Ensaiando mudanças: representações das transformações urbanas em Florianópolis nas páginas de \"O Estado\" na década de 1970.

June 3, 2017 | Autor: Daniel Lunardelli | Categoria: Cidades, Urbanização
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – FAED CURSO DE HISTÓRIA

DANIEL HENRIQUE FRANÇA LUNARDELLI

ENSAIANDO MUDANÇAS: REPRESENTAÇOES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO” NA DÉCADA DE 1970.

FLORIANÓPOLIS 2015

DANIEL HENRIQUE FRANÇA LUNARDELLI

ENSAIANDO MUDANÇAS: REPRESENTAÇÕES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO” NA DÉCADA DE 1970.

Trabalho de conclusão apresentado ao Curso de História do Centro de Ciências Humanas e da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel e Licenciada em História. Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Falcão

FLORIANÓPOLIS 2015

ENSAIANDO MUDANÇAS: REPRESENTAÇOES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO” NA DÉCADA DE 1970.

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de História como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel e Licenciada. Banca Examinadora:

Orientador: _____________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Felipe Falcão UDESC Membro:_______________________________________________________ Prof. Ms. Antero Maximiliano Dias dos Reis UDESC Membro:_______________________________________________________ Prof. Dr. Reinaldo Lindolfo Lohn UDESC

Florianópolis, 07 dezembro de 2015

Às minhas avós, Eva e Lídia (In Memorian)

AGRADECIMENTO

Aos meus pais, Paulo e Rita, pelo amor, pelos ensinamentos, pela dedicação, pela paciência e pelo suporte ao longo desses anos. Aos meus novos pais, Udi e Alfredo, pelo carinho, pelo suporte e confiança. Aos amigos de curso, que muito me ajudaram nessa trajetória, principalmente, pela companhia e amizade em todas as mesas de bar, na sinuca, nos churrascos, nas partidas de futebol e nos carnavais pelas ruas da cidade. Aos professores do curso, pelos conteúdos ministrados, pelo estímulo e por despertarem em cada um de nós, a missão de levar adiante o sonho de um país mais justo e igualitário. Ao meu orientador, Professor Dr. Luiz Felipe Falcão pela serenidade, pelos conhecimentos repassados e pela oportunidade de desenvolver o trabalho de pesquisa. Agradeço ao Professor Ms. Antero Maximiliano Reis e ao Professor Dr. Reinaldo Lindolfo Lohn por aceitarem fazer parte da banca. A todos os brasileiros que custearam meus estudos em instituição pública de qualidade. Aos funcionários da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina que me auxiliaram no processo de levantamento das fontes. À Universidade do Estado de Santa Catarina, pela formação que me proporcionou, mas principalmente ao trabalho diário dos funcionários da FAED. Por fim, a Beatrice, minha companheira, pelo amor, companheirismo, cumplicidade, suporte, paciência, e por completar minha existência.

Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro. (O engenheiro/ João Cabral de Melo Neto)

Nesta noite meu primo falou. Perguntou-me se eu iria com ele: do pico se vê nessas noites serenas brilhar o farol distante de Turim. “Tu, que vives em Turim...”, disse ele, “...tens razão. A vida só é vivida distante de sua casa: se aproveita e se goza e aí, quando se volta, aos quarenta como eu, está tudo renovado.” (Os mares do sul/ Cesare Pavese)

RESUMO

LUNARDELLI, Daniel Henrique França. ENSAIANDO MUDANÇAS: representações das transformações urbanas nas páginas de “O ESTADO” na década de 1970 84f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação). Universidade do Estado de Santa Catarina - Centro de Ciências Humanas e da Educação. Curso de História. Florianópolis, 2015. O presente trabalho se propõe a analisar como o jornal “O Estado” apresentava as notícias sobre as transformações urbanas que ocorreram em Florianópolis durante a década de 1970. A partir da análise dos discursos veiculados através de editorias, crônicas, cartas de leitores, charges, fotos e reportagens, busca-se demonstrar o crescimento vertiginoso da capital catarinense na esteira do “milagre brasileiro”, no qual combinava grandes investimentos em obras públicas e a expansão da construção civil. Por meio das notícias procura-se também demonstrar o impacto do acelerado processo de urbanização que a cidade experimentou, alterando de forma significativa o seu ritmo, conferindo-lhe uma feição de um aglomerado urbano populoso, cosmopolita e impessoal. Palavras-chave: Florianópolis. Cidade. Urbanização.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Miramar nos anos 1950.................................................................................................. 21 Figura 2: Vista aérea do centro de Florianópolis. .......................................................................... 27 Figura 3:Vista aérea do aterro no início da década de 1980.......................................................... 35 Figura 4: Populares observam a draga Sergipe ............................................................................. 39 Figura 5: Miramar cercado pelo aterro .......................................................................................... 39 Figura 6: Residências luxuosas no Morro da Cruz ........................................................................ 52 Figura 7: Obras na Ponte Colombo Salles .................................................................................... 58 Figura 8: Vista aérea do aterro da Baía Sul .................................................................................. 61 Figura 9: Publicidade de automóveis ............................................................................................ 69 Figura 10: Publicidade de eletrodomésticos ................................................................................. 69 Figura 11: Movimento de natal ..................................................................................................... 73 Figura 12: Publicidade de apartamento ......................................................................................... 75 Figura 13: Publicidade de apartamento ......................................................................................... 75 Figura 14: Operários na construção civil ...................................................................................... 82 Figura 15: Tumulto no trânsito ...................................................................................................... 88 Figura 16: Movimento na Rua Felipe Schmidt ............................................................................. 90 Figura 17: Jogo entre Avaí x Peñarol ............................................................................................ 95 Figura 18: Multidão acompanha o Campeão Brasileiro de Vela ................................................. 95 Figura 19: Crianças brincam em esgoto a céu aberto....................................................................106 Figura 20: Crianças carregam baldes d’água................................................................................ 106 Figura 21: Usuários de ônibus ..................................................................................................... 107 Figura 22: Mendicância no Centro da cidade............................................................................... 110 Figura 23: Camelôs na Rua Felipe Schmidt................................................................................. 110 Figura 24: Habitações precárias....................................................................................................113 Figura 25: Manifestação popular...................................................................................................117

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 10 1. O “MILAGRE” TRANSTORNA E TRANSFORMA A CIDADE................................15 1.1 UMA CIDADE QUE NÃO RECEBEU GRANDE IMPACTO COM O DESENVOLVIMENTISMO DA DÉCADA DE 1950 E A PRIMEIRA METADE DE 1960.......................................................................................................................................... 15 1.2 O “MILAGRE” E AS MUDANÇAS QUE TRANSFORMAM A CIDADE ...................................................................................................................................................28 1.3 A EXPANSÃO DO MERCADO IMOBILIÁRIO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL........................................................................................................................................44 1.4 OS ASPECTOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS EM FLORIANÓPOLIS............................................................................................................55 2. INDICIOS E INDICADORES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO”................................................... 63 2.1 A INCORPORAÇÃO DO MERCADO DE CONSUMO DE MASSAS EM FLORIANÓPOLIS...................................................................................................................67 2.2 A CHEGADA DE NOVOS MORADORES NA CIDADE..............................................79 2.3 ALTERA-SE O RITMO DA CIDADE: AS FEIÇÕES DE UM AGLOMERADO URBANO POPULOSO, COSMOPOLITA E IMPESSOAL...................................................84 2.4 UMA CIDADE COM NOVOS HÁBITOS E COSTUMES..............................................90 2.5 A DESARTICULAÇÃO DOS MODOS TRADICIONAIS DE TRABALHO..................98 2.6 OS EFEITOS DA URBANIZAÇÃO ACELERADA NA VIDA DA CIDADE..............105 2.7 UMA NOVA CIDADE ENTRA EM CENA...................................................................114 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................119 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................120 FONTES: ..............................................................................................................................123

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INTRODUÇÃO

A elaboração e o desenvolvimento desse trabalho iniciaram a partir da participação no projeto de pesquisa: “Multiplicidades: histórias e memórias das transformações urbanas de Florianópolis (décadas de 1960 e 1970).” A pesquisa foi realizada entre janeiro de 2010 e julho de 2011 na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, e possibilitou o contato com o jornal “O Estado” entre os anos de 1970 até 1980. O trabalho no arquivo delimitou o levantamento de notícias sobre a cidade nos meses de janeiro, fevereiro e dezembro da década referida. A intenção foi a de abarcar os meses que pudessem apontar indícios da incorporação maciça do turismo na cidade e permitiu, também, constituir um painel de uma série de representações de urbanidade através das cartas dos leitores, editoriais, charges e fotos. Há, portanto, nesse primeiro contato com as fontes, inúmeras possibilidades de análise sobre a maneira como Florianópolis e suas transformações eram representadas naquele momento. Aqui cabe lembrar a reflexão de Tânia Regina de Luca sobre os periódicos, cujos suportes materiais e técnicos são carregados de historicidade. A fonte não é um objeto isolado, pelo contrário, o seu conteúdo e forma “[...] não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação.”1 Acerca dessa questão pode se observar como “O Estado” operava suas intenções a respeito do turismo e das transformações urbanas na cidade. Por um lado a imprensa alimentava o desejo por novos investimentos, e por isso mesmo, em alguns momentos se colocava a serviço dos interesses privados e por outro destaca um conjunto de problemas na realização dessa cidade moderna que não garantiu melhores dias para os seus moradores. A escolha do jornal “O Estado” para o levantamento das fontes e sua posterior análise se justifica pela projeção que a empresa jornalística possuía em todo Estado no período estudado, sendo reconhecido com um dos maiores jornais, se não o maior, de Santa Catarina. No final da década de 1950, o jornal passou por uma reestruturação gráfica e adquiriu novos equipamentos. O que o diferenciou dos demais periódicos e deixou o seu principal concorrente para trás. Vinte anos depois dessa primeira reestruturação, “O Estado” passou por uma nova reformulação. Ao colocar, lado a lado, uma edição da década de 1960 e outra da de 1970, é possível observar o impacto dessas mudanças. O jornal ampliou o espaço dado a fotos e notícias vindas de agências internacionais e intensificou a publicação de reportagens sobre a 1

DE LUCA, Tania Regina. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: Fontes Históricas. Carla Bassanezi Pinsky (org). 2 edição. São Paulo. Contexto, 2008, p.139.

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cidade. Nesse período, é interessante destacar que foram contratados pelo jornal uma série de jornalistas vindos de Porto Alegre, Curitiba e São Paulo.2 Como já indicado, o material pesquisado demonstra como eram múltiplas as representações que a imprensa trazia em seus discursos sobre a cidade. A imagem de uma cidade no caminho de mudanças radicais: como a sua metropolização, a chegada de novos moradores, a formação de uma classe média, a projeção de uma vocação “turística” para a cidade, a elaboração de novos hábitos e a desarticulação de outros. Por isso, este trabalho procura evidenciar a pluralidade dos discursos produzidos pela imprensa da época. E a diversidade de leituras possíveis sobre a cidade, naquilo que Chartier chama atenção para relação entre texto e o leitor, ou seja, as diferentes maneiras com que os indivíduos apreendem os discursos e pensam o real.3 Nesse sentido é importante observar que “[...] as representações do mundo social, que à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 1990, p.19). O referencial teórico contempla também o estudo da cidade moderna feito por Simmel. O autor vivencia o surto de crescimento da Alemanha antes da Primeira Grande Guerra e vê Berlim se transformar numa grande cidade industrial com quinhentos mil habitantes. O seu estudo mostra como se relaciona a grande cidade e seu habitante com a mercantilização da vida. Mais ainda, ele chama a atenção para o fato de ser a cidade moderna um espaço ordenado pelo tempo, acrescido de grandes distâncias, onde se torna necessário organizar todas as atividades que são estabelecidas entre seus habitantes; a economia é monetária e por meio dela se desenvolvem as relações de igualdades e desigualdades; e por último a noção de reserva e autoconservação se faz necessário para garantir a individualidade de cada habitante.4 Voltando ao texto aqui introduzido, o leitor pode estranhar a primeira vista as idas e vindas que o texto faz, não obedecendo a uma progressão linear das notícias. Os avanços e recuos no tempo tentam evidenciar:

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VALENTE, César. A imprensa na Grande Florianópolis. In: Jornalismo em perspectiva. Maria José Baldessar e Rogério Christofoletti. Org. 1 edição. Florianópolis. Editora da UFSC. 2005, p.71 3 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Texto publicado com permissão da revista Annales (NOVDEZ. 1989, número 6, PP. 1505-1520). 4 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Texto original: “Die GroBstadte und das Geistesleben”. In: SIMMEL, Georg. Gesamtausgabe. Frankfurt: M. Suhrkamp. 1995. Vol. 7. PP. 116-131. Tradução de Leopoldo Waizbort.

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[...] que as transformações promovidas por um surto de urbanização inscrevem marcas irregulares na percepção de quem as experimenta e as representa, e que são precisamente estas marcas que evidenciam a dimensão daquelas transformações e dos impactos por elas proporcionados. E localizar, focalizar e destrinchar tais marcas demanda um arranjo de tradução devido à distância em que elas se encontram, com todos os perigos de tornar profusa em demasia a adulteração inerente a traslados desta natureza (FALCÃO, 2009, p.23).

Na segunda metade do século XX, o Brasil passou por acentuado processo de transformações urbanas, em especial durante a segunda metade da década de 1960 e toda a década seguinte, entre outros motivos pelo rápido e intenso processo de crescimento econômico conhecido por “milagre brasileiro”, que implicaram em rápidas mudanças na maneira de viver e sentir as cidades por seus habitantes. Na década de 1970, Florianópolis passou por intensas transformações que deixaram vestígios na narrativa produzida pela imprensa ou pela memória de seus moradores. O termo “milagre econômico” aparece pela primeira vez no pós-guerra, quando foi observado com certo espanto pelos economistas da época, a rápida recuperação da Alemanha Ocidental durante a década de 1950. O mesmo caminho teve a economia japonesa que sustentou um crescimento de 10% ao ano durante uma década. Tanto o “milagre alemão” quanto o “milagre japonês” fizeram parte da diretriz neoliberal que se opôs naquele momento ao modelo keynesiano cuja principal característica previa o controle da economia pelo Estado.5 O período que ficou conhecido por “milagre brasileiro” está delimitado pelos estudiosos entre os anos de 1968 e 1973. Nesse curto espaço de tempo a economia brasileira vivenciou um crescimento de 10 a 11% ao ano. No entanto, o que se pretende apontar neste trabalho é que, posteriormente, nos anos que avançaram a década de 1970 mostram elevadas taxas de crescimento do PIB, que por um lado, se não enquadram mais a um padrão de “milagre”, ao menos repercutem ou ressoam com certa robustez e capacidade de fomentar investimentos do setor público e privado. Portanto, se analisarmos o crescimento do PIB nos anos subsequentes (1972 até 1978) veremos uma média de 8% em sete anos, o que comprova o ritmo acelerado da economia.6

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SINGER, Paul. A Crise do “Milagre”: interpretação crítica da economia brasileira. 6 edição. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1982. 6 PRADO, Luiz Caros Delorme e EARP, Fábio Sá. O “milagre”brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967 – 1973). In: O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. (org) Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado. 3 edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2009.

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Quadro I: Indicadores econômicos do Brasil (1961 – 1978)

Fonte: (PRADO, 2009, p.223)

No caso de Florianópolis, veremos uma série de indícios que apontam para esse caminho de reverberação do “milagre” no percurso de toda a década de 1970. Uma das pistas é a expressiva reprodução de peças publicitárias destinadas à venda ou aluguéis de imóveis. Cotidianamente a imprensa alocava em suas páginas centrais anúncios com a venda de terrenos, casas e apartamentos ou ainda aluguéis de casas para veraneio. Com esses dados é possível inclusive desenhar um quadro do que foi a expansão imobiliária. O trabalho está dividido em dois capítulos. No primeiro, busca-se demonstrar que Florianópolis não recebeu grande impacto com o desenvolvimentismo da década de 1950, enquanto que no mesmo período, outras capitais do país passavam a conviver com um acelerado processo de industrialização e urbanização. A economia da cidade girava em torno de sua função administrativa por ser capital do Estado, ao mesmo tempo em que possuía um centro pouco povoado, com ruas estreitas e casario colonial. Nas localidades do interior da Ilha predominava o modo de vida rural baseado em atividades extrativistas e agrícolas. A partir da segunda metade da década de 1960, a capital catarinense experimentou um surto de

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desenvolvimento que pode ser notado através da chegada de mecanismos de intervenção do Estado na economia e o início da verticalização do Centro. A partir da década de 1970, na esteira do “milagre brasileiro”, Florianópolis passou a receber grandes investimentos em obras públicas que alteraram sua fisionomia, como a construção da Ponte Colombo Salles e o aterro da Baía Sul. Ao mesmo tempo em que tomava vulto à expansão da indústria da construção civil. O segundo capítulo procura apontar as mudanças que transformam a cidade através dos indícios encontrados nas páginas de “O Estado”. Através desses indícios é possível observar a formação de um mercado de consumo de massas, a expansão do mercado publicitário, à ampliação e diversificação do comércio, a chegada de novos moradores, as disputas simbólicas pela cidade e os problemas em decorrência do acelerado processo de urbanização como, a desarticulação dos modos de vida rural, as falhas no abastecimento de água, luz, saneamento básico e no sistema de transporte público. Além da presença marcante de problemas sociais como o desemprego, o subemprego e a propagação de habitações precárias.

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1. O “MILAGRE” TRANSTORNA E TRANSFORMA A CIDADE

1.1 UMA CIDADE QUE NÃO RECEBEU GRANDE IMPACTO COM O DESENVOLVIMENTISMO DA DÉCADA DE 1950 E A PRIMEIRA METADE DE 1960 Entre os anos de 1930 e 1950, ou seja, num espaço de vinte anos, o Brasil experimentou um acelerado processo de modernização de sua economia e sociedade, que incluía a formação de um parque industrial variado e o crescimento vertiginoso da urbanização marcado por um intenso movimento de migrações internas. O parque fabril brasileiro incorporou à sua criação os principais setores da economia industrial como siderurgia, petroquímica, farmacêutica, têxtil e ampliou o setor terciário. A década de 1950 marcou a vida social brasileira pelo sentimento de intenso otimismo. Naquele momento imaginava – se que o país assistia “ao nascimento de uma nova civilização nos trópicos”.7 Constituía-se um malha rodoviária que cortava o país de norte a sul, produzia-se automóveis, caminhões tratores, ônibus e motos. Levantava-se arranha céus nas cidades e grandes hidrelétricas no interior do país. O país passa a construir centrais telefônicas e a produzir navios de carga e aviões. O cotidiano das pessoas integrou-se a um mercado de consumo de massas, que viabilizou uma série de benesses, através de produtos elétricos que mudavam sensivelmente o cotidiano das pessoas nas cidades. Chegava às casas das pessoas todo tipo inovação. O ferro elétrico, fogão a gás, fogareiros, chuveiro elétrico, liquidificador, batedeira de bolo, geladeira, secador de cabelos, máquina de barbear, aspirador de pó, torradeira de pão, máquina de lavar roupa, rádio de pilham aparelho de som, disco de vinil, fita, tevê preto e branco e depois em cores.8 Essa modernização dos processos produtivos impactou sensivelmente a mesa dos brasileiros. Os alimentos deixaram de ser vendidos nas bancadas dos armazéns e ganharam embalagens plásticas, caixas ou latas. A cerveja, o milho, o palmito, a ervilha, as azeitonas e legumes passaram a ser acondicionados em lata. Na mesma época começou a ser vendido o leite em pó, o creme de leite, o iogurte, biscoitos, achocolatados, salsicha e outros embutidos, o frango de granja substitui o caipira, os chocolates, sorvete industrializado, chicletes e balas; 7

MELLO, João Manuel Cardoso de e NOVAIS, Fernando A. Capitalismo Tardio e sociabilidade moderna. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea/coordenador geral da coleção Fernando A. Novais; organizadora do volume Lilia Moritz Schwarcz – São Paulo: Companhia das Letras, 2002, volume 4. p. 560. 8 Ibidem - p. 564

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o aumento do consumo de refrigerante, e de todo tipo de bebida alcoólica como cachaça, vinho, uísque vodca e rum. 9 Os avanços na produção mudaram também por completo o sistema de comercialização. As vendas nos bairros, os armazéns e os açougues, as peixarias, as quitandas e as feiras foram substituídos pelos grandes supermercados. Outra novidade que concentrou o conceito de consumo e lazer foi o shopping. O primeiro inaugurado em 1966 em São Paulo passava a vender roupas, eletrodomésticos e ao mesmo tempo oferecia cinema, cafés e lanchonetes. É desse período também que aparecem as grandes redes de lojas de eletrodomésticos, as revendedoras de automóveis e lojas de departamento.10 Acompanhadas dessas transformações aparecem também novos hábitos de consumo. Entre a classe média, empresários e políticos observa-se o hábito de almoçar ou jantar fora. Surgem então os restaurantes com requinte, que adotam todo tipo de cozinha internacional: comida árabe, italiana, francesa e portuguesa. Nessa esteira aparecem as churrascarias e as pizzarias. As camadas populares passavam a frequentar cantinas, pequenos restaurantes, bares ou lanchonetes baratas. Chegavam também ao Brasil as primeiras redes de fast-foods.11 Esse quadro de modificações no padrão de consumo no cotidiano das pessoas alterou também os hábitos de higiene pessoal e limpeza das casas. Apareceram vários produtos nas prateleiras dos supermercados como o detergente, o sabão em pó, a palha de aço e a bucha de plástico. Para mulher e para o homem difundiu-se uma série de novos produtos para asseio pessoal. A utilização da escoa de dentes, a pasta, o uso de desodorantes, o shampoo e o condicionador de cabelos, o modess, os cotonetes, o fio dental, as escovas de cabelos e pentes, o perfume, o creme de barbear e loção pós barba. 12 Moldavam-se também novos padrões na maneira de se vestir. A indústria têxtil substituía a seda, o algodão, a lã e o linho pelo tecido sintético. A partir dos anos 60 mulheres e homens passaram a se vestir com um visual mais despojado, muito diferente do vestuário de seus pais e avós. Estava em voga uma nova atitude dos jovens diante do mundo. A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos. Duas de suas características são portanto relevantes. Foi ao mesmo tempo informal e antinômica, sobretudo em questões de conduta pessoal. Todo mundo tinha de “estar na sua”, com o mínimo de restrição externa, embora na 9

Ibidem - p. 566 Ibidem - p. 567 11 Ibidem - p. 567 12 Ibidem - p. 568 10

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prática a pressão dos pares e a moda impusessem tanta uniformidade quanto antes, pelo menos dentro dos grupos de pares e subculturas (HOBSBAWM,1995, p.257).

Em 1950 a sociedade brasileira era predominantemente rural. Nas cidades vivam 10 milhões pessoas enquanto 41 milhões de brasileiros estavam distribuídos entre o campo, pequenos vilarejos e cidades com menos de 20 mil habitantes. Esse processo acelerado de modernização e urbanização pelo qual passou a sociedade brasileira trouxe consigo novas possibilidades de vida. Viver nas cidades passou a atrair e vislumbrar no imaginário das pessoas que vivam no campo ou em pequenas cidades a possibilidade de novos ganhos.13 Viver no campo passou a significar sinônimo de atraso em face dessa nova sociedade que se constituía. A estrutura social do campo nesse período que vai de 1930 até 1950 permaneceu extremamente rígida em sua composição. No topo da pirâmide permaneciam a oligarquia agrária composta pelos grandes latifundiários que controlavam a propriedade da terra, como os fazendeiros de café, os usineiros de açúcar e pecuaristas. Abaixo estavam médios proprietários e alguns pequenos arrendatários que produziam para o mercado e empregavam trabalhadores assalariados. Na base encontravam-se os pequenos proprietários que contavam com a mão de obra familiar. A maioria desse contingente de trabalhadores rurais, cerca 85%, deles era composto por “posseiros, pequenos proprietários, parceiros, assalariados temporários ou permanentes, extremamente pobres ou miseráveis.”14 A partir da metade da década de 1960 chega ao campo a modernização dos processos agrícolas. Milhões de homens, mulheres e crianças perdem seus trabalhos na terra. A chegada de tratores e dos implementos agrícolas empurram famílias inteiras para duas alternativas que se abriam naquele momento. A primeira possibilidade foi acompanhar o deslocamento da fronteira agrícola que entre as décadas de 1950 e 1980 abriu muitos postos de trabalho no campo. Principalmente na região norte do Paraná, em Goiás, Mato Grosso do Sul, e mais tarde entre os anos 60 e 70, este movimento transferiu-se em direção ao Mato Grosso, Rondônia, Amapá, sul do Pará e do Maranhão. A segunda possibilidade de mudança para os pequenos agricultores sem terra eram as cidades. A cidade mais próxima de onde trabalhavam, onde estabeleciam algumas relações, como vender nas feiras sua pequena produção, participar de festas ou frequentar a igreja. Ou ainda, a grande cidade, que proporcionava todo tipo de novidades como pontes, viadutos, automóveis, transito intenso,

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MELLO, op. cit. p. 574 MELLO, op. cit. p. 575

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trem, outdoors, posto de saúde, escola, cinema, estádio de futebol, teatro, ruas pavimentadas e iluminadas, uma quantidade enorme de atrativos.15 As grandes capitais do país, que viviam o processo acelerado de industrialização e urbanização, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza e Porto Alegre. Essas cidades foram agentes catalisadores dos sonhos dessa mão de obra que chegava do campo em busca de novas oportunidades de vida e de trabalho. Dessa maneira migraram para as cidades durante a década de 50 aproximadamente 8 milhões de pessoas, na década seguinte esse número chegou a 14 milhões, e já na década de 70, a massa migratória contabilizou 17 milhões de trabalhadores, totalizando no final de três décadas 39 milhões de pessoas que deixaram o campo para viver nas cidades. 16 O migrante rural quando chega à cidade passa a compor junto com o trabalhador comum e os citadinos pobres a base do mercado de trabalho. Nessa esfera estão os trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, carregadores de caminhões, caminhoneiros, cozinheiras, faxineiros, vendedores ambulantes, feirantes, lavadores de carro, guardas noturnos, lavadeiras e costureiras. Além dessas oportunidades, na cidade as pessoas que conseguem um mínimo de estudo ou qualificação, que aprendem a lidar com o ritmo e a linguagem da cidade, esses podiam conseguir um trabalho na indústria com acesso garantido aos direitos trabalhistas. São trabalhadores que ocupam principalmente os ofícios da construção civil, como o de pedreiro, encanador e eletricista.17 Entre os anos de 1956 e 1960 o governo Juscelino Kubitschek elaborou e colocou em prática o Plano de Metas. O plano tinha por objetivo criar um vasto campo de investimentos na indústria, como no setor elétrico, no químico, na farmacêutica, na indústria de máquinas e equipamentos, na naval, bem como em setores estratégicos como do aço, petróleo e da energia elétrica. A concretização dessas indústrias no volume que necessitava o país só fora possível através da abertura das empresas multinacionais e de grandes investimentos estatais.18 Para completar esse ciclo ajustou-se o sistema bancário de maneira a permitir o financiamento do consumo de bens duráveis, nas indústrias tradicionais de bens de consumo e por último a indústria da construção civil. Essas possibilidades de investimento estavam disponíveis para quem dispunha de algum capital. Passou a figurar, então, entre os agentes de

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MELLO, op. cit. p. 580 MELLO, op. cit. p. 581 17 MELLO, op. cit. p. 600 18 MELLO, op. cit. p. 590 16

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investimentos uma nova classe burguesa formada por banqueiros e grandes empresários como os empreiteiros.19 Nessa nova configuração da grande empresa privada aparece um novo modelo de gestão. Esse modelo cria toda uma nova ordem institucional e hierarquizada das profissões. Aparece como destaque o engenheiro, o economista, o administrador de empresas, gerentes, diretores, os chefes; os setores de produção, administração, financeiro e marketing. Na esfera estatal ampliam-se as áreas da educação, saúde e previdência. Surge um corpo técnico de burocratas para gerir as inúmeras áreas do Estado. São os diretores, gerentes, chefes, assessores e os técnicos.20 Essa nova composição do trabalho nas esferas pública e privada significou para a classe média a abertura de novas oportunidades de ascensão social. Por meio da expansão da escola pública e do ensino superior, as camadas médias urbanas passaram a trilhar o caminho para melhores postos de trabalho. Essa exigência por melhor qualificação profissional partiu principalmente dos concursos públicos exigidos pelos governos. Esse movimento de industrialização e urbanização acelerada quebrou a “relativa homogeneidade da classe média.”21 Durante o curso do processo do nacional-desenvolvimentismo de Kubitschek, a imprensa em Florianópolis passou a reportar as expectativas de que a capital catarinense viesse a participar num futuro próximo do dinamismo da economia nacional e receber o acelerado processo de industrialização e urbanização que marcou o período. Os desejos e as expectativas sobre o futuro promissor foram colocados em pauta pelos setores hegemônicos da política e da economia da cidade. Somado a estes grupos de poder aparecia em cena, às camadas médias da cidade que se vinculavam a este processo como consumidores dos objetos e maravilhas produzidos pela tecnologia. A Florianópolis moderna, que deveria suprimir a cidade até então atrasada naquele momento, fora imaginada pelas elites locais e posteriormente construída para as classes médias.22 Os sinais de modernização, progresso e desenvolvimento que inundavam o Brasil chegaram com dificuldade na Florianópolis dos anos 1950. Os jornais da época procuravam mostrar todas as vicissitudes da sociedade moderna pelo mundo. Naquele momento Florianópolis possuía características econômicas acanhadas. Sua economia girava em torno da 19

MELLO, op. cit. p. 592 MELLO, op. cit. p. 594 - 595 21 MELLO, op. cit. p. 597 22 LOHN, Reinaldo Lindolfo. Pontes para o Futuro: relações de poder e cultura urbana Florianópolis , 1950 e 1970. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em História, p.10. 20

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função administrativa que a cidade acumulava por ser a capital do Estado. A principal área urbana de Florianópolis estava concentrada envolta da praça XV, com ruas estreitas e casario colonial. Seu principal acesso com o restante do país só ganhou asfalto no início da década de 1970 com a pavimentação da BR-101. As regiões do Norte do estado e do Vale do Itajaí estavam integradas pelo transporte rodoviário com o porto de Itajaí e aumentavam progressivamente seu parque fabril.23 Distante do principal núcleo urbano, a ilha expandia–se em grandes áreas despovoadas, que concentrava atividades extrativistas e agrícolas, como o cultivo de alho, cebola, cana de açúcar, feijão, mandioca, café, banana e hortaliças. Essa configuração do espaço rural ao redor da cidade convivia também com o abate de animais, a produção de leite e alguns derivados. Estimava-se que o rebanho de bovinos contabilizava 4 mil cabeças, além de 200 mil galináceos e 700 suínos. O interior da ilha contava ainda com uma rede de engenhos de farinha e de açúcar mascavo. Em menor escala praticava-se apicultura. Pela característica insular da cidade, o extrativismo aquático destacava-se como importante atividade devido à abundância de peixes e espécies de crustáceos. O uso de redes de arrasto e armadilhas para captura de peixes, a locomoção através do barco a vela ou remo compunham as técnicas e o meio de transporte dos pescadores artesanais. As localidades do interior da ilha, constituíam-se, portanto, de agricultores e pescadores artesanais.24 No entanto, embora as feições e o ritmo de Florianópolis sugerissem um modo de vida pacato, uma cidade com pouco dinamismo econômico e cultural, que lembrava em certa medida uma cidade pequena, uma parcela da sociedade florianopolitana passava a tomar contato ou a vivenciar o mundo moderno. A propagação desse conjunto de valores da modernidade chegava até as pessoas por meio dos jornais, do rádio, do cinema, das revistas e de forma mais tímida pela televisão que começava a chegar às casas das pessoas mais abastadas.25 A parcela pobre da cidade, que por vezes migrava em busca de emprego, principalmente no caso dos embarcados, que ingressavam na tripulação de barcos de pesca nas cidades de Santos, Rio Grande e Rio de Janeiro, quando retornavam à cidade dispunham de algum capital excedente, o que lhes permitia comprar objetos como rádio de pilha ou bicicleta.26 23

Ibidem - p. 29. LAGO, Paulo Fernando. Florianópolis: a polêmica urbana. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1996. p. 110-111 25 LOHN, op. cit. p. 30 26 FALCÃO, Luiz Felipe. Da cidade, seus usos e sentidos. Práticas socioculturais como fazer histórico:abordagens e desafios teórico-metodológicos. Organizado por Geni Rosa Duarte; Méri Frotscher e Robson Laverdi – Cascavel: Edunioeste, 2009. p.14 24

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Figura 1 – Miramar nos anos 1950.

Fonte: Acervo Casa da Memória.

A partir dos anos 1950 aparece, nos discursos sobre a cidade, a ideia de construir o futuro. Não se tratava apenas de imaginá-lo, mas, sobretudo, de planejar e executar um projeto de modernização para capital catarinense, que deixasse para trás todo tipo de sociabilidade que representasse o passado, o atraso, como era visto e sentido pelos discursos da imprensa diária. Isso, inclusive, endossou em editoriais ou por meio de colunistas o novo caminho que deveria ser traçado. Para tanto, a viabilização do projeto de modernização da cidade passava pela disputa política entre as duas oligarquias políticas do Estado. De um lado a família Ramos que compunha a legenda do Partido Social Democrático (PSD) e do outro os Konder-Bornhasen abrigados na União Democrática Nacional (UDN).27 As duas oligarquias disputavam no Estado os rumos do futuro. A polarização entre PSD e UDN era resultado da estrutura partidária herdada do Estado Novo.28 Nessa 27

LOHN, op. cit. p. 31 Com a implantação do Estado Novo, Vargas cercou-se de poderes excepcionais. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os partidos políticos extintos. O comunismo transformou-se no inimigo público número um do regime, e a repressão policial instalou-se por toda parte. Mas, ao lado da violenta repressão, o regime adotou uma série de medidas que iriam provocar modificações substantivas no país. O Brasil, até então, basicamente agrário e exportador, foi-se transformando numa nação urbana e industrial. Promotor da industrialização e interventor nas diversas esferas da vida social, o Estado voltou-se para a consolidação de uma indústria de base e passou a ser o agente fundamental da modernização econômica. O investimento em atividades estratégicas, percebido como forma de garantir a soberania do país, tornou-se questão de segurança nacional. Fiadoras do regime ditatorial, as Forças Armadas se fortaleceram, pois, além de guardiãs da ordem interna, passaram a ser um dos principais suportes do processo de industrialização. Com 28

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perspectiva, o sistema político do país vinculava-se a um processo de centralização do poder, no qual destacava a figura dos interventores em cada Estado da federação. Combinado a este quadro, reunia-se nos setores da elite política brasileira uma ideologia autoritária, antiliberal e anti-partidária, além de uma frágil mobilização social. O PSD fora criado pelo governo Vargas de maneira a sustentar a estrutura das interventorias durante o Estado Novo. Apoiado principalmente por um eleitorado rural que garantiu estabilidade política durante o período do multipartidarismo entre 1945 e 1965. De outro lado, a UDN que abrigava a oposição ao governo Vargas, caracterizou-se principalmente por seu elitismo, cujo principal atributo era se opor as reformas sociais importantes para o país e ter como mote de campanhas um discurso moralista no combate a corrupção apelando inclusive para intervenção militar.29 A partir de 1950 a UDN vence as eleições para o governo do Estado com Irineu Bornhausen e se mantém como partido hegemônico durante toda a década. O PSD só retorna ao poder dez anos depois com a vitória de Celso Ramos. Entre as duas oligarquias, estavam em jogo “as disputas pelo controle da capacidade de investimento e empregabilidade do Estado em áreas e setores de crescimento imobiliário e a expansão em grande escala dos investimentos capitalistas.”30 A polarização entre os dois partidos indicava o predomínio do eleitorado conservador em Santa Catarina quando comparado ao restante do país. Tanto para composição da Assembleia Legislativa como para Câmara Federal, os dois partidos acumularam percentuais expressivos de votação entre 1945 e 1965.31 Se, no governo do Estado, a UDN permanece como partido vitorioso durante uma década, na capital o PSD predominava como força política. Nesse período sua principal liderança estava centrada na figura de Aderbal Ramos da Silva. Era herdeiro político de seu tio, Nereu Ramos, interventor do Estado Novo em Santa Catarina, e estabeleceu alianças com medidas centralizadoras, Vargas procurou diminuir a autonomia dos estados, exercendo assim maior controle sobre as tradicionais oligarquias regionais. Buscando forjar um forte sentimento de identidade nacional, condição essencial para o fortalecimento do Estado nacional, o regime investiu na cultura e na educação. A preocupação com a construção de uma nova idéia de nacionalidade atraiu para o projeto estado-novista um grupo significativo de intelectuais. Na área social, o Estado Novo elaborou leis específicas e implantou uma estrutura corporativista, atrelando os sindicatos à esfera estatal. Aboliu a pluralidade sindical e criou o imposto sindical, contribuição anual obrigatória, paga por todo empregado, sindicalizado ou não. O salário mínimo foi institucionalizado. Para mediar as relações entre patrão e empregado, o governo regulamentou a Justiça do Trabalho. Através da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sistematizou a legislação trabalhista. Em nome da valorização do trabalhador nacional, o Estado Novo adotou uma política de restrição à imigração. Através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que, além de exercer a censura sobre todos os meios de comunicação, investia maciçamente na propaganda do regime, Getúlio Vargas conseguia reforçar sua imagem de protetor da classe trabalhadora. PANDOLFI, Dulce. Repensando o Estado Novo. Organizadora: Dulce Pandolfi. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p.10-11 29 CARREIRÃO, Yan de Souza. Eleições e sistema partidário em Santa Catarina: 1945 – 1979. Florianópolis: Editora da UFSC, 1990. p. 16 -33. 30 LOHN, op. cit. p. 38 31 CARREIRÃO, op. cit. p. 72 -73

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o principal grupo empresarial da cidade, os Hopecke, através de seu casamento. Tinha como propriedade os principais veículos de mídia de Florianópolis naquele momento: a rádio Guarujá e o jornal “O Estado”. Os domínios da comunicação somados as suas relações com o empresariado local, permitiam-lhe construir “um mecanismo de dominação e controle social que constituía-se através de práticas caritativas, redes de interesses entre políticos e empresários e utilização intensa de recursos dos fundos públicos.”32 As disputas entre pessedistas e udenistas pelo poder político na capital operavam nesses termos.

Por meio da conciliação de interesses entre mídia, grupos políticos,

empresariais e a cúpula da Igreja ampliava-se a esfera de influência e dominação dos estratos sociais de Florianópolis. Esse tipo de articulação política abarcava, por exemplo, clubes sociais, de futebol e remo, grandes festejos religiosos e um sistema assistencialista composto por asilos, abrigos ou eventos de caridade que criavam uma atmosfera pacífica entre os grupos sociais da cidade. As execuções dessas estratégias fazem parte do receituário populista, que prevê no exercício do poder a conciliação de múltiplos interesses de maneira a privilegiar a classe dirigente: Aderbal Ramos da Silva e todos os que o cercavam faziam parte de sua estrutura de apoios, necessitavam manter um discurso ambíguo que se por um lado era claramente voltado para a reprodução do poder, garantindo que tanto as elites dominantes quantos as classes médias não tivessem seus interesses questionados, por outro não podia evitar de relacionar-se com os pobres urbanos que povoavam morros, ruelas e o interior de Florianópolis (LOHN, 2002, p.40).

Para os grupos políticos, a modernização da capital passava por manter essa ordem estabelecida. A organização dos espaços sociais e urbanos de Florianópolis desenhou-se de maneira a afastar a população negra e pobre para os morros ao redor do centro para longe do convívio com as camadas médias. O futuro projetado para Florianópolis, que prescrevia uma cidade moderna, com ar de metrópole e que participaria da cultura de massas, anotava também a necessidade de manter a dominação de classe e a separação entre brancos e negros, características marcantes na hierarquia da sociedade florianopolitana naqueles tempos.33 A hegemonia da UDN durante a década de 1950 colocou em ameaça o futuro de Florianópolis como capital de Santa Catarina. O partido que tinha como base eleitoral o interior do Estado propunha uma série de argumentos que justificasse a transferência da capital para o interior. Em face a pungente economia do Vale do Itajaí e o crescimento de cidades como Criciúma que ganhava vulto através da exploração do carvão, Florianópolis mostrava-se numa situação acanhada que lhe permitisse manter o status de capital. O 32 33

LOHN, op. cit. p. 39 LOHN, op. cit. p. 49 -50.

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definhamento das atividades do seu porto, que na época, era incapaz de escoar a produção madeireira do estado, somada ao isolamento geográfico em relação as grandes áreas de expansão econômica que passava o Oeste catarinense formavam um conjunto de argumentos que colocava em cheque as pretensões das elites florianopolitanas.34 Os grupos políticos da cidade começavam a ficar alertas para possíveis iniciativas, por mais tímidas que fossem, de retirar da cidade órgãos públicos, até porque estes eram fontes fundamentais para seu exercício político, com a ocupação de cargos e a distribuição de empregos (LOHN, 2002, p.29).

É nesse momento que começavam aparecer projetos alternativos para o desenvolvimento de Florianópolis. Precisava-se promover o crescimento acelerado da cidade de maneira que ela sustentasse o status de capital. A imprensa cogitou a atividade agrícola no interior da ilha como uma saída para alavancar a economia local. Não era raro perceber em paralelo a esses discursos, a imprensa lamentar a falta de indústrias que pudessem dinamizar a vida da cidade. Na época, o governo federal viabilizava a instalação de multinacionais no país através de capital estrangeiro, mas Florianópolis estava à margem desse processo. No entanto, a figura de Aderbal Ramos da Silva encabeçou outro caminho para o futuro. O turismo passava a protagonizar os anseios de modernização vislumbrados pelas lideranças políticas locais. Passou-se, então, a direcionar planos de investimentos para os balneários do Norte da Ilha. No ano de 1957 anunciava-se na cidade um plano de construção de um moderno balneário na Praia do Forte.

No projeto constava um hotel luxuoso

acompanhado por extensa área verde e urbanizada. Por trás da elaboração do empreendimento estava a imobiliária cuja presidência era ocupada por Aderbal Ramos da Silva. O turismo apresentava uma alternativa para o futuro, mas atrelado as estruturas de poder das oligárquicas locais.35 A eleição municipal de 1954, disputada entre a UDN e a coligação PSD/PTB foi dominada pela perspectiva de imprimir definitivamente um crescimento urbano acelerado em Florianópolis. No meio dessa disputa estava o Plano Diretor elaborado dois anos antes pela administração da UDN. Este Plano previa para Florianópolis um desenvolvimento em que Ilha e Continente estavam alinhados numa composição de complementaridade. Desenhado este quadro mais do que a disputa eleitoral para administrar a cidade estava em jogo também o futuro dos investimentos que a cidade deveria receber para concretizar seu projeto de modernização.36 34

LOHN, op. cit. p. 70 Ibidem - p. 70 -74. 36 Ibidem - p. 253. 35

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Cada parte da cidade destinava-se a um compartimento definido segundo sua funcionalidade. Na Ilha, a área central seria ocupada por funções administrativas, comerciais e residenciais. Enquanto que o Continente, precisamente a região do Estreito, abrigaria em uma grande área, a instalação de um porto e uma zona industrial, que estariam interligados ao restante do país através de conexões ferroviárias e rodoviárias. Este plano ainda se complementava na porção continental com outra grande área contígua ao porto, na qual se estabeleceria o comércio e novas residências.37 De maneira sintética o Plano Diretor de 1952 alocava novas funções para espaços bem definidos no traçado urbano da Capital: A configuração da cidade ficaria delineada a partir de um eixo imaginário, ao longo do qual estariam localizadas as atividades produtivas (indústria, comércio, função administrativa), em direção Noroeste a Sudoeste, “que partindo da Ponta do Leal e passando pela Ponte se estenderá até a zona do aterro. Ao sul dessa linha no Estreito e, na Ilha, ao norte dela, estender-se-ão as zonas de habitação”. Na região central da Ilha, a atração exercida pelo desenvolvimento econômico do Estreito levaria a uma densificação urbana próxima à Ponte Hercílio Luz, ligando-se à área sul da Ilha, já com certa densidade (LOHN, 2002, p.280).

Essa configuração de cidade elaborada pelos urbanistas, durante a administração da UDN, contrariou os interesses de políticos e empresários locais. Para os intelectuais responsáveis pelo plano diretor de 1952, o turismo aparecia apenas como um acessório, e não como o principal vetor de crescimento da cidade. A imprensa, em conformidade com esses interesses, passou a propagar o discurso de “vocação turística” da cidade. Para os planejadores, o desenvolvimento de Florianópolis estaria atrelado à indústria, enquanto que naquele momento, os grupos políticos empresariais já investiam em empreendimentos voltados ao turismo. Àquela altura, a cidade já delineava esse traçado voltado aos balneários a partir da atuação desses grupos. As praias no Norte e no Sul da Ilha se destacavam cada vez mais como destino de lazer e como referência de distinção social, a partir da criação de loteamentos de alto padrão destinados a classe média alta e a burguesia.38 Entre as décadas de 1950 e 1960 começam a ser verificadas algumas transformações importantes em Santa Catarina. A principal delas é o aumento da taxa de urbanização. Em 1960 a população urbana chegava a 77.585 habitantes. A partir da segunda metade dos anos 50, Florianópolis inicia, ainda que tímido, seu processo de incorporação do modo de vida moderno das grandes cidades. Data desse período o início da verticalização no centro da capital com edifícios comerciais, prédios com elevador, cinemas, ruas largas e luminosas. Chama atenção a construção dos edifícios do Banco do Brasil, das Secretarias, do Banco

37 38

Ibidem - p. 279. Ibidem - p. 275 – 280.

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Nacional do Comércio, do Hotel Lux e do Ipase. No mesmo período inicia-se a abertura da avenida Rio Branco criando na região central uma nova área de expansão imobiliária.39 O inicio da década de 1960 marcava o retorno do PSD ao governo do Estado após dez anos de administração da UDN. Celso Ramos é eleito governador, ao mesmo tempo em que presidia a Federação das Indústrias de Santa Catarina (FIESC). Portanto, tratava-se de um representante direto da burguesia catarinense. O seu governo lançou um Plano de Metas do Governo (PLAMEG), cujo objetivo era promover o desenvolvimento estadual nos anos 60. O plano estava em conformidade com a política econômica desenvolvimentista nacional, que associava o capital industrial, nacional ou estrangeiro, de maneira a expandir a modernização da economia brasileira.40 O Plano era dividido em três grandes tópicos: o Homem (as áreas sociais: educação e cultura, justiça e segurança pública, saúde pública e assistência social e serviços de água e esgoto); o Meio (a infra-estrutura: Energia, Rodovias e Obras de Artes); A Expansão Econômica (subsídios e estímulos: armazenagem, fomento agropecuário, abastecimento, participação em empreendimento pioneiro e Banco do Estado). A maior parte dos recursos investidos, 78%, foram destinados à infra-estrutura e ao estímulo ao setor privado. Privilegiava-se a acumulação de capital em desfavor dos investimentos sociais (LOHN, 2002, p.368).

A consonância entre a prefeitura da capital e o novo governador garantiu ao município vultosos recursos que tiveram grande impacto na fisionomia da cidade. O plano previa investimentos estatais pesados nas áreas de infraestrutura e industrialização de base. A imprensa não demorou em comemorar as novas possibilidades que se abriam para o desenvolvimento da cidade. A imprensa sugeria a modernização do centro, a reurbanização dos morros, asfaltamento das ruas e a eletrificação do interior da ilha.41 Com vistas a ampliar os investimentos estatais no Estado, os três governadores do Sul do país criavam o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). É do mesmo período a criação das empresas públicas de distribuição de energia elétrica que posteriormente vieram a formar as Centrais Elétricas de Santa Catarina (CELESC). Consta ainda a oficialização da criação do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na bacia do Itacourubi. Posteriormente, se juntaram no mesmo espaço da cidade, elevando e muito o potencial de urbanização dessa região, a chegada da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Telecomunicações de Santa Catarina (TELESC), Federação das indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de 39

Ibidem - p. 47 – 88. Ibidem - p. 155 – 156. 41 Ibidem - p.366 40

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Santa Catarina (EPAGRI) e das Centrais Elétricas do Sul do Brasil S.A (ELETROSUL). Esses mecanismos de intervenção do Estado na economia criaram novas oportunidades de empregos de nível médio e superior na cidade. Portanto, chegaram à Florianópolis: técnicos administrativos, gerentes, diretores, docentes e engenheiros, todos com um poder aquisitivo acima da média da renda dos antigos moradores da capital. Foi incorporada à cidade uma nova classe média que modificou e ampliou o mercado consumidor buscando novos espaços da cidade para morar ou mesmo formando um mercado de consumo de massas. 42 Figura 2 – Vista aérea do centro de Florianópolis, 1958.

Fonte: Acervo Casa da Memória.

A instalação da ditadura militar em 1964 não alterou a composição das forças políticas conservadoras que vinham atuando em Santa Catarina. No ano seguinte, o regime autoritário decreta o AI-2, que na prática implantava o bipartidarismo, tendo a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) como o partido representante dos militares e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) composto por importantes segmentos políticos que faziam oposição aos militares. Em Santa Catarina a ARENA aglutinou os dois grandes partidos conservadores oligárquicos: PSD e UDN. O novo partido levou adiante, o projeto conservador de modernização do Estado e de sua capital que sofreria um grande impacto de investimentos públicos e privados na década seguinte na esteira do chamado “milagre econômico”. 42

Ibidem - p.368-371

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A partir da década de 1970 as transformações urbanas que Florianópolis começou a experimentar desde a segunda metade dos 60 se intensificaram. A cidade ganha uma nova ponte, o centro abandona sua proximidade com mar através do aterro da baía sul, a verticalização do centro expande de forma acelerada, a cidade recebe um grande impacto com a chegada de migrantes das áreas rurais próximas à capital, forma-se uma nova classe média adepta ao consumo de massas; iniciam-se os processos de favelização e suburbanização em áreas como o continente e os morros ao redor do centro, completa-se o sistema rodoviário que liga o centro aos balneários do Norte da Ilha, a cidade se transforma em destino turístico de vários visitantes do país e de países vizinho e o turismo ganha status de principal projeto econômico da capital. 1.2 O “MILAGRE” E AS MUDANÇAS QUE TRANSFORMAM A CIDADE

No conto “Mistério no Miramar”, Salim Miguel, narra a história do garoto Ernani, que toda manhã sai de casa a pedido da sua mãe para comprar pão. No caminho tem o costume de parar alguns minutos e sentar no banco de pedra do Miramar “envolvido em seus intermináveis sonhos e fantasias.”43 O que se segue, é que ao contrário de outras manhãs, desta vez sua tarefa diária é interrompida pelo inusitado. O personagem, quando olha para o mar, se detém na figura de um cadáver batendo contra o Miramar. A seguir o garoto é acometido pelo medo e retorna correndo à sua casa, quando no meio do percurso ouve uma “voz insistindo, fale com o Franklin”. A trama do enredo se desenrola em cima deste mistério: a morte de um homem desconhecido para toda a cidade. Por meio da pista, supostamente, ouvida pelo garoto, o delegado de polícia interroga o professor Franklin Cascaes, aqui personagem dele mesmo, que reconhece o rascunho de seu desenho, que fora encontrado na bolsa do homem morto. Aos poucos o professor se recorda do breve contato estabelecido com o homem dias antes. O rapaz apresentou-se como pesquisador e solicitava uma encomenda dos desenhos de Cascaes. O sujeito enigmático queria o desenho de suas bruxas, uma bruxa com cinco cabeças. Tomada como metáfora, a narrativa da obra ficcional, pode nos sugerir uma leitura sobre a cidade e as transformações urbanas que iriam se materializar a partir da década de 1970 em Florianópolis. A pensar que o escritor elege o Miramar, principal espaço de ligação entre a cidade, o mar e seus habitantes, como o porto de chegada do cadáver, sugere, num 43

MIGUEL, Salim. O sabor da fome. Rio de Janeiro. Record, 2007, p. 13

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exercício de imaginação, que o corpo é o símbolo de rupturas pelas quais a cidade passaria a vivenciar com maior frequência no espaço urbano. Não por acaso, cabe ao Miramar nessa fabulação, iniciar o processo de “perda” da cidade que se conservava provinciana até então. É, ele, o palco de múltiplas sociabilidades que estarão em xeque quando cercado de terra perder sua finalidade. Nesse sentido, a obra ficcional possibilita uma leitura sobre o urbano: Tal procedimento implica pensar a literatura como uma leitura específica do urbano, capaz de conferir sentidos e resgatar sensibilidades aos cenários citadinos, às suas ruas e formas arquitetônicas, aos seus personagens e às sociabilidades que nesse espaço têm lugar. Há, pois, uma realidade material – da cidade construída pelos homens, que traz as marcas da ação social. É o que chamamos de cidade de pedra, erguida, criada e recriada através dos tempos, derrubada e transformada em sua forma e traçado (PESAVENTO, 2002, p.10).

Construído em 1928, com um trapiche que avançava vinte metros no mar, o Miramar foi um espaço que congregou diferentes usos, como o de café, bar, restaurante, teatro e por onde circularam pescadores, boêmios, poetas, políticos, crianças.44 Até 1972 quando se iniciou o aterro da baía sul, ele representou o ponto de intimidade entre os Florianopolitanos e o mar. Mas, no início daquela década, o seu precário estado de conservação indicava outros rumos para os espaços públicos da cidade. Do glamour que ostentou entre as décadas de 1930 e 1950, o Miramar, pouco antes de ser envolvido pelo aterro, encontrava-se “com telhas quebradas, estacas corroídas, pelo tempo, paredes descascadas, sem pintura adequada e usado, inclusive, como mictório público”.45 Os discursos dos jornais e do poder público passavam a rejeitar, naquele momento, a cidade ligada ao passado colonial, provinciana, vista como atrasada, de maneira que pudesse emergir uma nova configuração urbana, que representasse a chegada definitiva da modernização da capital. A “perda” da cidade significava também o “desencantamento do mundo.” A partir de então, escoa da vida todo o sentido de magia que ela possa ter. Dessa forma, está em perigo o pescador do interior da Ilha, que é conhecedor de fenômenos naturais que englobam sua atividade. Pode-se citar em caráter ilustrativo a habilidade de antever a chegada do vento Sul quando as águas da baía turvam. Todo conhecimento sobre o meio natural adquirido pelo pescador lhe empresta um sentido de magia ou de encantamento do mundo, que perde o seu peso ou valor quando o recurso da ciência torna-se imperativa. Quando, enfim, “podemos dominar tudo, por meio da previsão” pelo uso da técnica e da racionalização.46

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NONNENMACHER, Marilange. Vida e Morte Miramar: memórias urbanas nos espaços soterrados da cidade. Florianópolis: UFSC, 2007. (Tese de Doutorado em História). 45 NONNENMACHER, Marilange. Teatro trapiche: a arte da resistência. Primeiros resultados da pesquisa para tese de doutorado a ser defendida no Departamento de História, UFSC. p. 307 46 WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Editora Cultrix. São Paulo, 2008. p. 30-31.

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O clima fantasmagórico presente na narrativa de Salim Miguel e também nas obras de Franklin Cascaes, sejam nos seus desenhos ou nas histórias recolhidas pelas pessoas mais simples do interior da Ilha estão carregadas desse tom de denúncia, em que os moradores questionam esse intenso processo de mudanças que passavam a vivenciar cotidianamente. As modificações no espaço urbano e as expectativas sobre o futuro eram lidas, entendidas e reproduzidas como o caos (LOHN, 2002). Voltando ao conto de Salim Miguel, nele podemos ver indícios dessa “perda” da cidade. O delegado de polícia que investiga o caso, à certa altura, questiona Franklin Cascaes: como pode o garoto ter ouvido uma voz que indicava a procura pelo professor? Franklin responde que “são tudo coisas desta Ilha misteriosa e embruxada.” A voz que o garoto escutava, descobre-se no final do conto, é a da bruxa de cinco cabeças que o rapaz morto havia encomendado em forma de desenho ao Cascaes personagem. Na carpintaria literária, a bruxa indica ao garoto que o Cascaes, recolhedor de histórias fantásticas da Ilha e desenhista, é capaz de revelar o mistério da “morte”, mas também de maneira simbólica, reconhecer que a morte estava próxima da cidade, justamente ao encontro do Miramar. Lugar onde o garoto repousava toda manhã antes voltar para casa com o pacote de pão comprado para o café da manhã da família. Era sentado no Miramar que o personagem também se envolvia em “sonhos e fantasias”. Na trama, Cascaes não se desfaz da versão do garoto. Ouvir uma voz fantasmagórica na cidade onde tudo era possível, não soava como absurdo. Na obra de Franklin Cascaes, as bruxas compunham uma importante metáfora acerca das mudanças que Florianópolis começou a vivenciar a partir da metade dos anos 50: As bruxas frequentemente eram associadas às grandes obras civis em execução na cidade, expressando o desprezo do artista pelas transformações urbanas. Alegóricas, ao exprimirem de um modo ampliado e complexificado as metáforas, expondo de uma forma por vezes bem humorada, em outras tantas trágica, os processos mais recorrentes no período. Representações de uma época, de uma cidade e de um novo ritmo de vida, as imagens de Franklin Cascaes proporcionam uma aproximação mais qualificada com as práticas culturais da cidade de Florianópolis no período. O mais importante de tudo, é que dão uma pequena mostra de que um novo horizonte de expectativas fazia parte da vida de grande parte dos moradores da cidade (LHON, 2002, p.175).

Florianópolis até o início da década de 1970, embora capital de Santa Catarina, ainda conservava em seu desenho urbano a feição de uma cidade colonial e por muitas vezes nomeada provinciana por seus moradores e pela imprensa. Não apenas pela falta de aparelhos urbanos que pudessem lhe conferir o ar de metrópole, mas também por não estar inserida no mercado de consumo de massas, sem a formação de um parque industrial, conservando em

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seus hábitos cotidianos, atividades consideradas ultrapassadas, como por exemplo, o uso de embarcações para se locomover. Estes são os caminhos e percursos que são passíveis de estudo sobre as cidades. Uma série de discursos e imagens que se constroem no imaginário social sobre o urbano (PESAVENTO, 2002). Naquele momento, Florianópolis passava a tornar realidade, no plano físico da cidade, os desejos de futuro vislumbrados nas décadas de 1950 e 1960 que não foram possíveis de concretizar. Parte de um projeto elitista e conservador que previa a manutenção hierarquizada da sociedade florianopolitana. Portanto, verifica-se o paradoxo entre uma cidade que se “perde”, ouvindo das vozes de seus habitantes um reclame, um lamento, ao mesmo tempo em que se projeta e se deseja uma nova cidade. Esta aparente confusão de discursos faz parte da percepção de que a cidade é “o lugar do homem, ela se presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, abordam o real na busca de cadeias de significados”. 47 Aqui cabe a ressalva de que “perder” uma cidade não significa enterrar a que precedeu. O presente sempre conserva uma mescla de temporalidades. Em qualquer cidade pode-se observar marcas do que passou. Por exemplo, em cidades europeias com dois mil anos de história. O passado ainda está no presente e é através dos seus vestígios que ele chama atenção para sua permanência.48 Como ainda hoje, quem atravessa a praça XV em Florianópolis, pode verificar na sua porção inferior os pilares do que foi o Miramar, embora sua disposição atual não represente qualquer semelhança com a construção original. O intenso processo de urbanização e modernização pela qual a capital catarinense passou, ao levantar a partir da década de 1970 uma “nova” cidade, tornou-a um centro atrativo para os ditos de “fora” de variadas classes. Pessoas simples que migraram do interior do Estado em função da concentração fundiária, na busca por melhores oportunidades, e a incorporação de uma classe média com alta qualificação que vieram compor os cargos públicos na esfera estatal. Este cenário criou uma disputa simbólica pela cidade. Aqueles “antigos” moradores, chamados “nativos” por possuírem raízes culturais e afetivas com a cidade, olharam para aquela nova experiência com temor. Os de “fora”, principalmente aqueles pertencentes à classe média, passaram a serem vistos como ameaça.49

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano (Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre). Porto Alegre: UFGRS, 2002, p.9 48 LEFEBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Ediciones península. Barcelona, 1978, p.20 49 FANTIN, Márcia. Cidade Dividida - Florianópolis: Cidade Futura, 2000. p. 45.

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O ano de 1973 esboçava parcialmente “A nova Florianópolis”.50 Para o jornal “O Estado”, atingir o novo significava vencer “as dificuldades históricas que retardaram as conquistas políticas, sociais econômicas que nos estão reservadas.”51 A confiança num futuro próximo e promissor expresso pelo jornal devia-se à elevada taxa de crescimento do estado de Santa Catarina, que atingiu 16% no primeiro ano da década de 1970.52 Diante desse quadro econômico favorável, quem folheasse os jornais da época teria a rápida impressão de que a capital catarinense estava “definitivamente numa faixa de desenvolvimento irreversível.”53 Os projetos de remodelação da cidade em curso apontavam para o recebimento de significativos recursos, seja da esfera pública ou privada.54 No mês de dezembro de 1972, a editoria do jornal “O Estado” chamava atenção para a captação de recursos do governo estadual junto a Western Pennsylvania para a construção da nova ponte.55 A construção da ponte Colombo Salles e do aterro da baía sul foram dois empreendimentos que mudaram profundamente a fisionomia da cidade.56 Mudaram também os hábitos da população que transitava pelo Centro. Ainda naquele mês, outro editorial do periódico descrevia, na época, a mais recente atividade das pessoas que circulavam nas proximidades da baía. A draga Sergipe, responsável por retirar a areia do fundo da baía para compor o aterro, ironicamente, foi transformada em objeto de lirismo pela narrativa do jornal, quando os populares deixaram de lado suas atividades habituais no em torno da Praça XV para observá-la: A draga mereceu prosa e verso, deu significado às manhãs de um casal de velhos, e serviu de paisagem para alegres escolares. Enquanto não deu início a sua faina a draga despertou a curiosidade geral apenas pela sua silhueta pouco aerodinâmica: um retângulo flutuante, com uma enorme chaminé desfraldada ao vento. Durante mais de um mês ela permaneceu fundeada na baía, languidamente ancorada na curiosidade dos nativos. Gradativamente, a medida em que exteriorizava o seu repertório de mágicas, a Draga Sergipe foi conquistando novas plateias, acostumadas a apreciar sua tarefa de fazer terra o que era mar. Uma terra feita de areia finíssima, de ignotas safras marinhas, que a circunferência de seu grande tubo 50

O Estado. Florianópolis, 23/01/1973, Editorial: A nova Florianópolis, p. 04 O Estado. Florianópolis, 02/01/1971, Editorial: Prenúncios de 71, p. 04 52 O Estado. Florianópolis, 05/01/1971, Editorial: Um exemplo e Uma certeza, p. 04 53 O Estado. Florianópolis, 07/01/1971, Editorial: Buraco, p. 04 54 Florianópolis deveria ser o polo urbano privilegiado em Santa Catarina, síntese do desenvolvimento estadual, atraindo investimentos públicos e privados, sendo o núcleo integrador e aglutinador das diversas regiões de Santa Catarina, que apresentavam características mais ou menos autônomas e com a dinâmica econômica dependente de outros Estados da federação LOHN, op. cit. p. 420 55 O Estado. Florianópolis, 08/12/1972, p. 03 56 A cidade de Florianópolis recebeu investimentos vultosos por parte dos governos federal e estadual, evidenciados por um enorme crescimento urbano e diversas transformações que alteraram quase completamente sua fisionomia. Essas profundas transformações na cidade, de caráter físico e simbólico, influenciaram diretamente seu desenvolvimento posterior, seja na constituição da população ou na mudança abrupta de sua configuração urbana. ORLANDI, Verônica Pereira. Uma cidade em Transformação: Modernização da cidade de Florianópolis Durante a elaboração do plano diretor de 1976. Monografia no curso de graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, 2009. p. 14. 51

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expele com paciente regularidade. Contrastando com as águas azuis da baía, as dunas imaculadamente brancas se transformaram numa nova atração turística, valorizada pelo incessante trabalho da draga (O Estado, 03/12/1972, p.16).

A área do aterro fixada em quatrocentos mil metros quadrados mostra a dimensão da obra, o impacto que teve para cidade e a curiosidade despertada na população para acompanhar os trabalhos da draga. Ao mesmo tempo expõe o fascínio pela modernização e sua capacidade de transformar o espaço através da técnica e da mecanização. Além de representar um ritmo acelerado para a cidade associado ao espaço urbano. Para imprensa da época, a execução do aterro implicava também em obter o controle de uma cidade que já mostrava no final da década de 1960 a recorrência de engarrafamentos na área central. O aterro foi festejado como uma maneira de planejar a metrópole que Florianópolis deveria se transformar. Desta porção imensa de terra que deveria emergir do fundo do mar, cem mil metros estariam destinados à instalação de “supermercados, cinemas, hotéis, lojas de exposições de automóveis e empresas turísticas.” A comissão executiva da nova ponte que também era responsável pelo aterro previa ainda a construção de “prédios públicos e grandes áreas verdes.”57 O editorial traz ainda a informação de que a BESC-TURISMO, empresa encarregada pela venda dos lotes, já havia recebido até aquele momento, mais de trinta consultas sobre as áreas destinadas a comercialização. Prática esta que seria muito comum nos anos seguintes em Florianópolis. O uso da cidade pelas elites como um grande balcão de negócios, onde a terra torna-se a principal mercadoria para seu benefício e enriquecimento. Em janeiro de 1973, enquanto a draga Sergipe operava o “milagre” de tornar o mar em terra, o editorial de “O Estado” noticiava que o grupo financeiro do BESC se reunia para elaborar um plano de urbanização do aterro. O tal plano previa “pormenores de ordem sanitária, bem como de comodidades públicas, indispensáveis e imediatos.”58 Como observou (LOHN, 2002), a elaboração do aterro e o consequente afastamento do mar, não decorreu de uma “necessidade” ou “imposição” do crescimento urbano, pelo contrário, passou a ser uma prática corriqueira na maneira de gerir o espaço da cidade. Ao observar com atenção os jornais da época verifica-se que os engarrafamentos constantes na cabeceira da ponte Hercílio Luz em direção ao continente e o seu encadeamento para as demais ruas do centro, como a Felipe Schmidt, são utilizados pela imprensa como a razão principal para expandir a malha rodoviária do Centro. Mesmo ainda, antes do começo da obra, o aterro é apresentado pelos jornais como a única solução possível para melhorar o trânsito na área central. Em nenhum momento se 57 58

O Estado. Florianópolis, 29/12/1972, Editorial: “Comercialização do aterro já desperta expectativas”, p.6. O Estado. Florianópolis, 23/01/1973, Editorial: “A nova Florianópolis”, p.4.

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cogitava, por exemplo, o investimento em transporte público para conter o excesso de carros circulando pelas ruas da capital. O periódico lembrava que o “crescimento permanente do número de veículos em circulação” esgotava “a capacidade do tráfego nas ruas estreitas, tornando-se necessária a adoção de providências arrojadas.” Negar tal medida significava inviabilizar “o progresso” que poderia ser estrangulado justamente pela “falta de liberdade de locomoção daqueles a quem compete movimentar as forças dinamizadoras da economia.”59 Nesse período também, entra em destaque a noção de que é preciso fazer um bom uso do tempo e essa nova atitude deve começar pelo trânsito. Não se pode perder tempo para chegar ao trabalho. Como frisa o jornal: “o tempo perdido com o trânsito é tempo precioso que deixa de ser contado nas horas de trabalho de uma considerável parcela da população.” Essa preocupação com o melhor uso do tempo é parte integrante e fundamental da modernidade e da vida nas grandes cidades. Como chama atenção (SIMMEL, 2005), “o espírito moderno tornou-se mais e mais um espírito contábil.” A vida dos homens na grande cidade só é possível diante de uma ordenação. As relações e atividades nas quais o habitante da grande cidade está exposto pertencem a um sistema tão complexo, por onde só possível concretizar a vida por essa ordem temporal. Sem isso “o todo se esfacelaria em um caos inextricável.” Somado a isso “a grandeza das distâncias, que torna toda espera e viagem perdida, uma perda de tempo insuportável.”60 Nessa lógica de preparar a cidade para o futuro, colocou-se em prática a execução do aterro na baía sul e à construção da nova ponte. Embora essas grandes obras pudessem significar um novo marco urbanístico para a capital, elas, na verdade, se concretizaram como espaços destinados a implantação de rodovias. Quando o aterro foi concluído, sua principal função foi a de ligar a nova ponte, a Avenida Beira-Mar Norte e, posteriormente, já na década de 1980, conectar-se ao Sul da Ilha. Ainda que os planejadores do Plano Diretor de 1952 tenham pensado o crescimento de Florianópolis junto ao mar, o que se viu foi o abandono completo dessa possibilidade, pelas elites políticas da cidade e do Estado, que privilegiaram as grandes vias rodoviárias no sentido Norte da Ilha, de maneira que o perímetro urbano pudesse abarcar áreas propícias à expansão do turismo. Este argumento se confirma quando é terminada a construção da Avenida BeiraMar, área esta privilegiada por ter recebido “os maiores investimentos em melhorias urbanas e serviços públicos.”61 59

O Estado. Florianópolis, 08/01/1971, Editorial: “Uma solução”, p. 4. SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana [online]. 2005, vol.11, n.2, p.580. 61 LOHN, op. cit. p. 291 60

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Em janeiro de 1980, “O Estado” estampava na primeira página uma foto panorâmica do aterro. Nela destaca-se o imenso estacionamento no qual o aterro havia se transformado. O espaço que deveria reunir prédios públicos conjugados a uma extensa área de lazer urbanizada acabou por servir aos propósitos rodoviários que o poder público impôs à cidade: Figura 3 – Capital ganha heliporto no aterro.

Fonte: (O Estado, 26/01/1980).

À medida que o aterro avançava atingindo as imediações da Rua Francisco Tolentino, por exemplo, a cidade passava a incorporá-lo em seu cotidiano. É interessante observar que aquela porção de terra, até então vislumbrada pela imprensa como um lugar de “ordem”, destinada à planificação e à organização do urbano ganhava antes de qualquer intervenção pública, “novos” usos inteiramente distintos daqueles previstos pelos seus planejadores. Aqui cabe a análise de que “nenhuma cidade excessivamente planejada e controlada segue invariavelmente o modelo que a gerou” (LEITE, 2007). A carta de uma moradora da Agronômica chama atenção para utilização do aterro como estacionamento:

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A falta de locais para estacionamento em Florianópolis leva os motoristas a invadir o local aterrado pela draga. Isto vem provar mais do que nunca que o Governo Municipal precisa tomar providências no sentido de abrir novos locais para o estacionamento público, ou mesmo construir edifícios destinados a este fim. É preciso também que o Governo planeje o local do aterro de uma forma que não venha provocar como nas atuais ruas, engarrafamentos que estão provocando neuroses nos motoristas (O Estado, 21/01/1973, p.04).

A carta mostra que aos poucos àquela cidade vista pela imprensa como tumultuada acabava invadindo o novo espaço que se destinou ou se imaginou para a efetivação de uma nova ordem urbanística. Por isso, na concepção da leitora era preciso que o poder municipal interviesse rapidamente para que o aterro não adquirisse os mesmos problemas da região central. Em janeiro de 1980, “O Estado”, estampou na primeira página uma foto panorâmica do aterro já urbanizado, com a Avenida Paulo Fontes em primeiro plano e seus arredores transformados em estacionamento. Como se viu, alguns anos depois, o aterro não concretizou as expectativas apontadas pela imprensa de congregar lazer, consumo e área verde. Esta nova fisionomia urbana aglutinou o centro histórico ao aterro “para formar um novo espaço, desterritorializador da sociabilidade marinha, que teve dificuldade de reinscrever outros usos, a não ser os de automobilidade.”62 Contudo, esse momento de ruptura da sociabilidade marinha marcava também a passagem do mar como valor de uso63 para o valor de troca.64 Se antes o mar era usado pelos habitantes do interior da Ilha como o lugar onde se retirava o alimento para satisfazer a fome, posteriormente, o mar começa a ser visto e utilizado pelos setores públicos e privados como 62

SANTOS, Paulo César dos. Espaço e memória: o Aterro da Baía Sul e o desencontro marítimo de Fpolis. Dissertação (Mestrado em História). Florianópolis: UFSC, 1997. p.65. 63 Toda coisa útil, como ferro, papel etc., deve ser considerada sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da quantidade. Cada uma dessas coisas é um conjunto de muitas propriedades e pode, por isso, ser útil sob diversos aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, portanto, as múltiplas formas de uso das coisas é um ato histórico. Assim como também é um ato histórico encontrar as medidas sociais para a quantidade das coisas úteis. A diversidade das medidas das mercadorias resulta, em parte, da natureza diversa dos objetos a serem medidos e, em parte, da convenção. A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Mas essa utilidade não flutua no ar. Condicionada pelas propriedades do corpo da mercadoria [Warenkorper], ela não existe sem esse corpo. Por isso, o próprio corpo da mercadoria, como ferro, trigo, diamante etc., é um valor de uso ou um bem. Esse seu caráter não depende do fato de a apropriação de suas qualidades úteis custar muito ou pouco trabalho aos homens. Na consideração do valor de uso será sempre pressuposta sua determinidade [Bestimmtheit] quantitativa, como uma dúzia de relógios, 1 braça de linho, 1 tonelada de ferro etc. Os valores de uso das mercadorias fornecem o material para uma disciplina específica, a merceologia. O valor de uso se efetiva apenas no uso ou no consumo. Os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta. Na forma de sociedade que iremos analisar, eles constituem, ao mesmo tempo, os suportes materiais [Stofflische Trager] do valor de troca. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. p.113-114 64 O valor de troca aparece inicialmente como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de outro tipo, uma relação que se altera constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor de troca parece algo acidental e puramente relativo, um valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria(valeur intrinsèque); portanto, uma contradictio in adjecto[contradição nos próprios termos]. Ibidem - p.114

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área prioritária para receber remessas de investimentos, de maneira a tornar os terrenos localizados à beira-mar em espaços de grande valor e prestígio social. Essa mercantilização do mar, primeiro, moveu-se para o continente, em seguida para as baías Norte e Sul até chegar às praias oceânicas. Na esteira desse comércio, empresas locais adquiriram extensas áreas de terras, onde muitas vezes ficavam expostas as relações promíscuas entre o público e o privado. É o caso conhecido, por exemplo, da família Ramos, que detinha latifúndios no planalto e passaram a formar latifúndios na Ilha de Santa Catarina. A área onde hoje se localiza o bairro de Jurerê Internacional pertencia a Aderbal Ramos da Silva, enquanto que a Praia Brava era propriedade do governador Celso Ramos (FERREIRA, 1998, p.110-111). As conversas no trapiche ou uma eventual pescaria, o comércio de cerâmica, a chegada de barcos carregados com peixes, o cheiro do mar, tudo isso cedeu lugar a um novo ritmo que vinha se delineando no Centro da cidade desde o final da década de 1960. A velocidade dos carros, o estardalhaço das buzinas, um eventual acidente automobilístico e um fluxo cada vez maior de pedestres se misturando pelas calçadas ou disputando espaço entre os veículos nas ruas marcou aquele momento de mudanças e afastamento do mar. Ainda no começo da década de 1970, outra foto de capa trouxe a aglomeração de curiosos na região da Capitania dos Portos que observavam a grande lagoa que havia se formado no aterro. Chamava atenção da multidão os carros que ficaram ilhados por conta da subida repentina da maré.65 No final daquele mês, a “Lagoa do Aterro” assim batizada pelos comerciantes locais, persistia, mas já se sabia que sua permanência era causada pelo esgoto que desembocava no local fazendo proliferar “grande número de insetos que transformaram a área em seu habitat”.66 A matéria destacava o prejuízo sofrido pelo Hotel Royal com o ataque dos insetos. O que de certa forma mostra que as intervenções de remodelação do urbano nem sempre concretizavam as ideias de “ordem”, “progresso” e “planejamento” projetadas pela imprensa diária. As mudanças muitas vezes traziam novos percalços que contrariavam as perspectivas de melhora. Em dezembro de 1973, “O Estado” destacou um dos pilares estaqueados da ponte na baía sul, e o avanço da pista em direção ao aterro já concluído naquele momento. Embaixo da foto a legenda dizia: “Ela, como a sua vizinha Hercílio Luz, vai mudar muita coisa na ilhacapital.”67 Assim como a ponte Hercílio Luz se constituiu como um símbolo de modernidade 65

O Estado. Florianópolis, 06/02/1973, Foto de capa, p.01 O Estado. Florianópolis, 22/02/1973, Editorial: “Água estagnada forma uma lagoa no aterro”, p.08 67 O Estado. Florianópolis, 09/12/1973, Foto: “ELA”, p.01. 66

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para cidade no começo do século XX, a nova ponte prenunciava um novo momento de mudanças. A finalização do aterro transformou radicalmente o Centro de Florianópolis, e quando a nova ponte ligasse a área continental ao novo espaço aterrado, estaria pronta a “expansão da cidade e sua melhoria dos pontos de vista estético e prático.”68 As mudanças anunciadas pela imprensa assumiram múltiplas facetas e não ficaram restritas ao aspecto físico ou estético. Como foram mencionadas, essas mudanças alteraram, ao menos na região central, toda sociabilidade marítima que a proximidade com o mar proporcionava. O exemplo radical dessa experiência de ruptura foi à chegada do aterro no entorno do Miramar. Duas fotos publicadas, em fases distintas, na capa de “O Estado”, ilustram este momento. A primeira, tirada no próprio Miramar, na qual um aglomerado de pessoas observavam os trabalhos da draga Sergipe. Dois meses depois o mesmo Miramar aparecia cercado de terra por todos os lados apenas com uma faixa de água ao seu lado direito em decorrência do acúmulo de esgoto. Naquele momento em que o Miramar perdia sua finalidade original, pois não se encontrava mais cercado pelas águas da baía sul, é que começam a surgir sugestões ou novas utilidades para sua presença em terra. Em 1971, a prefeitura anunciou a retirada do então locatário com a intenção de montar um centro de informações turísticas para a cidade. Naquele mesmo ano, assim que fora anunciada à construção do aterro, o colunista Gustavo Neves se apressou em parabenizar atitude de reintegração do Miramar junto ao poder público, mas deixou claro que o mirante não caberia ao novo contexto urbano da cidade: O Mira-Mar está a reclamar um administrador de mais alta visão urbanística que o remova dali, substituindo-o por alguma construção que melhor se harmonize com o novo panorama estético que há de situar Florianópolis entre as mais modernas e belas capitais (O Estado, 22/07/1971, p.04).

Antes do início dos trabalhos da draga Sergipe, uma matéria denunciava o estado de abandono do Miramar que havia se transformado em “quase apenas um triste trampolim.”69 Naquele momento o Miramar só servia de trampolim para os garotos que se banhavam na baía sul, segundo o periódico. Há uma clara sinalização editorial que pretendia desqualificar qualquer uso possível do prédio. O texto ressaltava que não existia a possibilidade de instalar um restaurante no local em vista que o aterro cederia boa parte do terreno para abertura de uma avenida que estaria ligada à nova ponte.

68 69

O Estado. Florianópolis, 02/12/1972, Coluna Gustavo Neves: “O aterro”, p.04. O Estado. Florianópolis, 10/2/1972, Capa: “Miramar: quase apenas um triste trampolim”, p.01.

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Figura 4 - Populares observam os trabalhos da draga Sergipe no aterro da baía sul.

Fonte: (O Estado, 15/12/1972).

Figura 5 - Miramar e a “Lagoa do Aterro”.

Fonte: (O Estado, 23/02/1973).

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Diferentemente do que previa o jornal ao estipular um único uso para o local, todo espaço que recebe ou passa por um processo de remodelação não está, exclusivamente, destinado a um esvaziamento de seus usos, pelo contrário, acaba recebendo “uma reordenação da sua lógica interativa, a partir das apropriações dos espaços mediante a construção dos lugares” (LEITE, 2007). Nesse sentido, é interessante observar uma carta de um morador do Centro que foi enviada ao jornal. Nela o autor argumentava contra a possível demolição do Miramar e sugeria que o espaço continuasse abrigando o Teatro Trapiche. Por que não deixar o Miramar em meio a um jardinzinho bem cuidado e conservar ali o Teatro Trapiche? A gente acaba sentindo medo (do jeito que as coisas vão) , que acabem com o local e não arranjem outro para nele instalar um pequeno teatro, ou um local de exposições, de concertos, etc. Mas , se querem mesmo demolir o Miramar, por que não erguer ali uma concha acústica, com palco? A Cidade precisa, urgentemente, de um local ao ar livre, a fim de aproveitar melhor a sua arte e os seus artistas. Que as autoridades reconsiderem bem este ponto (O Estado, 07/12/1972, p.04).

Antes da sua demolição, o Miramar adquiriu diferentes usos, de maneira que pudesse ser incorporado à cidade. Um pouco antes do início das obras do aterro, por exemplo, o lugar passou a receber pequenos barcos com turistas que pagavam para navegar entre a baía sul e norte. O local também passou a abrigar, nesse mesmo período, a maquete da segunda ponte, ironicamente, o “suporte da memória marítima” mostrava que o futuro próximo afastaria o mar do centro da cidade.70 Em 24 de outubro de 1974, as “determinações que constavam no Plano Catarinense de Desenvolvimento, o qual pleiteava a racionalização e o planejamento da configuração urbana, como forma de transformar a capital”71 foram imperativas a ponto de culminar com a demolição do Miramar. Um momento histórico em que conseguiriam viabilizar a passagem de uma nova avenida, e simbólico, “porque era um dos símbolos mais fortes da maritimidade do centro da cidade que estava sendo desativada naquele momento.”72 Um exemplo marcante que demonstra a vitória dessa política rodoviária no Estado de Santa Catarina está no registro da entrada de navios no porto de Florianópolis. Entre as décadas de 1940 e 1960 foram registradas a entrada de 1.382 navios, enquanto que na década de 1970 foram registrados apenas 15. A diminuição no fluxo de embarcações indica ainda a

70

SANTOS, op. cit. p. 45 NONNENMACHER, Marilange. Vida e Morte Miramar: memórias urbanas nos espaços soterrados da cidade. Florianópolis: UFSC, 2007. (Tese de Doutorado em História), p.61. 72 SANTOS, op. cit. p. 46 71

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mudança na maneira de escoar a produção agrícola da região, que deixou de utilizar o porto da cidade para fazer uso da BR-101, alocando nas suas proximidades armazéns de estoque.73 É importante ressaltar que todas as ações, até então viabilizadas pelo governo do estado ou por investimentos privados no sentido de tornar Florianópolis uma capital com a feição de metrópole (construção da nova ponte, do aterro da baía sul e o alargamento da Avenida Beira-Mar Norte), estavam alinhadas a um permanente investimento simbólico dos políticos locais, da elite e da imprensa. O jornal “O Estado” servia, nesse sentido, como portavoz dos grupos políticos empresariais que buscavam legitimar as intervenções feitas na cidade. Como foi visto, anteriormente, a ideia de que a construção do aterro era uma necessidade para acabar com os engarrafamentos do Centro, era frequente nos noticiários do final da década de 1960 e início de 1970.74 E, paralelo a isso, o surgimento crescente de um “medo” da ponte Hercílio Luz pelos usuários, principalmente, quando foi noticiado, em 1967 o desmoronamento da Silver Bridge nos EUA, ponte que conservava características similares as da ponte Hercílio Luz. Todos esses fatores faziam com que o Plano Catarinense de Desenvolvimento do governo Colombo Salles ganhasse ainda mais força e conseguisse de fato colocar os investimentos na ampliação do transporte rodoviário como uma prioridade “em consonância com o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do Governo Médici.”75 Neste caso, pode-se conferir ao periódico a tarefa de “porta-voz autorizado” (Bourdieu, 1996). É ele quem veicula através da sua escrita “o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato”, no caso o poder público do estado de Santa Catarina e o poder municipal que estavam alinhados com o governo civil militar naquele momento. O discurso só garante sua eficácia quando este é pronunciado por alguém, que dispõe o poder de anunciá-lo. Essa capacidade de afirmar o discurso só ocorre quando há uma correlação entre as “propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo.”76 O jornal “O Estado” no posto de principal periódico regional naquele momento, ocupava-se deste trabalho, não somente endossando o aparato ideológico do regime, mas também promovendo um silêncio em relação à repressão do regime.

73

PELUSO JUNIOR, Victor Antonio. O crescimento populacional de Florianópolis e suas repercussões no plano e na estrutura da cidade. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, 3ª fase, nº 3.981 74 Ibidem –p.59 75 Ibidem-p. 60 76 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. p. 89.

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No início da década de 1970, é marcante a presença de termos como: “progresso”, “desenvolvimento”,

“façanha

progressista”,

“homens

especializados”,

“futuro”,

“prosperidade”, “civismo”, “pátria”, “crescimento” e “ordem” nos editoriais do jornal “O Estado”. São palavras que compõem o discurso otimista para propagar a ideia de que o Estado catarinense encontrava-se na rota irreversível de mudanças em sua economia e vida social auxiliado pelo rigor da técnica. A afirmação constante do jornal em confirmar um futuro promissor que deveria chegar em breve para os catarinenses encontra ressonância com o: [...] ideário utopista e autoritário dos militares e dos que os apoiavam e vislumbravam um Brasil economicamente poderoso no cenário internacional, onde também seria respeitado pelo comportamento e pela postura francamente otimista e civilizada de sua população (FICO, 1997, p.40).

Para tanto, não é de admirar que o jornal mostrasse insistentemente a adesão do governo catarinense ao regime civil-militar. Como é o caso do editorial “Futuro certo” em 27 de janeiro de 1971. O texto procura adiantar que Santa Catarina sempre foi “um exemplo de ordem e civismo na vida brasileira.”77 A justificativa persegue a ideia de que o povo catarinense sempre esteve disposto para o trabalho e solícito ao comportamento cívico, características essas, que o credenciariam como “um povo amadurecido para as grandes tarefas que cumpre realizar não só no âmbito regional como também em todo País.”78 O periódico advertia, ainda, que os planos de desenvolvimento eram efetivados sem “qualquer tentativa de agitação ou quebra da ordem.” E, mais, que há algum tempo “os catarinenses compreenderam que, sem tranquilidade, não pode haver prosperidade.”79 Estava muito claro, na posição assumida pelo jornal, que naquele momento qualquer alternativa política que contestasse o regime atrapalharia o curso desenvolvimentista que o estado e a cidade de Florianópolis estavam dispostos a promover em consonância com a política desenvolvimentista do regime civil militar. Em outro editorial daquele mês, o jornal lembrava que Santa Catarina estava em franca expansão em áreas consideradas estratégicas como o “transporte, telecomunicações, educação, energia e indústria”80 O impacto dessas transformações contribuía também para diminuir o sentimento de inferioridade que as elites políticas e empresariais catarinenses percebiam em relação aos estados vizinhos. A realização das obras de infraestrutura fariam com que Santa Catarina alcançasse “voos mais ousados no contexto nacional, deixando de

77

O Estado. Florianópolis, 27/01/1971, Editorial: “Futuro certo.”, p.04. Ibidem –p.04 79 O Estado. Florianópolis, 13/01/1971, Editorial: “Futuro promissor.”, p.04. 80 Ibidem - p.04. 78

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figurar no mapa como apenas um acidente geopolítico entre os Estados do Rio Grande do Sul e do Paraná.”81 No final da década de 1960 e até metade da década de 1980, estavam em processo de construção grandes obras lançadas pelos governos militares, como a rodovia Transamazônica (BR-230), a usina hidrelétrica de Itaipu e a Central Nuclear de Angra dos Reis. Em 07 de setembro de 1972, “O Estado” destacava o início da construção do vão central da ponte RioNiterói. Na capa da edição do dia 08, o jornal fez questão de fixar uma imagem de Florianópolis dentro deste processo de modernização. Já parece distante o dia em que a draga Sergipe cruzou triunfal a linha demarcatória entre as Baías Norte e Sul, sob a velha Ponte Hercílio Luz, para dar início às obras do aterro. De lá para cá muita coisa já foi feita. Ontem o Governador Colombo Salles assinou contrato de fechamento de cambio com o Banco do Brasil no valor de U$ 12 milhões, importância que será destinada às obras de construção da nova ligação viária entre a Ilha de Santa Catarina e o Continente (O Estado, 08/12/1972, p.01).

É possível perceber, que o entusiasmo pelo futuro e a ideia de deixar para trás um período de “atraso” encontrou ressonância também no discurso de ordenação urbana, buscava rejeitar um “urbanismo provinciano” com o intuito de “legar às gerações futuras o fruto de um esforço afinal recompensado.”82

Para o jornal, a cidade encontrava-se numa situação

privilegiada de mudanças, e por isso mesmo, não poderia perder a oportunidade definitiva de ingressar no ritmo desenvolvimentista do “milagre brasileiro.” Florianópolis é hoje uma cidade que ingressou definitivamente numa faixa de desenvolvimento irreversível. Já vão longe os anos em que a modorra e a estagnação eram os atributos mais marcantes das administrações. O que ainda se faz necessário é acelerar o ritmo para que possa a administração alçar-se definitivamente no voo do desenvolvimento (O Estado, 07/01/1971, p.04).

A noção de prognóstico acerca da vida humana, no sentido de lhe conferir também um planejamento, aparece e se desenvolve na Europa entre os séculos XVI e XVIII, quando as especulações sobre o futuro ficaram livres da religião cristã e a cargo do cálculo político. A formação do Estado moderno resultou numa luta permanente, deste, contra todo o tipo de profecias políticas e religiosas (Koselleck, 2006). Em resumo, o Estado obteve o “monopólio da manipulação do futuro.”83 A partir da necessidade e responsabilidade que passou a ter em gerir um determinado território e sua população de maneira a garantir o bem estar, aumentando “sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde etc.” 84 O conjunto dessas intervenções do Estado na sociedade ficou conhecido por Biopolítica. A atuação do Estado 81

Ibidem –p.04. O Estado. Florianópolis, 13/1/1971 – op. cit. p.04. 83 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 29 84 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 289. 82

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estabelece que a população seja ao mesmo tempo alvo e instrumento de uma relação de poder. É importante se perguntar, para quem se fazia biopolítica, no contexto de um regime autoritário como aquele vivenciado no Brasil entre às décadas de 1960 e 1980? Para quem seria esse bem estar? Para a população pobre do campo e das cidades, esse “bem estar” ficou distante do horizonte durante o regime civil militar.

1.3 A EXPANSÃO DO MERCADO IMOBILIÁRIO E DA CONSTRUÇÃO CIVIL O periódico também chama a atenção para um possível “descontrole” que a aceleração do crescimento sinalizava, pouco antes da realização das obras de remodelação urbana. Nessa perspectiva, a “nova” cidade estava em perigo. Àquela cidade que contemplava o casario colonial, chamada de velha, estava isenta da “culpa”, pois só naquela década “a urbanização racional” começava “a dar alguns sinais de sua presença.”85 Mas vinha a advertência de que Florianópolis não possuía as “condições necessárias para continuar resistindo por muito tempo” àquele “ritmo de crescimento”.86 Por isso, aparecem medidas para coibir o avanço desenfreado da cidade que cresce e se moderniza. Em dezembro de 1972, é anunciada a criação de um Conselho Municipal de Desenvolvimento que viria a substituir o Conselho de Arquitetura e Urbanismo. O novo conselho, criado pelo então prefeito Ary Oliveira, estava determinado a contribuir para a “prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses individuais ou grupais.”87 Entre suas atribuições

estava a de formar um corpo técnico capaz de apontar “os problemas do

desenvolvimento físico, social e econômico do Município.”88 Naquele mesmo ano estava em tramitação na Câmara Municipal o Plano Diretor, que, para o prefeito em questão, se destinava somente a equacionar os problemas físicos da cidade. O novo conselho deveria se ater ao processo de melhoria social de Florianópolis. A fala de um conselheiro presente na cerimônia de posse expunha a contradição no discurso empregado pela prefeitura. O conselheiro afirmava seu novo papel em sugerir melhorias tomando o devido cuidado em não “fazer pressão”, mas apenas, “alertar os poderes públicos na execução desta grande obra, que é a transformação de Florianópolis numa cidade bela e, ao mesmo tempo, humana.”89 85

O Estado. Florianópolis, 02/02/1971, Editorial: “Qual é a solução?.”, p.04. Ibidem –p.04. 87 O Estado. Florianópolis, 02/12/1972, Editorial: “Cidade ganha Conselho para desenvolvimento.”, p.03. 88 Ibidem –p. 03 89 O Estado. Florianópolis, 06/12/1972, Editorial: “Instalado Conselho da Capital.”, p.06. 86

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Abria-se, portanto, um canal de comunicação para pensar a cidade e sua coletividade, mas que possuía limites na sua essência. Quatro anos depois o vereador Waldemar da Silva Filho, que ocupava na ocasião o cargo de presidente da Câmara, ressaltava em entrevista ao jornal, que a participação dos cidadãos florianopolitanos na administração da cidade restringia-se a zelar pelo patrimônio público, mas também, “quando das solicitações das autoridades municipais para o pagamento dos seus tributos, quer impostos ou taxas”90 A cidade, que é por excelência um espaço que deveria privilegiar o público, é, naquele momento, mais um artifício onde se fez prevalecer a autoridade imposta pelo conservadorismo do regime civil militar, que procurou atender às necessidades e privilégios de sua base de apoio político, centrada nas camadas médias urbanas, mas sobretudo servido-se de balcão de negócios para elite local. A convocação deste conselho para a cidade, em 1972, é dirigida, ou seja, nomeada de acordo com os interesses da administração. A afirmação do vereador citado também mostra que a participação dos moradores destinava-se apenas a pagar os tributos, excluindo qualquer possibilidade de intervenção popular sobre os principais temas de interesse da cidade. E, por último, para arrematar essa lógica de controle, todos aqueles moradores que não fossem capazes de pagar seus impostos não poderiam participar desse processo. Portanto, o que se observa, é que a cidade é pensada para beneficiar uma parte privilegiada da sociedade. “Para as elites, os excluídos, não são ‘da cidade’, não são ‘a cidade’. Apenas estão na cidade” (FANTIN, 2000, p. 52). O então colunista do jornal, Gustavo Neves, cobrava agilidade na aprovação do novo Plano Diretor de 1976. No entanto, procurava descrever o processo de crescimento da cidade e a necessidade de planificação sobre o urbano com argumentos naturalistas, o que mascarava ainda mais as disputas que estavam em jogo. Em sua coluna semanal sentenciava o curso “natural” percorrido pela cidade até aquele momento e as expectativas da população: Crescer é indiscutivelmente uma tendência normal da cidade. Não é menos normal a expectativa da população, no que diz respeito a comodidades, segurança e estética urbanas. Dir-se-ia, porém, que, tal a vertiginosa expansão da cidade, a surpresa nos toma de assalto e nos força a estacionar, como se na expectativa de melhor orientação. Assim, urge caminhemos, nas linhas dum Plano que não pode tardar mais. Já agora é o progresso que nos empurra – e não há como resistir (O Estado, 12/02/1976).

A este respeito cabe considerar que as discussões em torno do Plano Diretor se movem sobre um projeto de cidade controverso, pois reunia “anseios de diferentes naturezas” para os mais diversos problemas decorridos do intenso processo de urbanização que Florianópolis 90

O Estado. Florianópolis, 10/02/1976, Cidade: “Plano Diretor: três anos de espera.”, p.15.

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vinha incorporando desde o fim da década de 1960. Projeto este, que foi marcado “por profundas disputas, que apontavam para perspectivas díspares ou mesmo antagônicas de cidade.”

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Um percurso complexo e muito diferente daquele no qual o colunista procurava

pintar em sua argumentação. O Plano Diretor foi aprovado em julho de 1976 através do projeto de lei nº 1.440, na gestão do então prefeito Esperidião Amin político ligado à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que visava substituir o Plano Diretor elaborado em 1952. Sua aprovação estava alinhada as diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento, criado pelo Governo Ernesto Geisel, que previa uma série de medidas voltadas para o desenvolvimento urbano e social das cidades de porte médio. Durante toda a década de 1960, os planos tinham a intenção de formular uma política urbana nacional. O I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-1974) continham breves citações sobre o espaço urbano, concentrando-se especificamente em estratégias de integração nacional, como: “a criação das regiões metropolitanas como uma medida para consolidar o desenvolvimento do Centro-Sul; e a reorientação dos fluxos migratórios rural-urbanos do Centro-Sul para o Nordeste e para as áreas de fronteira.”92 É a partir do II PND (1975-1979) que se verifica de fato o primeiro plano para a política urbana no Brasil. Como eixo temático ele contemplava discussões sobre o acelerado processo de urbanização que o país vinha incorporando desde a década de 1950, a proliferação de grandes aglomerados urbanos, a pulverização de pequenas cidades sem o crescimento equilibrado das cidades de porte médio, e por último as cidades como espaços de concentração de riquezas e equipamentos urbanos.93 Para região Sul, as determinações do plano ficaram concentradas nas cidades com população superior a 50 mil habitantes. Observa-se, portanto, que o segundo plano procurava seguir a estratégia do primeiro em ampliar a integração nacional, criando um mercado interno a partir de polos regionais complementares ao eixo Rio - São Paulo. As cidades de porte médio passariam a servir de “base a uma estruturação de apoio à formação de um sistema urbano nacional mais equilibrado.”94

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GOULART DA SILVA, Michel. Uma cidade em disputa: representações das transformações urbanas em Florianópolis no contexto da aprovação do Plano Diretor de 1976. In: Florianópolis no tempo presente. (Org): Emerson César de Campos.Luiz Felipe Falcão. Reinaldo Lindolfo Lohn. Florianópolis: Editora da UDESC e DIOESC, 2001. p.103. 92 STEINBERGER, Marília; BRUNA, GILDA Collet. Cidades médias: elos do urbano-regional e do público privado. In: ANDRADE, Thompson Almeida; SERRA, Rodrigo Valente (Orgs.). Cidades médias brasileiras. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. p. 40 93 Ibidem –p. 43 -44 94 Ibidem –p. 47

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No desenho dessa política urbana o processo de urbanização foi considerado como determinado e não como determinante. O espaço urbano aparecia como palco de problemas e as ações da política urbana deveriam corrigir os efeitos nocivos do modelo de crescimento econômico adotado, com características centralizadoras, concentradoras e excludentes. Portanto, a política urbana tinha função compensatória e corretiva. Surgiu como uma política de atendimento a carências, isto é, antidéficit de serviços coletivos. Essa postura também visava responder a um começo de perda de poder do partido do governo da ditadura (Arena) em relação à oposição (MDB), especialmente em alguns dos maiores aglomerados urbanos do país,as regiões metropolitanas (STEINBERGER, 2001, p.46).

No entanto, quando aprovado, o Plano Diretor era considerado ultrapassado, pois estava em processo de tramitação na Câmara dos Vereadores desde 1972.95 Na época de sua aprovação a imprensa comentava o descompasso do Plano Diretor com o desenho da nova cidade. Uma pequena nota do periódico chamava atenção para o fato de que “na época em que foi concebido, sequer existia o aterro da Baía-Sul e a nova ponte ligando a Ilha ao Continente.”96 Havia, portanto, uma nova configuração da cidade, um novo traçado que privilegiava o transporte rodoviário em direção ao Norte da Ilha com a ocupação de seus balneários em franca expansão, e que, portanto, exigiam uma revisão para que novas intervenções se adequassem a uma cidade que já estava distante daquela vislumbrada na década de 1950. Além de não dispor de “um instrumento atual para orientar a máquina administrativa a controlar o crescimento da capital”, o periódico sinalizava como principal vilã a especulação imobiliária que extrapolava os “limites suportáveis”97 na metade da década de 1970, muito embora fosse ao mesmo tempo, responsável pelos inúmeros anúncios da venda de imóveis pela Ilha. Todos eles, em grande parte, destinados às camadas médias, localizados principalmente no curso da Avenida Beira Mar-Norte em direção aos bairros, como Trindade, Itacorubi, Córrego Grande, representados por prédios de luxo, que passaram a ser incorporados como signos de prestígio e distinção social, ou ainda, através da aquisição de casas e lotes nas praias do Norte da Ilha. Em um cenário de expansão da construção civil e de especulação imobiliária, a questão habitacional tornou-se fundamental para a imprensa diária repercutir o futuro da cidade a partir de novos projetos de planificação sobre o urbano. Com quase duzentos mil habitantes no final da década de 1970, Florianópolis totalizava no mesmo período um “déficit de onze mil moradias” (O Estado, 26/01/1977, p. 16).

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GOULART DA SILVA, op. cit. p.105. O Estado. Florianópolis, 11/02/1976, Informação Geral: “O Plano Diretor.”, p.04. 97 Estado. Florianópolis, 10/02/1976 – op. cit. p.15. 96

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Parte desse contingente deficitário estava amarrado, principalmente, pela dificuldade de implementação das políticas públicas voltadas para habitação social. No caso da capital, “o Plano Diretor de 1976 não previa área de loteamento para interesse social e até então não havia uma lei federal que versasse sobre parcelamento do solo.”98 Só no ano de 1979 seria promulgada a lei n º 6.766 sobre o parcelamento do solo, medida que permitiu aos governos estaduais e municipais estabelecerem áreas de interesse social. Verificou-se, no entanto, uma série de entraves locais que inviabilizavam as políticas públicas habitacionais. A nova lei previa, por exemplo, algumas regras como a necessidade de instalação de infraestrutura básica nos terrenos com “escoamento de áreas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação.”99 Além disso, delimitava uma área mínima de 125 metros quadrados e testada de 5 metros para execução do projeto. Tal configuração somada aos elevados valores dos lotes tornava a tarefa das companhias habitacionais quase impossíveis.100 O que se verificou foi um claro favorecimento de áreas contíguas ao Centro destinadas às camadas médias: Havia um encarecimento do lote urbano, o que tendia a afastar mecanismos populares de conquista da habitação na cidade, dificultando por meios institucionais a provisão de moradias por meio da posse de áreas desocupadas e planejando a cidade para privilegiar apenas as classes médias e altas da população. Mas, na maioria das grandes cidades, inclusive em Florianópolis, o resultado foi aumento dos assentamentos urbanos clandestino, especialmente na forma de favelas, à margem da legislação criada. (ACORDI; FREIRE, 2011, p. 65)

As páginas do jornal trazem alguns indícios desse problema. Em 1977, membros de uma comissão que estudava a possibilidade da execução de conjuntos habitacionais populares, denunciavam a necessidade de extremo sigilo nas ações do Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP), pois ao anunciarem o interesse para aquisição de certas áreas “automaticamente, os proprietários sobem de forma assustadora o preço do imóvel tornando o empreendimento inviável” (O Estado, 26/01/1977, p. 16). O Instituto em Florianópolis atuou como um instrumento de facilitação do acesso à casa própria para as camadas médias:

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ACORDI, Carla. FREIRE, Felício Mourão. Florianópolis como cidade da ditadura: urbanização, milagre econômico e habitação no regime militar. In: Florianópolis no tempo presente. Org. Emerson César de Campos. Luiz Felipe Falcão. Reinaldo Lindolfo Lohn. Florianópolis: Editora da UDESC e DIOESC, 2011. p.63. 99 Ibidem –p.64 100 Ibidem-p.64

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A INOCOOP produziu majoritariamente em Florianópolis e em sua parte insular, o que demonstra a intencionalidade dos dirigentes de priorizar camadas médias e altas da população no projeto de urbanização da capital. Dentre os diversos conjuntos construídos entre a parte final da década de 1970 até 1985, ano da extinção do BNH, foram erigidos conjuntos como o Edifício dos Trabalhadores, no centro, edifício “Europa”, na Trindade e “Ilha dos Açores”, no Itacorubi. Todas as regiões privilegiadas pela onda de crescimento e que demandava por habitações para as classes médias, pelo excessivo número de órgãos públicos que vinham sendo criados (ACORDI; FREIRE, 2011, p. 61).

A equipe técnica formada na época para discussão do tema pela Secretaria do Trabalho e Promoção Social, do INOCOOP, Companhia Catarinense de Água e Saneamento (CASAN), Companhia de Habitação (COHAB) e Prefeitura concluía que para a construção de casas destinadas à população de baixa renda era “necessário procurar um bairro muito distante, onde o preço do terreno seja pequeno para que o projeto possa se desenvolver” (O Estado, 26/01/1977, p. 16). Naquele momento, as nove áreas que foram levantadas pelo estudo apresentavam ainda, pouca infraestrutura para o assentamento das famílias. Não bastasse a distância imposta à classe trabalhadora, essa haveria ainda de conviver com a falta dos serviços públicos que já eram garantidos aos moradores do Centro da cidade. Os futuros moradores dos conjuntos habitacionais, não teriam acesso, por exemplo, a áreas de lazer, precisariam se deslocar para o Centro quando necessitassem do serviço de saúde; nenhuma das áreas disponibilizava serviço de esgoto, e as vias de acesso eram consideradas precárias. Três anos depois, a prefeitura, em trabalho conjunto com a Casan, autorizava a Secretaria de Obras do município, a realizar serviços de drenagem e saneamento no valor de Cr$ 1 milhão e 100 cruzeiros nas ruas Padre Roma, Frederico Rola, Bento Gonçalves e Pedro Ivo, todas localizadas na região central (O Estado, 02/02/1980, p. 16). Há indícios de outras distorções nos programas habitacionais. O aumento do fluxo de turistas estrangeiros que Florianópolis passou a receber a partir da segunda metade da década 1970, impactou de tal maneira o mercado imobiliário da cidade, a ponto de surgirem denúncias do financiamento de casas pelo sistema Banco Nacional de Habitação (BNH) para cidadãos argentinos e uruguaios. O sistema financeiro de habitação previa na época atender a população através da poupança popular e pelo depósito em caderneta de poupança e fundo de garantia. Além das manobras que permitiam as camadas médias da sociedade a terem o acesso as melhores áreas da cidade, dotadas de infraestrutura, tratou-se de privilegiar a todo custo aqueles que dispusessem de capital para aquisição imediata de imóveis, mesmo que isso significasse atravessar os direitos dos trabalhadores brasileiros ao acesso à casa própria (O Estado, 22/12/1979, p. 16).

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Em alguns momentos, verifica-se também, a transferência de responsabilidades do setor público para o privado nas obras de infraestrutura e urbanização da cidade. No balneário da Daniela, a imobiliária Lunar, que empreendia um loteamento, era acusada de não cumprir o contrato firmado com a Prefeitura, em acabar “com problemas de água, pavimentação e limpeza do loteamento”. Na época, o então presidente da associação de moradores do bairro, reclamava ao jornal a transferência da gestão e vendas dos lotes para outra imobiliária, ACN Negócios imobiliários, sem o conhecimento da Prefeitura. A operação da nova imobiliária escancarava também as deficiências no registro das escrituras dos terrenos: [...] a imobiliária continua vendendo lotes com a assinatura de contratos particulares, sem condições de ser convertidos em documentos definitivos [...]. Haverá insegurança do direito de propriedade, possibilitando a duplicidade de venda e a dificuldade de venda e a dificuldade em discuti-la. Haverá dificuldade nas transações de terrenos e os proprietários ficarão impossibilitados de edificarem sobre esses terrenos com a legalização do projeto junto a Prefeitura, por falta de escritura (estímulo às construções clandestinas). Por fim, haverá impossibilidade de financiamento, tanto pelo sistema financeiro habitacional como por outras formas de garantia real” (O Estado, 22/12/1979, p. 16).

A confusão entre o público e o privado se estendia inclusive ao direito de ir e vir. No Campeche, por exemplo, a cerca de um terreno arrendado da Marinha impedia o principal acesso à praia. A contenda se arrastava há um ano no bairro. O conhecido arquiteto da cidade, Luiz Felipe Gama D ‘Eça, arrendatário do terreno, já havia erguido a cerca de arame três vezes, mas turistas e banhistas da localidade colocavam-na abaixo durante a noite para chegarem ao mar com seus carros. A cerca dificultava também o trabalho dos pescadores da região. O caminhão responsável por buscar a carga de peixes ficava impossibilitado de alcançar a praia, que obrigava os trabalhadores a carregarem os peixes nas costas, caminhando uma grande distância. A matéria informava que o terreno havia aumentado com o passar do tempo: “Os pescadores calculam que ele tenha arrendado à Marinha uns 200 metros, no comprimento. Atualmente a área tem uns 300 metros de largura por 500 de comprimento” (O Estado, 18/12/1976, p. 16). O episódio sugere outras reflexões. O arquiteto Luiz Felipe Gama D ‘Eça, além de arrendatário do referido terreno da Marinha, era conhecido na cidade, principalmente, por ser o engenheiro chefe do Plano Diretor de 1976. Esse dado expõe, como se estabeleciam as relações de patrimonialismo numa cidade, que naquele momento da década de 1970, era dirigida pelos interesses do mercado imobiliário, de maneira que às terras próximas ao mar garantiam vultosos recursos aos seus proprietários. É também, um bom exemplo, de que o repetido jargão no Brasil, de que o Estado é o vício e o mercado é a virtude, representa uma falácia do pensamento conservador brasileiro. Muito além dessa simplificação ideológica, que

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reduz o Estado e o mercado a ideia de “bem” ou “mal”, ambos, se configuram como: “[...] processos de aprendizado social que foram materializados, institucionalizados e tornados relativamente autônomos no seu funcionamento.” Portanto, tratam-se de instituições ambivalentes, cujas ações serão definidas pelas lutas sociais empreendidas por grupos e classes de acordo com seus interesses e necessidades (SOUZA, 2009, p.84 -88). Nesse cenário de disputas pode se imaginar a cidade como um “jogo de cartas.” Quando um grupo de pessoas se dispõe numa mesa para jogar, todos compartilham um conjunto de regras em comum, que estabelecem os movimentos do que se pode ou não executar ao mesmo tempo em que se firmam alianças e oposições entre os participantes, cada jogador traça sua estratégia ou se arrisca em jogadas que podem determinar o fim da partida. Numa cidade, o arranjo e as disputas entre os mais variados setores da sociedade podem ser comparados a uma contenda de baralho: O jogo urbano se joga sobre um sítio determinado que é a sua “mesa”. Aí se juntam parceiros que se enfrentam segundo os grupos e filiações a que pertençam. Há os políticos, técnicos e funcionários que representam o Governo. Aqui, é preciso distinguir de que nível de governo se trata, pois sobre as cidades intervêm agentes federais, estaduais e municipais. Existem as empresas que agem através de investimentos na indústria, no comércio e nos serviços, com especial destaque para o capital ligado aos ramos imobiliário e da construção civil, cujas ações têm reflexos diretos no meio urbano. Por fim, entra a população, fragmentada nos mais diversos grupos (vizinhança, filiação política e religiosa, profissão, parentesco, afinidades...) Há ocasiões em que os parceiros se aliam ou se separam segundo as conveniências e circunstâncias. São muitas as estratégias políticas que podem ser usadas. Mas, para que o jogo urbano dê certo, é preciso que todos conheçam bem as cartas do baralho que está sendo usado e que sejam bem esclarecidas as regras para arrumá-las. Se apenas alguns tiverem acesso às normas e puderem alterá-las com exclusividade, provoca-se o desequilíbrio (SANTOS, 1988, p.50-51).

Tendo em vista as distorções nos programas habitacionais e a atuação incisiva do setor imobiliário, que em certas ocasiões atuava em parceria com o poder público de maneira a garantir os seus interesses, mostra como poucos tinham acesso às regras do jogo em Florianópolis. Nessa partida os interesses dos ricos predominavam sobre os dos pobres. E o controle sobre os rumos da cidade era mais uma característica de um projeto de governo conservador e autoritário que gestou um bolsão de miséria nas grandes cidades do país. Já em dezembro de 1980, o periódico trazia à tona as disputas das imobiliárias pelos aluguéis de temporadas nos balneários; os elevados preços dos imóveis para venda e aluguel no Centro e em bairros próximos como a Trindade; o crescimento do número de favelas em áreas de risco como o Morro da Cruz, Morro do Mocotó e Morro da Caixa e a difícil acomodação dos 10 mil estudantes da UFSC que até aquele momento ainda não tinham acesso a um alojamento universitário gratuito (O Estado, 21/12/1980, p. 16).

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No início daquele ano, o descontrole da especulação imobiliária virou caso de polícia para a Prefeitura de Florianópolis. Em fevereiro, o município discutia a utilização da força policial para embargar obras de imóveis clandestinos. Nesse período, o Departamento de Arquitetura e Urbanismo já computou em um único mês vinte e duas intervenções policiais em obras clandestinas. Um número muito alto perto dos sessenta embargos realizados em todo ano de 1979. Dessa forma, “O Estado” noticiava com surpresa que quase a metade das infrações à legislação foram verificadas em áreas urbanas consideradas nobres, principalmente nos balneários de Canasvieiras, Ponta das Canas, Lagoinha e Ingleses (O Estado, 09/02/1980, p. 16). O crescimento da cidade também modificou a ocupação na região central e alterou os valores dos terrenos nas encostas do Maciço do Morro da Cruz. “Antigamente quem subia o morro estava em busca de uma roda de samba ou de um casebre para alugar. Hoje o morro é o éden da sociedade de consumo”, chamava atenção a editoria de O Estado. A narrativa do periódico apontava a poluição e o barulho do Centro como principais motivos para parte do afastamento da classe média alta florianopolitana do Centro. O fato é que os preços dos terrenos nos morros tornavam-se atrativos na medida em que o mercado imobiliário inflacionava os imóveis na região central. Na época um lote no morro era vendido por Cr$ 40 mil cruzeiros, valor considerado baixo. O que motivou o crescimento na comercialização de imóveis nos morros. Figura 6 - As modestas casas das encostas dos morros próximos ao centro estão dando lugar a imponentes e luxuosas residências.

Fonte: (O Estado, 19/01/1974).

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Um soldado da polícia civil, ouvindo a conversa da janela de sua casa, observou com ironia: “o que é que esse pessoal “lá de baixo” quer aqui em cima, hein?” O soldado Osvaldino mora num terreno “de herdeiros” por isso não pode vendê-lo. Mas, se assim o fizesse, “ia pedir uns Cr$ 60 mil. É o que custa estes lotes, apesar de eles (os “de baixo”) pensarem que a gente não sabe disso. Vêm aqui, e pedem uma ninharia. Mas nós não caímos nessa não”, comenta o soldado (O Estado, 19/01/1974, p. 12).

O quadro de ocupação desordenada da cidade, somada à elevação nos preços dos aluguéis e dos imóveis, acabou por praticamente institucionalizar práticas senão ilegais, ao menos que impossibilitavam um controle efetivo sobre as obras em áreas que deveriam ser preservadas. É o que se verifica através das construções de sessenta casas no mangue da Costeira do Pirajubaé. A situação deixava a população de baixa renda exposta ao movimento das marés, a proliferação de mosquitos, sem acesso a água potável e esgoto. O jornal descreve a situação de um morador que conseguira comprar sua casa com 15 mil cruzeiros na localidade. Para o novo morador a possibilidade em adquirir a casa própria naquelas condições de risco representava também sair do aluguel de 600 cruzeiros de um casebre no Estreito. O texto jornalístico ensaiava o tramite para viabilizar o negócio e mostrava como efetivá-lo simulando uma peça publicitária em tom jocoso: Se você não consegue mais pagar os exorbitantes aluguéis de Florianópolis nem tem dinheiro para comprar um terreno e fazer uma casa, há uma solução: aterrar um pedaço do mangue da Costeira do Pirajubaé e construir lá o seu barraco ou casinha. Mas não pense que é só chegar e ir aterrando. Primeiro tem que ir na Capitania dos Portos pagar uma licença de Cr$ 50,00. Pronto o aterro – que vai lhe custar de um a sete mil, dependendo do ponto e do espaço aterrado – é preciso desembolsar mais uns Cr$ 150,00 para conseguir o requerimento de posse, também na Capitania. Com ele, você fará então o registro do imóvel da Prefeitura, para o pagamento dos impostos territorial e predial. Anualmente você pagará também à Marinha 1 % sobre o metro construído. Quando quiser vender a casa, não tem problema: é só transferir a posse. Só que você não vai conseguir muito pela casa, é claro. Quando muito, 20, 30 mil. O normal é você vender uma casinha de quatro peças por 15 mil, no mangue. Ou 10, como pagou no mês passando Airton Manicce por uma de três peças, mais uma cozinha. Você também conseguirá pouco pelo aluguel. Uns 300, 400 cruzeiros. Lembre-se que você não estará oferecendo muito, por isso terá de se contentar em exigir de acordo. Tenha o cuidado de não deixar os pretensos inquilinos saberem as desventuras que os esperam no mangue da Costeira do Pirajubaé, como é conhecido. Não são poucas. A pior é o mosquito, segundo Francisco de Assis Alves, que mora ali há um ano. “Os mosquitinhos aparecem de vez em quando, mas quando vêm não há quem consiga aguentar (...) Há uma recomendação importante: os aterros só podem ser ocupados a partir de 30 metros de distância do asfalto. Para conseguir o habite-se da Prefeitura, é necessária também a construção de uma fosse séptica nos fundos, a uma distância regular da cozinha. Se a construção é feita clandestinamente – sem a apresentação do requerimento de posse à Prefeitura – o infrator paga uma multa de Cr$ 298,00 (O Estado, 11/12/1976, p. 16).

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No entanto, mesmo as obras que deveriam contemplar uma infraestrutura básica no seu planejamento apresentavam problemas. É o caso das obras concluídas pelo BNH em bairros de zonas periféricas da cidade, como Barreiros, que se mostravam incapazes de atender às demandas básicas dos novos moradores. As construções em pouco tempo de uso apareciam com “paredes aos pedaços, muros caídos, telhados desabando” (O Estado, 12/12/1978, p.16). Entre os moradores da COHAB 2 havia a reclamação da falta de luz que afetava, constantemente, 233 casas todos os dias. A oscilação de energia criava ainda transtornos de toda ordem, como a queima de aparelhos domésticos, além de causarem prejuízos para pequenos comerciantes das imediações. O jornal contabilizava na época, a perda de cinco mil cruzeiros em mercadorias por um açougue e uma padaria próximos aos conjuntos habitacionais em função das quedas repentinas de energia. Os moradores da recém-inaugurada COHAB 3 enfrentavam também a falta de água. Segundo os relatos, o fornecimento só ficava regularizado durante a noite. Rotina que obrigava os moradores a buscar água em baldes nas casas próximas que tinham acesso ao serviço. Somadas a precária construção das casas, a ineficiência dos serviços básicos como luz e água, os moradores dos conjuntos habitacionais precisavam conviver com as contantes falhas nos serviços de transporte público e telefonia: Além da luz, Edson, da casa 356, reclama dos ônibus da COHAB, linha dois, que não mantêm um horário fixo, ‘sendo que oitenta por cento dos moradores utilizam a linha Bela Vista.’ Os horários, além de irregulares, são muito escassos para atender a maioria que trabalha e as reclamações feitas também de nada adiantaram. Sobre outras necessidades, Edson fala sobre o telefone público: ‘Está faltando um por aqui, pois temos que andar muito para um chamado de urgência (O Estado, 12/12/1978, p.16).

Em contraste com a difícil situação de boa parte dos moradores das camadas populares, que ansiavam por melhores condições de moradia e serviços, os governos do estado de Santa Catarina e do município de Florianópolis, operaram naquela década, vultosos recursos provenientes do setor público e privado que mudaram radicalmente a fisionomia da cidade e construíram, com isso, novos equipamentos urbanos, ao mesmo tempo em que aprofundaram as diferenças sociais marcantes na capital catarinense. Na arquitetura desse projeto político, imposto pelos militares, estava implícito que a modernização do Estado brasileiro passaria a privilegiar a sua base de apoio, as camadas médias urbanas, que se beneficiaram de um cenário composto por arrocho salarial da classe trabalhadora, pelo fechamento dos sindicatos e pela repressão. O chamado “boom do milagre” prescrevia esse receituário:

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O boom iniciado em 1968 teve como causa básica uma política liberal de crédito que encontrou a economia, após vários anos de recessões, com baixa utilização da capacidade produtiva, taxas relativamente altas de desemprego e custo reduzido da mão de obra de pouca qualificação. A isto deve ser aduzido uma grande propensão a consumir das camadas de rendas elevadas (SINGER, 1982, p.61).

1.4 OS ASPECTOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS DOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS EM FLORIANÓPOLIS Em março de 1967 quando o general Arthur da Costa e Silva assume a presidência da república é constituído um novo ministério. Entre as pastas, dois nomes se destacavam para área econômica: Delfim Neto para Fazenda e Hélio Beltrão para o Planejamento. Do golpe de 1964 até aquele momento, a estratégia econômica do regime concentrou-se numa política anti-inflacionária, que levou o país a um quadro recessivo, no qual combinava a redução da participação do setor público ao aumento de intervenções do setor privado onde o Estado deveria atuar.101 No entanto, durante esse período de três anos do governo Castelo Branco, foram criadas novas condições para o crescimento econômico a partir de reformas institucionais. As reformas se concentravam em três áreas específicas: a reforma fiscal que possibilitou o ganho com novos tributos, posteriormente, utilizados para o financiamento do setor público e a adoção de um mercado para títulos públicos federais; a reforma financeira que ampliou a possibilidade de controle sobre a política monetária a partir da criação do Banco Central e, por último, a reforma trabalhista que reduziu os custos de mão de obra, associado a um fundo de poupança cujo principal objetivo foi o de ampliar os investimentos públicos que possibilitaria o Plano Nacional de Habitação.102 Somadas a essas medidas, que criaram as bases para o “milagre brasileiro”, o governo militar conviveu entre 1961 e 1973 com um cenário econômico internacional favorável para implementação dessa política econômica. Uma das características do período refere-se, especialmente, ao aumento significativo de operações cambiais. Essa atividade financeira, a partir da década de 1960, deixou o status de negócio de pequeno porte para começar a operar grandes remessas de empréstimos bancários internacionais em dólar para os principais conglomerados econômicos, governos e empresas públicas.103 101

PRADO, Luiz Caros Delorme e EARP, Fábio Sá. O “milagre”brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967 – 1973). In: O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Org. Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado. 3 edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2009. p. 219 102 Ibidem - p. 216. 103 Ibidem –p.217

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O mercado de eurodólar permaneceu fora de qualquer controle durante toda a década – não havia nenhuma regulamentação de depósito compulsório, taxas de juros ou regras de segurança. A expansão dos negócios com divisas causou um grande aumento dos fluxos internacionais de capital, permitindo uma elevação dos investimentos diretos das empresas transacionais e facilitando a captação de empréstimos em dólar por países em desenvolvimento, para financiar crescimento econômico ou déficits na balança de pagamentos (PRADO, 2009, p.218).

No plano interno outras medidas foram colocadas em prática no intuito de captar esses investimentos. Durante os governos Costa e Silva e Médici a liberação dos fluxos de capitais possibilitou que as empresas brasileiras integrassem definitivamente ao sistema de crédito internacional. É nesse cenário que estão alocados os principais investimentos em obras urbanas de Florianópolis durante a década de 1970. A execução do aterro da baía sul e a construção da ponte Colombo Salles são as mais significativas realizações desse período. Em dezembro de 1972, “O Estado” anunciava em seu editorial a captação de uma linha de crédito milionária que permitiria a construção da nova ponte. O governador Colombo Salles, em contato com Médici, conseguira uma audiência com o ministro Delfim Neto que liberou os recursos. O empréstimo, no valor de 12 milhões de dólares, equivalente na época a 72 milhões de cruzeiros, foi financiado pela Western Pennsylvania National Bank com juros de 7,8 % ao ano. A operação executada pelo Banco do Estado de Santa Catarina previa um prazo de resgate para dez anos divididos em três anos de carência e sete de amortização (O Estado, 08/12/1972, p.03). Um novo acesso ligando a Ilha ao Continente estava em discussão desde 1967, durante a gestão do então governador Ivo Silveira, que não conseguira executar a obra. Para imprensa, a necessidade de uma nova ponte relacionava-se, especialmente, com as condições precárias de manutenção e tráfego que a ponte Hercílio Luz oferecia. Mas, sobretudo, a nova ponte representava na paisagem urbana um novo desenho, ou ainda, “um tronco mestre de escoamento aos fluxos do progresso que aqui se instalou na última década” (O Estado, 05/12/1971, p.04). No ano de 1975, quando foi concluída, a nova ponte materializou também um novo projeto rodoviário. A sua conexão com a BR-101, no sentido Norte e Sul do país, se cruzava com a BR-282 encurtando o caminho para o interior do Estado e a Argentina. As duas rodovias federais foram alvo de muitos comentários na imprensa local. Quando terminada a pavimentação da primeira, “O Estado” já cogitava a necessidade de sua duplicação. Essa narrativa estabelecia um prazo de dezoito anos para o atendimento da demanda de tráfego, tendo vista a taxa anual de 3% no crescimento da população litorânea em Santa Catarina.

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A segunda rodovia fora ainda mais aguardada. Pois além da integração da capital com o planalto, previa-se no seu entorno o crescimento das atividades agrícolas do Oeste tornando a rodovia um corredor fundamental para o escoamento da produção para o mercado externo. No ano de 1974, o orçamento para a construção de rodovias no estado chegou a um montante de 260 milhões de cruzeiros.

Naquele ano, o Departamento Nacional de Estradas de

Rodagem (DNER) concluía o trecho de São Miguel do Oeste a Campos Novos com o investimento extra de 80 milhões. A programação das obras presumia ainda investimentos para BR-470 e BR-155 (O Estado, 27/01/1974, p.13). Essa configuração regional conectou-se também ao novo traçado da capital. O recente aterro da baía sul interligou-se à Avenida Rubens de Arruda Ramos e à Via de Contorno Norte no entroncamento com a Avenida da Saudade, obras que permitiram o rápido acesso do Centro para o Norte da ilha. Até o final da década de 1970, outras obras tocadas pelo município e pelo governo do estado, também foram concluídas de maneira a complementar esse eixo rodoviário. É o caso da construção e pavimentação da estrada da Lagoa da Conceição, das rodovias SC- 401 e SC – 402 facilitando o trânsito para os turistas que visitavam os balneários de Canasvieiras e Jurerê. Somadas às obras rodoviárias, outros dois equipamentos urbanos foram bastante comentados pela imprensa no período. A construção da nova rodoviária e a ampliação e reforma do aeroporto. Já no início da década de 1970, a rodoviária da cidade, que ficava na conexão entre a Avenida Hercílio Luz e a Avenida Mauro Ramos, era considerada muito acanhada para o fluxo cada vez maior de turistas. Um leitor do jornal lembrava por carta que a rodoviária não dispunha de condições mínimas de acomodação para os viajantes que chegavam ou partiam de Florianópolis: “Não tem sequer bancos de madeira para permitir o descanso aos viajantes que às vezes esperam duas ou três horas pelos ônibus” (O Estado, 23/12/1972, p.04). A conclusão do aterro e a então disponibilidade de uma área de quatrocentos mil metros quadrados abria a possibilidade de alocar uma nova rodoviária que atendesse às necessidades da cidade. A apresentação do projeto desenhava o terminal com 12 mil metros quadrados, com 22 boxes para embarque e desembarque dos ônibus, atendendo as linhas interestaduais e intermunicipais, além de uma estrutura que abrigava restaurante, lanchonete e lojas como livraria, farmácia, floricultura e banca de revistas. Na época, a obra fora orçada no valor estimado de 88 milhões de cruzeiros com a expectativa de atender a cidade até o ano 2000 (O Estado, 01/12/1977, p.16).

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Figura 7 - O ritmo intenso das obras da nova ponte permite que já se possa avaliar exatamente o perfil que lançara sobre as águas da baía.

Fonte: (O Estado, 24/01/1974, p.01)

O aeroporto Hercílio Luz também recebeu uma quantia significativa de investimentos para ampliação de uma pista de pouso, reforma do setor de cargas e construção do terminal de passageiros. Tudo somava, na época, o valor de 78 milhões de cruzeiros. No ano de 1975, antes do inicio das obras, o aeroporto recebeu entre embarques e desembarques, 92 mil passageiros, num total de 12.257 pousos e decolagens. As informações da administração do aeroporto previam o crescimento nas operações para um fluxo de 150 mil passageiros anuais após as reformas (O Estado, 07/02/1976, p.16). O setor elétrico e de telecomunicações também incorporou uma grande quantidade de recursos durante a década de 1970 em Santa Catarina. Em janeiro de 1972, o governador Colombo Salles anunciava em caráter prioritário o investimento em projetos da CELESC relacionados à Florianópolis. Os projetos previam para capital o aprimoramento da qualidade do suprimento de energia elétrica em bairros como Canasvieiras, Barra da Lagoa, Ribeirão da Ilha e Barreiros. Notoriamente, os bairros contemplados estavam na rota do turismo na cidade (O Estado, 14/01/1972, p.03). As deficiências no fornecimento de energia causavam enormes transtornos para população. O periódico lembrava que até aquele momento, o abastecimento energético do Norte da Ilha possuía apenas uma linha de 6.600 volts, de maneira que o serviço elétrico era incapaz de fornecer luz com qualidade a todos os usuários. Os Moradores reclamavam da baixa intensidade da luz e da variação do fornecimento na rede que prejudicava o funcionamento de geladeiras e televisores. As dificuldades eram maiores ainda para os

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trabalhadores que dependiam da energia para expandir sua atividade econômica. Era o caso dos pescadores da Barra da Lagoa e do Sul da Ilha que reivindicavam há anos, a obtenção de linhas de transmissão que permitissem a construção de frigoríficos. Todo ano a falta do equipamento acarretava em perdas substanciais do pescado (O Estado, 25/01/1972, p.04). Assim como o setor elétrico, o de telecomunicações encontrava-se em franca expansão em Santa Catarina. Dados fornecidos pela Companhia de Telecomunicações de Santa Catarina (COTESC) mostravam que, no ano de 1970, as ligações completadas no estado chegavam a 1.401. 537 ligações telefônicas. No ano seguinte, em 1971, a companhia registrou aumento de 95 %, quando se registrou 2.324.080 ligações. Em 1972, os registros acumularam 3.095.433. Em 1973, o presidente da COTESC anunciava um Plano Diretor de Telecomunicações para Santa Catarina. Nele, estavam previstos: a instalação de 51.200 aparelhos telefônicos, 20 centrais urbanas e 26 estações de micro-ondas, totalizando um investimento de 358 milhões de cruzeiros. A necessidade de ampliação do serviço era tanta que o plano cogitava uma nova etapa de investimentos que chegariam à soma de 458 milhões com a participação de 50% de financiamento público (O Estado, 24/02/1973, p.03). O tamanho dessas obras exemplifica a dimensão do volume de investimentos recebidos pela capital durante a década de 1970 para a construção ou melhorias dos equipamentos urbanos. Chama atenção também, o fluxo cada vez mais intenso de pessoas que visitavam Florianópolis, aumentando a demanda por serviços na área pública e privada. O crescimento acelerado da cidade trazia consigo um certo “perigo” de tornar a capital mais um centro urbano desorganizado como as grandes capitais do país. Não era difícil ler nos editoriais de “O Estado” o clamor por planejamento. É hora da cidade incorporar definitivamente ao seu destino a conjugação do verbo planejar. Sem ele, e sem a execução dos projetos dele decorrentes, seremos em breve mais um desses organizados labirintos onde o homem vive à reboque da Cidade, e não esta a serviço do homem (O Estado, 07/02/1976, p.04).

A frequente preocupação do jornal com o crescimento da cidade ganhava destaque a cada nova edição. Em janeiro de 1978, “O Estado” publicou o resultado da pesquisa encabeçada pelo IBGE, que traçou alguns indicadores sociais de áreas urbanas do Brasil, a partir de dados do censo de 1970, focando principalmente nos municípios com mais de cinquenta mil habitantes. A Grande Florianópolis, compreendida naquele período por Biguaçu, Palhoça, São José, Santo Amaro e a Capital, apresentava uma taxa de urbanização de 73%. O relatório mostrava as deficiências nos serviços de água e esgotos sanitários. A região da Grande Florianópolis, por exemplo, mostrava índices de desenvolvimento bem abaixo do que outras

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cidades como Blumenau e Joinville. A composição da população economicamente ativa mostrou-se majoritariamente ocupada no setor de serviços, contando com 64 % dos seus trabalhadores. A segunda atividade concentrou-se no setor agrícola com 16% dos trabalhadores, seguido de 10% na construção civil e 10% no setor industrial. Para o entendimento do periódico, essa configuração expunha o “atraso” da Capital face aos outros municípios importantes no interior do Estado (O Estado, 29/01/1978, p.24). Em dezembro daquele ano de 1978, “O Estado” vislumbrava melhores dias para o crescimento da cidade. Através de um financiamento captado junto ao Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), para cidades de porte médio, a prefeitura de Florianópolis receberia recursos perto da casa dos 550 milhões de cruzeiros que seriam utilizados por órgãos da área estadual, como a Casan, as secretarias da Saúde e do Planejamento (O Estado, 05/12/1978, p.16). Na virada da década de 1970 para 1980, as expectativas ainda eram grandes em torno de novos investimentos em equipamentos urbanos para cidade. Posicionava-se no horizonte a possibilidade de conectar a Avenida de Contorno Sul com o aeroporto através de um túnel que passaria embaixo do Morro do Mocotó. O projeto foi estimado em quase 2 bilhões de cruzeiros. Mas foi posto em dúvida na época pelo então Secretário Estadual de Transporte e Obras, Espiridião Amim, que achava difícil o governo do Estado financiar a obra nas circunstâncias de crise que vivia a economia brasileira. O que se viu adiante, na década seguinte, foi um aprofundamento da crise do petróleo que havia afetado o país em 1974. Como manobra para conter a crise, o regime militar quebrou o Estado na tentativa de salvar o setor privado e os bancos. O endividamento externo gerou uma economia estagnada e elevados indicies de inflação (O Estado, 06/12/1979, p.16). Cabe aqui pensar os aspectos políticos desses projetos de infraestrutura empreendidos pelos governos da ditadura. Seria possível manejar remessas tão vultosas de recursos estatais para a Capital catarinense em um ambiente democrático? Isso só fora possível num ambiente de extremo autoritarismo. E havia ainda quem endossasse o discurso de que Florianópolis deveria concentrar ainda mais o recebimento desses recursos. Em entrevista ao periódico, Luiz Felipe Gama D ‘Eça afirmava: “O que precisa é o Estado se convencer que os problemas de Florianópolis são problemas estaduais” (O Estado, 02/02/1979, p.05). Florianópolis fora muito beneficiada com a chegada desses recursos. No entanto, para os catarinenses que viviam no interior do estado havia a percepção de certo abandono do poder público em vários serviços. Não por acaso, a partir das eleições municipais de 1972, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) cresce substancialmente em Santa Catarina,

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quadruplicando o número de Câmaras no qual passou a constituir maiorias e aumentando em quase 60% o número de prefeituras sob sua administração. Entre elas, estavam às prefeituras de municípios com mais de 100 mil habitantes como Blumenau, Lages e Joinville (CARREIRÃO, 1990, p. 118-121). A partir da metade da década de 1960, Florianópolis passa a ser palco de grandes transformações. Esse processo de mudanças inicia-se quando as elites políticos e empresariais da cidade, além do próprio jornal “O Estado”, passam a alimentar o discurso de mudanças e projetar novas imagens de uma capital que deveria deixar o passado e modernizar-se. A partir de então, as peças publicitárias passaram a anunciar um novo tempo através da atuação cada vez mais presente das construtoras na vida da cidade. A construção civil torna-se um dos pilares dessa política econômica que atua em conformidade com interesses privados das elites locais. Os jornais endossam a narrativa da mudança e criam expectativas de crescimento através da política econômica dos governos da ditadura. Figura 8 - Vista aérea do aterro da baía sul e da ponte Colombo Salles, 1974.

Fonte: Acervo Casa da Memória.

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Durante a década de 1970, na esteira do “milagre econômico”, os moradores da capital catarinense presenciam uma nova cidade se levantar. A execução do aterro da baía sul, a ampliação do aeroporto, a chegada de investimentos maciços em energia elétrica e telecomunicações, a construção da nova ponte, da Avenida Beira Mar Norte, da Avenida da Saudade, da Via de Contorno Norte, e a ligação com os balneários do Norte da Ilha e a pavimentação da estrada da Lagoa da Conceição, fizeram parte de um acelerado processo de urbanização que combinava vultosos financiamentos públicos e privados que se beneficiava da situação de arrocho salarial aplicado à classe trabalhadora. Os florianopolitanos assistiram a todo tipo de interferências na vida da cidade: o avanço do mercado imobiliário e a delimitação de áreas nobres; surge também a possibilidade de novos ganhos com os aluguéis durante a temporada de verão nos balneários, a chegada cada vez mais impactante de turistas que movimentavam a Ilha durante o verão, a incorporação de uma classe média com poder aquisitivo elevado que ocupa cargos públicos de nível médio e superior, e ainda a chegada de migrantes do interior que desencadeia uma disputa simbólica pela cidade. Portanto, altera-se o ritmo da cidade: Florianópolis passa adquirir uma feição de aglomerado urbano populoso, cosmopolita e impessoal. A população da cidade aumenta consideravelmente, cria-se um mercado de consumo de massas onde a atuação de propagandas se faz cada vez mais presente, fixam-se às redes de rádio e televisão, passa a se observar com frequência a agitação das ruas, do comércio, do trânsito; em contraste desarticulam-se os modos de vidas tradicionais e convive-se com hábitos considerados “atrasados” pelos citadinos e começa a se perceber as agruras do urbano como o desemprego e subemprego, favelização, as dificuldades com o transporte público, a escassez de serviços como de água e esgoto e saturação da malha viária.

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2. INDICIOS E INDICADORES DAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS NAS PÁGINAS DE “O ESTADO”

A partir do início da década de 1970, a Capital catarinense ganhou uma nova dimensão em sua composição econômica e social. As transformações urbanas aceleradas que ocorreram na cidade impactaram a vida dos moradores e produziram uma série de expectativas acerca do presente e outras tantas em relação ao futuro. O crescimento vertiginoso da construção civil e o incremento do setor de serviços, somados às grandes obras públicas que impactaram a paisagem urbana de Florianópolis, contribuíram significativamente para construir no imaginário da população a narrativa de que se estava de fato vivendo um novo tempo. Esses sinais de que a vida estava mudando eram descritos nas páginas do jornal “O Estado”. Chama atenção, por exemplo, o anúncio da transportadora “Expresso Florianópolis”, que trazia o desenho de um caminhão da empresa, ligando a capital às imagens representativas das principais capitais do país e do sul do Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba).104 Naquele momento em que se concluía as obras de asfaltamento da BR-101, Florianópolis estaria ligada material e simbolicamente aos outros centros do país: Firma-se a convicção de que a cidade estaria no meio de uma escala evolutiva entre o passado e o futuro, bastando investir maciçamente em grandes obras, alcançar o padrão de consumo das grandes capitais e atingir as metas definidas pelos estrategistas e planejadores de políticas públicas. Significava um engajamento intenso num universo simbólico há muito definido nas sociedades ocidentais, ou seja, a idéia de futuro como corolário do progresso (LOHN, 2002, p.372).

Mesmo com as mudanças que ocorriam na cidade, o ilhéu daqueles anos 1970 convivia com a representação muito corriqueira de que a capital experimentava novos ares, mudanças, estilos, ao mesmo tempo em que se conservavam hábitos, para aquele momento, antiquados. O jornal “O Estado” compunha rotineiramente essa narrativa. Em editorial no começo daquela década, o jornal procurava chamar atenção para uma cidade que estava dividida entre o asfalto e os paralelepípedos. O texto usava como personagem de sua narrativa o turista que viria visitar Florianópolis durante a temporada de verão. A proposta era mostrar que alguém que não acompanhava o movimento diário da cidade, ou seja, que a visitava apenas uma vez por ano, seria capaz de reconhecer os impactos

104

O Estado. Florianópolis, 02/02/1972, p.03

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mais significativos das transformações pelas quais a cidade passava ao mesmo tempo em que observaria aquilo que permanece intacto ou o que não acompanhava as mudanças. O texto pontua que Florianópolis, às vistas dos turistas, ostentava o “indisfarçável ar de pequena metrópole, consumindo sozinha mais cimento do que as principais cidades industriais – Joinville, Blumenau e Itajaí”.105 O turista que procurasse contemplar a cidade do alto perceberia “a imponente silhueta dos arranha-céus, erguidos com a pressa dos pioneiros de Brasília”. 106 Esse mesmo turista, ao desembarcar no Aeroporto Hercílio Luz poderia sentir alguns “desencantos”, pois passaria por uma estradinha de paralelepípedos para chegar ao Centro e lá encontraria ruas estreitas diante de um tráfego cada vez mais intenso de veículos. Se avançarmos para o ano de 1977, ainda nota-se a presença dessa narrativa nas páginas do jornal. Mas agora não de forma imaginária. Em janeiro daquele ano, “O Estado” descrevia a rotina dos turistas que subiam diariamente o acesso asfaltado do Morro da Cruz para observar a capital num mirante a 285 metros de altitude. Na época, o Morro abrigava às instalações da TV Cultura, as torres da Embratel e da rádio Diário da Manhã e a repetidora da TV Coligadas. Durante os dois quilômetros de subida até o topo do morro, os turistas observavam os contrastes entre as modernas mansões e as casas de madeira que se espalhavam pelo maciço do Morro da Cruz. A subida ao Morro também era vista enquanto um problema, por não haver sinalização adequada. Era preciso se informar de esquina em esquina ou de bar em bar. Quando se chegava lá em cima, a fruição do espaço era tomada pela admiração que os turistas direcionavam para as belezas naturais que envolvem a cidade. Durante o dia, chamava a atenção dos visitantes o encontro das baías Norte e Sul e o movimento das nuvens nas águas do mar. À noite, a cidade ganhava destaque com os contornos de suas luzes. O jornal lembrava também que, a partir da vista do Morro, era possível identificar as transformações urbanas da capital, admirar as pontes, o Palácio da Justiça, os bairros do Saco dos Limões, Costeira, Ribeirão da Ilha e o aeroporto ao Sul, à leste podia se verificar a expansão do bairro da Trindade, o campus da UFSC, o cemitério do Itacorubi e os seus conjuntos habitacionais (O Estado, 06/01/1977, p.15). As representações das transformações urbanas estendiam-se também à percepção dos leitores de “O Estado”. Na seção de cartas, mantida diariamente pelo periódico, apareciam com frequência as opiniões dos leitores acerca das mudanças pelas quais a cidade passava e as dificuldades em resolver os problemas relacionados aos mais variados temas como saúde, 105 106

O Estado. Florianópolis, 28/07/1971, p.2 Ibidem –p. 2

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transporte, habitação, saneamento básico e segurança. O tema do turismo também ganhava destaque na composição das cartas como da falta de infraestrutura adequada para que Florianópolis pudesse ser reconhecida como cidade turística. Chama muita atenção na primeira metade da década de 1970 as cartas endereçadas ao jornal por antigos moradores da capital que retornam à cidade e se deparam com as intervenções pelas quais a capital vinha passando. Eles demonstravam surpresa e um certo entusiasmo ao perceberem que não encontravam mais a cidade que haviam deixado. Assim como as grandes capitais do Brasil e do mundo, Florianópolis também passava a ter trânsito intenso, novos equipamentos urbanos e edifícios: - De regresso a esta terra maravilhosa fiquei impressionada com o seu desenvolvimento. Nunca pude imaginar que Florianópolis pudesse crescer tão rapidamente em apenas cinco anos. Quando transferi-me para a Guanabara, Florianópolis dependia somente de ruas estreitas e mal sinalizadas para proporcionar escoamento aos veículos que chegavam à ilha. Agora vejo a rua Conselheiro Mafra mais aliviada, a Felipe Schmidt com uma sinalização mais adequada e uma ponte que já não suporta mais ao grande número de veículos que trafegam diariamente entre a ilha e o continente. Mas este problema, pelo que vejo, está sendo solucionado com a construção de uma nova ponte (O Estado, 05/01/1973, p.04). De volta a esta terra maravilhosa, depois de quase seis anos em plena atividade em Alagoas, surpreendi-me com as transformações socioeconômicas de Florianópolis. Edifícios, novas estradas, início de construção da nova ponte, televisão, praias popularizadas e jornais de gabarito (O Estado, 24/02/1973, p.04).

Ao mesmo tempo, a percepção dessas mudanças suscitava ressalvas. Advertia-se que o progresso e o crescimento da capital implicariam em conviver com os problemas que os grandes centros urbanos enfrentavam no Brasil e no exterior. As mudanças significavam também uma ameaça à vida tranquila que a capital conservava até aquele momento. A cidade pacata perdia-se em meio a um ritmo acelerado que tendia a reproduzir um cotidiano impessoal: Florianópolis está deixando de ser aquela cidade pacata, onde a alegria de viver emanava dos seus nativos, contagiando os visitantes, de qualquer parte do país. Hoje em dia, entretanto, isto está acabando e a Capital entra no ritmo do progresso, com tendências a, em breve se transformar em grande centro de concentração urbano, adquirindo seus vícios e defeitos, fadada a ser um lugar de sobrevivência, a exemplo do que acontece em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Nova Iorque, Hong-Kong e Berlim (O Estado, 16/02/1973, p.04).

A aceleração dessas mudanças nutria também um sentimento de perda. De repente, aos olhos dos antigos moradores, a cidade pacata perdia-se de vista ou embaralhava-se em meio às novidades que o meio urbano produzia a cada nova empreitada. Os espaços se modificavam e, com eles, os referenciais da cidade em que se vivera até então eram substituídos por novos usos e costumes. Aparece o sentimento de saudosismo na tentativa de

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explicar o que se perdeu e como se perdeu. Em nome do progresso, ruas bares e restaurantes mudaram de nome ou foram destruídos para darem lugar à construção de novos edifícios e avenidas. Como recorda por carta um leitor do periódico: Sr. Diretor: Ainda outro dia destes, estava eu, a propósito de descansar da velha figueira da Praça 15 de Novembro, quando me chamou a atenção aquela imensidade de gente e obras que se desenvolvem naquele enorme mutirão da Comcap, na centenária Felipe Schmidt. Veio-me então, imensamente, as recordações de Florianópolis que eu conhecera nos idos de 1949. Quase se materializam as imagens das coisas e praticamente ouço as vozes de tantos que conheci. Florianópolis é quase uma metrópole. Já não vejo mais na esquina o velho Café Rio Branco, onde acima havia nosso snoker. Olho mais ao longe e falta a presença do Café Chiquinho, do Ponto Chic, do sofisticado Lux Hotel, e mais abaixo procuro, em vão, encontrar o Bar São Cristóvão, ou o austero Hotel La Porta, cartão de visitas da provinciana Capital. Cadê o Restaurante e Bar Rosas, onde tantos chopinhos e caipirinhas tomávamos. Na Conselheiro Mafra, alinhavam-se os hotéis Ideal, Metropol e outros ao lado da vetusta Alfândega Federal. Quantas vezes, meu Deus, caminhando pela Conselheiro Mafra, descia até o Cais Frederico Rolla, moço do interior que era, só para ver de perto a Baía Sul, descer suas escadas e tocar a água, para sentir na ponta da língua que tudo aquilo era salgado mesmo. A cervejinha no Mira Mar. Há o Mira Mar. Parece mentira que jaz soterrado pelo colosso que é o aterro da Baía Sul. E há também agora o asfalto, que tornou-se passarela das escolas de samba. No meu tempo se desfilava era na Felipe Schmidt, mesmo. Tinham os Granadeiros da Ilha, sempre de rixa com os Tenentes do Diabo. Que fim terão levado aquelas escolas de samba, tão ao sabor da época? A Felipe era cenário colorido, todos os domingos, do indefectível “footing”, depois da sessão das 8 no Cine Ritz, ponto obrigatório de encontro de tantos e saudosos amigos. Vejo agora o seu Meirelles, bonachão, alegre, sorridente a discutir os melhores lances do Figueirense que vencera a partida tendo a seu lado o velho Raul Wendhausen. Mais acolá, encontra-se o Negrão, Chico Evangelista, Dilermando Brito, Nilson Carioni e outros, ufanos com a vitória de seu time contra temível Avai, num dos clássicos da cidade. Não havia ainda Turesc, Cecontur, Telesc, Celesc, Dicesc e tantas siglas mais, nem tantos edifícios a conter a brisa amena da Baía Norte. Havia sim, os rega-bofes, depois de um banho do Coqueiros Praia Clube, onde pela vez primeira comi o legítimo vatapá, sob a insistência maldosa e imperdoável do saudoso amigo Alexandre Evangelista. E a praia do Muller? Era o fino. Os treinos de futebol no campo do Avai ou no Colégio Catarinense. Como voa o tempo e como permanecem imutáveis lembranças. Faculdade de Direito na Esteves Júnior. Tantas e tantas vezes desci aquela rua para sentar-me na pracinha que havia a beira mar, lá embaixo. A Bocaiúva, toda cheia de coqueiros e antigas vivendas. E a Conselheiro Lamego? Ainda existe? A fábrica de balas Hickel, também não terá sido consumida na voragem do tempo? Olho novamente em redor e vejo o coreto na frente da secular catedral, onde a provinciana Florianópolis de outrora ouvia sua retretas domingueiras. Parece imutável no tempo e na memória, somente a velha e muda figueira, que um dia também abrigou em sua sombra meu pai a espera do expediente no Departamento dos Correios e Telégrafos e talvez até meu avô, quando Deputado Estadual por Curitibanos, nos idos tempos do saudoso Governador Hercílio Luz. Levanto-me agora, já um pouco mais refeito e prossigo na correria infernal que a sociedade moderna criou e apago por instantes as imagens criadas no caleidoscópio da vida. São quase 5 horas. Deus meu, e continua ferindo as entranhas da Felipe Schmidt, agora promovida a “calçadão”, evitando cortar os canos da Telesc, Celesc, Casan e sei eu mais o que (O Estado, 27/02/1977, p.04).

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A projeção dessas duas imagens sobre a cidade exemplifica como se constroem e vivenciam no imaginário dos seus habitantes as diferentes maneiras de perceber as mudanças no espaço urbano. De um lado, há uma angústia em relação ao atraso da cidade por parte das elites, da classe média ou de pequenos empresários que vislumbravam novos ganhos com a modernização da capital e as transformações operadas a partir da metade da década 1960. Do outro lado, estavam aqueles moradores que viam sua rotina mudar com a chegada de forasteiros e sentiam a experiência de perder a cidade ao mesmo tempo em que presenciavam o crescimento de uma nova.107

2.1 A INCORPORAÇÃO DO MERCADO DE CONSUMO DE MASSAS EM FLORIANÓPOLIS A dinâmica desses processos que os recortes dos jornais nos permitem analisar estava intrinsecamente ligada à vitória da plutocracia brasileira a partir da ditadura militar que se instaurou no Brasil em 1964. No bojo desse projeto capitalista conservador, constitui-se entre 1967 e 1979 um período com elevadas taxas de crescimento, que posicionou o Brasil entre as dez maiores economias do mundo. O período que ficou conhecido por “milagre brasileiro” caracterizou-se pela construção de uma sociedade capitalista com extrema concentração de renda, mobilidade social acelerada e ampliação dos padrões de consumo para um mercado de massas. Dentro dessa engrenagem, o Estado brasileiro ampliou o crédito, financiando pesados investimentos em obras públicas nas cidades e fomentando setores estratégicos da economia como telecomunicações, petróleo, energia elétrica e petroquímica. Ao mesmo tempo em que violou direitos individuais e eliminou direitos políticos de maneira a manter vitorioso o projeto capitalista das elites: O autoritarismo plutocrático fechou o espaço público, abastardou a educação e fincou o predomínio esmagador da cultura de massas. Sua obra destrutiva não se resumiu, pois, à deformação da sociedade brasileira pela extrema desigualdade. Legou-nos, também, uma herança de miséria moral, de pobreza espiritual e de despolitização da vida social (MELLO; NOVAIS, 2002, p. 637).

Além da violência propagada pela agenda conservadora do regime militar, moldou-se dentro desse projeto, a hegemonia dos ricos sobre os pobres, através de uma indústria cultural guiada pelos parâmetros de consumo da cultura estadunidense. Essa estratégia que garantia de forma duradora os privilégios de uma pequena classe abastada forjou-se dentro de uma 107

FANTIN, Márcia. Cidade Dividida. Florianópolis: Cidade Futura, 2000. p. 42-49.

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acirrada concorrência entre grandes empresas que alimentaram um crescente mercado de anunciantes. Eles deveriam atender a expansão cada vez mais vultosa do mercado de bens de consumo.108 Os investimentos que o Estado brasileiro fez em telecomunicações possibilitaram, durante a década de 1970, a instalação de uma rede nacional televisão. O que fez com que a indústria cultural no Brasil sedimentasse sua presença na vida dos consumidores brasileiros pelo acesso à televisão. Constituindo, assim, uma “grande máquina capitalista, que utiliza os processos tecnológicos mais avançados, voltada para a produção da mercadoria entretenimento, que, consumida, dá suporte aos anúncios das grandes empresas.” 109 Uma prova disso é que o Estado brasileiro ampliava o crédito para facilitar o acesso dos brasileiros ao primeiro aparelho de televisão. Isso fez com que no espaço de vinte anos, entre 1950 e 1970, 75% dos domicílios urbanos no Brasil passassem a contar com um televisor. Essas características, que combinavam mercado de consumo de massas e publicidade, já estavam presentes em Florianópolis na década de 1970. Nas páginas de “O Estado” é notório o espaço cada vez mais preponderante que a publicidade ocupava nas edições do diário com peças publicitárias patrocinadas por revendedoras de carros, grandes redes de magazine, supermercados e construtoras. Nelas anuncia-se de tudo: roupas, sapatos, carros, motos, tratores, caminhões, ofertas para crédito fácil e rápido, mobiliário de luxo e popular para se montar cozinha, sala e quarto, móveis para escritório, artigos para camping; além de todo tipo de utensílios domésticos como jogos de chá, pratos, panelas, copos, faqueiros, malas, tapetes e eletrodomésticos como televisores, batedeira, liquidificador, torradeira, geladeira, fogão, ventilador, máquina de escrever, rádio, aparelho de som, aspirador de pó, enceradeira e máquina de lavar roupa. Os supermercados mostravam suas ofertas da semana: enlatados como salsichas, sardinhas, ervilhas, milho, palmito, óleo de cozinha, azeite. Apareciam os congelados como salgadinhos. E ainda os frascos de plástico com maionese, catchup e mostarda. Além de bebidas como conhaque, uísque e Martini. Portanto, chega a Florianópolis o modelo de consumo consagrado a partir dos anos 1950 em todo mundo, como American way of life, no qual a burguesia e classe média alta reproduzem os estilos de consumo e de vida dos grandes centros urbanos do capitalismo 108

MELLO, João Manuel Cardoso de e NOVAIS, Fernando A. Capitalismo Tardio e sociabilidade moderna. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea/coordenador geral da coleção Fernando A. Novais; organizadora do volume Lilia Moritz Schwarcz – São Paulo: Companhia das Letras, 2002, volume 4. p. 637-638. 109 Ibidem-p.638.

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desenvolvido. Forja-se, a partir desses novos valores, a ideia de progresso e ascensão social do indivíduo e do país, enquanto a classe trabalhadora e uma imensa massa de miseráveis buscavam participar desses novos ritos do capitalismo mundial.110 Figura 9 – Publicidade

Fonte: (O Estado, 21/12/1972)

Figura 10 - Publicidade

Fonte: (O Estado, 03/12/1972)

Para além da publicidade, que evidencia a formação de um amplo mercado de consumo de massas na cidade, as páginas de “O Estado” apontavam também para os efeitos concretos desse novo comportamento. No final de 1972, o diário chama a atenção para os números exorbitantes que a capital tinha atingido com a venda de veículos. O Detran registrou o emplacamento de 14 mil carros na capital, sendo que desse número constavam 2.577 veículos zero quilômetro. Esses números representavam um acréscimo de 2.848 peças na frota total de veículos que circulava pelas ruas da cidade. O aumento nas vendas de carros estava associado à crescente produção da indústria automobilística, à criação de uma rede de concessionárias espalhadas pelo país e ao acesso facilitado a linhas de financiamento (O Estado, 17/12/1972, p.03). O mês de dezembro de 1972 ficava marcado também pelo aumento na venda de televisores em cores. Na época, o jornal lembrava que a tevê em cores só era conhecida pelos florianopolitanos por meio de “leitura e comentários vindos das grandes metrópoles.” Naquele ano, a TV Cultura passava a retransmitir programas em cores com 41 horas de programação. 110

Ibidem-p.604.

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As casas comerciais do centro da cidade registravam um grande movimento de consumidores da classe média alta à procura dos aparelhos. A matéria resaltava que o crescente mercado de consumidores de televisão criava na cidade a necessidade da presença de assistências técnicas autorizadas para eventuais reparos (O Estado, 03/12/1972, p.09). No ano seguinte, o Ministro das Comunicações, Hygino Corsetti, anunciava a concessão de um novo canal de televisão para capital que deveria dividir a programação com a TV Cultura. Em 1974, o governo estadual criou a TV Educativa que funcionava em circuito fechado no Instituto Estadual de Educação para produzir programas voltados para os currículos de primeiro grau (O Estado, 01/01/1978, p.22). Em 1976, “O Estado” descrevia a rotina dos telespectadores da Ilha, que já estavam acostumados aos canais de televisão e aos seus respectivos comerciais. Mas causava furor naquele momento, um comercial nunca visto na cidade até então. A peça publicitária era uma encomenda do mercado imobiliário que passava a anunciar na televisão a venda de lojas e salas de escritórios. A certa altura dizia-se que os telespectadores dividiam suas opiniões entre a aprovação e desaprovação, enquanto cogitava-se até a retirada do comercial do ar não fosse o sucesso alcançado pela composição do material: Nunca, na história da televisão catarinense, um pequeno filme comercial foi tão notado e cumpriu tão rapidamente os seus propósitos. Surpreendendo a agência que o contratou, os profissionais que o criaram e o cliente que o autorizou, mais do que ao próprio público, trouxe a formação de um mercado inusitado, quase fabuloso, para os negócios, não de pouca monta, do anunciante. Trata-se do filme comercial feito para anunciar o Ceisa Center, vultoso empreendimento do Grupo Ceisa para implantação no centro de Florianópolis e que conseguiu, em apenas duas semanas, a venda de 50 por cento da área de um imóvel de 31.790 metros quadrados (O Estado, 09/02/1976, p.06).

No Brasil, o mercado publicitário incorporou o modelo norte americano e passou a difundir os padrões de consumo considerados modernos. Foi com a presença maciça da televisão na vida cotidiana dos brasileiros que se tornou possível estimular o desejo pelo consumo em todas as camadas da sociedade num contexto político e social extremamente desigual.111 No final da década de 1970, quando já se percebia no horizonte, os efeitos da crise do petróleo na economia brasileira, as agências de publicidade na capital catarinense encontravam-se em franca expansão de seus negócios. Na época, a cidade possuía sete agências que prestavam serviço a uma produtora de filmes, a um estúdio fotográfico e a duas gráficas (O Estado, 01/01/1977, p.05). Para a população de baixa renda, o contato mais significativo com a publicidade davase por meio do rádio. Nesse período, a participação ao vivo dos ouvintes, que por muito 111

Ibidem-p.641

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tempo havia sido proibida (o Ministério das Comunicações liberou o contato entre as rádios e sua audiência no final da década de 1970), passou a ganhar destaque. Na época, Florianópolis contava com cinco rádios sendo que três delas tinham programas com participação do ouvinte através do telefone. A maior parte das pessoas que ligavam para as rádios eram jovens de classe baixa e média, que respondiam perguntas, pediam músicas e as dedicavam para a amigas, amigos ou namorados, além de participarem de competições entre bairros e show de calouros (O Estado, 28/01/1978, p.16). Os sucessivos contatos telefônicos durante os programas de rádio mostravam a dimensão da expansão das telecomunicações na cidade. Em 1976, se contabilizava um total de 10 mil aparelhos de telefone em Florianópolis. Os números da TELESC na época mostravam um aumento de sete mil aparelhos no período de três anos. Só no bairro do Estreito, por exemplo, vendia-se em média 20 aparelhos por dia, o que contabilizava um telefone para cada 15 habitantes. Proporcionalmente, também aumentavam as linhas e as centrais telefônicas. Canasvieiras, por exemplo, contava com 250 linhas naquele período enquanto que a central da Trindade possuía duas mil, já na central do Estreito constavam três mil linhas. A distribuição das vendas concentrava 60% para residências e os outros 40% para o comércio, indústria e setor público. Apesar dos consumidores terem acesso facilitado com financiamento dos aparelhos em 36 vezes, a aquisição de um telefone na época estava restrito a uma pequena parcela da população, pois somente cinco entre cem moradores tinham condições de comprá-la (O Estado, 14/02/1976, p.15). Acompanhando esse movimento de formação e ampliação do mercado de consumo de massas observa-se um novo comportamento no comércio da cidade. Aumentava consideravelmente o fluxo de pessoas circulando entre as lojas do centro, os supermercados aos poucos substituíam os pequenos armazéns, os lojistas criavam um calendário com horário diferenciado de funcionamento das lojas em datas comemorativas como o natal, o dia das mães e dos pais. E se, naquela época, Florianópolis ainda não contava com um shopping, encontrava-se no calçadão uma alternativa como modelo de comércio mais adequado para a nova fisionomia e ritmo da capital. Considerada como o principal ponto comercial da cidade, a Rua Felipe Schmidt era constantemente vislumbrada pelos comerciantes para se tornar um extenso calçadão livre somente para pedestres. Antes de concretizar o projeto de remodelação, a rua só era fechada aos veículos nos dias que antecediam o natal. O Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN) proibia a circulação de automóveis apenas por algumas horas, entre às 19 e 22 horas, no trecho compreendido entre a Praça XV e a Rua Jerônimo Coelho.

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Em meados da década de 1970, a secretaria de obras apresentou um projeto de implantação de um bulevar que abrangia a Rua Felipe Schmidt até a Jerônimo Coelho, conectando-se com a Rua Trajano, Conselheiro Mafra e Tenente Silveira. O projeto previa a alocação de novos equipamentos como bancas de revistas, posto de correio, telefones públicos e postos para ligações interurbanas, centro de informações, um mural com programações de cinema e teatro, local para venda de souvenirs, tenda de flores, mesas e bancos de praça (O Estado, 10/02/1976, p.16). As decorações de natal nas ruas da cidade e os horários especiais para o comércio no período que antecedia à data festiva colocavam em atrito comerciantes e consumidores em relação às determinações da Prefeitura. Lojistas e consumidores reivindicavam o horário prolongado do comércio na parte da noite a partir do dia primeiro de dezembro, enquanto que a Prefeitura só liberava o horário especial a partir da segunda quinzena daquele mês (O Estado, 13/12/1972, p.08). O comércio da capital passou a receber um grande movimento diário na medida em que a década avançava. A chegada de novos moradores na cidade com o poder aquisitivo elevado e a presença cada vez mais marcante de novos visitantes durante o verão alteraram profundamente a relação do comércio com os seus consumidores. Se antes as vendas estavam concentradas até o período do natal, a partir do momento em que o fluxo de turistas na cidade se estendia com a temporada de verão, o período de grande movimento e vendas passava a se prolongar para o término do carnaval. Com o aumento nas vendas, o comércio passou a diversificar os produtos vendidos. As sapatarias, malharias e butiques viam suas lojas se entulharem de novos compradores. Pelas principais ruas do comércio observava-se com grande entusiasmo esse novo cenário: Pelo calçadão da Felipe, Praça XV de Novembro e rua João Pinto avistam-se famílias inteiras com artigos ensacados em bolsas da Sul Fabril, Flamingo, Blumenau Fabril e outras malharias. Na loja Sulfabril, explicou o gerente que o movimento da primeira semana de janeiro suplantou o da primeira semana de dezembro último. Está melhor o movimento de vendas com a vinda dos argentinos. Eles compram principalmente malhas, jogos de mesa, cama e banho, artigos em malhas para crianças e toda a linha de algodão em geral. Disse que descontos não estão sendo dados porque a mercadoria subiu em 10 por cento este mês e porque os argentinos também não pedem, a não ser os que vêm com pouco dinheiro. Explicou o gerente que há casos em que eles pagam Cr$ 18.995,00 e nem pedem para descontar os Cr$ 5,00 finais. Surpreso com o número de turistas diz ele: “Parece que estamos em plena Argentina, dada a quantidade de gringos nas lojas e no trânsito” (O Estado, 20/01/1980, p.16).

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Figura 11 – Movimento de natal é intenso.

Fonte: (O Estado, 21/12/1972)

A constante presença de estrangeiros, principalmente argentinos e uruguaios, trazia também uma outra novidade para o comércio, o câmbio. À medida que o cruzeiro se desvalorizava frente ao dólar, durante a década de 1970, crescia na capital a troca de moedas. Na época, a maioria das lojas do centro da cidade aceitavam pagamento em dólar e algumas em peso argentino. Isso fez com que o câmbio passasse a ser realizado nos mais variados estabelecimentos, como em lojas de roupas, de discos, em butiques localizadas no Centro Comercial ARS ou na rua pelas mãos dos cambistas que atuavam na Felipe Schmidt. Apesar da alta procura, a prática do câmbio realizava-se principalmente nos hotéis onde se hospedavam os visitantes estrangeiros (O Estado, 06/02/1980, p.16). Enquanto o comércio se expandia e se diversificava, o mercado de entretenimento na Ilha ainda era incipiente. A vida noturna do florianopolitano estava restrita a duas boates em 1970. A “Scorpius”, que era frequentada pela juventude, e o “Bar do Oscar Palace Hotel”, aonde se dirigiam homens de negócios após o dia de trabalho. Aos poucos, a noite da capital começava a se diversificar com casas noturnas onde se tocava samba, bossa nova, rock, twist, iê-iê-iê e música rancheira (O Estado, 24/02/1973, p.09).

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Com tempo, a noite da cidade passou a ser associada a novos estilos de vida, que procuravam conjugar designações em inglês, de maneira a caracterizar novos hábitos de consumo. Surgiram discotecas e bares para atender ao público pertencente às classes médias, ao mesmo tempo em que a praia ganhava o status de “badalação”: Com essa gurizada toda circulando de carro por aí, ou de motoca, principalmente na Avenida Beira-Mar, ou em Coqueiros, houve uma proliferação “ad nauseam” de “break-burguers”e boquinhas em geral destinadas a esse tipo especial de consumidor motorizado. Houve também um considerável acréscimo de “boites”e bares que permanecem abertos até alta “madruga”. Mas a grande novidade foi, sem dúvida nenhuma, o aparecimento da discoteque “Dizzy”, considerada por freqüentadores daqui e de além ilha como uma das mais espetaculares do país. Para freqüentá-la é necessário se possuir algumas posses, “of course”, mas os notívagos em geral creditam a ela o mérito de ter sido a desencadeadora do chamado grande “desbunde”da temporada. Mas um conselho: não entre lá se não estiver altamente sintonizado com a loucura reinante. Senão vai se sentir como um peixinho fora d’água. Outro local que continuou atingindo significativos índices no Ibope da garotada em geral (cm passagem aberta também para muito “coroa badalativo”) foi a praia da Joaquina. Naquele quinhão de areia, que reúne a preferência dos seus freqüentadores, concentra-se uma plêiade de linhas e bronzeadas garotas, que, com os seus minguados biquínis, poderiam, tranquilamente, inspirar Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Morais a compor uma música, cujo título, é claro, seria: “A garota da Joaquina” (O Estado, 12/02/1978, p.16).

Aos poucos começaram a se destacar no calendário de shows da cidade artistas de projeção nacional. Em 1972, o Lira Tênis Clube recebia o show de Roberto Carlos que fora acompanhado por uma plateia de três mil pessoas. Cogitava-se naquele ano outras atrações como Elza Soares e Jair Rodrigues. Mais adiante no ano de 1976 ficou marcado na cidade a passagem do espetáculo dos “Doces Bárbaros” com a presença de Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethania e Gilberto Gil. Esse show ganhou grande repercussão após a prisão do cantor e compositor Gilberto Gil, horas antes da apresentação, quando numa batida policial no hotel do grupo fora encontrada uma pequena quantidade de maconha. A partir da década de 1970 a noite florianopolitana ganhava uma dimensão de sofisticação. Muito diferente das décadas anteriores, quando a vida noturna, passava-se em “tabernas e os botequins, casas freqüentadas principalmente por populares” e que “traziam o estigma do atraso, da barbárie e da necrose da cidade desordenada” (COSTA, 2004, p.60). Em paralelo à formação de um mercado de consumo de massas, o setor imobiliário e a construção civil em Florianópolis se encontravam em acelerado processo de expansão dos negócios. O jornal “O Estado” reproduzia constantemente a ideia de que se vivia na cidade um verdadeiro “boom imobiliário.” Há uma farta quantidade de anúncios publicitários no jornal para aluguel, compra ou venda de imóveis.

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Por meio desses anúncios pode-se observar indícios para onde se deslocavam os investimentos do setor. Os aluguéis de casas se concentravam em bairros residenciais como Trindade e Agronômica. Na área central, predominavam os aluguéis de apartamentos e lojas. A venda de terrenos era mais frequente na área continental e nos balneários do norte da ilha onde se destinavam grande parte dos turistas durante a temporada de verão. A estrutura de comercialização das construtoras, as imobiliárias e a atuação da publicidade passavam a criar em seus anúncios traços de distinção social a partir da venda dos imóveis. Chama atenção que no início da década de 1970 os anúncios da venda de imóveis apareciam nas páginas dos jornais apenas com descrições sucintas e sem imagens dos empreendimentos. A publicidade de novos apartamentos, principalmente daqueles localizados na Avenida Beira-Mar, vinham acompanhados da planta e do desenho da fachada do prédio. Como eram imóveis destinados especialmente à classe média alta da capital, as campanhas publicitárias recorriam a um expediente que procurava conferir um ar prestígio. Figura 12 – Publicidade

Fonte: (O Estado, 04/02/1973)

Figura 13 – Publicidade

Fonte: (O Estado, 20/12/1973)

Procurava-se caracterizar as imagens dos novos edifícios com requinte e sofisticação. Não era raro encontrar os nomes dos condomínios associados à lembrança de grandes pintores ou a estrangeirismos como: Edifício Da Vinci, Edifício Michael Eden II, Edifício Velásquez, Edifício Aquarius e Condomínio Boulevard. Os projetos geralmente previam salão de festas,

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terraço, barzinho, playground, elevadores, garagem, central de gás e interfone com portaria. Os imóveis variavam entre 130 a 400 m2 e buscavam reproduzir modo de vida das classes médias das grandes metrópoles do país: O Pessoal classe “A” de Florianópolis vai residir no Ed. da Vinci. A Emedaux está construindo o ed. Da Vinci só para os classe A. Para essa gente acostumada a coisas finas. Agradáveis. De bom gosto. Gente que entende de coisas refinadas. Gente que vai comprar um apartamento de 467 m2 que ocupa todo um andar do ed. Da Vinci. Com piscina, jardim interno, playground, garagem individual. E qualidade Emedaux, aquela que você já conhece. O ed. Da Vinci é para os verdadeiramente classe A. Os legítimos. Nada de “nouveaux riches.” Vá para o seu lugar: compre um apartamento no ed. Da Vinci. O de preço fixo. (O Estado, 04/02/1973)

Na metade da década de 1970, uma peça publicitária anunciava com entusiasmo: “Os compactos chegaram à Beira-Mar” (O Estado, 01/02/1976, p.19). A metragem desses apartamentos variava entre 128 a 172 metros quadrados, com dois ou três dormitórios e atingiam os consumidores com pequenas e médias famílias. No entanto, possuíam todos os equipamentos e conforto dos apartamentos de luxo. Já no final da década, “O Estado” anunciava a construção de um conjunto habitacional no bairro de Bom Abrigo, na região continental da cidade, em que se comemorou um “novo conceito” adotado pelas construtoras: “Ilha do Sol derruba privilégios de minorias de morar bem e confortavelmente” (O Estado, 28/01/1979, p.27). O novo empreendimento não era considerado pelo jornal como de “alto nível”, mas garantia aos futuros moradores “churrasqueiras, área de lazer para crianças, uma ou duas garagens, praia, piscina, arborização natural, área de serviço revestidas em azulejos decorados, carpe, esquadrias e venezianas de alumínio.” Portanto, o que se verifica na atuação das construtoras é o estabelecimento de um padrão de produção voltado exclusivamente para atender aos desejos de consumo das camadas médias da cidade. Mesmo aqueles empreendimentos que não estavam localizados em áreas consideradas nobres da capital, como a Avenida Beira-mar Norte ou a Trindade, as unidades habitacionais deviam garantir alguma forma de distinção social. A diversificação do mercado de vendas de imóveis associado ao crescente número de compras inflacionou o preço médio do metro quadrado na capital. Em 1973, foram vendidos 600 apartamentos ao preço médio de Cr$ 1.000,00 o metro quadrado. No ano seguinte, contabilizava-se a construção de um total de 25 prédios, sendo que 17 deles estariam prontos até o final daquele ano liberando no mercado 1.000 novos apartamentos (O Estado, 13/02/1974, p.04).

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Em dezembro de 1974, “O Estado” publicava a dimensão de atuação da construção civil na cidade com a manchete: “Construção: uma casa por hora.” Na época a Secretaria de Obras da Prefeitura chegava a esta conclusão a partir do número de alvarás emitidos naquele ano. O relatório da secretaria baseava-se na planta de casa popular com dois quartos dispostos numa área de 42 metros quadrados. Naquele ano foram emitidas licenças para a construção de 411.273,55 metros quadrados. Esse número expressivo de construções superava os 402.347,22 metros quadrados do ano anterior. Até novembro daquele ano, a cidade recebera 774 unidades habitacionais (O Estado, 08/12/1974, p.16). O setor da construção civil mantinha-se em significativa ascensão no final da década apesar dos sinais de recessão da economia. Na virada de 1970 para 1980, especulava-se que as grandes corretoras de imóveis e construtoras da cidade possuíam apartamentos encalhados. Na época, o preço do metro quadrado na Beira Mar chegava a valores exorbitantes, na faixa dos Cr$ 9.000,00 e Cr$ 12.500,00. Entretanto, diretores de imobiliárias constatavam uma mudança na direção de mercado por parte das construtoras. No início da década os investimentos se concentraram na construção de prédios para a classe média alta, mas, a partir dos programas de habitação do governo militar, como o BNH passou-se a dirigir os recursos para empreendimentos que visavam menores padrões de renda. De repente, a classe média voltava sua procura para um mercado que não podia mais atender a demanda (O Estado, 09/12/1979, p.16). Registrou-se nesse período um significativo processo inflacionário dos aluguéis na cidade. O jornal chamava atenção para o fato de que 50% da população florianopolitana ser constituída por uma classe média que ganhava uma faixa salarial entre dois e seis salários mínimos, o que significava cerca de Cr$ 800,00 mensais. Essa classe média, despendia na época, o equivalente a 20% de sua renda em habitação, enquanto a porcentagem de 45% destinava-se a gastos com alimentação. Ao falar sobre esse cenário, “O Estado” mostrava que a cada dia ficava mais rara a presença daqueles inquilinos que permaneciam anos morando no mesmo endereço. Praticamente desapareceram os contratos de aluguéis “superior a um ano devido à especulação imobiliária ou quando for, a renovação de um contrato de locação está sempre ligada a um acréscimo de no mínimo 20%” (O Estado, 08/12/1973, p.12). Não renovar o contrato do aluguel causava enormes transtornos. Havia uma grande oferta de anúncios e boa parte deles estava acima das possibilidades financeiras dos inquilinos. Entrava em jogo uma série de atributos que encarecia os imóveis. O mercado passou a diferenciar os valores dos aluguéis, conforme sua localização ou pela quantidade de dormitórios que ofereciam.

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Havia ainda um novo componente que passou a influenciar nos valores dos aluguéis. Conforme a presença do turismo se tornava a cada ano mais marcante na economia da capital, os aluguéis de veraneio disparavam e isso impactava sensivelmente o orçamento dos moradores da capital. Entre dezembro e março, o aluguel de uma quitinete no Centro podia chegar a Cr$ 12 mil mensais. Comentava-se na época que a frase mais repetida na cidade era: “Alugam-se apartamento e casas para temporada.” Em alguns casos, as casas oferecidas aos turistas argentinos, uruguaios e brasileiros de outros estados eram mobiliadas tinham aparelhos eletrodomésticos e roupa de cama. Em um balneário no norte da Ilha, dependendo do conforto, o aluguel poderia chegar a Cr$ 200 mil por mês. As imobiliárias que atendiam especificamente ao mercado de veraneio chegavam a agenciar 200 unidades por temporada (O Estado, 21/12/1980, p.16). O cenário do mercado imobiliário evidenciava também outros problemas. Desde o final da década de 1960, os estudantes universitários da capital reivindicavam o acesso à moradia na cidade. Em 1968, o movimento estudantil ocupou as ruas de Florianópolis contra “a retenção de verbas por parte do Ministério da Educação e a ausência de políticas de moradia estudantil.”112 Ainda no final da década 1970, o problema se arrastava. A falta de alojamentos adequados para os estudantes no campus da UFSC criava um mercado de aluguéis que era incapaz de absorver a demanda de alunos, quando esses não eram submetidos a todo tipo de exploração na hora de conseguir um imóvel. No início do semestre de 1976, apenas 100 vagas estavam disponíveis em “40 estabelecimentos, entre hotéis, pensões e casas” (O Estado, 14/02/1976, p.15). A situação se agravava a cada ano, pois no recomeço de um novo semestre a universidade recebia 2.900 novos alunos. Em 1978, só a Universidade Federal de Santa Catarina possuía 10 mil estudantes. Esses novos moradores, em sua maioria, estabeleceram-se na região próxima à universidade como Trindade ou Carvoeira em “pequenos casebres, amontoados em alguns apartamentos, ou reunidos em repúblicas” (O Estado, 21/12/1980, p.16). Somos um grande contingente de jovens sem habitação, sujeitos as especulações mais desonestas possíveis das imobiliárias, que em muitos casos se recusam a alugar para estudantes, e da discriminação de muitos proprietários, que preferem deixar um imóvel vazio, a ter que locar para universitários”, reclamava Luiz Carlos de Andrade, estudante da segunda fase de Ciências Sociais, natural de Criciúma, falando sobre os problemas de alojamento existentes na capital. (O Estado, 21/12/1980, p.16).

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LOHN, Reinaldo Lindolfo. O tempo da notícia: cidade, ditadura e redemocratização nas páginas de O Estado (Florianópolis,SC, 1964-1985). Anos 90, Porto Alegre, v.19, n.36, dez.2012- p. 131

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2.2 A CHEGADA DE NOVOS MORADORES NA CIDADE

Florianópolis recebeu um contingente significativo de novos moradores que alteraram o ritmo das ruas, dos bairros, diversificando e expandindo sua economia. A partir da década de 1960, quando uma rede de novos serviços estatais se estabelece na cidade com os campus da UFSC e da UDESC, a instalação da ELETROSUL, da CELESC e da TELESC; chegam à cidade funcionários públicos de nível técnico e superior, profissionais liberais como advogados, arquitetos, engenheiros, médicos, professores universitários. Para se ter uma ideia, só no ano de 1973 a UFSC lançava concurso para contratação de 700 professores nas categorias de assistentes, adjuntos e titulares.(O Estado, 06/12/1973, p.03). Portanto, ganhava cada vez mais corpo a formação de uma classe média com o poder aquisitivo muito elevado se comparado aos padrões dos ilhéus.113 Dessa forma, Florianópolis tornou-se palco de tensões entre os antigos e novos moradores. A partir daí é possível perceber o “contraste nos modos de vida, confrontos de valores, disputa de mercado de trabalho, disputa de terra e até mesmo aumento do custo de vida” (FANTIN, 2000, p.37). Esse processo caminhou para uma clara divisão entre os grupos que a autora denominou de nativos e estrangeiros. Havia até uma distinção entre eles na ocupação do espaço físico da cidade. Moradores mais antigos costumavam se referir a alguns espaços como “rua dos paulistas” ou “rua dos gaúchos”. Os novos moradores passavam a construir suas casas em localidades como a Lagoa da Conceição, Barra da Lagoa, Campeche Cacupé, Pântano do Sul, Ribeirão e Santo Antônio de Lisboa. Lugares que foram até então territórios frequentados pelas famílias de pescadores durante o verão. Parece pertinente compreender a relação entre os dois grupos a partir da dinâmica estabelecidos-outsiders.114 A definição desse embate permite localizar “diferentes experiências e sentimentos pela cidade.”

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Os estabelecidos seriam os detentores das

tradições e suas experiências partilham de costumes já assentados há gerações, desejando preservá-las116. Enquanto que os outsiders trazem consigo novos hábitos que são vistos com

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FANTIN, op. cit. p. 36-37 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2000. 115 FANTIN, op. cit. p. 42 116 Para o grupo nuclear da parte antiga de Wiston Parva, o sentimento do status de cada um e da inclusão na coletividade estava ligado à vida e às tradições comunitárias. Para preservar o que julgavam ter alto valor, eles cerravam fileiras contra os recém-chegados, com isso protegendo sua identidade grupal e afirmando sua superioridade. ELIAS, op. cit. p. 25 114

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receio pelos antigos moradores e que de alguma forma os obriga a conviver com outras práticas. Dessa convivência aparecem tensões e confrontos. Há ainda, na lembrança dos moradores, a narrativa de episódios onde ilhéus, novos moradores ou visitantes entravam em conflito. Como, por exemplo, um casal de turistas que é expulso pelo dono de um mercadinho por estarem se beijando na boca na calçada em frente ao estabelecimento ou ainda o caso das mulheres da ELETROSUL que foram espancadas num mercado da cidade. Alguns ilhéus entendiam que a presença dos novos moradores provocava o aumento dos preços na cidade (FANTIN, 2000, p.37-38). Esse ressentimento também pode ser percebido nas páginas de “O Estado”. As matérias relativas ao aumento abusivo nos preços dos aluguéis exibem indícios desses problemas. Reclamava-se na cidade que as imobiliárias reservavam imóveis à espera de funcionários da ELETROSUL, de maneira que impediam a outros consumidores que alugassem ou comprassem casas.

As imobiliárias seguravam os imóveis de maneira a

conseguir o dobro do valor estipulado dos aluguéis quando o cliente trabalhava naquela empresa: Caso idêntico ali também aconteceu, conta funcionário da Eletrosul recentemente transferido para Florianópolis, quando sua mulher foi procurar casa para alugar e encontrou uma, aqui no Centro, pela quantia de Cr$ 3.500,00. Impossibilitada de assinar no mesmo dia o contrato, pela ausência do marido, pediu que se esperasse até o dia seguinte e, aí então o proprietário comentando um engano, elevou o aluguel para Cr$ 7 mil (O Estado, 01/02/1976, p.15).

A relação estabelecidos-outsiders coloca muitos conflitos em jogo, mas todos convergem na luta para “modificar o equilíbrio do poder” (ELIAS, 2000, p.37). E, neste sentido, as expectativas em relação às mudanças que a cidade vinha enfrentando são apreendidas pelos dois grupos. O grupo dos estabelecidos lamenta a perda cidade. Seja pelo rompimento de antigos laços de convivência ou pela “invasão” dos outsiders que usufruem das possibilidades que a cidade oferece. Os outsiders, em alguns casos, traziam um capital cultural formado em outros centros, que lhe permitia angariar lucros com o potencial turístico que começava a se destacar naquele momento. A partir daí, delineava-se uma disputa de cidade onde estavam em jogo “[...] o mercado (de capital cultural e simbólico), mesclada com um sentimento subterrâneo, um certo sentimento de inferioridade não revelado, uma sensação de ameaça, de perda sempre presente na vida e no microcosmos da cidade (FANTIN, 2000, p.45). A certa altura, o colunista social Beto Stodieck provocou a ira de alguns leitores do jornal “O Estado”. Em uma coluna, intitulada “Vaia à farofa”, narrou a cena de dois ônibus

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cheios de turistas que teriam frequentado a praia da Joaquina numa tarde de dezembro. Os turistas que saíram dos veículos para curtir o banho de mar foram caracterizados como “farofeiros” e recebidos pelos frequentadores da praia sob vaias. Sabe-se, que na época, a Joaquina era reduto de surfistas e jovens da classe média e ganhava o “status” de praia mais badalada da cidade. No texto o colunista rejeitava a convivência com os “farofeiros” e sugere que eles frequentassem outras praias. Alguns leitores através de cartas endereçadas ao jornal acusaram-no de xenófobo por fomentar um rancor contra paranaenses e rio grandenses. Eis um trecho da coluna de Stodieck: Dois ônibus dedicados ao turismo farofeiro (aquele cujo ingrediente, além do turista, é claro, é composto de galinha, maionese e farofa – e não deixa um tostão na cidade que visita) foram recebidos, sábado logo após o meio dia, com uma estrondosa vaia pelos freqüentadores da Joaquina, outrora tão bem freqüentada.Um detalhe: os ônibus se embrenharam até quase o mar, o que, supõem-se, não é permitido – ao menos não era. Pra evitar que isso venha a se repetir, principalmente com coletivos provenientes de outros estados (os catarinenses do interior já estão acostumados com o descontraído comportamento do florianopolitano), seria interessante que determinassem as praias que estariam aptas para receber levas dos tais e nem sempre vindos visitantes. Assim o ilhéu, que tem por hábito só querer ver gente bonita ao seu derredor, sabendo d’antemão quais as praias infestadas de farofeiros, evitaria, até, passar pelas proximidades – e um deixaria o outro definitivamente em paz. Não é que a coluna sugira a ida de tais ônibus para o Bom Abrigo mas, ao menos a Jurerê, onde há uma ininterrupta sombra de eucaliptos (imagina essa gente pegar sol, assim, sem dó nem piedade? De frita já basta a galinha em suas sacolas), uma certa infra estrutura de bares e sanitários, enfim, um paraíso pra quem não quer e não tem muito o que gastar. Além do que dá pra acampar. Afinal, não é lá o lugar preferido dos argentinos que vêm, aos montes, em “excursiones”? Pois então, façam com que os farofeiros imitem os portenhos que, sabem, como ninguém, acampar sem gastar um peso sequer (O Estado, 14/12/1976, p.17).

Somados à classe média e aos estudantes universitários, a capital passou a receber também migrantes do interior do estado ou de outras regiões do país. Esses vieram compor a base da sociedade urbana, e ocupar atividades consideradas subalternas pelas classes dominantes. A classe trabalhadora chegava a Florianópolis para trabalhar no setor de serviços como balconistas em lojas, empregadas domésticas em casas de família da classe média, cabeleireiras, manicures, merendeiras em escola pública, enfermeiras, manobristas nas portas dos hotéis; nos supermercados trabalhavam como caixas, repositores de mercadorias ou embaladores, nos novos condomínios que subiam na cidade eram porteiros e zeladores, ou ainda vendedores ambulantes pelas ruas do centro, cobradores e motoristas de ônibus. Na construção civil, trabalhavam como pedreiros, pintores, encanadores e eletricistas. A construção civil empregava no final da década de 1970 16 mil trabalhadores e, de forma indireta, o setor movimentava 30 mil vagas. Tanto é que era considerado o setor que mais empregava na capital (O Estado, 01/01/1977, p.03).

Se nessa época havia uma

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quantidade expressiva de mão-de-obra, no inicio da década, no ano de 1973, quando as obras da nova ponte atraíram centenas de operários, ao mesmo tempo em que avançavam as construções de habitação pela cidade, o que se verificou foi a escassez de trabalhadores. A construtora Odebrecht, que na época recrutava os trabalhadores para as obras da ponte, contava com 830 efetivos numa construção que necessitava de mil empregados (O Estado, 28/01/1974, p.03). As empreiteiras tiveram que aumentar o salário de serventes, pedreiros e carpinteiros de maneira a tornar atrativas suas condições de trabalho.

Tanto é que as construtoras

passaram a procurar trabalhadores do interior do Estado na tentativa de suprir as vagas. Aquela altura as construtoras da cidade já haviam absorvido toda a mão de obra disponível das cidades vizinhas à capital (O Estado, 24/01/1974, p.12). Era comum que encarregados de empresas catarinenses, gaúchas e paranaenses fossem até São Paulo recrutar operários. A falta de mão de obra na construção civil tornou-se um problema nacional, por conta de grandes obras de infraestrutura como a transamazônica, que desequilibravam a oferta de trabalhadores em várias regiões do país. Figura 14 – Operário é cortejado pela construção civil.

Fonte: (O Estado, 24/01/1974)

Para atrair os trabalhadores, as empresas até disponibilizavam algumas vantagens, como um salário acima da média nacional. No entanto, a indústria da construção civil era responsável pela ocorrência de numerosos acidentes de trabalho. Em 1976, por exemplo, a Delegacia do Trabalho de Santa Catarina registrou no primeiro semestre a ocorrência de 937 acidentes que exigiam afastamento temporário dos operários. Na realização de um seminário de segurança do trabalho, um engenheiro alertava que das 16 obras que havia visitado na capital, “nenhuma delas mantinha Comissão Interna de

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Prevenção de Acidentes (CIPA)” (O Estado, 01/01/1977, p.03). Os trabalhadores estavam expostos a todo tipo de perigo como andaimes inseguros, ausência de guarda-corpo e um ambiente de trabalho que, na maioria das vezes, apresentava condições de higiene ruins. Aconteciam acidentes graves, como no caso de dois operários que caíram do quarto andar de um prédio enquanto reparavam uma camada de pastilhas em sua fachada. O episódio foi acompanhado de perto pelos pedestres que passavam pela Rua dos Ilhéus no Centro da cidade. Um dos cabos que sustentava o andaime se rompeu projetando um dos operários para o telhado de uma casa ao lado, enquanto o outro permaneceu suspenso no cabo de aço até a chegada dos bombeiros no local. Por sorte, as vítimas tiveram escoriações leves (O Estado, 10/02/1976, p.16). O jornal também conta a história de alguns trabalhadores da construção civil que conseguiram ascender socialmente. É o caso da trajetória de um trabalhador da construção civil que chegava do interior do Maranhão para a Capital catarinense no começo da década, junto com uma centena de operários do Nordeste que iriam trabalhar na construção da Ponte Colombo Salles. Na nova cidade, eles tiveram dificuldades em se adaptar ao clima frio, diferente do Nordeste brasileiro, e de encontrar um novo emprego após o término da obra, mas mesmo assim alguns trabalhadores permaneceram na cidade: - Quando eu cheguei aqui, achei tudo muito esquisito. Achei que nunca ia me adaptar ao clima, que considero muito frio, conta Antonio Afonso de Oliveira Silva, maranhense de 29 anos. Ele chegou em setembro de 1973. Junto com ele vieram mais 64 homens, em dois ônibus lotados por uma empresa que prestava serviços para a construção da ponte. “Ninguém quis ficar. Eles começaram a voltar. De cinco em cinco dias partia um grupo. Em poucos meses, voltaram todos. Só fiquei eu”, acrescenta (O Estado, 24/01/1977, p.05).

O jornal conta que esse mesmo trabalhador conseguiu ser aprovado no concurso para auxiliar de administração dos Correios. O emprego de servidor público dava alguma segurança e lhe permitia morar numa pensão no centro da cidade, embora o aluguel de Cr$ 850,00 consumisse boa parte da sua renda. Mas, nem todos os migrantes tiveram a chance de mudar de vida. É caso de José Pereira que deixava Lages na tentativa de concretizar em Florianópolis suas expectativas em relação a conseguir um trabalho e construir uma família. Assim que chegou, trabalhou como servente numa obra e pouco depois ficou desempregado: Pra ele, este foi o primeiro contato que teve com uma cidade grande, onde tinha imaginado que finalmente conseguiria ter uma mulher, um casebre e alguns filhos, além de um bom emprego, talvez em um escritório. Porém com o passar do tempo, José foi vendo que as coisas não eram tão fáceis como tinha pensado. O casebre em que morava, no Morro da Cruz, tinha que ser demolido. O sonhado trabalho em uma firma qualquer, onde teria pelo menos um pouco de segurança, com um salário garantido todo final de mês nunca apareceu.

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Então teve que começar a se virar. Para morar, conseguiu o esqueleto de um prédio abandonado, que estava sendo construído para servir de sede ao Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, próximo ao aterro e nos fundos do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. Para sobreviver começou a fazer “biscates”. Um dia estava capinando um jardim, no outro lavando carros, ou mesmo trabalhando em alguma construção, onde as vezes consegue ganhar até um salário mínimo. - Mas isso não é tão fácil de aparecer, e enquanto não vêm, a gente tem que ir dando um jeito. Um dia, inesperadamente surgiu Juraci, uma gaúcha de Porto Alegre que também estava em uma situação semelhante a sua. Tinha vindo par a Florianópolis com uma família, em cuja casa trabalhava lá no Rio Grande. Após algum tempo, desentendeuse com pessoal e ficou sem ter onde morar.Embora a situação dos dois não seja das melhores, já faz mais de dois anos que moram juntos. O esperado lar e o sonho da cidade grande foram destruídos pela realidade. Embora diga que tem apenas 21 anos, parece ter quase trinta. Quando chegou por aqui há alguns anos (não lembra ao certo quanto tempo faz), era um homem forte, disposto. Agora está doente, quase não consegue trabalhar. Suas mãos e suas pernas tremem constantemente. Sobre o seu passado e seu futuro poucas coisas sabe. Juraci, que não lembra mais seu sobrenome, trabalha como empregada de uma família, mas ganha muito pouco, “Porque eles também são pobres e não podem pagar mais”. Como José, também está muito envelhecida, apesar de calcular em 21 anos a sua idade (não lembra quando nasceu) (O Estado, 08/02/1973, p.03).

Portanto, estava presente na Florianópolis daquela década uma das características mais perversas do projeto capitalista empreendido pelos governos da ditadura. Sob o pretexto do combate à inflação, o Estado brasileiro colocava em prática a política de congelamento do salário mínimo. Soma-se a isso, o fato de ter restrito os direitos dos trabalhadores ao ter colocado os sindicatos na ilegalidade. A configuração desse cenário garantia às empresas uma grande oferta de mão de obra no mercado de trabalho com salários baixíssimos. O que gerou uma massa de trabalhadores precarizados e de outros tantos miseráveis nas grandes e médias cidades do país, enquanto a economia se expandia garantindo elevadas margens de lucro para os empresários (MELLO; NOVAIS, 2002, p. 620-626).

2.3 ALTERA-SE O RITMO DA CIDADE: AS FEIÇÕES DE UM AGLOMERADO URBANO POPULOSO, COSMOPOLITA E IMPESSOAL As aceleradas mudanças que estavam em curso alteraram profundamente o ritmo da cidade. De repente, a capital catarinense se viu abarrotada de automóveis com um trânsito desordenado e confuso, o que acabou por provocar a saturação de sua malha viária. Diante de tantos carros e novos moradores, os florianopolitanos experimentaram o anonimato. Aqueles rostos familiares se perdiam no fluxo cada vez mais intenso de pessoas desconhecidas. As filas para a espera dos ônibus no terminal tornavam-se extensas. As calçadas estreitas do Centro eram disputadas por milhares de transeuntes que caminhavam diariamente em direção ao trabalho ou passeando pelas lojas. O comércio se diversificava e apareciam as primeiras

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butiques destinadas às camadas médias da cidade. Os pequenos armazéns davam lugar aos supermercados. Nas ruas ou nas lojas ouvia-se com frequência novos sotaques provenientes de outras regiões do país e dos turistas que chegavam da Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. Esses turistas lotavam os balneários do Norte da Ilha e movimentavam a economia superlotando hotéis, restaurantes e lojas. O conjunto dessas transformações mostra que os florianopolitanos passaram a vivenciar a cidade de uma forma impessoal e muito mais complexa e variada. A vida na cidade só era possível, a partir de uma ordenação do tempo que exigia a pontualidade, a contabilidade e a exatidão, características de uma economia monetária. Esse citadino conhece pouco seu vizinho. Não o interpela, procurando saber o seu nome, o que faz, de onde veio ou para onde vai. Em suas relações estabelece certa aversão e estranheza em relação ao outro, o que pode acarretar em ódio e luta. A partir daí exibe-se um jogo entre a presença da multidão e o indivíduo. Enquanto que na cidade pequena é difícil manter sua peculiaridade em relação aos outros, na cidade grande o indivíduo a reforça estando ele solitário em meio a uma multidão. Ele está livre do controle que teria na cidade pequena onde todos se conhecem e sabem o que fazem. Nesse ambiente é que aparecem as características do cosmopolitismo. Sendo assim, a dinâmica na cidade grande se alastra por extensos territórios reproduzindo como numa teia, onde há inúmeros pontos de interseção, os modos de viver do Centro, onde tudo se expande de forma geométrica: “[...] o circulo de visão, as relações econômicas, pessoas e espirituais da cidade, os seus arredores ideais” (SIMMEL, 2005, p.580-586). De maneira que se torna difícil determinar onde ela termina e onde se inicia outro lugar. A cidade se transfigura em símbolos. Pode adquirir um caráter nacional ou internacional conforme sua área de influencia. Quando, em algum momento, o desencadeamento dessas características é quebrado, passa a se enxergar o espaço urbano como um lugar estranho ou incapaz de promover a tranquilidade ou sua esperada eficiência dentro de sua dinâmica. Não era raro perceber nas páginas de “O Estado” a representação de um cenário que congregava brigas e confusões. De repente a cidade passou a ser narrada como caótica: Com a chuva de ontem e a corrida dos turistas para o centro da cidade, o trânsito de Florianópolis demonstrou a sua grande capacidade para provocar engarrafamentos. Mais uma vez foram registrados centenas de estacionamentos em locais proibidos, pequenos acidentes e brigas entre motoristas. A Rua Francisco Tolentino – a do Mercado Municipal – estava cheia de caminhões parados em lugares onde deveria fluir o tráfego. Pouco mais à frente os motoristas encontravam junto à Praça XV uma bateria de cinco sinaleiras que, sem nenhuma sincronização, confundiam os próprios motoristas da Ilha. Mas a grande batalha estava reservada para a Rua Tenente Silveira; ali todos querem estacionar onde não se pode, as senhoras querem

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ver as vitrines de dentro de seus automóveis e os carros oficiais se aglomeram à espera das autoridades (O Estado, 26/01/1980, p.16).

Essa imagem caótica da cidade é representada principalmente pelos engarrafamentos que começavam a se tornar frequentes no Centro da cidade entre os horários das 12 às 14 horas e no fim da tarde entre 17 e 18 horas. A expansão do uso dos automóveis e a ausência nas políticas de promoção do transporte público de massas que acompanhassem o crescimento da capital são marcantes. Às vésperas da inauguração da Ponte Colombo Salles, o diário descrevia uma “cidade ilhada” (O Estado, 31/12/1974, p.04). A ponte Hercílio Luz não dava vazão ao número excessivo de carros nas ruas e passou a representar um ponto de estrangulamento do trânsito que afetava toda região central e alguns bairros como no Estreito, na Trindade e no Saco dos Limões, os mais populosos naquela ocasião. Apressava-se em encontrar culpados. A imprensa lembrava o traçado apertado das ruas e da concorrência cerrada do setor imobiliário que na área central havia tomado todos os terrenos baldios que inviabilizavam a construção de estacionamentos. Buscava-se então racionalizar o trânsito com a implantação de semáforos e ruas de mãos-únicas (O Estado, 02/12/1976, p.15). No final da década, circulavam pelas ruas de Florianópolis 30 mil veículos. Além das críticas direcionadas às velhas e estreitas ruas do Centro que não davam vazão ao trânsito pesado de carros, ônibus e caminhões, “O Estado” culpava o morador da cidade que utilizava o carro para todos os seus afazeres: “o comodismo do florianopolitano, que utiliza o carro para ir a qualquer lugar, mesmo que este fique próximo e que estaciona seu veículo em qualquer lugar desde que tenha que caminhar pouco” (O Estado, 01/01/1977, p.04). A conclusão da Avenida da Saudade, que ligava a Trindade ao Norte da Ilha, com suas seis pistas, não foi suficiente para evitar transtornos relacionados a congestionamentos durante a temporada de veraneio. No final de uma tarde de janeiro, entre as 17 e 19 horas, registrou-se “um dos maiores engarrafamentos dos últimos tempos” (O Estado, 08/01/1979, p.04). As duas pontes da avenida só permitam a passagem de uma fila de veículos por vez o que gerou um congestionamento de cinco a seis quilômetros na extensão da rodovia SC-401. Os banhistas que retornavam das praias dos Ingleses e Canasvieiras aguardavam a normalização do tráfego no acostamento. A circulação cada vez maior de veículos provocou também um número excessivo de acidentes.

O DETRAN registrava no final de 1972 a ocorrência de 1.909 acidentes

envolvendo automóveis, sendo que vinte deles resultaram em mortes. O relatório do órgão interpretava como principais causas a “imprudência, excesso de velocidade e invasão da via preferencial” (O Estado, 27/12/1972, p.04). Na época, a construção recente das rodovias

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gerais levava motoristas de automóveis e caminhões a conduzir com imprudência desrespeitando os limites de velocidade. Em 1976, foram 40 vítimas e outras 890 pessoas sofreram ferimentos no registro total de 2.223 acidentes naquele ano (O Estado, 01/01/1977, p.04). O perigo também estava presente nas ruas do Centro. “O Estado” destacava que uma tarefa simples como atravessar a rua para fazer compras no mercado podia se tornar fatal. Nas imediações do Mercado Público, onde se via um grande fluxo de pessoas diariamente, pessoas idosas corriam sérios riscos. Na Rua Francisco Tolentino, na qual o limite máximo de velocidade permitido era de 30 quilômetros, alguns motoristas chegavam atingir 100 quilômetros, segundo relatos de comerciantes. Essas ocorrências começavam inclusive a afastar clientes com receio de frequentar o local: Dona Adelaide, 64 anos e residente no interior da Ilha, raramente vem à Florianópolis. As poucas escapadas de Barra da Lagoa se restringem a compra de gêneros alimentícios, alguns utensílios domésticos, sementes e tecidos. Mas vovó Adelaide garante que abandonará logo suas compras. “Vou deixar para minha filha fazer tudo, porque ela conhece melhor as ruas.” Antes de ter dito isto, esta senhora ficou tentando atravessar 10 minutos uma passagem sob marquise no Mercado Municipal, na Rua Francisco Tolentino. Cenas como estas são comuns no local que já fez inúmeras vítimas. Os senhores e senhoras idosos vão deixando gradativamente de fazer suas compras no local e redondezas. “Eu, sinceramente, tenho medo e não venho mais para esse lado. Se eu me atrapalhar na subida do vão central da marquise, lá fui eu” disse um senhor idoso, que conhece o local há 28 anos, desde que existe o Mercado e a rua (O Estado, 20/01/1974, p.16).

Essas situações provocaram algumas iniciativas de racionalização do trânsito por parte do poder público. Na tentativa de minimizar os problemas, a prefeitura reparou calçadas, investiu na sinalização do tráfego, alargou e pavimentou algumas ruas do Centro a partir de algumas desapropriações derrubando muros e casas. Por exemplo: ligaram a Rua Major Costa à Monsenhor Topp, conectaram as Ruas Arno Hoeschl à Tenente Silveira, executaram o entroncamento da Avenida Osmar Cunha com a Rua Jerônimo Coelho e alargou-se a Rua 14 de Julho embaixo da Ponte Hecílio Luz e prolongou a Rua Almirante Lamego em quatorze metros auxiliando o acesso à Avenida Rubens de Arruda Ramos e à Francisco Tolentino.

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Figura 15 – Detran quer melhorar tumulto do transito.

Fonte: (O Estado, 05/12/1972)

Uma característica da cidade grande é a de reunir concentração demográfica com uma acentuada divisão do trabalho. As relações dos homens estão imbricadas a múltiplas realizações. A vida na cidade grande se forma a partir de inúmeras especializações, no qual cada indivíduo passa a disputar com outros seus ganhos. Se antes os homens lutavam cotra a natureza para garantir alimento, agora esse só é possível na luta entre os homens. Essas características estimulam “a diferenciação, o refinamento, o enriquecimento das necessidades do público, que acaba evidentemente por conduzir a variedades pessoas crescentes no interior desse público” (SIMMEL, 2005, p.587). A composição desses fatores provoca uma dificuldade do indivíduo em se manter fiel à sua personalidade no cotidiano da vida na cidade grande. Há uma série de significantes que pressionam os indivíduos, como modos de falar ou estilos de se vestir. Para se destacar nesse contexto, o sujeito busca uma forma de distinção social. É necessário ter uma qualidade que o outro não tem. O que faz aparecer comportamentos considerados esquisitos e extravagantes. Essa busca pela peculiaridade na cidade grande contrasta com a brevidade ou a raridade dos encontros (SIMMEL, 2005, p.587 - 588). A presença desses personagens da cidade grande é muito rica nas páginas de “O Estado”. Chama muita atenção a matéria “A Ciranda da Felipe é o regalo da cidade”, na qual se faz uma minuciosa descrição do que podia ser visto numa tarde de observação pela rua mais movimentada da capital. Há uma farta quantidade de representações acerca da Felipe Schmidt. A rua, nesse caso, não é somente um lugar de passagem e consumo. Ela se

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transfigura em espaço de fruição, onde transitam diversos tipos sociais: políticos, donas de casa, jovens com “Black Power”, funcionários públicos, turistas, flanelinhas, vendedores ambulantes, guarda de trânsito, aposentados e estudantes. Está presente na descrição o prazer de observar os passantes, o que suscita uma espécie de voyeurismo: Passar uma tarde na Felipe pode constituir-se numa cansativa maratona, ou num dos melhores momentos do dia. Tudo depende do espírito esportivo do voluntário, que pode ver, apreciar, rir, penalizar-se, receber xingamento, de tudo e de todos. As coisas mais contrastantes acontecem, numa só tarde na Felipe. A começar por um grupinho de políticos em frente ao Ponto Chic, a discutirem o provável nome para este ou aquele cargo público, passando por uma senhora com um carrinho de bebe, empurrando-o nas estreitas calçadas, ou dois legítimos representantes do “Blackpower”, com os cabelos mais parecendo um enorme “Bombril”, a discutirem sobre a beleza duma loura que acabou de passar, para chegar num guarda advertindo o motorista argentino de que ali não é lugar para estacionar. Pode-se ver de tudo na Felipe. Para quem passa apressado, para voltar à repartição de onde saiu apenas para tomar um cafezinho, o pessoal aglomerado nas calçadas “não tem o que fazer, são uns vadios”. Mas mal sabe ele o que está perdendo. O popular esporte da paquera está se desenvolvendo como nunca nas calçadas felipeanas. Basta parar, e observar. Os mais variados tipos humanos passam pela Felipe, e analisá-los já é uma ocupação que prende muita gente. Ao cair à tarde, o movimento aumenta, e o espetáculo também. Ninguém tem vontade de sair dali. A Felipe é um teatro inesquecível. Passar uma tarde na Felipe é assistir a melhor peça que a cidade criou. Neste teatro, cujo principal palco vai até o ponto de ônibus da rua Sete, os atores são rápidos para entrar e sair de cena. O espectador que não quer perder nenhum lance deve ser ágil e rápido com os olhos. Se vacilar, pode perder-se na roda viva, que o fará igual a todos, e ele não poderá contar aos amigos, à noite, na mesinha de chopp, ou de caipirinha, o que viu, e o que sentiu. Os dois vendedores de torradinho são um número à parte. De repente, um “Falcon” uruguaio procura estacionar perto do relógio abandonado da praça Pio XII. Os dois começam a orientar o motorista, que nada entende do que a dupla está dizendo. Mas ela (a dupla) não dá pela coisa, e continua a orientação, fazendo os “paraquedistas”ali estacionados rirem um bocado. Quando o aflito estrangeiro consegue colocar o carro no pequeno espaço visado, os dois pedem um trocado, como recompensa pelo esforço despendido, mas recebem apenas um “pero, que hay?” Saem frustrados, xingando o “pão duro” do “gringo”... O trecho mais quente é o da Praça XV até a Trajano. Ali se reúnem os estudantes os “alegres rapazes”, os aposentados, os políticos, e, uma ou outra vez, duas ou três garotas a conversarem sobre a última moda, ou sobre o “pão”que dirigiu-lhes um demorado olhar. Não resta dúvida que todas três estão sendo alvo dos mais insistentes olhares, de todos os cantos, inclusive dos “alegres rapazes”, que apenas olham a roupa ou o penteado... Neste pequeno pedaço de palco, o espectador pode resumir toda a Felipe, pode assimilar toda a peça teatral que ali se desenrola. O bate papo dos cabeludos do carango, ali estacionados simplesmente para ver o movimento, mas desligados do que se passa, ou a exclamação de admiração do calouro, recém vindo do interior, pela menina morena bronzeada, mostra que a beleza do espetáculo reside justamente neste desligamento. O negócio é só ver, rir, apreciar, sem se importar com o final da peça, que pode chegar a qualquer momento... (O Estado, 20/01/1974, p.16).

No texto, a rua é representada como um enorme teatro ao ar livre. E por ela entram e saem de cena seus atores, como se cada sujeito da cidade representasse um personagem ou um tipo. Os acontecimentos se desencadeiam de forma fragmentada ao passo que são transitórios e fugazes. A certa altura o texto lembra que a rua foi a “melhor peça que a cidade criou.” Na

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foto que acompanha o texto no jornal há um esforço em representar a Felipe Schmidt com ares de sofisticação e cosmopolitismo. Não é à toa que a rua aparece associada a um famoso parque de Londres, uma área verde conhecida por sediar cafés, bares, restaurantes, quadras de tênis e shows de rock. Figura 16 – A Felipe Schmidt é uma tribuna quase tão sortida quanto o londrino Hyde Park.

Fonte: (O Estado, 20/01/1974)

2.4 UMA CIDADE COM NOVOS HÁBITOS E COSTUMES Esse novo ritmo que a cidade incorporava foi responsável por alterar também hábitos e costumes. Ao mesmo tempo em que provocava adesões e recusas. Um objeto interessante deste tema é o corpo, tendo em vista que Florianópolis, ao se tornar um polo de atração turística em função de suas praias, precisou conviver com novos hábitos de turistas e moradores que passavam a perambular pela cidade com trajes de banho. Essas novas atitudes suscitavam discussões de moral e normas de conduta. Na ilha, a praia nem sempre fora um espaço de lazer e sociabilidade. Até o início do século XX, a praia estava relegada à utilização de despejar dejetos e, por isso, era reconhecida pelos seus moradores como lugar de maus cheiros. Aos poucos, a elite local, em vistas de usufruir economicamente de suas terras nas áreas dos balneários, passou a alterar o uso da praia.

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A mudança deste comportamento inicia-se na década de 1930, quando o hábito de banhar-se nas águas do mar em dias quentes ganhou status de higiene e saúde. As praias de Florianópolis passaram a receber com frequência banhistas que procuravam viver perto da natureza ou em busca de descanso. Naquela década, ficava pronto o Hotel Balneário de Canasvieiras no qual as elites da cidade passavam suas férias. Mas mesmo que a elite local tenha mudado o sentido do uso da praia, antes de espaço do lixo e depois para o lazer, tal atitude não significou uma libertação do corpo. Tanto é que se conservava o hábito de trocar as roupas em compartimentos fechados de maneira a proteger os banhistas de olhares alheios (FERREIRA, 1998, p.75-80). Mais tarde, em fins da década de 1970, a questão da moral e do corpo é colocada de outra forma para a cidade. A partir da segunda metade do século XX, principalmente nos centros do mundo capitalista, os hábitos e costumes burgueses passam por significativas modificações. As mulheres passaram a controlar a natalidade, o que mudou substancialmente os padrões familiares, o que lhes permitiu mais liberdade para continuar os estudos e ingressar no mercado de trabalho, o que representou um maior controle sobre o corpo (HOBSBAWM, 1995, p.316). No dia seis de janeiro de 1980, “O Estado” publica a carta do leitor Pedro Cardozo, morador de Florianópolis sob o seguinte título: “Mulher”. O leitor inicia seu parecer sobre o fato de que até aquele momento o “topless” consistia numa prática mais comum da televisão ou do cinema, no entanto, algo estava mudando: Agora, nesta indefinível transição de década, quando a violação de direitos internacionais não é mais espanto, já são deslumbrados a olho nú em nossas praias, embora tímidos, a lagartear por sobre as pedras, bronzeados, refletindo ao sol. Freneticamente soltos na vida. Mas com certeza, irão multiplicar como vírus. Seu balance descer e habitar a orla mais agitada. E no abafo, colaborar para esticar a fila dos cardiologistas e geriatras (O Estado, 06/01/1980, p.04).

Este atento leitor observou a rápida mudança de hábitos nas praias. Aquilo que era objeto longínquo, da televisão, agora se tornava corriqueiro com tendência ao modismo. Mas o seu discurso vincula essa liberação do corpo feminino como se fosse apenas uma alienação, sem considerar o desejo e a vontade como ações legítimas do indivíduo: A mulher está se prostituindo a todo momento, manipulada por uma publicidade sedutora. Vendendo-se para pousar nua nas revistas, no cinema, no teatro. Camuflada sob um tipo de arte que apenas enche os bolsos de vigaristas nacionais e alienígenas de toda a índole. Em pouco tempo, extraem todo o sumo da pobre coitada e o que resta é bagaço (O Estado, 06/01/1980, p.04).

Esse não fora o primeiro registro do “topless” na cidade. No início da década de 1970, o jornal noticiava que o topless era permitido desde que fosse feito em locais protegidos. Na

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época, o delegado de Costumes da Capital não proibia à prática, mas recomendava às moças que se distanciassem da visão do público e, caso houvesse alguma inquietação por parte dos banhistas, elas teriam que se retirar (O Estado, 28/12/1972, p.01). O assunto voltou à pauta quando, no final de janeiro de 1980, “O Estado” estampava na primeira capa, a foto de uma jovem saindo da água da praia da Joaquina com os seios à mostra. A moda “top-less”, que ultimamente vem causando grandes transtornos para as autoridades encarregadas da manutenção da moral e dos bons costumes no país, foi lançada ontem na praia da Joaquina por uma estudante gaúcha. Apesar da preocupação das autoridades de que esta moda venha a “corromper a moral e as formas de proceder em locais públicos”, as pessoas que estavam na Joaquina, na tarde de ontem, na maioria argentinos, encararam o fato com grande naturalidade e Talma Fernandes, estudante de Medicina no Rio Grande do Sul pôde deliciar-se tranquilamente nas frias águas da Joaquina sem a parte superior do seu biquíni (O Estado, 17/01/1980, p.16).

O cronista Beto Stodieck tratava o assunto com certa ironia. Em um de seus textos lembrava que os moradores da capital reproduziam rapidamente todos os modismos praticados no Rio de Janeiro: Mas, que decepção! Florianópolis, sempre uma pretensa cópia fiel de tudo aquilo que o Rio ditava – e a cidade aqui dizia amém e se enxertava – de repente está se constatando absolutamente “aut” – ou seja, por fora do irresistível carioquês. A um ponto tal copiávamos do Rio, que bastavam revistas e jornais soltar o que o “Rio vai usar” pra passar a ser visto pelas ruas e salões da cidade aqui – mesmo que o carioca resolvesse não mais usar... Assim foi, por exemplo, há algum tempo, quando anunciaram que a minissaia seria a coisa mais ----------- da temporada carioca – pois foi o suficiente pra macacada local imediatamente pôr-se em minis – acabando sendo o único point brasileiro de pernocas de fora (O Estado, 04/01/1980, p.13).

No entanto havia outras normas de conduta expressas nas páginas de “O Estado” que se tornavam recorrentes. Se o topless podia ser tolerado, desde que escondido do grande público, chama atenção algumas reações contra o uso de roupas de banhos em determinados ambientes. De repente, cobradores e motoristas passaram a proibir a entrada de pessoas com trajes de banho nos coletivos que retornavam dos balneários para o Centro. A proibição não tinha nenhum amparo legal e era remetida ao “costume do povo, que não se conscientizou que Florianópolis é uma cidade balneária” (O Estado, 22/12/1973). No centro da cidade, um homem fora barrado na entrada do Centro Comercial ARS por estar sem camisa numa tarde de calor intenso. Em sua coluna diária, Beto Stodieck comentava o episódio: Aliás, cidade de praias, acostumada a consequente nudez, deveria deixar de se chocar com certas coisinhas que não tem nada a ver – como é o caso desse cara sem camisa no ARS ou daquelas moças de shortíssimos pelo calçadão da Felipe, motivo de assobios e comentários desagradáveis por parte de uma coroada já sobre a gagá e que doutra maneira não tem como manifestar seus anseios sensuais... (O Estado, 21/02/1979, p.14)

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No ano seguinte, uma leitora do jornal externava sua indignação na seção de cartas do jornal ao lembrar que, apesar do crescimento, a capital ainda conservava costumes provincianos. De passagem pelo mesmo edifício, presenciou uma cena inusitada: o ascensorista do prédio barrou um menino de treze anos no elevador por estar vestido de bermuda. A situação criou consternação das pessoas que utilizavam o serviço, mas que nada puderam fazer quando um guarda foi chamado para retirar o garoto, sob o pretexto deste ter ferido “ a moral e os bons costumes” (O Estado, 02/12/1980, p.04). Entre esses sinais de mudança, estava o fascínio por morar em apartamentos. As camadas médias da cidade logo se tornaram assíduas consumidoras do mercado imobiliário e a aquisição de um apartamento garantia prestígio e distinção social de maneira que se tentava reproduzir o modo de vida dos grandes centros urbanos. No entanto, a novidade poderia trazer surpresas. Não era raro encontrar imóveis que não dispusessem de uma estrutura mais elaborada com isolamento acústico. Isso implicava em conviver de perto com os sons domésticos do vizinho, ao mesmo tempo em que se demandava cuidado nas próprias atividades caseiras para não causar transtornos aos outros: As lajes dos prédios, normalmente, são tão frágeis, que faz com que o vizinho de baixo fique sabendo o que se passa no apartamento de cima. Tudo, sem exceção. Salve a hora que sai, a hora que chega. Sabe quando vai ao banheiro. Sabe quando deita, quando acorda. E com o tempo consegue até identificar as pessoas – só pelos passos. Sabe quando está com tosse, quando espirra. Sabe quando tem discussão. Enfim, participa de toda a vida alheia mesmo sem querer participar (há, evidentemente, aqueles que aguçam os ouvidos para melhor escutar – não vivêssemos em Florianópolis...) Conheço um caso de gente que abusa. Duas e meia da manhã e lá resolve a dona da casa bater carne na cozinha... Essa mesma senhora (provavelmente sofre de insônia) todas as madrugadas, arrasta móveis, além de usar irritante para de chinelas de salto.. (O Estado, 05/02/1976, p.15)

Portanto, para alguns moradores tornava-se difícil a adaptação ao novo ritmo da cidade. O aumento da população e a presença dos turistas dinamizou o setor de serviços de tal modo que a cidade passou a funcionar durante a noite. Ficavam abertos durante a madrugada discotecas, bares, restaurantes e ambulantes. Esse mercado de entretenimento e serviços passava a incomodar aqueles moradores que estavam acostumados ao sossego. No periódico aparecem relatos de moradores que reclamavam de uma boate que mantinha seu sistema de som ligado no volume máximo até “altas horas da madruga” (O Estado, 16/12/1979, p.04). Um morador da Barra da Lagoa descrevia as noites de insônia nos finais de semana vividas por quinze famílias do bairro, quando um pequeno empresário transformou uma casa ao lado do seu terreno num salão para bailes que chegavam “às cinco da matina” (O Estado, 31/01/1980, p.04). Na Rua Padre Roma, no Centro da cidade, os

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moradores das redondezas solicitavam ao colunista Beto Stodieck alguma providência que pudesse impedir as “barulheiras” do movimento de clientes numa lanchonete de cachorro quente (O Estado, 18/01/1979, p.14). As mudanças impostas pelo surto de urbanização de Florianópolis, além de provocarem reações contrárias e desgostos, possibilitaram também à cidade e seus moradores novas maneiras de vivê-la. Os esportes como o futebol e a vela traziam esse componente de novidade. No campo da liga, no Centro da cidade, Avaí e Figueirense disputavam a Taça Atlântico contra times internacionais como Boca Juniors da Argentina e os rivais Peñarol e Nacional do Uruguai. Na Baía Sul uma multidão de torcedores podia acompanhar a final do campeonato brasileiro de vela. Mas se a cidade ganhava ares de cosmopolitismo, ao mesmo tempo, algumas atitudes e práticas até então consideradas corriqueiras na cidade começaram a ser rejeitadas. De repente, aparecem cartas endereçadas ao jornal ou o indicativo de abaixo-assinados articulando moradores de bairros que não toleram criadores de animais. Isso revela uma nova postura frente às práticas até então comuns na cidade, mas que deixavam de ser unânimes diante de um novo contexto com novos moradores. As reclamações são estendidas também as más condições sanitárias de pontos estratégicos para o turismo, como bares e restaurantes. A invocação por hábitos de higiene aparecia com frequência nas páginas de “O Estado”. Como o morador das proximidades do mercado do Estreito, que protesta por carta, o descaso da peixaria que atira os peixes estragados ao mar, mas que com o tempo e a maré “voltam a dar na praia um pouco adiante, justamente atrás de nossas casas onde apodrecem” (O Estado, 06/12/1973, p.04). Assim como os moradores da Vila Operária no Saco dos Limões, cuja principal repulsa era em relação a vizinho que mantinha no seu terreno a criação de vacas e cabras “ocasionando distúrbios na vizinhança, tanto pela sujeira dos detritos dos animais e pelo mau cheiro que exala do curral, prejudicando o sossego e a saúde dos formatários” (O Estado, 25/01/1973, p.03).

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Figura 17 – Avaí jogou bem, mas Peñarol foi melhor e triunfou por dois a zero.

Fonte: (O Estado, 02/02/1973)

Figura 18 – O barco de Ostergren foi retirado das águas pelos torcedores, sendo carregado até o galpão do Veleiros entre manifestações de alegria.

Fonte: (O Estado, 03/02/1973)

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Lugares como terrenos baldios ou áreas abandonadas onde a vegetação se proliferava passaram a ser alvo de reclamações: O terreno baldio com cerca de madeira, em pleno centro comercial da rua Felipe Schmidt, ao lado de uma panificadora e de uma pastelaria, é o local preferido pela vizinhança para depósito de lixo. Um funcionário da pastelaria acredita que a grande quantidade de moscas que lá aparece é proveniente desse local. (O Estado, 01/02/1976, p.16) - Moro na rua Vereador Batista Pereira, no Estreito, e gostaria de solicitar aos responsáveis pelo setor de limpeza de vias públicas para que dessem uma olhadinha na minha rua, onde o matagal está tomando conta do meio fio, causando uma má impressão, acoplada com desleixo, o que não nos agrada. Ficaria muito grato se fosse acatado o meu pedido, em nome dos demais moradores. Celito Romi – Estreito (O Estado, 17/12/1972, p.04)

Os estabelecimentos comerciais precisaram se adequar aos novos tempos. Principalmente, aqueles relacionados à alimentação. Na semana em que o Departamento Autônomo de Saúde Pública (DASP) anunciava uma série de medidas de fiscalização sanitária, “O Estado” descrevia as condições de trabalho de um açougue no Centro da capital. A matéria resaltava que os açougues da cidade vendiam as carnes nos “moldes de 20 anos atrás” (O Estado, 07/02/1974, p.12). Na Rua Fernando Machado moradores reclamavam do mau cheiro que exalava de um açougue das redondezas. Nele eram encontrados ganchos sujos e enferrujados, pedaços de carne expostos nos balcões e a presença constante de moscas e cães que rondavam as dependências do estabelecimento. Na época as autoridades sanitárias acentuaram suas ações em estabelecimentos relacionados ao turismo como hotéis, bares e restaurantes. Eram verificadas com frequência as condições de higiene das cozinhas, bem como a conservação, transporte e distribuição de gêneros alimentícios e as instalações de esgoto. Foram aplicadas no ano de 1973 trezentas multas em estabelecimentos da capital. Os agentes identificavam “os costumes populares” como o principal problema a ser enfrentado (O Estado, 12/01/1973, p.04). A cidade passa a conviver com épocas distintas em seu cotidiano. Com o acelerado processo de urbanização duas cidades se encontravam em justaposição. Nesse sentido a capa de uma edição de “O Estado” é reveladora. A imagem de uma gaiola pendurada num poste na Felipe Schmidt ao lado de um guarda de trânsito mostrava que, apesar das mudanças, alguns hábitos de seus moradores ainda estavam presentes na vida da cidade. Em meio ao ritmo frenético das ruas por onde transitavam em profusão carros e pedestres o jornal em tom de bom humor, perguntava como multar o pássaro? É interessante observar que as práticas que remetiam à vida rural do interior da Ilha começaram a ser vistas com certo estranhamento no

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espaço urbano. Cabendo até, mesmo que hipoteticamente, enquadrar um passarinho às normas de trânsito: O curió que ia sendo multado. Oito horas da manhã – o tráfego começa a se avolumar na Felipe Schmitd. Os guardas de trânsito circulam com o objetivo, nem sempre atingido, de fazer fluir os veículos. Entre suas atribuições, está a de zelar pela não ultrapassagem da meia-hora, nos estacionamentos. De repente, um problema novo: um curió, que trina alegremente sob a placa do Detran, em permanente infração. O seu canto, contudo, alegra a manhã. Assim, como multá-lo? (O Estado, 30/01/1974, p.01)

Esse novo olhar sobre a cidade que não reconhecia mais determinadas práticas como pertencentes ao meio urbano expõem tensões entre moradores antigos e aqueles que acabavam de chegar. Numa véspera de natal, as ruas no bairro da Trindade amanheceram movimentadas com a presença de duzentas pessoas que faziam uma “farra do boi” (O Estado, 25/12/1977, p.06). O boi fora solto na madrugada anterior no Norte da Ilha e terminava sua saga num típico bairro de classe média. Uma viatura da Polícia Militar, dois carros fortes e diversos soldados tentaram conter a ira do boi que espalhou pânico entre os moradores das redondezas, pulando muros, arrombando cercas e amassando o capô de um veículo dentro de uma garagem. A perseguição ao boi só terminou quando esse fora amarrado nos fundos de uma delegacia dispersando os curiosos. Chama muita atenção também, o destaque dado à morte de um cão nas páginas de “O Estado”: “Mataram Martinho, provavelmente o último cachorro público da cidade” (O Estado, 13/01/1978, p.16). Durante uma semana, o jornal comentava o assunto. Leitores indignados com o episódio enviaram cartas à redação. A matéria narrava com riqueza de detalhes à cena de envenenamento do cão na qual seria protagonizada por um morador antigo na região central da cidade: A morte do cachorro, contaram os jovens, fez acordar muita gente e até mulheres de camisola acorreram à rua quando iniciaram os primeiros socorros. “As lágrimas correram no meu rosto quando vi Martinho morrendo”, disse uma jovem de aproximadamente 15 anos. Na mesma noite, várias senhoras preferiram que o carro do lixo o levasse para que as crianças, pela manhã, não vissem “Martinho” no estado em que ficou. Depois da morte do cão, os rapazes conseguiram tinta vermelha e escreveram no muro da rua a seguinte frase: “Abaixo o assassino de Martinho, envenenado.” Ontem, os moradores consideraram a morte de “Martinho” como um verdadeiro crime, “foi o mesmo que matar uma pessoa.” Disse um deles: “aquele cachorro não podia morrer. Quem o matou teria que ser punido” (O Estado, 13/01/1978, p.16).

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Alguns dias após a publicação, o morador de um edifício próximo ao local do envenenamento respondia no periódico: Ocorre que “Martinho” ou “Caladinho”, como era conhecido, achou uma companheira e juntos começaram a atacar a todos que se aproximavam durante a noite. Nossos filhos eram obrigados a verdadeiras maratonas para conseguir entrar em casa. Vizinhos nossos viam-se em desespero. A proprietária do edifício onde residimos teve que armar-se de um sarrafo para conseguir livrar-se dos cachorros, só conseguindo com a intervenção de pessoas que estavam pelas proximidades. Na noite de quarta-feira, dia 11, alguém resolveu acabar de vez com a história e, segundo consta da reportagem de O ESTADO, envenenaram o tal “Martinho”. Alguém o fez. Forçosamente teria que recair em alguém a “responsabilidade”. Por razões que desconhecemos, fomos escolhidos como autores da façanha. Entretanto, apedrejar nossa residência (conforme poder-se-á verificar no Livro de Registros da Delegacia de Segurança Pessoal, bem como no competente inquérito que estamos instaurando – para apurar responsabilidades) não é correto, não é civilizado. Às 3 horas da madrugada foi a ocorrência (O Estado, 20/01/1978, p.04).

A comoção acerca da morte do cachorro em contraste com a prática da farra do boi são indícios de que novas formas de sociabilidades passavam a se constituir na cidade. Episódios como esses desencadearam na década seguinte um intenso debate entre a população de Florianópolis sobre aceitação ou não da farra do boi. A cidade estava em disputa mais uma vez, mas numa trama complexa. Havia os moradores antigos que passaram a reconhecer na farra do boi um elemento de identidade da comunidade local que se sentia ameaçada em relação às transformações que a cidade vinha passando. Ao mesmo tempo em que convivia com uma parcela da população nativa que se recusava a aceitar prática da farra identificando nela estigmas de degradação social e preconceitos de classe. Enquanto que os novos moradores se dividiam entre aqueles que não se incomodavam e outros que passavam a reivindicar a defesa dos animais contra ações de maus-tratos indicando um novo marco de civilizatório para cidade (CORREA, 2011, p.224 -237).

2.5 A DESARTICULAÇÃO DOS MODOS TRADICIONAIS DE TRABALHO O acentuado processo de urbanização que Florianópolis experimentou também foi responsável por desarticular os modos tradicionais de trabalho do mundo rural como a lavoura e a pesca. Esse processo de expansão e modernização da cidade estabeleceu dificuldades para manutenção dessas atividades. A especulação imobiliária imprimiu pressão sobre grandes áreas de terra e mar de maneira a tornar comerciável e lucrativo os espaços onde antigos moradores habitavam e usufruíam como forma de subsistência. Em contrapartida esses passaram a ter acesso aos serviços urbanos com água, luz, transporte público, atendimento médico e escolas. Ao mesmo tempo em que começavam a se integrar ao mundo do trabalho

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na cidade, visto como mais leve e estável se comparado ao trabalho na terra. Essas aspirações de “melhorar de vida” atingiam antigos moradores e passavam a prevalecer no imaginário das novas gerações, mas nem sempre se convertiam em ascensão social.

Em muitos casos

acabaram por ocupar funções subalternas na estrutura de trabalho da cidade. Foram, portanto, incorporadas a esse processo para exploração e marginalização de suas atividades (LAGO, 1996, p.179 -182). Nas páginas de “O Estado” os indícios dessas mudanças podem ser observados sob alguns aspectos. O fim de determinadas atividades como o fechamento de pequenos armazéns e feiras livres, ou ainda, o rompimento de laços de sociabilidades presentes na vida de antigos moradores. Entre eles a conversa nos armazéns e botequins por onde circulavam as “notícias” da política da cidade e o definhamento das práticas religiosas. Na metade da década de 1970, “O Estado” chamava atenção para o fato dos armazéns estarem fechando em razão do pouco movimento. A chegada dos supermercados à cidade era apontada como o principal motivo. Na época, o dono de um estabelecimento no Centro da capital comentava, que as pessoas desviavam a atenção do “barato, velho e tradicional em favor do moderno, mais refinado e talvez mais caro” (O Estado, 09/01/1974, p.16). Fixados em lugares apertados e entulhados de mercadorias como gêneros alimentícios e ferragens, os armazéns disputavam a freguesia com os supermercados que passavam a oferecer grandes corredores iluminados, onde o consumidor podia transitar à vontade podendo manusear e comparar uma infinidade de novidades que estavam à sua disposição: - Desde que me instalei aqui, há oito anos atrás, a classe baixa ou pobre sempre foi o ponto alto das vendas, embora no início não existisse uma distinção mais rígida quanto à classe social de meus fregueses. Agora é só o pobre que compra nos armazéns e são todos do interior da Ilha. Com o surgimento vertiginoso de inúmeros supermercados, a classe alta e média simplesmente sumiu, mesmo parte da baixa. Leosvaldo Espíndola diz que o pobre quando vai ao supermercado fica “acanhado” ao ver tanta coisa a sua disposição e longe de seu poder aquisitivo. Nas casas de secos e molhados já tradicionais na cidade, o fato não ocorre, simplesmente pelo contato pessoal ininterrupto durante anos, entre vendedor e freguês. No supermercado não há “caderninhos” para pagamento no final do mês e, mesmo produtos de poucos consumidores numa cidade como a nossa “fumo de corda, produtos em quilo, enxadas, foices etc...(O Estado, 09/01/1974, p.16).

As novas práticas que caracterizam a cidade grande e que se estabeleciam em Florianópolis impunham novos valores pelo consumo e criavam signos de modernização e distinção social que sobressaiam em relação ao modo de vida que os ilhéus estavam acostumados. A imprensa gerava expectativas sobre o futuro. No caso dos supermercados, lembrava que em pouco tempo esses ganhariam “restaurantes, estacionamentos, música

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ambiente e de bom aspecto arquitetônico, que nenhum armazém possui” (O Estado, 09/01/1974, p.16). Já no final da década, a imprensa narrava a “lenta agonia dos armazéns”. Comentavase naquele momento, que para sobreviver no comércio da cidade, os proprietários de botecos, mercearias ou armazéns viviam um dilema: “se vender apenas com dinheiro, perde 50% dos fregueses; se vender fiado, com risco de não receber e falir” (O Estado, 10/12/1978). No entanto, ressaltava-se que tal desaparecimento colocava em perigo uma série de sociabilidades que corriam entre os balcões das pequenas vendas: À noite, o aspecto de uma venda (do interior da Ilha) muda totalmente. Se durante o dia entraram e saíram mulheres e crianças com pequenos embrulhos, o desaparecimento do sol atrai para a venda os homens de toda uma comunidade. Os motivos são diversos: bater um papo, tomar uma “pinga”, falar da pescaria que vai mal, reclamar dos salários e do custo de vida. A falência de uma venda qualquer pode significar o fim de uma ótima fonte de informação além do silêncio de uma tribuna livre: o balcão, eleito para acolher todas as lamúrias de homens sufocados por baixos salários, pela falta de liberdade de expressão. E muitos políticos perdem mais um influente cabo eleitoral, o vendeiro, resultado do paternalismo deste para com os fregueses, que vai desde conselheiro a avalista, passando pelo fiado, é lógico. Uma coisa é certa, se o vendeiro falir, cessam os convites para padrinho das crianças (O Estado, 10/12/1978, p.16).

Um morador do bairro de Cacupé, dono de um armazém há 23 anos na localidade, associava as mudanças com a chegada de novos visitantes. Para ele a chegada dos turistas coincidiu com a “decadência do lugarejo” (O Estado, 09/12/1973, p.09).

Muitos dos

moradores da localidade, que viviam nas encostas de um morro se mantinham da pesca e da lavoura, àquela altura já tinham vendido suas propriedades “por preços astronômicos” mediante a oferta de pessoas que visitavam o bairro e retornavam para fixar residência. A partir desse movimento, os terrenos valorizaram, principalmente, após a conclusão da SC-401 que passou a ligar os balneários do Norte da Ilha ao centro de Florianópolis. As extensões de terra do bairro próximas ao mar, que antes eram ocupadas pelos ranchos das embarcações começavam a ceder espaço para casas da classe média. Antigos moradores das pequenas localidades no interior da Ilha percebiam a velocidade das mudanças com outros componentes. Em suas lembranças apareciam com frequência um sentimento de perda pelo o que havia passado e não podia se recuperar. Eram lembranças que passavam a ser contadas com o sentimento de nostalgia, isto é, quando “fixase num passado determinado, num lugar, num momento, objetos de desejo fora do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente recuperável” (LOURENÇO, 1999, p.13).

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Em um suplemento dedicado à comemoração do natal, “O Estado” publicava uma extensa reportagem com o depoimento de moradores idosos do bairro do Rio Vermelho. A proposta era compreender o que havia se alterado ao longo do tempo nas comemorações natalinas no interior da Ilha. O título da matéria vinha carregado com um sentimento de pesar: “Na memória, um natal diferente. A grande mágoa: acabaram-se os Natais alegres e de fartura” (O Estado, 24/12/1978, p.01). Definia-se naquele momento que a comemoração da data havia se convertido numa “imitação do que é mostrado na televisão, do que eles veem nas suas idas à cidade” (O Estado, 24/12/1978, p.01). O jornal lembrava também que seria impossível retornar as antigas práticas dos festejos dado a velocidade que as mudanças se impunham na vida das pessoas. Corria-se o risco até de sofrer uma série de sanções: Hoje, se um gaiteiro se puser a tocar na frente da igreja, para o povo que tenha vindo a uma novena, na certa aparecerá um fiscal de “direitos autorais”ou agente das “diversões públicas”, para multar, para proibir, para notificar e cobrar taxas. Este golpe de misericórdia em cima das iniciativas locais, aliado oportuno dos novos costumes impostos pela TV e pela facilidade de comunicação, terminou por matar o que restava de tradicional, de puro, nas festas destes povoados (O Estado, 24/12/1978, p.01).

No passado, quando os contatos entre as localidades do interior da Ilha eram mais difíceis, as festas possuíam características distintas em cada povoado. As memórias dos antigos moradores do Rio Vermelho descreviam a participação de seus moradores num cenário que combinava festas e religiosidade. Destacava-se o trabalho que era feito em conjunto e articulado na localidade no período que antecedia o natal até o Dia de Reis em seis de janeiro. As atividades possuíam um cronograma estabelecido no qual era previsto o Pão por Deus, as novenas de Natal, os terços, a confecção do presépio, a Corrida de Boi no Campo, o início do Terno de Reis, os bailes, fandangos e sarabalhos. Lembrava-se que o costume de dar presentes era recente. Anteriormente, os presentes eram oferecidos no mês de novembro, no dia de Todos os Santos, quando as pessoas distribuíam um cartão recortado em forma de coração, onde continham pequenos versos, o chamado Pão por Deus. Ao receber os versos era preciso retribuir o autor ou autora. Portanto, o costume de se presentear não estava ligado as práticas de consumo da sociedade capitalista. Os preparativos para o Natal desencadeavam uma série de tarefas nas quais cada morador procurava desempenhar um papel. Trabalhava-se na terra batendo feijão, colhendo milho ou capinando na roça de mandioca. Produzia-se ainda cachaça, farinha, amendoim e hortigranjeiros que abasteciam a cidade. Depois montavam o presépio na capela do povoado. Organizavam também todo tipo de brincadeiras como a do galo, onde se cavava um buraco no

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chão para enterrar um galo até o pescoço e era preciso tentar, atingir a cabeça da ave segurando um porrete com os olhos vendados. Ao acertar o ganhador levava a ave como prêmio. Durante a Corrida de Boi no Campo, enquanto se corria atrás ou fugia do boi, bebia-se uma “temperada”, feita de aguardente, água fervendo, canela, gengibre e açúcar. No período em que aconteciam as novenas, à medida que o Terno de Reis era recebido nas casas, dava-se início a novas brincadeiras como “o fandango, uma dança de sapateado, sarabalho, desafio em verso (muito semelhante ao desafio nordestino) cantado pelos que estavam fora da casa e respondido pelos moradores” (O Estado, 24/12/1978, p.01). As lembranças narradas pelos moradores do Rio Vermelho eram carregadas com um tom de lamento e o passado visto como um tempo de fartura que havia declinado em função dos novos tempos: A rapidez com que novos costumes são impostos hoje, vindos de origens desconhecidas, atordoa um pouco os mais velhos: “hoje ninguém quer saber de festa, antes o povo ia todo, hoje não tem nada disso, acabou tudo, acabou a fartura, o tempo bom, da carne seca barata, muito peixe, carne fresca, o tempo que podia haver uma festa sem acabar em bagunça, se tinha educação, as moças faziam uma cantoria bonita quando apanhavam o café, hoje acabou tudo, vem tudo de fora, o açúcar, a cachaça até a carne as autoridades proibiram de a gente ter, não pode mais matar boi aqui” (O Estado, 24/12/1978, p.01).

À medida que a urbanização em Florianópolis avançava, os modos de vida tradicionais se desarticulavam de maneira que ficava sensível a percepção dos antigos moradores, que o modo de vida moderno se impunha sobre suas práticas e costumes. Aqui cabe lembrar o conceito de experiência presente nos povoados tradicionais, que conservavam e acumulavam ao longo do tempo uma quantidade de saberes que depois eram transmitidos a geração seguinte através de narrativas. Movimento este que a modernidade rompeu e substituiu pelo conceito de vivência, no qual não se pode mais transmitir como antes esses conhecimentos (BENJAMIN, 2000, p.105). Essas mudanças também podiam ser percebidas no Centro da capital, onde a procura pelas festas religiosas diminuía. A Cúria Metropolitana, por exemplo, não aprovava a realização da procissão comemorativa do dia de Nossa Senhora da Conceição, tendo em vista a pequena adesão da população (O Estado, 09/12/1972, p.03). Episódios como esses evidenciavam um processo de crise no tecido social da cidade. Aquela cidade que até então projetava a percepção de que conviviam em harmonia ricos e pobres, quando esses partilhavam de laços afetivos e religiosos comuns, passou a ter suas práticas rompidas pela chegada de novos moradores de classe média, no qual impunham ao

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ritmo da cidade, novos códigos sociais de maneira a expor e evidenciar a exclusão da população do interior da ilha. Prevaleceu a fisionomia de uma cidade capitalista notoriamente desigual (LOHN, 2002, p. 201 - 202). Por isso mesmo, a partir dessas transformações, “O Estado” passava a dar uma atenção maior a temas como o folclore e o patrimônio histórico da capital. Nesse período, por exemplo, apareciam algumas iniciativas de tombamento de prédios históricos pelo IPHAN, como o prédio da Alfândega e a casa do pintor Vitor Meirelles. Essas medidas buscavam frear a expansão da especulação mobiliária sobre o Centro da capital que se mostrava irredutível. Chama bastante atenção uma charge intitulada “O passado sem vestígios”, no qual um personagem atira um prédio sobre um sobrado antigo (O Estado, 09/12/1973, p.03). O periódico comentava a necessidade de se preservar o patrimônio histórico da cidade como um importante aliado na promoção do turismo. Muito embora a realidade se impusesse de outra maneira: A febre da demolição tomou conta de Florianópolis, pegando totalmente desprevenidos os órgãos que cuidam do patrimônio histórico e artístico da cidade. As velhas casas, os antigos casarões coloniais, herança de uma cultura já quase toda estilização, estão desaparecendo, para dar lugar aos “caixões de abelha”, os edifícios que se constroem na capital. Sem arquitetura nenhuma, diariamente surge mais um destes gigantes anti estéticos na paisagem florionopolitana. E, ao que tudo indica, continuarão a desaparecer os casarões, sem que se ouça um brado de alerta, por quem deve bradar (O Estado, 09/12/1973, p.24).

Durante toda a década de 1970 aparecem com frequência nas páginas do periódico crônicas ou colunas de folcloristas que procuravam mapear as práticas culturais dos antigos moradores que ainda podiam ser observadas ou estavam em vias de desaparecerem. São frequentemente evocadas as manifestações como o boi de mamão, terno de reis, festa do Divinio, pau de fitas e a ratoeira. Aparecem ainda intenções de memória a partir das rendas de bilro, dos engenhos de farinha, dos alambiques, das lendas narradas no interior da Ilha e do jeito de falar do ilhéu. Na época, começava a se articular a esse discurso de memória a intenção de tornar o folclore local um objeto de uso para o turismo da cidade. Atento a isso o Departamento de Sociologia da UFSC lançava um curso sobre o folclore que seria ministrado em várias localidades do interior da Ilha na tentativa de “reavivar o folclore através da sua institucionalização” (O Estado, 24/12/1972, p.09). Tinha-se como premissa o fato de que o turismo direcionado exclusivamente para as praias não se sustentaria ao longo dos anos. Em entrevista ao jornal um sociólogo local confirmava esse discurso:

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Estamos tentando romper este círculo abrindo novas frentes para a indústria do turismo. Por isto mesmo só o folclore tradicionalmente conhecido é parte da solução enquanto tratado isoladamente. Necessitamos de grupos profissionais do folclore, que em sendo representativo, perdem a espontaneidade, sem dúvida alguma. Mas, alimentam o tradicionalismo (O Estado, 24/12/1972, p.09).

O que se viu a seguir foi uma ampla cobertura da imprensa sobre as atividades que envolviam as práticas folclóricas na cidade. Em 1974 era anunciada com entusiasmo pelo periódico a realização de uma apresentação do boi de mamão no Ribeirão da Ilha feita especialmente para gravação de uma empresa paulista de televisão. Na ocasião destacava-se que a representação do folguedo era vista esporadicamente na localidade “primeiro porque a comunidade quase sempre se dispersa e segundo porque a fantasia, geralmente para mais de quinze personagens, tornou-se muito cara, mais de mil cruzeiros” (O Estado, 31/01/1974, p.12). Dois anos depois, a Diretoria de Turismo e Comunicações da Prefeitura organizava um concurso de Boi de Mamão na Praça XV de Novembro, no Centro da Capital. O concurso reuniu nove grupos folclóricos, sete da capital e outros dois de São José e Tijucas. Estavam presentes na ocasião o prefeito Esperidião Amin e uma comissão julgadora que premiaria os três melhores grupos com uma quantia em dinheiro (O Estado, 05/02/1976, p.15). Começavam a se associar aos grupos folclóricos as “feiras típicas” onde se buscava reunir todo tipo de objetos e fazeres que remetessem ao passado açoriano. Em 1978 realizavase a “Primeira Feira Típica da Ilha” no aterro da Baía Sul. A feira era promovida pelo jornalista Aldírio Simões, na época em que trabalhava na Secretaria Municipal de Educação. A partir da feira, buscava-se “reviver e divulgar os costumes, a tradição e o folclore da ilha” (O Estado, 15/12/1978, p.16). Estavam expostos a representação de uma série de atividades que lembravam o modo de vida rural da Ilha: Serão atrações da Feira um engenho de farinha de mandioca, estilo açoriano, com tração de boi e toda a fase de industrialização da mandioca, desde a sua raspagem, secagem da massa em tipiti, o beneficiamento da farinha e a confecção do biju; montagem de um engenho de açúcar ( no mesmo estilo do engenho de farinha) e o beneficiamento do açúcar grosso e da garapa (caldo de cana); montagem de um Monjolo, uma espécie de engenho movido a água para beneficiamento do milho (farinha de fubá); montagem de um alambique (também tração animal) para a industrialização da cachaça; torrefação e pilagem do café (socado em pilão), montagem de uma olaria para a confecção de potes, vasos e outras peças de cerâmica; construção de uma canoa desde o desenho inicial, confeccionado a machado, em tronco de árvore; construção de uma casa em pau-a-pique, com argila e cobertura de palha (O Estado, 15/12/1978, p.16).

Todos esses componentes estarão em cena na década seguinte reunidos naquilo que se forjou e costumou chamar de uma identidade do mané. O termo manezinho, que antes era visto como pejorativo quando se referia aos moradores do interior da ilha, passou a ter uma

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nova conotação. A partir de então, o manezinho passou a ser o legitimo representante da cidade, o herdeiro da história ou ainda o autentico ilhéu. Esse processo de construção simbólica revelava as disputas que estavam em jogo entre antigos e novos moradores (FANTIN, 2000, p. 19 - 20). A elaboração dessa identidade constituiu-se também como parte de uma estratégia política das elites da cidade de maneira a barrar ou impedir que os novos atores sociais que chegavam à capital ameaçassem sua hegemonia. Nesse jogo, o “manezinho” converteu-se apenas a uma massa de eleitores arregimentados através da troca de favores ou das redes de caridade pelas elites político empresariais, enquanto que para os novos moradores, pertencentes às camadas médias faziam parte de um cenário de exotismos da Ilha, no qual sua presença não era bem vista (LOHN, 2002, p. 202 - 203).

2.6 OS EFEITOS DA URBANIZAÇÃO ACELERADA NA VIDA DA CIDADE O crescimento acelerado da cidade combinado à falta de planejamento urbano, submetido às regras da especulação imobiliária, provocou uma série de problemas que acometiam os grandes centros urbanos do país. Em contraste ao processo de urbanização, ficava cada vez mais evidente, durante a década de 1970, a incapacidade do município de gerir seus problemas como a falta ou a má qualidade dos serviços urbanos bem como conviver com novos componentes como o aparecimento de habitações precárias, o desemprego, o subemprego e a violência urbana (FALCÃO, 2009, p. 15). Nas páginas dedicadas ao noticiário da cidade, “O Estado” passou a destacar os problemas encontrados nos principais bairros de Florianópolis naquela década. Ganhavam proeminência os bairros do Saco dos Limões, Trindade, Estreito, Saco Grande e João Paulo pela quantidade expressiva de habitantes que possuíam. As matérias traziam longas descrições acerca de todo tipo de problemas que seus moradores enfrentavam. Observava-se a ausência de serviços públicos e privados, entre eles: postos médicos, colégios, saneamento básico, falta de luz, água, linhas de ônibus, pavimentação, coleta de lixo e ainda supermercados, farmácias, panificadoras e pontos de taxi. A paisagem urbana começava então a ser representada como “desordenada”, “desfigurada” e “fora de controle”. Durante toda década de 1970, a falta de abastecimento de água em todas as regiões da capital era frequente. Além da constante falta de abastecimento, destacava-se os maus serviços prestados pela Companhia Catarinense de Água e Saneamento (CASAN), como o fornecimento de água em condições ruins para consumo, muitas vezes descrita como

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“avermelhada” e com “alto índice de poluição” (O Estado, 29/12/1972, p.03). Na época, principalmente pela falta de investimentos no setor, a rede de distribuição de água era considerada obsoleta e não possuía um sistema de tratamento eficaz, que fosse capaz de atender à demanda dos consumidores. A situação precária no abastecimento de água impunha aos moradores uma rotina de sacrifícios, como lembrava em depoimento ao jornal a moradora que vivia atrás de dois reservatórios da CASAN no morro da Caixa D’Água: Como a falta d’água na região é crônica, ela diz que costuma, de há muito tempo, a abastecer os vizinhos. “Vem muita gente, umas quarenta ou cinqüenta pessoas por dia. A fonte não é pública, mas a gente tem que dar pros outros a água que a Casan costuma negar”. Apesar de ser trabalhosa a subida de morro, irregular e até escorregadia, as pessoas vêm aos grupos, munidas de baldas e panelas, das quadras próximas para angariar a única água possível na zona da Travessa da Piedade (O Estado, 16/12/1976, p.16).

Os problemas de abastecimento de água não eram os únicos enfrentados pela Companhia de Águas da cidade. Tornava-se frequente no diário a descrição das precárias condições da rede de esgotos da capital. Àquela altura o sistema de tratamento da região central datava de 1915 e funcionava através de quatro “castelinhos”, pequenas unidades que recolhiam os detritos e depois lançavam ao mar. O sistema, além de ultrapassado, gerava desconforto na cidade pelo constante mau cheiro que exalava (O Estado, 05/01/1973, p.09). Nos bairros não era raro encontrar esgoto ao céu aberto expondo a população a todo tipo de doenças onde inclusive crianças costumavam brincar. Enquanto que as praias centrais como a do Bom Abrigo e de Itaguaçu já se encontravam impróprias para banho. Figura 19 – O sistema de esgoto é uma enorme vala.

Fonte: (O Estado, 13/01/1974)

Figura 20 – Na Trindade crianças carregam latas d’água.

Fonte: (O Estado, 07/12/1974)

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O sistema de transporte público também foi alvo de imensas críticas por parte de usuários e da imprensa. Já no início da década, a população sofria com a falta de planejamento. Atuavam na cidade sete empresas de transporte coletivo que não supriam as necessidades dos usuários. Apenas 115 ônibus trafegavam pelas ruas da capital para atender um contingente de 25 mil pessoas diariamente (O Estado, 21/12/1972, p.03). A rotina dos passageiros era feita de filas imensas no terminal, ônibus lotados, quando esses não passavam no ponto ou enguiçavam pelo caminho causando uma série de transtornos. No final da década, os problemas persistiam, mas com um novo componente: o aumento abusivo das tarifas que não era revertido em melhores serviços. Pressionada, a prefeitura tentava implementar medidas de fiscalização que coibissem práticas como o “excesso de lotação, falta de tabela dos preços das tarifas no interior dos ônibus e suspensão de horários sem motivo justificado” (O Estado, 08/01/1977, p.13). Figura 21 – Ônibus atendem mal os usuários de Florianópolis.

Fonte: (O Estado, 21/12/1972)

Nas páginas de “O Estado” se noticiava com certo espanto as ocorrências de pequenos furtos, arrombamentos de carros, a presença constante de mendigos e ambulantes pelas ruas de Florianópolis. No início da década, ganhava destaque a descrição pormenorizada das ações de garotos nas ruas da capital. Os menores, que se dispunham a vigiar os carros de pessoas que cumpriam tarefas na região central da cidade, foram logo tachados pela imprensa como

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“um problema para a polícia” (O Estado, 27/02/1972, p.05). O diário não procurava investigar a origem familiar das crianças e muito menos as razões pelas quais as levavam a estar o dia inteiro nas ruas ocupadas em vigiar os carros. Pelo contrário, destacavam suas ações de rebeldia como furar pneus ou arranhar a pintura dos carros daquelas pessoas que se recusavam a recompensá-las. Muitas vezes, a narrativa composta pela imprensa tratava de naturalizar a condição de marginalização dos menores: O dia começa cedo no estacionamento. Tão cedo quanto é o expediente dos funcionários do centro, ou as compras das donas de casa no Mercado Público Municipal. Os garotos ficam na beira da calçada, à espreitam de um carro que pareça estar querendo parar. Logo eles se juntam em grupos de três ou mais em volta do carro, pedindo, oferecendo. A rigor é apenas um escolhido, mas geralmente acabam dividindo o “serviço” entre os outros. É o meio mais fácil de evitar brigas. Enquanto os donos dos automóveis estão tratando das suas ocupações, os garotos têm alguns minutos de folga. Conversam, sempre com um olho na rua, e outro nos concorrentes à sua volta. Durante a tarde, logo depois do almoço, o trabalho fica mais fácil. Poucas pessoas param ali. Eles aproveitam para brincar e se esquecer um pouco da competição pelo trabalho. Mas logo surgem outras competições: o mais valente, o mentiroso, o ladrão, o mais forte. No meio da conversa, um pontapé, um “deixa-prálá”. Não podem ou não querem trabalhar em outro lugar. Já foram vendedores, já engraxaram sapatos, já estudaram. Hoje estão perto do Mercado correndo descalços embaixo do sol, atrás dos carros (O Estado, 10/01/1973, p.11).

A interpretação conservadora de “O Estado” também estava presente nas reportagens que descreviam a presença de mendigos e moradores de rua pelas calçadas do Centro. Muitos deles provenientes das cidades vizinhas, migrantes do interior do Estado ou de outras localidades do país que chegavam a Florianópolis a procura de emprego, eram representados nas páginas da imprensa como “invasores”. Em certas ocasiões, a presença das pessoas em situação de vulnerabilidade social era vista com constrangimento por alguns moradores durante a temporada de verão, quando muitos turistas estrangeiros tomavam contato com aquela realidade. E, portanto, eram necessárias ações disciplinadoras para acabar com o problema social. Como foi o caso de um popular que julgava a situação como uma “falha do turismo na cidade” e cobrava providências da secretaria responsável pelo setor para que fossem retiradas aquelas pessoas das áreas frequentadas por turistas (O Estado, 18/01/1978, p.04). Cegos, aleijados, crianças, velhos e às vezes famílias inteiras ficam postados nas calçadas pedindo um auxílio. Os apelos e as histórias são diversas, não faltando, nunca, o lado emocional que procura, de qualquer forma, sensibilizar as pessoas. Alguns conseguem uma boa féria diária, que varia entre 20 e 50 cruzeiros. Outros tem um faturamento menor, às vezes não chegando sequer a 10 cruzeiros. Existem os que não tem condições de trabalhar, restando apenas a mendicância para sobreviver. Existem também aqueles que fazem daquilo uma profissão. Em sua maioria, os mendigos são agressivos, geralmente por medo, de serem prejudicados. Falam pouco e estão sempre desconfiados. Observados algumas vezes com indiferença pelos transeuntes, despertam neles, em alguns casos, certa admiração, passando a ser olhados como coisas raras. Alguns sentem-se incomodados com a presença dos pedintes, como é o caso da senhora

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sofisticada que fica repetindo a cada dez metros que “aquilo é um absurdo”. Outros chegam quase a fazer um comício, como foi o caso de um universitário, que ao sentir a presença do fotógrafo, começou a emitir opiniões, dizendo que aquilo não era caso para ser publicado nem denunciado, mas sim para ser resolvido (O Estado, 20/12/1972, p.08).

Os mendigos eram vistos principalmente nas ruas comerciais como a Felipe Schmidt, Deodoro, Álvaro de Carvalho e Conselheiro Mafra, por onde transitavam diariamente uma grande quantidade de passantes. Enquanto que para os pedestres se misturava o sentimento de piedade ou de repulsa quando se aproximavam dos pedintes, na interpretação do periódico se reforçava preconceitos de classe de maneira a representar a presença destes como um incomodo para a cidade: Porque nasceram com defeitos físicos ou então porque sofreram acidentes e não podem desenvolver uma atividade produtiva regular, dezenas de pedintes começaram a tomar as ruas de Florianópolis na expectativa de motivar a caridade pública (O Estado, 04/12/1973, p.04).

Da mesma forma pode ser observada a cobertura de “O Estado” em relação às situações de subemprego que começavam a ser frequentes na cidade. Nas calçadas da Felipe Schmidt ou da Conselheiro Mafra passavam a se misturar entre os pedestres muitos vendedores ambulantes que expunham todo tipo de mercadorias como laranjas, pipoca, brinquedos, roupas, bijuterias e artigos de bazar. Atendiam essencialmente uma faixa de consumidores que não podia comprar nas lojas mais sofisticadas do comércio. Nas reportagens do periódico apareciam mais uma vez termos pejorativos para descrever o trabalho dos ambulantes como “vendedores de quinquilharias” e “comerciozinho incipiente” (O Estado, 15/12/1972, p.04). Não raro podia se observar também designações do jargão médico que sugeriam uma situação fora do controle como “infestar” ou “proliferar” de maneira a criminalizar o trabalho e que, portanto, deviam ser combatidos. O perfil dos vendedores ambulantes era variado. Em sua maioria eram homens na faixa dos trinta anos com família e filhos, provenientes de outras cidades e que haviam chegado a Florianópolis à procura de emprego e, pelo fato de não se colocarem no mercado de trabalho, eram forçados a buscar alternativas. Outros vendedores montavam suas bancas somente no período do natal de maneira a complementar suas rendas. Os lojistas dividiam as opiniões entre aqueles que julgavam necessário criar um espaço para os camelôs e os que não se importavam com a presença deles. O fato é que o Sindicato do Comércio Varejista entregou na época um oficio à Prefeitura “visando coibir a ação dos vendedores ambulantes que se fixam em diversos pontos das ruas centrais da cidade” (O Estado, 14/12/1972, p.08).

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Figura 22 – Cidade vê como erradicar a mendicância.

Fonte: (O Estado, 29/01/1974)

Figura 23 – Camelôs proliferam, o comércio reclama e prefeito toma medidas.

Fonte: (O Estado, 14/12/1972)

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A prefeitura se apressou em atender as solicitações do sindicato e da imprensa. Em poucos dias o prefeito Cel. Ary Oliveira despachava de seu gabinete uma nota oficial proibindo a atividade dos vendedores ambulantes no qual se estipulava um prazo para que esses se retirassem das ruas comerciais. O texto justificava que a presença do mercado informal acarretava prejuízos para o comércio, prejudicava o trânsito e a passagem dos pedestres pelas calçadas. Alguns dias depois os camelôs se concentravam em uma área livre próximo ao mercado público onde se observou um grande fluxo de consumidores atrás de seus produtos (O Estado, 23/12/1972, p.08). Essas não eram ações isoladas, o que demonstra uma cidade conservadora e empenhada em disciplinar toda e qualquer atividade que alterasse a ordem estabelecida no espaço público. Como se viu anos depois, na prisão de um artista de rua na Praça XV de Novembro. Os números circenses do malabarista vindo de Fortaleza foram proibidos por dois policiais que justificaram a prisão do rapaz alegando que esse “subia nos bancos, pisava na grama e quebrava árvores” (O Estado, 07/12/1977, p.16). As atividades com características de subemprego estavam cada vez mais presentes no cotidiano de Florianópolis. Destacava-se, por exemplo, um grupo numeroso de trabalhadores que transitavam nas imediações do mercado público cumprindo tarefas de carregadores ou biscateiros. Entre eles, havia aqueles que transportavam as compras das donas de casa em carrinhos de mão até as residências da classe média. Ganhavam por volta de três a cinco cruzeiros por viagem. Outro grupo de trabalhadores atuava na carga ou descarga dos caminhões que abasteciam o comércio da região central. Esses últimos trabalhadores cumpriam diariamente uma rotina dura durante dez horas de trabalho carregando peso como sacos de farinha debaixo do sol o que lhes permitia acumular no final do dia a quantia irrisória entre quinze e vinte cruzeiros (O Estado, 02/02/1972, p. 16). As rápidas mudanças que redesenharam a vida da capital implicaram em forjar uma cidade desigual. E que, portanto, estava sujeita a todo tipo de problemas sociais. Entre eles o da violência. Um leitor de “O Estado” descrevia o clima de “insegurança” que Florianópolis passou a conviver em suas ruas: “Nossa Florianópolis, outrora cidade pacata, não fugiria à regra. Está hoje assediada pelo crime. Marginais pululam por todos os cantos em ronda sinistra” (O Estado, 10/02/1979, p.04). Chama muita atenção a cobertura feita pelo periódico naquela que foi considerada, na época, a primeira operação policial de grande proporção realizada no Morro do Mocotó atrás de criminosos. A “Operação varredura” ganhava enorme destaque no jornal em tom preconceituoso: “Polícia faz limpeza no Morro do Mocotó. Resultado: 20 detidos” (O Estado,

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09/12/1977, p.06). A população simples do bairro foi surpreendia no meio de uma tarde pela atuação de 80 policiais que se dividiam entre civis e militares. Durante a ação, que durou três horas, soldados ocuparam pontos estratégicos do bairro, enquanto que oficiais, munidos de rádio e binóculos, vigiavam as movimentações dos moradores a partir de edifícios da Prainha e da Assembleia Legislativa. Tentava-se justificar a operação dizendo que alguns moradores da região seriam impedidos de subir o morro por serem vítimas de pequenos assaltos durante a noite. No entanto, comentava-se na época que se tratava de uma retaliação pelo fato de três policias terem sofrido uma agressão durante uma ronda no bairro. Entre os vinte detidos nessa operação, um menor de idade sofrera um tiro de raspão na cabeça e outro rapaz tinha o fêmur quebrado ao ser atingido por três disparos. O emprego da violência causou enorme espanto e revolta dos moradores que passaram a ter suas casas arrombadas e revistadas: Maria de Lourdes Machado, mãe de Alberto Machado, copeiro do Lira, um dos detidos durante a operação, contava na Delegacia de Segurança Pessoal que “o meu filho estava na cama dormindo. Os policiais chegaram, amarraram suas mãos. Ele gritava, ‘mãe, me socorre, eu não fiz nada...’ Mas eu não pude fazer nada porque o policial disse que tinha ordem pra levar todo mundo.” Mas foi interrompida porque um comissário da Delegacia de Segurança Pessoal puxou o repórter pelo braço para avisar que “não quero atrapalhar o teu trabalho, mas não tem nada de ficar ouvindo histórias dessa gente. Tem que ouvir é o delegado” (O Estado, 09/12/1977, p.06).

No dia seguinte, após o resultado da operação policial, “O Estado” através de seu editorial, saudava a atitude de “combate à marginalidade”: A cidade foi tomada de alívio e sobressalto pela pronta ação da polícia, na chamada “operação pente fino”, no sentido de identificar e prender marginais que impunemente vinham atentando contra o patrimônio e o sossego público. Com o vertiginoso progresso urbano dos últimos anos, ao lado das conquistas materiais e culturais que se incorporaram à vida do ilhéu, vieram também as mazelas desse fenômeno do desenvolvimento das cidades: os celerados, os larápios, os malfeitores e os marginais de todos os tipos (O Estado, 10/12/1977, p.04).

Além de se referir ao Morro como um lugar violento, destacava-se a construção de habitações em condições precárias que eram feitas com “restos de caixotes ou com folhas de papelão”. O periódico lembrava que a situação colocava em risco à cidade, pois a “proliferação desenfreada de sub-habitações nos arredores de Florianópolis poderá transformar, dentro de alguns anos, a capital numa grande favela” (O Estado, 15/12/1972, p.01). O grande fluxo migratório que havia chegado à Florianópolis não encontrou medidas do setor público que pudessem ofertar a esses novos moradores melhores condições de moradia, educação e emprego. A capital catarinense seguia o modelo das grandes cidades do país, onde a vida urbana era cara e imprimia à condição dos mais pobres a falta de serviços

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combinada à atuação desenfreada da especulação imobiliária que os empurrava para a marginalidade. O que se configurou na estrutura das cidades brasileiras durante os governos da ditadura foi um projeto capitalista conservador que privilegiou as camadas médias e deixou os mais pobres à própria sorte de maneira a constituírem uma grande massa de trabalhadores disponíveis ao mercado de trabalho a um custo muito baixo. Figura 24 – Capital poderá ser uma grande favela.

Fonte: (O Estado, 15/12/1972)

Nesse quadro marcado por profundas contradições, aquelas áreas destinadas à especulação imobiliária ou garantidas às novas obras viárias que alteravam o desenho da capital passaram a ser alvo de disputas entre o poder público e os moradores que haviam se estabelecido em condições precárias de habitação. Um desses casos foi a remoção de 38 famílias que moravam na época, há pelo menos vinte anos, entre o Forte de Santana e a Ponte Hercílio Luz. O processo de remoção já durava um ano e implicava em uma dura batalha entre moradores e o poder público. As famílias que ainda residiam no espaço relatavam que os primeiros a saírem recebiam de indenização uma média de cinco mil cruzeiros, quantia que inviabilizava a construção de novas casas em outros bairros, o que certamente os levaria a “residir em favelas” (O Estado, 05/01/1974, p.12). O mesmo se verificou na desapropriação de 60 famílias na área destinada à construção da via de acesso da Ponte Colombo Salles à BR-101. Os lotes que os moradores ocupavam na época tinham o valor estimado para venda em torno de Cr$ 30 e Cr$ 40 mil cruzeiros

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enquanto que as indenizações foram estipuladas pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) nos valores de Cr$ 6 mil (O Estado, 07/02/1976, p.16). No final da década, na região da Baía Sul, uma senhora resistia com um pedaço de madeira a ação de policiais que tinham ordem de justiça para removê-la de sua casa (O Estado, 01/02/1978, p.15). Uma das últimas moradoras da “favela Dois poderes” que se localizava próximo ao Tribunal de Justiça e deveria ceder espaço para a suposta construção de um estádio de futebol que custaria na época ao governo estadual Cr$ 100 milhões. No terreno, que era propriedade do Estado, moravam 109 famílias que, em sua maioria, já habitavam outras casas concedidas pelo Governo Estadual sob condições precárias: “verdadeiras favelas, de madeira sem divisão alguma e, como uma área quadrada variando de 16 a 24 metros” (O Estado, 06/12/1977, p.16).

2.7 UMA NOVA CIDADE ENTRA EM CENA A esse cenário de contradições que marcava o processo de urbanização que Florianópolis experimentava na década de 1970, somaram-se, a partir da segunda metade daquele período, os problemas de ordem econômica em decorrência da crise internacional do petróleo e que começavam a afetar a pungência do “milagre econômico”. O governo da ditadura optou por levar à frente o crescimento da economia endividando o Estado através de vultosas remessas de empréstimos captadas no exterior para salvar o setor privado nacional. Essas medidas quebraram o Estado e promoveram a combinação da estagnação da economia com a alta da inflação. Em consequência foram corroídas as bases que sustentavam a economia do regime militar que garantiram a algumas parcelas da população experimentar a mobilidade social associada ao consumo de massas (MELLO; NOVAIS, 2002, p. 647). No final da década, “O Estado” noticiava que o aumento do custo de vida na capital ultrapassava o patamar dos 30% (O Estado, 01/01/1977, p.05). A inflação atingia principalmente a alimentação que respondia pela metade dos gastos de um orçamento familiar na época. Seguida do vestuário, habitação e serviços públicos. Ao mesmo tempo em que a crise econômica atingia a classe média e a classe trabalhadora, aquelas pessoas que viviam em condições de vida paupérrima passavam a conviver com situações mais dramáticas como a da fome. O periódico alertava que nos arredores da capital e na periferia dos municípios vizinhos começava a ser formar um “cinturão de miséria representado pelas favelas e por toda a penosa paisagem física, humana e social que elas significam” (O Estado, 16/02/1979, p.14).

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No centro da cidade, um homem desmaiado chamava atenção de populares que o observavam de perto. Um leitor de “O Estado” narrava por carta o episódio do rapaz que após um atendimento médico saíra do hospital e fora encontrado caído entre a Avenida Hercílio Luz e a Rua João Pinto: Ele não teve nenhuma queixa com relação ao hospital, que o atendeu imediatamente. Mas o médico não podia curar mais do que sua perna inflamada. A fome não tem cobertura do INPS. Assim ele desceu o morro com a mão cheia de receitas de remédios, e o estômago vazio como há dois dias (O Estado, 09/12/1980, p.04).

No final da década, dois acontecimentos movimentavam a vida política brasileira: as greves dos metalúrgicos no ABC paulista e o decreto que concedia anistia aos exilados políticos que lutaram contra a ditadura. Na época, os partidos de oposição ao regime militar como o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) denunciavam, em nota oficial, “[...] a existência de uma crise social profunda no Brasil em consequência do modelo econômico adotado” (O Estado, 01/12/1979, p.05). A crise econômica em que o país estava mergulhado, associado às grandes mobilizações dos movimentos sociais que despontavam em 1978, aceleraram sobremaneira a crise institucional levando o regime ao período de “distensão”. Os movimentos sociais colocaram na ordem do dia uma política que deveria atender aos seus problemas rotineiros. E, para tanto, era necessário colocar a democracia como tema central de suas reivindicações nas “[...] fábricas, nos sindicatos, nos serviços públicos e nas administrações nos bairros” (SADER, 2001, p.313). No episódio que ficou conhecido por “Novembrada”, Florianópolis mostrou-se atenta às mobilizações sociais que se desencadeavam pelos principais centros urbanos do país. Em visita à cidade, o recém empossado, general João Batista Figueiredo acompanhado do governador Jorge Bornhausen faria discurso para “mais de cinco mil pessoas” na Praça XV de Novembro da sacada do Palácio Cruz e Souza. Naquele dia 30 de novembro de 1979, desde cedo cerca de 100 estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) se posicionaram à frente do Palácio com faixas de protesto e gritando palavras de ordem: “Abaixo a fome”; “Chega de sofrer, o povo quer comer.” Manifestações que eram prontamente fustigadas pelo volume dos alto falantes que tocavam o “Samba da conciliação” (O Estado, 01/12/1979, p.02). Os manifestantes não recuaram. Em resposta, retrucaram deixando as autoridades perplexas diante de novos slogans: “Abaixo a ditadura”; “Abaixo a exploração, mais arroz e mais feijão”. Munidos de cassetetes de madeira, a Polícia Militar dispersou os manifestantes em direção às escadarias da Catedral onde permaneceram cercados. Quando o general

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Figueiredo chegou pela primeira vez na sacada do Palácio ouviu uma enorme vaia seguida de novas palavras de ordem: “Abaixo a ditadura”; “Abaixo Figueiredo, o povo não tem medo”. Então o governador Jorge Bornhausen, em gesto de defesa ao presidente tomou a palavra ao microfone e tentou minimizar as manifestações de repúdio: “Está provado que as minorias serão colocadas de lado, porque não compreendem o gesto democrático de Vossa Excelência” (O Estado, 01/12/1979, p.02). Depois da última aparição na sacada do Palácio, o general resolveu sinalizar com o dedo para os populares como forma de dizer que era “pequeno o número de manifestantes”. Seguiu-se a isso a ação policial que desencadeou um tumulto generalizado na praça, onde voavam “pedras, pedaços de pau, latas de cerveja e caroços de baguaçu” em direção aos agentes de segurança. Em seguida, acompanhado de seguranças, o general se encaminhou para fora do Palácio, bateu boca com alguns manifestantes e caminhou pela Felipe Schmidt até o café Ponto Chic, onde fora novamente cercado pelos manifestantes desencadeando novos conflitos dentro de lojas e na rua em frente ao café. Das onze horas da manhã até às quatro horas da tarde, a Praça XV de Novembro e seu em torno se transformaram “numa verdadeira praça de guerra”, descrevia “O Estado”. O confronto entre 200 policiais e os manifestantes fez o comércio fechar suas portas e resultou numa série de perseguições que acabaram por prender sete estudantes (O Estado, 01/12/1979, p.02). Nos dias que se sucederam ao episódio, “O Estado” se apressou em criticar as manifestações. Em editorial, intitulado como “Ordem e respeito” (O Estado, 01/12/1979, p.02), o periódico comentava que as atitudes de repúdio ao regime militar “deixaram a sociedade catarinense perplexa e estarrecida, impregnada de um sentimento de revolta e de repulsa diante da grosseria de manifestações que destoavam das tradições de educação e de hospitalidade da gente catarinense.” O jornal tentava, de alguma forma, minimizar o ato político reduzindo-o apenas a um encontro entre visitantes e anfitriões nos quais estes deviam total apreço e cuidado ao receber um “amigo”, no caso, um chefe de Estado como o general Figueiredo. Os estudantes ficaram dez dias detidos pela Polícia Federal sob a Lei de Segurança Nacional. Nesse período, a cidade conviveu com uma série de atos para tentar libertá-los. Na Felipe Schmidt, um abaixo assinado com 15 mil assinaturas fora colado em um mural pedindo a liberdade dos envolvidos. Uma senhora fazia vigília na rua empunhando um cartaz que solicitava a soltura imediata da filha.

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Para tentar sensibilizar a opinião pública, uma grande manifestação, articulada por 21 entidades, também foi organizada em frente à catedral contra a prisão dos estudantes.117 O ato, que reuniu “7 mil pessoas”, terminou com ação repressora de um contingente de 700 soldados da Polícia Militar “que usavam até fuzis com baioneta calada.” (O Estado, 05/12/1979, p.03). A cavalaria, que desfechava contra os populares “golpes de sabre”, encurralou “mulheres, crianças, estudantes e trabalhadores que caíram pelas escadarias” e saíram feridas. A força empregada esvaziou a praça e levou a população a caminhar em direção à Assembleia Legislativa. No trajeto papéis picados foram jogados das janelas dos prédios e pessoas gritavam para polícia: “vergonha, vergonha”. Figura 25 – Cidade viveu um dia tenso.

Fonte: (O Estado, 05/12/1979)

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“Uma nota, denunciando a prisão dos cincos estudantes e convocando a população para o ato público, que se realizará hoje, às 18 horas, foi distribuída ontem à população florianopolitana. As 35 mil cópias distribuídas, traziam assinatura de 21 entidades, União Nacional dos Estudantes (UNE), Diretório Central dos Estudantes (DCE), D. A. do Centro de Educação (Daced), D. A. do Centro de Estudos Básicos (Daceb), D. A. do Centro de Ciências Agrárias (Dacca), Associação pela Qualidade Ambiental da Região da Grande Florianópolis, Movimento Pró-Partido dos trabalhadores (PT), Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Associação Catarinense de Estudos e Pesquisa (Acep), Associação de Professores da UFSC (Apufsc), Diretório Acadêmico de Ciências da Saúde , Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), Comissão Justiça e Paz, Pastoral da Juventude, Diretório Acadêmico do Centro Tecnológico, Diretório Central de Estudantes de São Paulo, Diretório Acadêmico do Centro Sócio Econômico, Centro Acadêmico Livre de Ciências Sociais (Cales), Centro Acadêmico Livre de Psicologia (Calep) e Centro Acadêmico Livre de Arquitetura (Cala).” O Estado. Florianópolis, 04/12/1979, Estudantes desistem do calçadão. Ato público será na Catedral, p. 5.

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A partir da segunda metade da década de 1970, as forças políticas de oposição ao regime militar ganhavam densidade em todo país e contestavam suas contradições: se por um lado, os militares, levaram adiante um projeto de modernização e expansão da economia brasileira, por outro, em condições de extremado autoritarismo, combinaram o achatamento salarial a uma série de violências contra seus opositores. Florianópolis, com o empenho de suas elites político empresariais participou desse processo promovendo um acelerado surto de urbanização, que não se converteu na melhoria de condições de vida seus moradores. Pelo contrário, aprofundou as desigualdades numa sociedade marcada por desequilíbrios sociais. No entanto, episódios como o da “novembrada” sinalizava no horizonte novos tempos num contexto urbano, onde novos personagens entraram em cena gerando expectativas sobre um país mais justo e pleno de democracia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Florianópolis até o início da década de 1970, embora capital de Santa Catarina, ainda conservava em seu desenho urbano a feição de uma cidade colonial e, por muitas vezes, nomeada provinciana por seus moradores. Não apenas pela falta de aparelhos urbanos, que pudessem lhe conferir o ar de metrópole, mas também por não estar inserida no mercado de consumo de massas e não ter um parque industrial. Além disso, questionavam-se os hábitos cotidianos dos ilhéus e as atividades consideradas ultrapassadas, como por exemplo, o uso de embarcações para se locomover. Essa noção de “atraso” tão debatida pela imprensa diária e as elites da cidade durante as décadas de 1950 e 1960 começa a ser deixada para trás na década de 1970. A década estudada é marcada por uma série de intervenções urbanas como o aterro da baía sul, a construção da ponte Colombo Salles, a abertura das rodovias em direção às praias do norte da Ilha e a expansão da especulação mobiliária. Além disso, há a incorporação de migrantes vindos de outros estados para trabalhar no serviço público, a formação de uma classe média ansiosa para estabelecer novos padrões de consumo e as tensões criadas entre os “nativos” e “estrangeiros”. Somada a todos esses indícios de mudança, a ideia de uma suposta vocação para o turismo vislumbrada para a cidade foi usada de maneira a garantir, permanentemente, novos ganhos para as elites. Todas essas mudanças repentinas direcionadas pelas elites fizeram com que a cidade tivesse acesso a um grande volume de capitais privados e públicos. Somado a isso observamos imediatas alterações no quadro social da cidade que lhe conferiu um cenário inteiramente novo. Uma capital que não participou do nacional desenvolvimentismo da década de 1950, mas que passou a contar com grande volume de investimentos a partir do “milagre econômico” (1968-1971), muito embora como foi ressaltado no início do texto, continuou a receber o impacto do “milagre” até a década de 1980.

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