ENRIQUECIMENTO ILÍCITO \" Quem cabritos vende e cabras não tem…! \" 1 -Reflexões esparsas sobre a emergência da incriminação

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ENRIQUECIMENTO ILÍCITO “Quem cabritos vende e cabras não tem…!”1 - Reflexões esparsas sobre a emergência da incriminação

Paulo Saragoça da Matta2

1. Razão de ordem A incriminação do “enriquecimento ilícito” afigura-se-nos ser em Portugal, diga-se logo à cabeça e como confissão livre integral e sem reservas, uma emergência nacional. Tal decorre dos elevados níveis de falta de transparência na obtenção dos rendimentos por parte dos cidadãos-contribuintes, e de uma nefasta mas endémica falta de probidade e de fiabilidade das respectivas fontes. Não só relativamente a “funcionários” hoc sensu e a titulares de cargos políticos, mas relativamente a todos os cidadãos3/4. Por outro lado, a incriminação dos enriquecimentos ilícitos, rectius, a sua efectiva perseguição e castigo, será um instrumento a mais no combate (até agora tão tíbio em Portugal) à factualidade que pode ser subsumida a tipos como o da corrupção5, da participação 1

“Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem!” – Aforismo popular português que demonstra bem a compreensão popular da situação que deve merecer a tutela do Direito, porque chocante. 2 Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Advogado. 3 É, aliás, voz corrente em Portugal, há décadas, não ser fiável o controlo do Estado Fisco relativamente aos efectivos rendimentos dos cidadãos, havendo até um certo orgulho quanto ao facto de se conseguir enganar o Estado, e a comunidade, no que respeita ao que efectivamente se ganha. E não se fale apenas nas grandes fortunas não tributadas. A endémica falta de solidariedade no que respeita à dimensão redistributiva da justiça fiscal é transversal à sociedade, desde os mais modestos operários e prestadores de serviços, até à “nata” dos empresários e gestores. A tal não será alheio, é certo, o verdadeiro confisco que o Estado português pratica relativamente aos seus contribuintes, aliás prática corrente ao longo de toda a História de Portugal. De que é bom exemplo o imposto denominado “Meia Anata”, introduzido no início do Século XVII e que correspondia a uma tributação de 50% de todos os rendimentos auferidos por todos os titulares de rendimentos e/ou património. Estranhamente, esse jugo fiscal intolerável (à época também justificador da Restauração da Independência), não impede que hoje a carga tributária possa ultrapassar os 60%. 4 Certo é, porém, que no que respeita aos funcionários públicos e titulares de cargos políticos e gestores de coisa pública, as necessidades preventivas e retributivas são particularmente acrescidas, como abaixo melhor se verá. 5 Marcelo Moriconi e Luís Bernardo, A representação da corrupção em Portugal: perigos teóricos e políticos, in Le Monde Diplomatique, 01/01/2013. Os autores são claros, com interesse nesta sede, quanto ao seguinte: “…se a comunidade representa a corrupção como sistémica e cultural e não concebe a magistratura judicial como capaz de tomar decisões equânimes e imparciais, a complexidade do quadro legal é apenas mais um factor de desconfiança a respeito da verosimilhança dos juízos proferidos pelos magistrados. (…) Este debate está, aliás, inquinado pela existência de um conjunto de intelectuais orgânicos (António Barreto, Henrique Medina Carreira e Vasco Pulido Valente, entre outros) que reforça

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económica em negócio, do peculato, dos crimes fiscais e de todos os demais crimes patrimoniais e também dos crimes cometidos no exercício de funções públicas. E, diga-se também desde já, não é o facto de existir um tipo criminal a tutelar um bem jurídico, que serve de razão para inviabilizar que outros tipos penais protejam o mesmo dito bem. Principalmente se estiverem em causa os chamados bens jurídicos complexos, como é manifestamente o caso. Com efeito, não é o facto de existir a previsão legal de tipos como a corrupção, o branqueamento de capitais, a prevaricação, a fraude fiscal, a participação económica em negócio, que garante a efectiva tutela dos bens jurídicos que se pretende tutelar com a incriminação do enriquecimento ilícito. Na verdade, não é de estranhar que os índices de percepção de corrupção (lato sensu) pela população sejam muito mais elevados do que os dados estatísticos dos casos de corrupção efectivamente participados, investigados, acusados e condenados. É que a diferença entre dados estatísticos da Justiça e a percepção pública da corrupção decorre da própria natureza dos crimes em causa: trata-se de comportamentos tendencialmente secretos, desenvolvidos entre um corruptor e um corrompido, não resultando no interesse de nenhum dos envolvidos que o negócio ilícito seja tornado público. Assim que as cifras negras no que a este tipo de criminalidade respeita sejam esmagadoras, por comparação com todos os outros crimes. Um crime de homicídio deixa, em todos ou quase todos os casos, uma prova manifesta, consubstanciada num cadáver. Um acto de corrupção, de prevaricação, de participação económica em negócio, de fraude fiscal, deixa apenas uma evidência: rendimentos ou património que têm uma tendência genética para se revelarem no trem de vida que o agente do crime exibe. Por tudo isso resulta claro e evidente a imperiosa necessidade de garantir transparência e verdade no que ao auferimento de rendimentos e à titularidade de bens diz respeito. Aliás, a gravidade da situação é tal que o próprio art.º 20º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção determinou o seguinte: “Com sujeição à sua Constituição e aos princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico, cada Estado parte considerará a possibilidade de adoptar medidas legislativas e de outra índole que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, o enriquecimento ilícito, ou seja, o incremento significativo do património de um funcionário público relativo aos seus rendimentos legítimos que não possam ser razoavelmente justificados por ele”6/7.

a representação da corrupção como fenómeno cultural, imbrincada numa cultura política neopatrimonialista e clientelar com raízes indeterminadas e, portanto, impassível de repressão eficaz ou extirpação prática”. 6 A este respeito pode ler-se no Parecer do Conselho Superior da Magistratura de 9 de Fevereiro de 2011 que apreciou o Projecto de Lei n.º 494/XI/2ª (PCP) que o artigo 20º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção “não implica necessariamente que haja um crime designado de enriquecimento ilícito, mas sim que a legislação permita punir esse enriquecimento ilícito, o que pode ser efetivado através de outros tipos legais de crime”. Efectivamente, a Convenção não implica que haja um

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Precisamente pelas razões já invocadas se defende que o tipo de crime em questão, quando existir, não deverá ser configurado como um crime específico próprio, i.e. exclusivo para funcionários. Ao invés, deverá ser um crime aplicável a todos os cidadãos-contribuintes, devendo haver, obviamente, agravação expressiva para todos aqueles que o cometam no desempenho de qualquer tipo de função pública, nos termos desenhados pelo conceito de funcionário do art.º 386º CP, ou que sejam titulares de qualquer cargo político, tal como resulta da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho. Conforme resulta das linhas iniciais destas reflexões, o leit motiv da ponderação da incriminação de condutas como aquelas que se desejam circunscrever no tipo a construir é múltiplo. Nele se subsumem: a gravidade das ameaças que o enriquecimento injustificado representa para a Justiça social e a segurança colectiva; no atentado que constitui ao Estado de Direito e à Democracia e suas instituições; nas lesões que causam à ética da vida em comunidade, seja ela Republicana ou Monárquica; no entrave que constitui ao desenvolvimento são e equilibrado da própria economia. Clamorosas incompatibilidades entre os rendimentos e património legitimamente adquiridos e os que se constatam publicamente, não podem senão ser resultado de violações gravosas dos mais elementares princípios da Justiça, em todas as suas dimensões jurídicas e éticas, como necessariamente que beliscam o Estado de Direito e as instituições democráticas (porquanto são manifestação da falência destas em garantir o império do Direito), além de serem potenciadoras de violações aos princípios da sã concorrência, e, do mesmo passo, ao desenvolvimento sustentável e efectivo da economia. E com isto não se cede o passo a nenhuma crítica fácil no sentido de que apenas se pretende punir o enriquecimento ilícito por desalento, comodidade ou perguiça de perseguir os crimes de corrupção lato sensu. Mas não só: a disparidade entre os rendimentos e património legitimamente adquiridos e os que publicamente se ostentam, não constitui apenas uma manifestação pública de injustiça, não afecta apenas os princípios do Estado de Direito e a referida ética. É também um factor de potencial conflitualidade social, que se agravará à medida que for diminuindo o conforto mínimo dado pelo Estado social8.

crime com tal designação. Mas a questão é totalmente outra. É a de saber se a existência dos “outros tipos legais de crime” assegura efectivamente a tutela dos bens jurídicos que se visa proteger ou não. E em Portugal a evolução sociológica, e o estado actual de desprotecção do bem jurídico, mostram que não. 7 Também a Convenção Interamericana contra a Corrupção, assinada em Caracas a 29 de Março de 1996, e vigente no âmbito da Organização dos Estados Americanos, apresenta semelhante redacção. 8 Uma das consequências dos momentos de crise é a de que, se os poderes públicos exigem sacrifícios à população, a eles se terá de exigir, pelo menos, honestidade. Os políticos não podem converter-se numa casta priviliegiada em que os respectivos membros, independentemente das ideologias, se protegem reciprocamente. Os partidos não podem ser estruturas burocráticas onde os políticos se integram e por isso recebem um estipêndio legal, pago pelos cidadãos, e por vezes tensas ilegais, pagas por empresas, investidores, promotores, lobbys. etc. Perante tais cenários a justiça tem de ser implacável. Se somos

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Assim que a emergência da incriminação deste tipo de comportamentos cresça na proporção do decaimento dos rendimentos e garantias mínimas asseguradas pelo Estado Social, pelo que nunca, como hoje, se sente tão fortemente a necessidade imperiosa de se proceder a tal incriminação. E é sabido que o direito penal não é, nem pode ser, higiénico em relação à realidade. Está mergulhado na sociedade, serve para a conformar, e, em especial, deve acompanhar os tempos e as características da criminalidade à medida que esta vai “evoluindo” ou “transmutando-se”9. Para aqueles que esgrimem, de início, com o princípio da intervenção mínima do Direito Penal para se oporem a tal incriminação, deverá recordar-se que todo o caminho do Direito Penal se fez precisamente pela constatação da necessidade de controlar comportamentos sociais que até determinado momento não afectavam tão gravemente a ordem social que justificassem o democracias, Estados de direito, temos de fazer com que as leis se cumpram. Os povos exigem uma regeneração integral das sociedades, para o que imperioso é que haja uma justiça sã, independente e despolitizada. Perdemos já a conta de todos os casos que pendem pelos Tribunais. E é terrível a sensação de termos sido enganados anos a fio. Um clamor profundo das sociedades terá de obrigar os Tribunais, adormecidos há décadas sob a prosperidade aparente dada pelo poder político, a começar a actuar. Não se podem tolerar abusos àqueles que impõem sacrifícios aos povos, como violações do princípio da igualdade material se não podem admitir aos contribuintes do mesmo Estado. A única via para que a sociedade, em momentos tão difíceis, não perca a esperança, é dar-lhe Justiça. A Justiça é a legalidade democrática operante e eficaz. 9 Com o que claramente se afastam argumentos mais ou menos “alheios à realidade” usados por quem defende que inexiste “necessidade” de intervenção criminal nesta área. Também inexistia necessidade de intervenção criminal na área do ambiente, antes de existirem agressões insuportáveis contra a natureza; e assim também no que respeita ao narcotráfico e à regulação criminal da banca e do mercado de valores; e assim por diante. Aspectos em que muito mal andou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012, in Diário da República, 1ª Série, n.º 78, de 19/04/2012, pp. 2206 a 2219, ao pretender confundir o que na norma proposta – que obviamente poderia ser criticável – nunca poderia ser lido. Conclui-se, s.d.r., mal, nesse aresto que “…o que se pretende punir é a incompatibilidade existente entre o património adquirido, detido ou possuído e os rendimentos e bens legítimos do agente, património esse que, não tendo origem lícita determinada, indicia que o acréscimo patrimonial adveio da prática anterior de crimes. Isso mesmo se extrai (…) dos respetivos trabalhos preparatórios, onde se pode colher com toda a clareza que a incriminação em causa visa obstar a que os mais diversos crimes fiquem impunes em função das mais diversas vicissitudes, incluindo processuais. 8.2 – Ora, se a finalidade é punir, através da nova incriminação, crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não há um bem jurídico claramente definido, o que acarreta necessariamente a inconstitucionalidade da norma. Pune-se para proteger um qualquer bem jurídico indefinido”. Ora, como é bom de ver, não só o que sejam as intenções do legislador, manifestadas nos trabalhos preparatórios, são totalmente irrelevantes perante o princípio da legalidade penal na vertente da precisão típica, como obviamente que a norma não incrimina qualquer “indício” de que o “acréscimo patrimonial adveio da prática anterior de crimes”. Em parte alguma da norma cuja constitucionalidade estava a ser preventivamente apreciada tal questão se punha, nem se podia por. Dir-se-á que o Tribunal Constitucional, em vez de se ater à norma e ao que dela se extrai numa interpretação juridicamente correcta, julgou com os critérios que na comunicação social iam sendo aventados por quem quer. Trata-se, neste particular, de uma das mais tristes páginas da Jurisprudência portuguesa, em que o deficit de atenção e o erro de fundamentação é mais chocante.

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apelo à arma penal do Estado, e que, a partir de certo momento, passaram a afectar, justificando o lançar-se mão do Livro Negro. Ora, os danos (directos e indirectos, sociais e patrimoniais) causados pela “titularidade” ou “fruição” de rendimentos, património e bens não legitimamente adquiridos, nunca como hoje tanto se fizeram sentir, causando desagregação e conflitualidade social, e promovendo outros comportamentos também eles criminalmente ilícitos, como, v.g., os crimes tributários, os crimes patrimoniais e os crimes cometidos no exercício de funções públicas, directamente ou em participação. Precisamente pela convicção da não detectabilidade dos comportamentos ilícitos a montante10. Também inaceitável, logo de princípio, é o argumento de que há, com o enriquecimento ilícito, uma violação do princípio da proporcionalidade. Conforme melhor se apreciará na análise do bem jurídico subjacente a este tipo penal. Tudo o que bem demonstra a urgente necessidade de, dando sequência à promoção da Convenção das Nações Unidas atrás referida, e dentro do quadro constitucional e jurídicocriminal portugueses11, Portugal incriminar todos os que adquiram ou fruam de património incompatível com os rendimentos e bens legitimamente adquiridos.

2. O bem jurídico Do que vem de dizer-se decorre, desde logo e sem grande esforço justificador, qual seja o bem jurídico tutelado por um tipo que preveja e puna o enriquecimento ilícito. Se estivéssemos perante um tipo específico próprio de funcionários ou titulares de cargos políticos, obviamente que o bem jurídico protegido seria, tal como em tantos outros tipos penais, a dignidade, autoridade e o prestígio do Estado, a pureza do exercício das funções públicas e a confiança ou credibilidade do Estado perante a sua própria colectividade. Como bem refere Doutrina portuguesa autorizada relativamente aos crimes de corrupção12, o bem jurídico tutelado nesses tipos é a “autonomia intencional” do Estado, porquanto a conduta proibida viola as exigências de legalidade, objectividade e independência do Estado13/14.

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E é indiscutível na doutrina que a posse pacífica do produto dos crimes contra o patrimónionão afasta que a demonstração da legítima titularidade permita o regresso do bem subtraído à esfera jurídica de onde nunca devia ter saído. 11 Que de forma alguma, como se verá, obstaculiza tal criminalização. 12 Art.ºs 372º e seguintes do Código Penal. 13 Precisamente a este propósito escreveu-se:“Efectivamente, como quer que se designe, existe um bem jurídico com evidente dignidade penal, inerente ao princípio do Estado de direito e com afloramentos expressos noutros lugares da Constituição (p.ex. artigo 266º da CRP), que é a confiança ou credibilidade

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Também se lhe poderia apontar a tutela do bem jurídico da fidelidade do agente ao cargo que exerce, como acontece nos crimes de participação económica em negócio15 ou de abuso de poder16. Todavia, não se tratando de um crime específico, mas de um crime, a esta luz, comum, obviamente que esses bens jurídicos atrás referidos não serão o único objecto de tutela deste novo tipo. Serão, também e como é óbvio, tutelados se o agente da infracção for um funcionário ou um titular de cargo público ou político. Porém, outro e mais lato é o bem jurídico tutelado pelo tipo penal comum do enriquecimento ilícito, uma vez que também se enquadrarão no tipo agentes não dotados das identificadas características ou qualidades especiais17.

do Estado (lato sensu) perante a colectividade e daí decorrente capacidade de intervenção para a realização das finalidades que lhe estão cometidas (bem jurídico mediato da incriminação), que a ocultação da proveniência do património ou rendimentos dos titulares do poder público ou dos intervenientes na gestão de bens e serviços públicos pode pôr em perigo e que legitima o legislador a impor a transparência da situação patrimonial daqueles a quem incumba funcionalmente preparar, manifestar ou executar a vontade do Estado (bem jurídico imediato da incriminação)” – Declaração de Voto do Juiz Conselheiro Vítor Gomes, anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012, cit., p. 2217. 14 No mesmo sentido: “Neste contexto, não é possível afirmar que existe uma indeterminação ou sobreposição relativamente ao bem jurídico tutelado, porquanto o que está em causa não é a protecção de bens ou valores que fundamentaram já a criminalização de outras condutas, mas a responsabilização penal de situações objectivas de enriquecimento desproporcionado em relação aos rendimentos lícitos conhecidos ou declarados, independentemente da determinação do facto ilícito pelo qual esses rendimentos chegaram à posse do agente. E não se vê que falhe aqui a legitimidade jurídicoconstitucional da incriminação. O bem jurídico que parece pretender tutelar-se, em qualquer dos tipos legais em causa, é o da transparência das fontes de rendimento, que tem já diversas concretizações no sistema legal, mormente por via da obrigatoriedade da declaração de rendimentos para efeitos de controlo público da riqueza dos titulares de cargos públicos (…). E não pode deixar de reconhecer-se que se trata de um bem em si mesmo socialmente relevante, com particular reflexo na prevenção geral da criminalidade económica e fiscal, e que, em última análise, radica nos deveres inerentes à funcionalidade e justiça do sistema social, sabendo-se que entre os valores e bens consagrados na Constituição e os bens jurídicos dignos de tutela penal não tem de existir uma relação de identidade, mas apenas uma relação de analogia material.” – Declaração de Voto do Juiz Conselheiro Carlos Cadilha, anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012, cit., p. 2216. 15 Art.º 377º do Código Penal. 16 A este propósito cfr. Miguel Langón e Mauro Rinaldis, En torno al proyecto sobre enriquecimiento ilícito, in AA. VV. Revista de Legislación Uruguaya, Ano II, n.º 5, Montevideo, La Ley, 2011, quando escrevem: “… o que se protege é a objectividade, legalidade e imparcialidade exigível a função pública, o que vincula estas figuras com o desvio do fim de realização dos interesses gerais que tem a dita função, e com o abuso de poder”. 17 E desta forma, aliás, se afasta a crítica feita ao tipo, no Uruguai, por Miguel Langón e Mauro Rinaldis (op. cit.), segundo os quais: “Este tipo de normas, foi criticado, em geral serve para apanhar nas suas redes, em todo o caso, pequenos e vulneráveis funcionários, enquanto que os grandes responsáveis (Ministros, Juízes, Generais, Directores de entes públicos), contam com suficientes recursos de todo o tipo para conseguir iludir o castigo, pois, como diz o vulgo, feita a lei feita a armadilha, e enquando estes poderiam iludir o cerco que supostamente lhes põe a norma, na realidade só se poderia apanhar um

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Cabe assim determinar esse bem jurídico tutelado, porquanto, apesar da crise que reconhecidamente se tem assacado a tal conceito pela doutrina penal um pouco por toda a parte, também opinamos ser exigência da nossa ordem jurídica constitucional criminal que apenas possam criminalizar-se comportamentos contrários a bens jurídicos fundamentais da colectividade. Antes de mais é de referir que este tipo de crime tutelará inequivocamente alguns dos fundamentos base da vida em sociedade, quais sejam a transparência, a verdade e a probidade cidadã no que respeita à titularidade e fruição patrimonial. E numa sociedade de valores – que supostamente ainda somos – poderia mesmo falar-se em probidade, cidadania participativa, ética, democracia, liberdade e igualdade. Senão vejamos18. É conhecido de todos os juristas, e aceite incontestadamente, que a ordem jurídica constitui, além do mais, um sistema de atribuição, a todos e a cada um dos sujeitos de Direito, de direitos e vantagens, também patrimoniais, impondo um correlativo dever geral de respeito de todos os demais relativamente a esses mesmos direitos e vantagens. Por isso se escreve habitualmente que há uma ideia de “confiança geral” associada à noção de património, confiança essa que se traduz no respeito que todos devem ao que integra a esfera patrimonial alheia. Esperamos, assim, todos, que o Estado não viole, com um confisco, a nossa esfera jurídica patrimonial, tal como confiamos, todos, que nenhuma outra entidade, pública ou privada, nos prive do gozo dos respectivos activos, contando assim com a protecção civil e penal dada pelo Estado sempre que alguém tente ou consiga lesar a dita esfera patrimonial. Assim que o direito à propriedade privada beneficie no nosso sistema jurídico de reconhecimento e garantia constitucional, outrotanto sendo garantido o respeito que todas as entidades, incluindo o próprio Estado, têm de ter sobre o património dos sujeitos de Direito. Ora, não pode sustentar-se essa garantia e respeito, sob pena de se erigir em legítimo o abuso de direito, relativamente a património ilicitamente adquirido por quem quer.

segmento determinado de funcionários de menor hierarquia e poder, o que poria em crise a legitimdade, por atentar contra a igualdade, da norma em questão”. 18 De extremo interesse a lapidar posição tomada pelo Juiz Conselheiro Rui Moura Ramos, também em Declaração de Voto anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012, cit., p. 2219, na qual se lê sem tibiezas: “…respondo afirmativamente à questão de saber se as normas sindicadas asseguram a tutela de bens jurídicos, acrescentado a este respeito que os bens jurídicos que justificam a presente incriminação serão os mesmos que suportam outras incriminações plasmadas no sistema jurídico. Estaremos assim perante um bem jurídico compósito, cuja legimidade jurídico-constitucional está assegurada pelos fundamentos que asseguram a legitimidade das normas incriminadoras cuja direta violação conduziu ao enriquecimento que se pretende sancionar. Tal asserção, sendo em si mesma demonstrativa da observância do património valorativo com assento constitucional, não é afetada pela circunstância de o bem que assim se pretende tutelar surgir aqui numa conceção que resulta da concentração dos bens que justificam as referidas incriminações (…)”.

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Pense-se com linear e básico bom senso: pode um qualquer ordenamento jurídico, coerentemente e “em paz” consigo mesmo, outorgar a protecção penal dada por crimes como a Burla ou o Furto relativamente a “património” que o burlado ou furtado claramente adquiriu também ele por Burla ou Furto? Obviamente que não! Ninguém, no seu são juízo, furta um veículo automóvel e, vendo-se ele próprio furtado por um segundo agente criminoso, se dirige a uma esquadra para apresentar queixa. Os próprios tipos penais da burla e do furto, para seguir usando estes exemplos, pressupõem a legitimidade do título aquisitivo da coisa de que o burlado ou o furtado se viram privados pelo comportamento criminoso. Iguais raciocínios são válidos para os instrumentos de tutela cível desse mesmo património. Por outro lado, é também estrutural e radical a todo o sistema jurídico em que vivemos a construção segundo a qual sobre todos impende um dever de verdade fiscal ou tributária. A ninguém é reconhecido um Direito a omitir, ocultar ou sonegar rendimentos e património ao conhecimento do Estado-fisco. E são as próprias ideias de igualdade, de cidadania participativa e de justiça redistributiva ínsitas ao Estado de Direito que impõem que assim seja. Daí decorre, aliás, a legitimidade constitucional da incriminação que no RGIT se faz, por exemplo, da fraude fiscal e da fraude à segurança social (respectivamente art.º 103º do RGIT19 e art.º 106º do RGIT). Aliás, uma parte da legitimação na aquisição e fruição dos rendimentos e patrimónios assenta precisamente neste conhecimento, por parte do Estado, dos rendimentos e patrimónios de todos e de cada um, bem como na correlativa tributação para cumprimento dos fins sociais do património. Assim sendo, como inequivocamente é, encontramos como pilares fundamentais da titularidade e fruição do património, na nossa ordem jurídica constitucional, fiscal e criminal, a transparência, a lealdade, a igualdade e a verdade na respectiva aquisição. Por outras palavras, o contrato social subjacente ao art.º 62º CRP, a todo o direito das obrigações e aos direitos reais, ao direito tributário e que, por fim, é tutelado criminalmente pelo direito penal, é o seguinte: todo aquele que com transparência, lealdade, igualdade e verdade adquire rendimentos e património, beneficiará da protecção que a ordem jurídica dá, à luz da constituição e da lei civil e criminal, ao “titular” do património. Mas correlativamente há que garantir que os rendimentos e o património são adquiridos de modo transparente, leal, igual e veraz.

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Esse tipo p. e p. expressamente a “ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável”, a “ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária”, e a “celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas” – Ou seja, nenhuma dúvida existiu em nenhum jurista no que respeita ao bem jurídico tutelado num tipo que “exige” que os cidadãos declarem com verdade tudo o que auferem, e que os “pune” se ocultam ou alteram factos ou valores relativos àquilo que auferem.

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Sendo assim, o bem jurídico a tutelar por um tipo penal que incrimine o enriquecimento ilícito não poderá ser outro que não a transparência, lealdade, igualdade e verdade na aquisição de rendimentos e património20. Ou, para quem prefira argumentos de autoridade, usar a formulação constante do Voto de Vencido atrás citado de um Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional: a “transparência das fontes de rendimento”. Termos em que não se alcança como pode assacar-se o vício de falta de bem jurídico tutelável a um tipo desta natureza. Há bem jurídico geral para a incriminação do enriquecimento ilícito, e há bens jurídicos específicos para a agravação da mesma incriminação quando os agentes forem detentores das especiais qualidades ou características inerentes à qualidade de funcionários ou à titularidade de cargos públicos. E do mesmo passo que não possa aceitar-se a suposta violação dos princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima, ou subsidiariedade, do direito penal. Não só porque o enriquecimento ilícito não pressupõe qualquer prática criminosa a montante, porque mesmo que ela exista e seja criminalmente punida nada impede que haja objecto de nova repressão com base em mais do que um tipo penal. Tanto mais se estamos em face de bens jurídicos complexos, que o legislador criminal pode tutelar – e se calhar deve – sob diversas perspectivas21.

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Nada há, pois, subjacente a uma incriminação deste jaez no sentido que tem sido alvitrado por algumas correntes (políticas) de oposição a este tipo (sublinhe-se que os grandes opositores à incriminação do enriquecimento ilícito são quase todos eles políticos em exercício de funções, o que não deixa de ser curioso): que se incrimina “por presunção”, porquanto se visaria punir aqueles que têm património e querem manter sigilosa a fonte da respectiva aquisição. Ora, nada há no ordenamento jurídico português, como aliás também inexiste nos demais ordenamentos que nos são vizinhos, que sequer aponte para um direito ou uma expectativa à confidencialidade na aquisição dos rendimentos e do património. Aliás, a perplexidade perante as reacções políticas negativas a este tipo é tanto maior quando se constata que são os mesmos legisladores que aprovam as regras tributárias que obrigam à declaração do auferimento de todos os rendimentos e punem a violação dessa obrigação que agora, nesta sede, entendem que os cidadãos, e maxime os políticos, têm um “direito” à confidencialidade da fonte dos seus rendimentos! No mínimo uma postura de esquizofrenia legislativa. 21 Declaração de Voto do Juiz Conselheiro Vítor Gomes anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012, cit., p. 2217, na qual se lê: “E não é válida a objecção de que relativamente àquele fundamento último a punição é inadequada (i.e., viola a segunda máxima do princípio da proporcionalidade) porque o ‘enriquecimento ilícito’ pressupõe que o ‘mercadejar com o cargo’ já tenha ocorrido. Nem a de que seria desnecessária, por tal conduta ser já objeto de repressão mediante tipos de ilícito penal autónomos. Pondo de lado questões de política criminal, de perfeição jurídica das soluções, ou de estrita dogmática penal, aspetos em função dos quais não cabe ao tribunal decidir, não vejo que o princípio constitucional da proporcionalidade impeça o legislador de conferir tutela a um mesmo bem jurídico, ou um bem jurídico complexivo, mediante uma armadura penal em que um dos crimes tipificados seja funcionalmente ordenado a reprimir ações ou omissões ilícitas que as tipificações já existentes, na prática e numa avaliação pelo legislador democrático que não se apresente como ostensivamente errada, não se revelem idóneas para deter. O reforço da consciência jurídica da comunidade e do seu sentimento de segurança face à efetiva vigência das normas é finalidade primordial da sanção penal e, portanto, também convocável no momento da legitimação da sua cominação abstrata para as ações ou omissões que se escolham tipificar desde que satifaçam os

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3. A conduta típica Quanto à conduta a tipificar afigura-se-nos ser este um tipo em que a circunscrição da matéria da proibição é tão simples e linear como, mutatis mutandis, em tantos outros crimes contra o património ou contra a autonomia intencional do Estado ou contra a pureza do exercício das funções. Vejamos, a título de exemplo, o clássico e milenar crime de burla. No art.º 217º n.º 1 CP estabelece-se que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo (…) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Partindo deste tipo, e antes de mais, constata-se que o apelo ao conceito de “enriquecimento ilegítimo”, muito próximo ao de “enriquecimento ilícito”, existe já na lei penal portuguesa há décadas, sem que alguma vez tenha suscitado qualquer tipo de acalorada oposição por parte seja de quem for. O enriquecimento é ilegítimo, ou ilícito, quando não apresenta justo título, à luz do Direito, i.e., à ordem jurídica na sua globalidade. E é assim tão claramente nos crimes de burla que os Autores nem sequer se preocupam com grandes justificações sobre a densificação deste conceito. Como diria La Palisse, é ilegítimo, porque não é legítimo. É ilícito, porque não tem causa lícita conhecida22/23. Ademais, a “justificação criminal” de um comportamento por se encontrar legitimado pela ordem jurídica considerada na sua globalidade é de tal sorte linear e compreensível por toda e qualquer pessoa, que o próprio art.º 31º n.º 1 CP, relativo a causas de justificação do comportamento, a erige como a primeira e geral causa de justificação dos comportamentos requisitos do princípio da legalidade penal. Ora, neste género de atuação ilícita, a conduta do agente tem uma forte componente ‘racional’ ou de cálculo (custo/benefício), sendo a previsão de que as dificuldades de prova da origem ilícita do rendimento não facilitarão o seu aproveitamento, fator fortemente desmotivador da violação dos deveres destinados a assegurar a probidade (…). Deste modo, mesmo que fosse exacto (…) que a nova tipificação pressupõe necessariamente a origem ilícita do enriquecimento e se destina a funcionar como mero ‘sucedâneo’ de outras incriminações e visa tutelar os mesmos bens jurídicos, não estaria o legislador impedido de consagrá-la”. 22 Aliás, antecipando um outro problema levantado pelos sequazes da inconstitucionalidade abstracta da incriminação do enriquecimento ilícito, é curioso nunca ninguém ter levantado a questão da inversão do ónus da prova subjacente aos crimes de burla, quando impende aí sobre o Arguido, inequivocamente, o ónus de pelo menos levantar a dúvida suficiente no espírito do julgador acerca da legitimidade do enriquecimento emergente do comportamento investigando como de burla. 23 Germano Marques da Silva, Sobre a incriminação do enriquecimento ilícito (não justificado ou não declarado) – Breves considerações nas perspectivas dogmática e de política criminal, in Homenagem de Viseu a Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, Coimbra, p. 51, apud Acórdão do Tribunal Constitucional citado, p. 2218: “Não é, por isso, constitucionalmente ilegítimo, que, ‘partindo da circunstância factual objectiva do enriquecimento desproporcionado aos rendimentos lícitos conhecidos ou declarados, se possa construir uma incriminação que previna e sancione o enriquecimento por causa desconhecida”.

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criminosos24, assumindo assim uma função cardeal na teoria da infracção e sua aplicação quotidiana por todos os práticos do Direito. Assim sendo, como é, é perfeitamente admissível, constitucional e desejável que se incrimine todo aquele que adquirir ou fruir de património incompatível com os seus rendimentos e património legitimamente adquiridos. Significa, por outras palavras, que estamos perante alguém que se apresenta como titular ou frui de rendimentos ou património sem origem conhecida. Em suma, a conduta proibida traduzir-se-á, exclusivamente, na aquisição ou fruição de património sem origem lícita conhecida e que seja incompatível com os rendimentos e demais património que sejam conhecidos porque licitamente adquiridos ou fruidos. A acção é perfeitamente determinada. É um comportamento humano dominado ou dominável pela vontade. Não há pois uma responsabilização sem facto. Bem ao invés. Para tornar a matéria da proibição isenta de lacunas de punibilidade, deverá incriminar-se não só a aquisição ou fruição de património directamente, mas também aquelas que ocorram por interposta pessoa, seja ela uma outra pessoa singular ou uma pessoa colectiva. Dada a precisão típica de uma tal circunscrição, não se antevê qualquer dos vícios de inconstitucionalidade material que podem ser assacados a tipos penais abertos ou em branco, muito menos se podendo acompanhar o juízo de inconstitucionalidade com que o Tribunal Constitucional feriu letalmente o Decreto n.º 37/XII da Assembleia da República, apesar de aqui não se acompanhar na íntegra a proposta legiferante constante desse Decreto. Parta-se de um tipo incriminador que circunscrevesse a matéria da proibição nos moldes seguintes: “Quem, por si ou por interposta pessoa, singular ou colectiva, adquirir, possuir ou fruir de rendimentos ou património incompatíveis com os seus rendimentos e património legitimamente adquiridos, possuídos ou fruidos, é punido…”. Na eventualidade de querer clarificar-se que a incompatibilidade resulta da falta de origem lícita determinada desses mesmos rendimentos ou património detectados, poderia acrescentar-se essa mesma exigência ao tipo, embora se nos afigure à partida ser uma exigência acrescida redundante, numa correcta interpretação do tipo, além de desnecessária, para assegurar a precisão típica exigida a todos os tipos penais25.

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Art.º 31º n.º 1 CP – “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”. 25 Aliás, o Decreto n.º 37/XII da Assembleia da República, desnecessariamente a nosso ver, expressamente acrescentava essa exigência da “falta de origem lícita determinada”, o que motivou, só por si, uma série de considerações no Acórdão n.º 179/2012, também elas não merecedoras, a nosso ver e s.d.r., de encómio dogmático. Com efeito, pode ler-se em tal Acórdão, como conclusão sobre esta questão: “Acresce que a construção do tipo não permite a identificação da acção ou omissão que é

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A conduta típica, portanto, será a de adquirir, possuir ou fruir de rendimentos ou património incompatíveis com os seus rendimentos e património legitimamente adquiridos, possuídos ou fruídos. Por outras palavras, será adquirir, possuir ou fruir de rendimentos ou património sem causa lícita determinada (daí a desnecessidade de incluir esta mesma conclusão no tipo, por ser redundante). São legitimamente adquiridos, possuídos ou fruídos todos os rendimentos e património que os contribuintes, no cumprimento da obrigação de declarar ao Estado-Fisco (já existente no ordenamento e coberta por sanção criminal), efectivamente declararam, manifestaram e não ocultaram, tendo relativamente aos mesmos ganho a legitimação Estatal do respectivo gozo, fruição e titularidade. Ora, se quem quer, adquire, possui ou frui de rendimentos ou património que é incompatível com os rendimentos e património que declarou e manifestou no cumprimento de uma obrigação cuja violação é também penalmente sancionável, obviamente que se terá de concluir que está na titularidade, posse ou fruição de rendimentos ou património sem origem lícita determinada, i.e., conhecida. E tal poderá ter surgido por dezenas de causas possíveis (legais, ilegais ou mesmo criminosas), e ao caso totalmente irrelevantes26. Temos uma conduta típica não só perfeitamente circunscrita, como inclusivamente concentânea com o demais enquadramento normativo existente já no ordenamento jurídico civil, tributário e penal. Por todos, o já citado regime jurídico-penal da fraude fiscal e da fraude à segurança social. Usando o descritivo apresentado no já citado aresto do Tribunal Constitucional, com as alterações decorrentes do que atrás se disse relativamente à desnecessidade de incluir no tipo a referência a “sem origem lícita determinada”, porque redundante, e apesar de não se acompanhar, como se disse, a descrição típica gizada pela Assembleia da República no dito Decreto, a conduta típica circunscrita seria, grosso modo, a seguinte: “adquirir património (…) proibida, com o que fica violada a exigência de determinação típica do artigo 29º n.º 1 da Constituição…” (cit., p. 2214). Que assim não é tentará demonstrar-se em seguida. 26 Precisamente porque no Uruguai inexiste uma obrigação de declaração integral ao Fisco de tudo quanto se aufere, é que autores como Miguel Langón e Mauro Rinaldis (op.cit.), podem afirmar: “O crime que se postula consagra efectivamente um crime de suspeita: o Estado não sabe, nem pode, nem quer determinar o que é que efectivamente se passou (…) e opta, por comodidade, preguiça e desalento, por tipificar como crime o mero facto objectivo do enriquecimento, devolvendo ao agente a obrigação (uma verdadeira prova negativa ou diabólica), de justificar a origem desses dinheiros e activos, com o que se viola a reserva da intimidade pessoal, além de se o colocar no dilema de ou confessar o crime (se a origem tem tal natureza) ou de enfrentar a condenação por um facto que, em si mesmo, é crime só porque assim o determina o legislador, constituindo-se num caso típico de crime de desobediência, de mera violação de um ‘dever’, pela recusa de informar…”. Diferentemente em Portugal, por várias razões: porque há a obrigação, criminalmente punida em caso de violação, de nada ocultar e tudo declarar, no que respeita a rendimentos (não existe qualquer reserva da intimidade no que a tal respeita); porque outros casos há, como se vê no texto, de opção entre contribuir para a investigação ou cometer uma desobediência; porque nada impede a comissão de um crime por violação de um dever (é essa a base geral da incriminação das omissões puras).

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possuir património (…) ou deter património (…) incompatível com rendimentos e bens legítimos”27. E segue o Tribunal Constitucional com considerações que cabe aqui sublinhar, fazendo-se porém as mesmas adaptações atrás enunciadas:  

 



“A descrição dos elementos típicos supõe que o agente adquira, possua ou detenha património, entendendo-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efectuadas no país ou no estrangeiro (…) incompatível com os seus rendimentos ou bens legítimos, entendendo-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, ou, tratando-se de funcionário ou de titular de cargo político ou de alto cargo público, todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declarações de património e rendimentos (…)”28.

Em face da descrição típica que o Tribunal Constitucional tão bem densificou29, nunca poderia retirar-se a conclusão – que como tal é, s.d.r., manifestamente errada – de que não há conduta típica suficientemente determinada e que “o que se pretende punir é a incompatibilidade existente entre o património adquirido, detido ou possuído e os rendimentos e bens legítimos do agente, património esse que, não tendo origem lícita determinada, indicia que o acréscimo patrimonial adveio da prática anterior de crime”30. É que o que se pretende punir é a aquisição, posse ou fruição de património sem origem lícita determinada, e não qualquer incompatibilidade. A incompatibilidade é a condição que permite indiciar a ilicitude do enriquecimento punível.

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Cit., p. 2214. Idem, ibidem. 29 É, por isso, incorrecto afirmar-se, como se faz no acórdão do TC, que “a construção do tipo não permite a identificação da acção ou omissão que é proibida”. É-o, facilmente, sendo até uma acção de uma simplicidade arrebatadora: “Quem … adquirir, possuir ou fruir de rendimentos ou património incompatíveis com os seus rendimentos e património legitimamente adquiridos, possuídos ou fruidos”. 30 Idem, ibidem. 28

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Assim que, verificando-se situação de omissão de declaração de rendimentos licitamente adquiridos de acordo com o ordenamento jurídico na sua globalidade, não esteja preenchido este tipo, mas sim o de fraude fiscal, por omissão de declaração devida. Assim, também, que seja totalmente incompreensível que o Tribunal Constitucional tenha afirmado que “o acréscimo patrimonial adveio da prática anterior de crimes”, pois pode ter advindo da prática de crimes ou de uma série de outras situações perfeitamente legais, que uma vez apuradas afastam o preenchimento do tipo, deixando apenas a omissão de declaração por ser punida, em caso de verificação das condições exigidas no tipo penal da fraude fiscal31. Por fim, também a previsão de que a punição do tipo penal de enriquecimento ilícito não prejudicava a aplicação de “pena mais grave (…) por força de outra disposição legal” não “determina” que a fonte do rendimento ilícito tenha sido a prática de um crime: pode tê-lo sido, mas pode igualmente não o ter sido. A previsão da situação da prática de outro crime sancionável com pena mais grave não obriga a que em todos os casos crime mais grave tenha sido praticado. Bem ao invés, como é próprio de uma ressalva de tal natureza. Vistos e ponderados todos os erros em que incorreu a decisão em análise, chega-se à conclusão, óbvia, de que é também totalmente falha de sentido a conclusão final do aresto a este respeito: “…se a finalidade é punir, através da nova incriminação, crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não há um bem jurídico claramente definido…”. Errados os pressupostos, e errados os raciocínios, erradas são as conclusões, quer quanto à existência ou não de bem jurídico tutelável, quer no que concerne à suficiente precisão típica da conduta a circunscrever para consubstanciar a matéria de proibição. Q.E.D.

4. Os “espantalhos” da inversão do ónus da prova e da violação da presunção de inocência Tem sido também agitado como argumento contrário a um tipo desta natureza e com esta configuração que se estaria necessariamente a inverter o ónus da prova. E tal posição tem sido assumida não só em Portugal, mas em muitos países, da Europa, às Américas, ao Oriente. Assim não é, todavia, como se procurará demonstrar, principalmente à luz de um ordenamento jurídico, e jurídico criminal, que já comanda uma obrigação de declaração de

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É este, aliás, um dos momentos do Acórdão do Tribunal Constitucional que demonstram à saciedade que tal Tribunal não fez uma análise suficientemente atenta ao tipo penal que tinha à sua frente para apreciar, limitando-se a transpor para o aresto o que eram vozes públicas, desconhecedoras de todos os matizes da discussão dogmática em curso pelo Mundo, acerca do tema em apreço.

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todos os rendimentos adquiridos por todo e qualquer contribuinte, punindo criminalmente a violação desse comando. Partindo da circunscrição típica atrás sugerida, pergunte-se: a quem cabe a prova dos rendimentos e património legitimamente adquiridos, possuidos ou fruídos? Ao Ministério Público, obviamente. E a quem caberá convencer o julgador da incompatibilidade entre esses rendimentos e património detectados, sem origem lícita conhecida, com os outros atrás referidos? Igualmente ao Ministério Público. Onde, então, está a inversão do ónus da prova? Em parte alguma. Dir-nos-ão: mas pode um qualquer sujeito de direito querer ocultar a fonte ou origem de um determinado rendimento ou património! E se o quiser fazer, então para demonstrar a licitude da respectiva aquisição ou fruição, terá de revelar a fonte ou origem respectiva. E com isso se estará a exigir a participação do Arguido na prova a ocorrer em audiência. Nada de mais errado. Vejamos: se alguém está a ser acusado de homicídio, pode optar por se defender ou por não se defender. Mesmo que a morte tenha sido causada a pedido da vítima, se o Arguido tal não invocar, será condenado nos termos do disposto no art.º 131º ou 132º do CP, e não com base no art.º 134º CP (o mesmo para os art.ºs 135º, 137º, 138º, etc.). Igual raciocínio para as causas de justificação do comportamento, ou para as causas de exclusão da culpa. Estar-se-á a inverter o ónus da prova sempre que se exija ao Arguido, para a sua absolvição ou alteração do tipo penal enquadrador da factualidade, que demonstre a verificação de uma outra determinada factualidade? Obviamente que não. Situação ainda mais grave de “sancionamento” do exercício do direito ao silêncio ocorre no direito estradal, no âmbito do qual a recusa do automobilista em participar nos procedimentos de controle de alcool no sangue, leva-o a incorrer ipso facto num crime de desobediência. Aqui mais do que se querer que o “arguido” deixe o seu próprio corpo incriminá-lo, sanciona-se criminalmente com o tipo da desobediência o facto de o Arguido exercer o Direito ao silêncio. E nesse âmbito é vasta a jurisprudência constitucional portuguesa que não se incomoda com o facto de o direito ao silêncio legitimamente exercido conduzir imediatamente à prisão por desobediência. Também relevante a este propósito o tipo penal da omissão de auxílio. Com efeito, além de se tratar da incriminação de uma omissão (inicialmente tão discutida na doutrina penal como sendo suficiente “acto” do qual fazer decorrer responsabilidade criminal, recorde-se), só existe uma maneira de o arguido em processo com este objecto afastar a respectiva responsabilidade criminal: alegar com credibilidade suficiente que efectivamente agiu nos moldes que satisfaçam os critérios de exigibilidade que ao caso quadrem ou que a inacção foi imposta por circunstâncias que igualmente mereçam a tutela do direito – assim o art.º 200º n.º 3, cujo

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preenchimento ficará necessariamente a cargo do Arguido que queira beneficiar da não punibilidade da conduta. Ora, será que o facto de se “exigir” a participação do Arguido, no esclarecimento do que fez e por que fez, constitui uma inversão de ónus da prova que fira de inconstitucionalidade o tipo penal do art.º 200º do Código Penal? Afigura-se claramente que não. A propósito deste tipo foi escrito: “O fundamento legitimador do dever geral de auxílio (…) é a solidariedade humana que deve vincular todo e qualquer membro da sociedade.”32. Ora, o facto de o Arguido num processo com este objecto ter de se defender invocando que lhe não era exigível o comportamento, ou que estava em erro sobre a situação de perigo, ou mesmo sobre a necessidade efectiva de auxílio da vítima, não constituem, nem nunca ninguém tal imaginou, casos de inversão de ónus da prova. E todavia, se o Arguido não se defender, a condenação, uma vez demonstrado pela acusação o “preenchimento” positivo dos elementos do tipo, está garantida. Enfim, e regressando ao tipo do enriquecimento ilícito, como expressamente referido retro, parte-se em todo este argumentário de uma petição de princípio, qual seja, a de que os sujeitos de direito têm um direito a manter ocultas, dissimuladas ou desconhecidas as fontes dos seus rendimentos ou património, quando obviamente que assim não é no nosso quadro jurídico e constitucional vigente. É também a “solidariedade humana”, no plano da justiça redistributiva da propriedade privada, que impõe a transparência e a verdade no que às fontes de rendimento respeita. Ao invés, vigora o princípio oposto: o de que todos os rendimentos e património têm de ser declarados ao Estado, que decidirá depois, com base nas leis tributárias, se tributa ou não esse mesmo activo patrimonial. E a simples violação dessa obrigação de declaração, por mais legítima que tenha sido a fonte do rendimento, constitui fraude fiscal… Então, sendo um qualquer sujeito acusado de estar a fruir de um bem cuja origem na sua esfera jurídica é desconhecida, e que é incompatível com os rendimentos legitimamente adquiridos e por si declarados ao Estado, estar-se-á a criar uma situação de inversão de ónus de prova? O ónus passa do Ministério Público para o Arguido pelo facto de este ter de demonstrar a causa legítima da aquisição daquele activo incompatível com os demais rendimentos conhecidos? Linearmente que não. Se o bem em questão não poderia ter sido adquirido através das fontes de rendimentos conhecidos, então significa que para o ordenamento jurídico se está perante um enriquecimento ilícito que como tal deve ser perseguido e punido. Independentemente da respectiva fonte ser a prática de um crime ou o legítimo estipêndio por um trabalho cuja fonte se não quer revelar.

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Américo Taipa de Carvalho, Comentário ao art.º 200º CP, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 846. Diga-se, “a talho de foice”, que bem jurídico mais “genérico” que este é difícil de imaginar, e ninguém questiona a sua imperiosa tutela.

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O agente apenas terá de optar, como se de um qualquer outro crime se tratasse, em alegar e demonstrar a existência de uma fonte legítima ou de uma causa de justificação para a aquisição e fruição desse património de origem desconhecida, ou não. E ao fazê-lo está apenas a ser-lhe exigido o que já se exige relativamente a TODOS os outros crimes: que a factualidade que afasta o preenchimento do tipo e/ou que os elementos das causas de justificação e de exculpação sejam “invocados” pelo visado pelo processo penal33. Questão diferente é saber se é necessário que o Arguido demonstre cabalmente a verificação das causas de justificação e/ou exculpação, ou se lhe basta gerar no julgador uma dúvida razoável sobre a verificação destas, sendo a boa doutrina esta última. Inexiste, pois, associado a este tipo penal, qualquer genética inversão de ónus de prova que gere a respectiva inconstitucionalidade. Consequentemente, e pelas mesmas razões, existe tanta violação da presunção de inocência neste tipo como em qualquer outro tipo penal. Aliás, a lei criminal geral, seus princípios e estrutura, e a lei processual penal, com seu travejamento e características, não são excepcionadas em nada com a existência deste tipo penal. Uma vez mais vejamos: há alguma inocência que deixe de ser presumida pelo facto de se incriminar a titularidade ou fruição de património e/ou rendimentos incompatíveis com o património conhecido e oficialmente é declarado? Bem ao invés: não há nenhuma presunção de culpabilidade. Há uma constatação de facto. Como há constatação de facto quando na cena do crime se vê “A” com a arma fumegante na mão e “B” deitado por terra sem vida; ou quando se apura que “C” deixou “D” afogar-se sem que o tenha tentado salvar; ou se escuta “E” a dirigir palavrões a “F”; ou ainda, quando se apura que “G” ocultou, porque não declarou ao Fisco, a percepção de rendimentos do seu comércio ou labor. O que há é indícios da prática dos crimes. Se foram ou não praticados só a investigação, e a prova produzida em julgamento, o determinarão. Não há presunção de culpabilidade, nem há presunção de ilicitude, maior do que aquela que existe em toda e qualquer outra factualidade que seja investigada e no âmbito de cujo procedimento seja prolatada uma acusação pela prática de um determinado crime. Por isso mantêm plena e intocável validade as palavras de Figueiredo Dias: “à luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitam ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos ‘à dúvida razoáel’ do tribunal, também não possam considerar-se como ‘provados’. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o Tribunal a reunir as provas neceessárias à decisão, logo se compreende que a falta 33

E sublinhe-se que se diz “invocados”, e não “plenamente provados”, que é coisa bem distinta. Bastará a invocação em moldes de suficiente credibilidade para gerar a dúvida bastante no espírito do julgador. Bastará, portanto, impedir a formação da convicção “beyond reasonable doubt”.

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delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo”34. Por seu turno, violar-se-ia o princípio nemo tenetur se ipsum accusare se se compelisse, para a condenação, o Arguido a contribuir positivamente para a sua responsabilização. Ao invés, no caso vertente, o Arguido mantém inteiro controlo e disponibilidade sobre querer ou não desvelar a fonte do enriquecimento. Se quer contribuir ou não para o processo, não será nunca para a sua condenação, mas apenas para a sua ilibação perante o material probatório carreado pelo Ministério Público para os autos35. Todos os elementos do tipo cujo preenchimento é invocado pelo Ministério Público na acusação terão de ser, por ele próprio, Acusador, demonstrados em julgamento, sob pena de a Acusação ser julgada improcedente, com a consequente, e correcta, absolvição do Arguido. V.g., un non liquet quanto à existência de discrepância entre a titularidade de um Ferrari e os rendimentos declarados pelo agente ao Fisco não poderá nunca senão levar à absolvição do Arguido. Ou seja, ao invés do que foi afirmado pelo Tribunal Constitucional no aresto que temos vindo a citar, “a formulação do tipo”, e o correcto entendimento do mesmo à luz dos cânones da teoria da infracção e do ordenamento jurídico-constitucional penal, “impede o entendimento de que verificada a incongruência entre o património e o rendimento, ela é qualificada de enriquecimento ilícito sem ser feita a demonstração positiva da ausência de toda e qualquer causa lícita”36. Ao Ministério Público caberá fazer a demonstração positiva da titularidade, posse ou fruição de certo património, bem como a demonstração positiva da incompatibilidade de tal situação com o património e/ou rendimento legitimamente adquiridos pelo Arguido, o que pode mesmo ser prova de extrema complexidade prática. Incorrecto é, pois, afirmar que “está-se a presumir a origem ilícita da incompatibilidade e a imputar ao agente um crime de enriquecimento ilícito”37/38. Nenhuma origem ilícita é 34

Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, Polic., Coimbra, 1988-89, p. 145. 35 Daí ser completamente inconcebível o teor do art.º 10º do Decreto 37/XII da Assembleia da República sujeito à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional. 36 Acórdão n.º 179/2012, cit., p. 2215. 37 Idem, ibidem. Tal como incorrecto é o afirmado no Voto de Vencido em que se lê: “formularia, no entanto, um juizo de inconstitucionalidade, por violação dos direitos de defesa, por considerar que o tipo legal, tal como está construído, impõe ao Arguido a iniciativa da alegação e prova em relação a factos que integram os elementos constitutivos do crime, violando o direito ao silêncio em termos que representam uma inversão do ónus da prova” (Senhor Conselheiro Carlos Cadilha, p. 2216). Pergunta-se: o pedido da vítima, v.g., não é elemento constitutivo do tipo do art.º 134º? Gera inconstitucionalidade do mesmo por violação dos direitos de defesa do Arguido? Ou achar-se-á, por mero acaso, que aí a

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presumida. Tem de ser demonstrada a titularidade de um património ou a sua fruição, demonstrado igualmente o que são o património e rendimentos legitimamente adquiridos, e demonstrada outrossim a incompatibilidade entre estes e aquele… e só assim se imputa ao agente a prática de um crime de enriquecimento ilícito. É exactamente o que acontece, como atrás demonstrado, com o crime de omissão de auxílio, com os tipos penais de homicídios privilegiados, ou mesmo do homicídio simples, por afastamento do qualificado, etc.

5. Os argumentos de direito comparado Apesar da respectiva fragilidade dogmática, como tal parece ser uma piéce de résistence do julgamento de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal Constitucional, não pode deixar de se apreciar sucintamente o suposto “argumento” de direito comparado contrário à incriminação do enriquecimento ilícito. Com efeito, é um facto que em Espanha, Itália, Alemanha, não existe um tipo de enriquecimento ilícito, como facto é também que o tipo penal existente em França39 não é igual àquele que em Portugal se pretendeu instaurar. Mas a questão não pode deixar de colocar-se: a realidade sociológica, a que se aludiu logo no início deste escrito, é a mesma nestes Países “nossos vizinhos” na Europa? A situação real em França, no que a enriquecimentos ilícitos respeita, será tão mais grave do que em Portugal que justifique a incriminação lá e a desaconselhe cá? Trata-se de um argumento verdadeiramente espantoso, utilizado pelo Tribunal Constitucional no aresto que vem sendo citado, porquanto ou existem indicadores de política criminal que aconselham a existência da incriminação, num determinado Estado, ou não há. E não será, por certo, o facto de Espanha não ter o tipo, que deverá influenciar o legislador criminal português, ou o Tribunal Constitucional de Portugal. Ademais, é curioso, para dizer o mínimo, o Tribunal Constitucional recorrer ao argumento de direito comparado sem efectivamente fazer o que se impõe quando se raciocina em matéria

inconstitucionalidade não existe porque a “participação do arguido” serve para “degradar” a responsabilidade constante dos art.ºs 131º ou 132º? É que o art.º 134º é um tipo autónomo com elementos constitutivos próprios e auto subsistentes. Só uma errónea concepção do que sejam factos que integram elementos constitutivos do crime, e uma errada leitura do funcionamento do tipo de enriquecimento ilícito, podem levar a semelhante tipo de conclusão. 38 Idem, ibidem: “… o arguido não fica dispensado do ónus da prova, visto que se lhe impõe demonstrar, sob pena de ser penalmente responsabilizado, que o património adquirido tem uma origem lícita determinada, ainda que a sua proveniência não se encontre justificada através dos rendimentos revelados pelas declarações fiscais (…). O silêncio terá sempre uma consequência desvantajosa na medida em que não permite contraditar a prova negativa da origem lícita” 39 Art.º 321-6 Code Pénal, que impõe claramente um dever, sobre todos, de justificarem as fontes de rendimentos adequadas ao respectivo trem de vida ou a origem de um bem.

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de direito comparado: os institutos não podem ser comparados isolados, mas integrados no respectivo sistema. Será pelo facto de inexistirem citações por correio registado no Reino Unido e nos Países Nórdicos que as deveremos abolir em Portugal? Ou atendendo à experiência lusa de que os portugueses por regra “não recebem” cartas que não sejam registadas – manifestação de uma indiosincrasia que também se manifesta na ocultação dos rendimentos, sublinhe-se – deve manter-se tal prática processual? Apesar de em toda a Europa, rectius, em todo o Mundo, se manter durante décadas a punição com a pena de morte, em Portugal tal sanção foi eliminada. Terá sido certamente, de acordo com o padrão de juízo dos Conselheiros do Tribunal Constitucional português plasmado no Acórdão n.º 179/2012, um erro histórico… de que hoje nos orgulhamos profundamente, apesar de ser facto totalmente desconhecido dos juristas dos Países que nos são vizinhos. A Finlândia, o Reino Unido e os Estados Unidos consideraram, em abstracto, afirma o aresto apreciando, que uma incriminação do enriquecimento ilícito seria, respectivamente, desnecessária ou violadora do princípio da presunção de inocência. Talvez seja, efectivamente, desnecessária na Finlândia, um dos países com maior grau de transparência e verdade fiscal e menor índice de corrupção. E quem sabe os juristas Britânicos, e dos Estados Unidos, não consigam conceber um tipo, em abstracto, que não viole o princípio da presunção de inocência. Será isso causa bastante para que, sendo necessário em Portugal tal tipo, não nos esforcemos por construir um tipo que respeite o património comum do ocidente no que respeita ao Processo Penal? Por fim, o aresto refere ainda que alguns Estados admitem a incriminação, arrolando HongKong e Macau (que não são Estados), Chile, Argentina40, El Salvador, Equador e China. E, acrescentaríamos nós, a Colômbia, o Perú41, o México42 e o Paraguai43. Já na República Federativa do Brasil uma Comissão de quinze juristas instituída pelo Senado aprovou um texto para o novo tipo penal em 23 de Abril de 2012.

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Art.º 268º (2) do Código Penal Argentino, que pune o enriquecimento ilícito com pena de 2 a 6 anos e confisco de 50% a 100% do enriquecimento, além de inabilidade absoluta e perpétua para o exercício de cargo público (“…el que al ser debidamente requerido, no justificar la procedencia de un enriquecimiento patrimonial apreciable suyo o de persona interpuesta para disimularlo, ocurrido con posterioridad a la asunción de un cargo o empleo público y hasta dos años después de haber cesado en su desempeño. Se entenderá que hubo enriquecimiento no sólo cuando el patrimonio se hubiese incrementado con dinero, cosas o bienes, sino también cuando se hubiesen cancelado deudas o extinguido obligaciones que lo afectaban. La persona interpuesta para disimular el enriquecimiento será reprimida com la misma pena que el autor del hecho”). Aliás, a Constituição Argentina, no respectivo art.º 36º dispõem que “Atentará contra el sistema democrático quien incurriere en grave delito contra el Estado que conlleve enriquecimiento, quedando inhabilitado por el tiempo que las leyes determinen para ocupar empleos públicos”.

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Todos os identificados países da América do Sul têm vivido um amplo e profundo debate, de elevado nível dogmático, relativamente a tudo quanto no aresto do Tribunal Constitucional é discutido44. E é inegável que a proximidade sociológica de tais países com Portugal, no que a

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O art.º 401º do Código Penal Peruano pune o enriquecimento ilícito de funcionário com penas entre os 5 e os 10 anos, ou mesmo até aos 18 anos se o funcionário tiver ocupado “um cargo de alta direcção em entidades da administração pública ou empresas estatais”. Salienta a doutrina que o primeiro indício de enriquecimento ilícito observa-se quando o património pessoal do funcionário é notoriamente superior à sua declaração de bens e rendimentos obtidos em virtude do seu salário ou honorários. Sobre o ambiente sociológico no Perú, é interessante o escrito de Alejandro F. Loarte, Enriquecimiento Ilícito: la ley, la norma y la excepción, in http://www.telesurv.net/noticias/contexto/895/apra-rosales-unatraicion-al-peru/, no qual a dado passo se lê: “Si la ley fuera aplicada com la ceguera propia de una verdadera justicia el país se sumiría en un sustancial vacío de poder. Pocos servidores públicos se salvarían”. 42 O art.º 224º do Código Penal Mexicano define o enriquecimento ilícito nos moldes seguintes: “quando o servidor público não puder justificar o legítimo aumento do seu património ou a legítima procedência dos bens em seu nome ou daqueles relativamente aos quais aja como dono”. A sanção, além do confisco dos bens obtidos em virtude de ilícito enriquecimento e da proibição de exercício de cargos públicos por períodos variáveis, é a pena de prisão de 3 meses a 2 anos ou de 2 a 14 anos, consoante o enriquecimento seja inferior ou superior a cinco mil vezes o salário mínimo diário vigente no distrito federal em que o agente actuou. 43 Decreto n.º 448 de 18 de Março de 1940, que previa penas de 1 a 10 anos, com inibição de exercício de funções por igual período. 44 A título meramente exemplificativo, citem-se os seguintes: Rubén Maciel Guerreño, Aspectos inconstitucionales del tipo penal de enriquecimiento ilícito, Monografia presentada en el marco del Curso de Postgrado sobre Derecho Penal Económico, dirigido por el Prof. Dr. Jorge Eduardo Boumpadre, Universidade Nacional del Nordeste (UNNE), Corrientes, Argentina, 2003; Efraín Torres Chaves, El enriquecimiento ilicito, in Instituto Latinoamericano de las Naciones Unidas para la Prevención del Delito y el Tratamiento del Delincuente, Ano 5, n.ºs 13-14, pp. 68-73; Jorge A. Pérez López, El delito de enriquecimiento ilícito y su tratamiento en la doctrina y norma sustantiva, in Derecho y Cambio Social, 01/07/2012 (www.derechoycambiosocial.com); Jorge Eduardo Boumpadre, Delitos contra la administración pública – Doctrina y Jurisprudencia, Mario A. Viera Editor, Corrientes, 2001; Emílio Camacho e Luis Lezcano Claude, Comentario a la Constitución. Tomo II. Homenaje al Décimo Aniversario, Corte Suprema de Justicia, Assunción, 2002; Edgardo Alberto Donna, Delitos contra la administración pública, Rubinzal-Culzoni Editores, Buenos Aires, 2002; Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón – Teoría del garantismo penal, 4ª Ed., Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez et allii, Editorial Trotta, Madrid, 2000; Oscar Paciello Candia, Nullum crimen sine lege. A propósito de la tentativa de aplicar un decreto fascista en un régimen que busca instaurar la democracia. El Decreto n.º 448, Ed. del autor, Asunción, 1989; Justo José Prieto, Prevención y represión del Enriquecimiento ilícito, in Revista Jurídica Paraguaya La Ley, T. 12, ano 1989, pp. 677 e ss.; Marcelo A. Sancinetti, El delito de enriquecimiento ilícito de funcionario público. Un tipo penal violatorio del Estado de Derecho, 2ª Ed., Ad Hoc, Buenos Aires, 2000; Julio Cesar Vasconsellos, El Decreto n.º 448 del 18 de marzo de 1940 y su actual aplicabilidad, in Revista Jurídica Paraguaya La Ley, T. 12, ano 1989, pp. 681 e ss.; Jorge Luis Villada, Delitos contra la función pública, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1999; José Santiago Villarejo, Acerca de un tema actual. El Decreto 448/40. Sobre enriquecimiento ilícito del funcionario público, in Revista Juridica Paraguaya La Ley, T. 13, Ano 1990, pp. 739 e ss.; Milton Hugo Cairoli Martínez, El Derecho Penal Uruguayo y las nuevas tendencias dogmático penales, Montevideo, Fundación de Cultura Universitaria, 2001; Miguel Langón e Mauro Rinaldis, En torno al proyecto sobre enriquecimiento ilícito, in AA. VV. Revista de Legislación Uruguaya, Ano II, n.º 5, Montevideo, La Ley, 2011.

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estas matérias respeita, é seguramente maior do que as semelhanças de Portugal com a França, o Reino Unido, os Estados Unidos, a Alemanha ou a Finlândia45. Assim que um verdadeiro estudo de direito comparado com os referidos países “irmãos” da América do Sul talvez tivesse sido mais frutuoso em Portugal, e tivesse até permitido à jurisdição constitucional furtar-se a alguns dos lapsos que nas linhas antecedentes se foram deixando anotados.

6. Conclusão Não pode, pois, dizer-se, no âmbito do direito penal português, como se viu ser dito pelo Tribunal Constitucional e em vários artigos jornalísticos de opinião46, que existe com este tipo penal uma genética violação da presunção de inocência, através ou independentemente da alegada inversão do ónus da prova, uma violação do princípio da determinabilidade e da tipicidade, ou uma violação dos princípios da legalidade, da igualdade ou da proporcionalidade. Tudo isso são fantasmas agitados com um propósito que só pode ser o de tentar evitar a criminalização, que é urgente e se impõe, dos comportamentos claramente ilícitos e socialmente danosos a que atrás se fez referência e se procurou circunscrever. Em matéria desta gravidade e necessidade, esses sim são comportamentos que se crê serem de evitar.

Paulo Saragoça da Matta Lisboa, 25 de Janeiro de 2013.

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Em Espanha acaba de ser tornado público mais um caso paradigmático: um tesoureiro de um partido político enriqueceu ilicitamente com milhões de euros, usando parte para pagar a altos cargos do partido, com esse mesmo dinheiro “sujo”, proveniente de empresários da construção civil. Em Portugal muito mais casos seriam perseguidos, não fora precisamente um adormecimento generalizado. Se a Justiça não se reinventar e não se consciencializar do seu papel único no futuro colectivo, está condenada a ser engolida por um clamor revolucionário que certamente se desencadeará. Aconteceu com violência na Revolução Francesa, na Revolução Americana e na Revolução Bolchevique… e acontecerá novamente, se efectiva Justiça não for garantida aos Povos. 46 Cfr., por todos, Alberto Martins, A ilicitude do enriquecimento ilícito, in Jornal Sol, Edição de 17/02/2012, p. 24.

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