Maria Antónia Xavier de Carvalho e Sousa, natural da freguesia da Sé, Coimbra, mas baptizada na Igreja do Salvador, por a da sua naturalidade estar impedida, a 13.12.1732. Filha do Dr. Manuel de Carvalho, natural da freguesia de S. Cristóvão, Coimbra, moço da Capela da Universidade; Lente da faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde estudou; Médico extraordinário do Hospital Real (alv. de 12.04.1725); Familiar do Santo Ofício (carta de 17.07.1731), e de D. Angélica Maria da Conceição e Sousa, natural da freguesia de S. João de Almedina, Coimbra, e moradores na freguesia de S. Cristóvão na mesma cidade. Neta paterna de Bento de Carvalho e de Catarina das Neves. Na ascendência do Dr. Francisco Lopes Teixeira – que não apresento por falta de espaço, encontram-se vários mercadores de livros, muito ligados à Inquisição de Coimbra. Eram Familiares seu pai, avós paterno e materno e, pelo menos, um bisavô.

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“… por elle outorgante foi dito que era senhor e pessuidor de huma grande propriedade no sítio do Almegue desta cidade que consta de casas, vinhas, árvores de fruto e semelhe, ínsua e olivais que parte do norte com fazendas de D. Jacinta, irmã do Reverendo José Luís, Cónego Prebendado que foi na Santa Sé desta cidade, já falecido 24, e do sul com fazenda do Ilustríssimo Bernardo Coutinho Pereira Forjaz desta cidade e do nascente com estrada pública que vai para o campo (…), em a qual havia mandado fazer uma capela pública para nela se celebrar o Santo Sacrifício da Missa e para a permanência da mesma enquanto o Mundo durar com a decência devida ao culto divino com os paramentos necessários, ele outorgante de sua própria e livre vontade sem constrangimento de pessoa alguma lhe dava e dotava a dita sua capela a quantia de outo mil réis em cada hum ano enquanto o Mundo durar para a permanência da mesma cujos outo mil réis sahiram do rendimento da mesma sua propriedade supra declarada e confrontada, e serão obrigados todos os seus sucessores que possuírem a dita propriedade a contribuírem para a dita capela com os referidos outo mil réis e serão obrigados a trazela reparada de tudo o predito e ainda no caso que nela possa haver alguma ruína que precise ser reedificada, serão orbigados a concertalla e reedificalla da mesma forma que elle outorgante a deixar reedificada e preparada com todos os paramentos precisos e decência e que se obrigava como dito fica a fazer-lhe este dote e património sem nunca os poder reclamar nem contravir em tempo algum”25.

Nessa data, a propriedade foi avaliada em 10 mil cruzados e rendia 100 mil réis anuais. O auto de vistoria e aprovação da Capela data de 15.06.178526 e contém uma pormenorizada descrição não só do seu exterior, como do seu interior e pertences: “Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil setecentos e oitenta e cinco aos quinze dias do mês de Junho do dito anno neste cítio do 24

Trata-se da propriedade que constitui a Quinta que outrora pertenceu à família Cunha Figueiredo e Melo, de Taveiro (já atrás referida), porquanto o dito Cónego José Luís [de Sousa] era tio-avô de António da Cunha de Figueiredo e Melo, referido na nota 21. 25 AUC, Instituições Pias, cx. 10, proc. 400, fols. 3v. a 4v., sublinhado meu. 26 Idem, cx. 7, proc. 11.

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Almegue, aros da cidade de Coimbra, e na quinta do Doutor Francisco Lopes Teixeira, lente jubilado na faculdade de medecina na Universidade da mesma cidade, profeço na Ordem de Christo aonde elle, Reverendo Comissário o Doutor José da Encarnação graduado na Sagrada Theologia na mesma Universidade e Prior da Igreja Collegiada de São Christóvão da dita cidade, comigo escrivão viemos para effeito de fazermos revista na Capella de que a comissão retro faz menção e com effeito procedendo a ella, achamos que dentro na dita quinta se acha edificada huma Capella junta às casas da mesma quinta, porém livre, e inteiramente separada dos usos domésticos das mesmas casas, e na mesma capella, que com grande primor e arte se acha construída está hum altar alto com seo retábulo pintado e dourado, e no meio dele colocada a Imagem de Nossa Senhora com o título dos Anjos 27 tendo na cabeça huma boa coroa de prata à moderna e com sua urna também dourada e pintada e no meio huma pedra de ara com relíquias; tem huma banqueta e nella seis castiçais de estanho e no meio huma cruz também de estanho e no meio huma Imagem de Nosso Senhor Jesus Christo cruxificado e por debaixo da dita urna se acha hum supedaneo de madeira pintada e por debaixo delle dois degraõs de pedra de forma que o dito supedaneo forma o terceiro degrão; tem mais na mesma Capella hum coro com huma porta que se encaminha para as casas da dita quinta, sendo a mesma Capella forrada de estuque que finge abóbeda e no meio se acha hum florão de talha dourada com huma prisão para ter alâmpada e na parede do lado da Epístola se acha huma porta que se encaminha para a sachristia da mesma Capella aonde se acha hum caixão com gavetas para com decência se arrecadarem os paramentos da mesma Capella e sobre elle se revestir o Sacerdote e na parede da parte de fora da dita sachristia, em outra casa que a ela se acha junta, se acha metida hua área de pedra com seu esguicho para se lavar o mesmo Sacerdote; tem mais duas planetas de damasco guarnecidas de galão de retrós amarelo e huma branca e outra encarnada com suas estolas e planeta de damasco de lãa matizado com suas flores verdes e de outras cores com sua estola e manípulo; tem mais huma bolça de corporais de damasco de lãa com as quatro cores, branca, encarnada, roxa e verde; tem mais três veuz de cálices de tafetá das cores

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Vergílio Correia identifica-a como sendo uma “Senhora com o Menino, do séc. XVI”.

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Imagem 17 – Aspecto actual do altar

Imagem 18 – Nossa Senhora dos Anjos

Imagem 19 – Parte inferior do altar

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branca, encarnada, e roxa; tem mais hum calix labrado de prata com a copa dourada por dentro, e com sua patena toda dourada; tem mais seis sanguinhos e três mesas de corporais com suas palas; tem três toalhas do Altar e quatro para o Sacerdote limpar as mãos, e dois manustérgios; tem hum par de galhetas de estanho com seu prato e duas colherinhas de prata; tem hum missal encadernado em pasta dourado pelas costas e pelas folhas e com o caderno dos Santos Novos e Cónegos Regulares e com sua estante de pãu pintada de preto com seus ramos de ouro, tem mais a dita Capela da parte de dentro da porta huma pia de pedra para ter água benta e da parte de fora junto ao frontespício se acha huma campana grande para chamar o povo, quando houver missa, e suposto a dita Capella se acha colocada dentro da dita quinta, contudo está em cítio aposto e acomodado para a ella poder o povo vir assistir ao santo Sacrifício da Missa, sem ser necessário o interar em algumas das casas da referida quinta e munto perto da estrada pública que vai junto das casas da mesma quinta e por esta forma ouve elle Reverendo Comissário esta revista por finda de que mandou fazer este auto…”28

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Imagem 20 – O que resta da pia da

Imagem 21 – A porta que comunicava com a

Água Benta

Sacristia

AUC, Instituições Pias, cx. 7, proc. 11, fols. 22 a 24.

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Imagem 22 – O coro da Capela com ligação à casa

Em 1831, o filho único e herdeiro do instituidor da Capela – Custódio Manuel Teixeira de Carvalho29 - fez um rol dos pertences da dita Capela que consta do seu inventário orfanológico, o qual não contém muito mais alfaias ou paramentos religiosos nem refere ainda um elemento de grande interesse que se encontrava nesta Capela: uma grande maquineta com presépio de figuras de barro do séc. XVIII (escola de Machado de Castro?). Pelo texto de Vergílio Correia, parece que o presépio ainda existiria nos finais da primeira metade do séc. XX, não existindo hoje nenhuma peça, mas a maquineta ainda lá estava há poucos meses. Tem pernas recurvas, acabando em fortes garras, decorada com um belo trabalho de chinoiserie a dourado sobre fundo vermelho. Como, embora casado, o dito herdeiro não teve descendentes, por testamento feito a 30.09.1836 e aberto a 20.04.1841, deixou a Quinta ao Hospital de Nossa Senhora da Conceição de Coimbra, com todos os seus pertences, excepto os bens semoventes, com as condições de a administração do Hospital mandar dizer duas Missas por ano com esmola de 240 réis cada 29

Natural da freguesia de S. Cristóvão, onde foi baptizado a 16.09.1771. Foi Tesoureiro-geral da fazenda da Universidade de Coimbra. Cavaleiro da Ordem de Cristo (carta de 07.04.1812). Casou com D. Ana Máxima Ferreira Maia. S.g.

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Imagem 23 – Maquineta do séc. XVIII

Imagem 24 – Pormenor da maquineta com vestígios de chinoiserie

uma na dita Capela, em louvor de Nossa Senhora, e em dias de Sua invocação, e a mandar alumiar todas as noites a Capela, sendo os encargos suportados pelo rendimento da propriedade. A Quinta saía assim da posse da família. Desconheço as vicissitudes factuais e processuais que impediram o dito Hospital de permanecer na posse da Quinta, apenas sei que, a 07.10.1850, foi arrematada em praça pública por 3 contos e 261 mil réis por Francisco Maria de Gouveia Antas, como procurador de D. Gertrudes Magna Garcês Barreto 30, autorizada para a compra por seu marido, Francisco Barreto Botelho Chichorro de Vilasboas. No entanto, a compradora não pagou a sisa nem os respectivos impostos de transmissão, pelo que a propriedade foi penhorada pela Fazenda Nacional a 21.02.186231. Devido ao nome dos seus novos proprietários, a Quinta passou então a ser conhecida como “Quinta do Chichorro” (como se lê no auto de penhora). Nessa altura, a propriedade foi avaliada em 3 contos e 30

AFFONSO: 123. Durante o período que medeia entre a compra e a penhora, foram arrendatários da Quinta Fernando António Cardoso e Francisco Lopes de Carvalho Gavicho, ambos de Coimbra, e este último proprietário da Quinta que confinava a sul com a arrendada. 31

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200 mil réis32. E nada mais pude apurar sobre a história da Quinta. Deduzo que o nome pelo qual foi mais recentemente conhecida se deva a um eventual proprietário em cuja posse tenha estado nos finais do séc. XIX. E sei que esteve em abandondo, desde, pelo menos, a década de 80 do séc. XX, até à altura em que foi comprada para, juntamente com os terrenos da antiga fábrica da Mondorel, dar lugar a um enorme e muito controverso espaço comercial altura em que a casa foi demolida. A Capela ficou, mas no estado em que a apresento.

A Quinta do Rangel e a Quinta do Nogueira são apenas dois exemplos do desleixo e da incúria com que particulares e organismos públicos têm tratado o património nobre edificado na região de Coimbra, empobrecendo-a de uma forma incompreensível e irreversível. Considero, contudo, que a sóbria, discreta, austera e erudita arquitectura seiscentista deveria ser encarada e tratada com o mesmo cuidado com que a barroca. Ambas são fruto do seu contexto e reveladoras do gosto dos seus protagonistas. E na interpretação do fenómeno da perdurabilidade do código renascentista nas construções seiscentistas desta região deve ser tida em conta a influência que não só a Universidade – a instituição conservadora por excelência, como também a Inquisição exerceram em Coimbra. O desinteresse com que este tipo de construção tem sido perspectivado, além de contrariar o desejo de perenidade dos seus proprietários e instituidores que, ingenuamente crentes na imutabilidade da História, julgavam que a sua vontade perduraria enquanto o mundo durasse, contraria ainda a necessidade premente de, em tempos de uma globalização inexorável, cada território e cada povo manterem o mais genuíno da sua identidade. E o património é também identidade.

BIBLIOGRAFIA

FONTES IMPRESSAS

32

AUC, Processos judiciais, maço 19, 6.º ofício, Esc. Falcão, VI-I-D, 14, 1, 3.

24

AFFONSO, Domingos de Araújo e VALDEZ, Ruy Dique Travassos, Livro de Oiro da Nobreza, Braga: Tipografia Pax, 1934, vol. III ALMEIDA, Miguel, DIAS, Gina, Intervenção de Arqueologia Preventiva – Quinta de São Gemil/Fórum Coimbra (Santa Clara, Coimbra, Coimbra), Relatório Final ao IPA de intervenção arqueológica preventiva, Coimbra: Dryas Arqueologia, Lda., Maio de 2005 (20). Policopiado ALMEIDA, Paulo Duarte de, Ascendência e Descendência dos 1.os Viscondes, Condes e Marqueses de Reriz, Porto: Instituto de Genealogia e Heráldica da Universidade Lusófona do Porto, 2006 AZEVEDO, Carlos, Solares Portugueses – introdução ao estudo da casa nobre, [Lisboa]: Livros Horizonte, 1988 Biblioteca Municipal de Coimbra, Arquivo Coimbrão, Coimbra: B.M., 1924-, vol. III CORREIA, Vergílio, Inventário Artístico de Portugal – Cidade de Coimbra, Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1947 Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, Património Edificado com Interesse Cultural – Concelho de Coimbra, Coimbra: Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, 2009 DIAS, Pedro, A escultura de Coimbra do Gótico ao Maneirismo, Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra, 2003 GAYO, Felgueiras, Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga: Edições Carvalhos de Basto, 1990, vol. IX MATTOSO, José, História de Portugal, [Lisboa]: Círculo de Leitores, 1993, vol. 2 Reforma dos Morgados ou Carta de Lei de 30 de Julho de 1860, Porto: Tipografia Popular de J. Lourenço da Silva, s.d. ROSA, Maria de Lurdes Pereira, O Morgadio em Portugal, séculos XIV e XV – modelos e práticas de comportamento linhagístico, Lisboa: Estampa, 1995 SCOOP, Anne de, Palácios e Casas Senhoriais do Minho, Porto: Livraria Civilização, 1993

FONTES MANUSCRITAS 25

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

Habilitações de Familiares do Santo Ofício Francisco Ferreira, maço 1, doc. 20 Pedro de Miranda, maço 4, doc. 150 Manuel da Costa, maço 47, doc. 1054 Amaro Lopes, maço 1, doc. 12 Sebastião Rodrigues, maço 5, doc. 106 Francisco Lopes Teixeira, maço 61, doc. 1182 Brás Rangel Pereira de Sá, maço 1, doc. 16

Habilitações de Cavaleiros da Ordem de Cristo Custódio Manuel Teixeira, maço 10, doc. 40 Francisco Lopes Teixeira, maço 6, doc. 5

ARQUIVO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Governo Civil, Registo Vincular, livro 5 Instituições Pias, cx. 7, proc. 11 e cx. 10, proc. 400 Inventário Orfanológico de Custódio Manuel Teixeira de Carvalho, 1841, maço 11, 3.º ofício, escrivão Lima Processos judiciais, maço 19, 6.º ofício, escrivão Falcão

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