Ensaio 2 # - O Livro da Gramática-fenomenológica - The Book of Phenomenological-Grammar

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Ensaio 2: Gramática-Fenomenológica – Engelmann, M. L.

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O Livro da Gramática-fenomenológica1 Mauro Luiz Engelmann (UFMG) Introdução Este ensaio visa compreender a natureza do projeto gramático-fenomenológico das PB a partir do modo como o mesmo é apresentado no capítulo I da obra. Na primeira seção, mostro que a gramática ampla (ou compreensiva) toma o lugar dos simbolismos lógico do Tractatus e fenomenológico de 1929. Na seção 2, argumento que a gramática ampla pode ser apresentada como um “livro da gramática”, onde os diversos ‘espaços’ e ‘tipos’ gramaticais são representados perspicuamente. Um tal livro substitui o simbolismo lógico e-ou fenomenológico completo, mas cumpre a mesma função, a saber, apresenta os limites do sentido e elimina contrassensos da linguagem. Na seção 3, avalio brevemente a relevância da gramática da linguagem comum como meio de determinação de contrassensos filosóficos (ver PB §9). A estratégia de Wittgenstein pressupõe que palavras têm significados ordinários e que usos idiossincráticos não são relevantes. Por fim, na seção 4, apresento os argumentos de Wittgenstein para a impossibilidade da justificação das regras da gramática (a arbitrariedade da gramática). Procuro mostrar que a “arbitrariedade da gramática” é uma O trabalho foi realizado com o apoio do CNPq. Este ensaio apresenta uma adaptação ampliada e revisada de ideias introduzidas no artigo Anpassung: O Projeto Gramático-Fenomenológico das “Observações Filosóficas”, concluído em 2012 e publicado em 2013. A ampliação do mencionado artigo ocorre, aproximadamente, da seguinte maneira. Apresento uma interpretação mais detalhada de várias passagens do capítulo I das PB e sua relação com o projeto da linguagem fenomenológica (com base no ensaio 1), e determino de maneira explícita uma série de desenvolvimentos das ideias aqui introduzidas nos capítulos subsequentes das PB. Como este capítulo está conectado com minha análise dos capítulos II-IV, penso, a estratégia geral de Wittgenstein nas PB torna-se mais clara. O leitor poderá encontrar a adaptação do Tractatus nas PB (ver seção 4) também no ensaio 4. 1

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adaptação da concepção do caráter a priori da lógica do Tractatus. Por fim, argumento que a “arbitrariedade da gramática”, a impossibilidade de justificação da gramática, mostra que a distinção fundamental do Tractatus entre proposições e regras (aquilo que pode ser dito e aquilo que é mostrado na linguagem) é ainda o insight determinante de Wittgenstein nas PB. Ele é fundamental para a manutenção da ideia de que o sentido de uma sentença é anterior e independe da sua efetiva verdade ou falsidade. 1) Regras e o Papel Secundário de Simbolismos Sem um simbolismo fenomenológico completo, a única espécie de análise completa que cabe procurar é o esclarecimento completo das próprias regras gerais da linguagem que determinam o sentido de nossas descrições. É com tal reconhecimento que Wittgenstein inicia as PB: A sentença completamente analisada logicamente é a sentença cuja gramática é completamente esclarecida. Não importa em que modo de expressão ela [a gramática] é escrita ou expressa (PB §1; MS 108, 88). A gramática é o conjunto de regras implícitas na linguagem e é esclarecida quando as regras são apresentadas de maneira perspícua. O “modo de expressão” simbólico, contudo, não é mais essencial. O que o novo estilo de análise não assume, portanto, é a necessidade da criação de uma notação (simbolismo) especial: Não necessitamos primeiramente inventar uma nova linguagem ou construir um novo simbolismo; a linguagem ordinária já é a linguagem, desde que esteja livre das obscuridades (WWK, 45). Ou seja, não precisamos de uma linguagem (simbolismo) fenomenológica (PB §1). A almejada clareza filosófica, que deveria ser conquistada através do simbolismo lógico

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no Tractatus ou do simbolismo fenomenológico de 1929, é alcançada através do esclarecimento e apresentação das regras implícitas na linguagem. 2 O contraste entre simbolismo e a mera apresentação de regras torna-se mais claro a partir do exemplo do mapa dado por Waismann: Não posso dizer: “A está ao norte de B e B ao norte de A”. Mas o mapa não pode apresentar esse contrassenso, pois tem a multiplicidade correta (WWK, 79). Observe-se que, como o mapa no exemplo de Waismann, a linguagem fenomenológica eliminaria contrassensos relacionados ao espaço visual e cores. Isso, supostamente, de modo completamente perspícuo, uma vez que, por assim dizer, o simbolismo mostraria as regras em sua face (PB §221). Com o final do projeto da linguagem fenomenológica, a procura por uma notação fenomenológica completa foi abandonada. Contudo, os ganhos de uma tal notação são mantidos. Regras podem ser expressas meramente com sentenças ordinárias ou com a ajuda de elementos notacionais que passam a ser considerados incompletos: Um sistema de sinais de multiplicidade correta torna a sintaxe supérflua. Mas posso dizer do mesmo modo: A sintaxe torna tal sistema de sinais supérfluo. Também posso utilizar um sistema de sinais incompleto e acrescentar as regras da sintaxe. Ambos juntos realizam o mesmo, é exatamente o mesmo sistema de representação. (WWK, 80; minha ênfase). Ambos juntos expressam o sistema de representação nas PB. Ao lado da discussão e apresentação de regras da gramática (ou sintaxe), a antiga notação fenomenológica (sistema de coordenadas e octaedro) aparecem nas PB como sistemas de sinais auxiliares. Isso significa que a procura de um simbolismo (sistema de sinais, notação) capaz de expressar visualmente todas as regras lógicas da linguagem torna-se secundária. Significa, 2

Como regras são explicitadas é assunto do ensaio 4.

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também, que as notações parciais do simbolismo fenomenológico ainda podem, e devem, ser utilizadas como parte da gramática fenomenológica. Esse novo modelo de apresentação das regras da linguagem pode indicar, supostamente, aquilo que é essencial à linguagem (nos termos das PB, §1, aquilo que qualquer representação da linguagem precisa pressupor). Supostamente, vários modos de descrição e sua substitutividade podem mostrar quais regras são essenciais na linguagem, em contraste com a mera apresentação de um simbolismo lógico ou fenomenológico (compare com T 3.344). O exemplo recorrente que Wittgenstein apresenta de modos de descrição que mostram o que é essencial na linguagem é a dispensabilidade da palavra ‘eu’ em vários modos de descrição dos fenômenos (ver PB VI e WWK, 48). Outro exemplo, talvez mais interessante por ser mais óbvio, é o octaedro das cores comparado a outros modelos representacionais no capítulo XXI (mais sobre o octaedro abaixo). O esclarecimento gramatical deveria trazer o mesmo resultado da lógica do Tractatus, ou seja, indicar os limites do sentido e eliminar as “engrenagens soltas” (leerlaufende Raeder) e obscuridades da linguagem (PB §1); assim, o esclarecimento gramatical deveria dissolver problemas filosóficos (PB §2). A indicação dos limites da linguagem, do sentido, nessa nova perspectiva, só pode ser feita através da elucidação da sua gramática ampla e, em decorrência disso, do estabelecimento daquilo que é possível na linguagem – assim como a notação conceitual do Tractatus e seu complemento fenomenológico de 1929 (PB §1; ver também WWK, 63 e WLC30-32, 10). Desse modo, mesmo que os recursos utilizados não sejam os mesmos, a tarefa da gramática nas PB é ainda a tarefa do Tractatus.

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Para exemplificar essas características da gramática, Wittgenstein introduz o octaedro das cores já em PB §1 (ver também PB §§39 e 211). Ele o chama de “representação perspícua das regras gramaticais” (PB §1), pois mostra, de maneira aproximada, a multiplicidade correta das relações entre as cores:

O octaedro acima, torna explícita a estrutura do conceito ‘cor’. 3 Em um dos polos, o branco; no outro, o preto. Em cada um dos cantos principais, o quadrado central, o octaedro mostra uma das cores primárias, na sequência vermelho, amarelo, verde e azul. Entre duas cores primárias aparecem as cores intermediárias (por exemplo, amareloesverdeado).

A

vantagem

do

octaedro

em

relação

a outras formas de representação é, para Wittgenstein, a perspicuidade do mesmo (ver PB §§218-24).

O desenho do octaedro acima é proveniente de Ebbinghaus (1908, 50). Wittgenstein apresenta seu modelo do octaedro, próximo daquele acima, no MS 105, 98, e também nas suas aulas em 1930 (ver WLC30-32, 8; WLM 4:15). Um modelo proveniente do MS 108, 76 aparece em PB §221. Ver análise de Carvalho, ensaio 11. 3

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Ele mostra, por exemplo, que existe uma assimetria entre as cores primárias e suas combinações. Outras formas de representação, que não têm a multiplicidade representacional correta, não têm essas virtudes (como os dois cones unidos, o círculo de cores, a esfera de Runger ou a balança de cores; esses são discutidos em PB §§220-1). 4 Além disso, o octaedro mostra que certas combinações de cores são excluídas em princípio, por exemplo, “verde-avermelhado”, sendo verde e vermelho cores opostas no quadrado central; ou seja, ele mostra que tal mistura é uma “engrenagem solta” (contrassenso) relativa ao conceito ‘cor’. O octaedro já era, como vimos no ensaio 1, uma parte do esboço da linguagem fenomenológica que Wittgenstein buscava em 1929. Contudo, a função do mesmo no projeto da linguagem fenomenológica e no projeto da gramática, apesar de similar, não é idêntica. No segundo, como já indiquei acima, são aceitos simbolismos como instrumentos de elucidação das relações necessárias entre proposições da linguagem, enquanto que no primeiro a busca era por uma linguagem completa e unificada dos fenômenos que envolveria as noções de ‘cor’, ‘espaço’ e ‘tempo’. Portanto, aqui temos um exemplo de que aquilo que era parte da linguagem (simbolismo) fenomenológica passa a ser usado, na investigação gramatical, como instrumento auxiliar incompleto de representação e elucidação.5

Sobre o octaedro ver também WWK, 42-3 e WLC30-32, 7-12. Discussões detalhadas sobre o mesmo são apresentadas, por exemplo, em Rothhaupt (1996) e Pires da Silva (1999). O papel atribuído ao octaedro por ambos, contudo, não está completamente de acordo com a interpretação que aqui apresento, principalmente em relação à interpretação da mudança da concepção fenomenológica à gramatical. Comumente, penso, exagera-se na diferença entre ambas, pois esquece-se que a própria linguagem fenomenológica deveria apresentar a sintaxe (ou gramática) da descrição dos fenômenos (ver, por exemplo, MS 105, 98; SRLF, 171). O abandono da linguagem fenomenológica, como tento mostrar, é o abandono de um modo de se expressar a sintaxe (o simbolismo), e não a introdução da ideia de sintaxe. 5 Volto a tratar disso na análise dos caps. II-IV, no ensaio 4. 4

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É preciso observar que o octaedro funciona como um mapa das cores, como no exemplo do mapa de Waismann. Contudo, ele não é uma representação indispensável. Ele pode ser substituído por uma série de regras escritas tratando de passagens de cores, cores complementares, etc. Poderíamos, inclusive, utilizar um modelo de representação de cores mais limitado que o octaedro – por exemplo, uma linha reta – e combiná-la com uma lista de regras de exclusão, etc. (ver PB §221). O octaedro, portanto, não é uma notação essencial. Essenciais são as próprias regras da gramática “não importa como sejam apresentadas” (PB §1). Ele é apenas um elemento notacional mais perspícuo que outros, pois “veste na sua face as regras da gramática” (PB §221). Wittgenstein também usa o exemplo do octaedro para distinguir sua investigação de uma investigação empírico-psicológica (PB §1). As cores, deve-se notar, são consideradas a partir de uma perspectiva psicológica, isto é, como fenômenos visuais (ver PB §218). Isso, contudo, já à época da linguagem fenomenológica, não deveria nos levar a pensar que a estrutura das cores, ou a forma das cores, é algo a ser descoberto com uma investigação empírica. Considerar as cores sob o ponto de vista psicológico, fenomênico, significa não investigá-las sob os pontos de vista fisiológico, físico (cores como comprimentos de ondas) e químico (cores como pigmentos). 6 Poderíamos falar, pensava Wittgenstein, em uma “teoria das cores puramente fenomênica” (PB §218). Aquilo que é puramente fenomênico é representado através de regras gramaticais: Lógica, psicologia e fenomenologia. “Pessoas em certas circunstâncias têm imagens residuais vermelhas” é psicologia. Mas “Existe uma cor tal como azul-esverdeado” é fenomenologia, gramática. (WLM, 4:15)

A respeito dos diversos pontos de vista utilizados no estudo das cores no início do século XX ver Ostwald (1919). 6

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Assim, Wittgenstein distingue sua investigação de uma investigação psicológica em sentido empírico a partir de um modelo gramatical que expressa regras fenomenológicas: “essa representação [octaedro] é uma representação gramatical, e não psicológica” (PB §1). A estrutura das cores (a articulação das possibilidades do conceito ‘cor’), pode-se dizer, é logicamente anterior aos experimentos psicológicos, pois indica possibilidades de variações de cores (esse ponto, creio, ficará mais claro na seção 4). Experimentos indicam quais fatos são verdadeiros, enquanto que a fenomenologia de Wittgenstein pretende indicar quais fatos são possíveis: “nenhum experimento, nunca, mostra qualquer coisa sobre possibilidade” (WLM 4:40).7 À primeira vista, as regras das funções de verdade do Tractatus, as regras mais gerais da linguagem, não parecem ter o mesmo estatuto das regras sobre cores: as primeiras parecem ser puramente a priori enquanto que as outras, não. A diferença entre ambas, contudo, pensa Wittgenstein, não é essencial (ver PB §85; WWK, 80). Enquanto umas aplicam-se a toda e qualquer tipo de sentença, as outras têm aplicação a tipos. É preciso ter

A investigação gramatical de Wittgenstein é, assim, uma investigação conceitual. Ele a relaciona, contudo, de um modo um pouco problemático, ao que Mach chama de “experimento mental” (PB §1). Ernst Mach introduz a ideia de experimento mental em Erkenntnis und Irrtum para mostrar que a descoberta científica também depende de exercícios imaginativos a partir de conhecimentos já à disposição do cientista. Wittgenstein diz que um experimento mental para Mach é “no fundo uma reflexão gramatical” (PB §1). Considerando o uso de exercícios imaginativos, isso parece correto (ver o exemplo do tirano dado por Wittgenstein em PB VI). Wittgenstein usa a expressão adverbial ‘no fundo’ provavelmente porque não quer se comprometer com o projeto geral de Mach, a saber, estabelecer a “psicologia da pesquisa”. Em Erkenntnis und Irrtum, Mach apresenta uma espécie de propedêutica e heurística naturalista da pesquisa científica. Ele o faz porque pensa que um cientista (Naturforscher) “tem a necessidade de compreender os processos pelos quais adquire e estende seus conhecimentos” (p. v). É evidente que Mach tem em mente fins estritamente pragmáticos com seu livro: pretende apresentar métodos que levem à ampliação do conhecimento científico. Quanto ao projeto geral, portanto, Mach e Wittgenstein estão distantes. Isso, contudo, implica também uma diferença grande quanto ao papel dos experimentos mentais. Um experimento mental é, para Mach, uma “pré-condição para o experimento físico” (p. 184). Através de um experimento mental, pode-se pensar (correta ou incorretamente) que um experimento físico é dispensável; contudo, o experimento físico é sua “continuação natural, que deve intervir de modo complementar e determinante” (185). Portanto, é razoável pensar que a aproximação que Wittgenstein sugere refere-se somente a um aspecto dos experimentos mentais (conforme já indiquei acima, tenho em mente a aplicação da capacidade imaginativa às experiências já acumuladas). 7

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em mente, contudo, que todas as regras têm a mesma função: determinam o sentido de sentenças. Além disso, como veremos, todas são ‘arbitrárias’, ou seja, não podem ser justificadas, uma vez que fundamentam qualquer justificação. Esse ponto é importante, pois mostra que a distinção entre regra e sentença (proposição) é a distinção fundamental na gramática. O absolutamente a priori da lógica no Tractatus (a independência de qualquer experiência), veremos, não é mais um critério central para a determinação do estatuto de uma sentença (seção 4). Afora isso, as regras lógicas do Tractatus são apenas uma parte das regras da gramática ampla da linguagem (PB §83). Como é a gramática ampla que exclui o contrassenso “A é azul & A é vermelho”, e não as regras da conjunção, regras da lógica ‘pura’ e regras de cores têm mútua dependência.8 Isso significa que a expressão de inferências lógicas como tautologias também torna-se secundária (elas são apenas parte das inferências determinadas pela gramática). São as regras da sintaxe, tautológicas ou não, que determinam inferências: A tautologia é bem secundária. Apenas em uma notação particular representamos a inferência como tautologia. Essencial são apenas as regras da sintaxe, que empregamos desde sempre, muito antes de sabermos o que é uma tautologia (WWK, 91). Esse ponto é esclarecido se pensarmos que inferimos não tautologicamente a partir de regras que “empregamos desde sempre” em muitos casos em que proposições funcionam em um sistema de exclusões, como por exemplo: “O livro é todo azul; logo não é vermelho”, “Pedro tem 2 metros de altura; logo não tem 1 ou quatro metros”, “Hoje é

Também a notação para a generalidade do Tractatus não se aplica irrestritamente (ver PB §§90-1). Ver Cuter, ensaio 9. 8

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terça; logo não é domingo”, etc. Na seção 4, voltarei a tratar do estatuto das regras da gramática. Antes disso, trato de classificações gramaticais. 2) O Livro da Gramática: Tipos e Espaços O objetivo central de Wittgenstein após o abandono da linguagem fenomenológica passou a ser a composição do “livro da gramática”, um livro que apresentaria as áreas da linguagem (lógica, matemática e fenomenologia) a partir de suas regras e conceitos centrais (por exemplo: ‘universalidade’, ‘prova’, e ‘cor’, respectivamente). O “livro da gramática” toma o lugar central que tinha o simbolismo. A ideia do livro da gramática é apresentada no §3 de PB: As palavras ‘cor’, ‘som’, ‘número’ podem aparecer nos títulos dos capítulos de nossa gramática. Nos capítulos elas não precisam aparecer; mas lá é dada, sim, a estrutura. ‘Cor’, ‘som’, ‘número’, etc., não são propriedades (ou conceitos reais). “Vermelho é uma cor”, por exemplo, nada descreve, uma vez que não se pode dizer que vermelho não é uma cor. ‘Cor’ tampouco é uma propriedade de cores. Poder-se-ia pensar que “vermelho é uma cor” é uma proposição verdadeira enquanto que “vermelho é um som” é falsa. Contudo, isso significaria que vermelho poderia ser um som, o que é impossível qua contrassenso. Se tomássemos esse tipo de sentenças como ‘proposições (descrições de fatos) impossíveis’, e considerássemos ‘cor’ uma propriedade, não poderíamos de forma alguma excluir a possibilidade de encontrar acidentalmente, em algum lugar do universo, algum outro tipo de coisa ao qual se aplicaria também essa propriedade (ver WLM, 4:33). Como tal possibilidade é excluída necessariamente, “vermelho é uma cor” não é uma descrição. Assim, também não é correto afirmar que há uma propriedade comum a todas

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as cores. Qual seria tal propriedade e como seria distinta de outras propriedades? Cores têm, de fato, algo em comum, pensa Wittgenstein, mas este algo é uma estrutura comum, pois certas regras aplicam-se a cores e não se aplicam a sons, por exemplo (mais sobre isso abaixo). Regras, contudo, não descrevem, mas determinam o sentido de descrições. As sentenças em que aparecem tais ‘categorias’ são, em geral, contrassensos triviais (“vermelho é uma cor”) ou contrassensos ‘impossíveis’ (“vermelho é um som”, por exemplo). Tais sentenças “tentam expressar algo que, de fato, deveria ser expresso pela gramática” (WLM, 4:19). Essas palavras indicam pseudoconceitos (conceitos formais) que são, na verdade, tipos ou formas que funcionam como variáveis – de modo análogo aos conceitos formais no Tractatus (T 4.126; WLM, 4:21, 4:24-5). Seu uso pode ser restrito ao aprendizado de uma ‘variável’: Quando a criança aprende “Azul é uma cor, vermelho é uma cor, verde, amarelo são todos cores”, então ela não aprende nada de novo sobre as cores, mas, sim, aprende o significado de uma variável nas sentenças “A figura tem belas cores”, etc., etc. Aquela sentença dá a ela os valores de uma variável (PB §3). Os títulos da gramática seriam, assim, a indicação de formas, de variáveis, e não de conceitos reais (ou materiais). Com ‘estrutura’, na penúltima citação, Wittgenstein tem em mente as características normativas essenciais de cada ‘tipo’. A estrutura da cor é parcialmente explicitada através do octaedro (ver acima), pois nele são apresentadas as cores primárias e suas relações de exclusão e mistura, que indicam inferências possíveis em sentenças que descrevem cores e também quais combinações de palavras são meros contrassensos. A estrutura do número seria dada pelos diversos sistemas ligados aos (‘tipos’) números inteiros, racionais, irracionais, etc., e pelas operações comuns e não comuns a eles. Desse modo, a gramática determinaria que tipo ou espécie de objeto cada

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coisa é (PB §6). Wittgenstein também fala de ‘espaços’ (“o espaço das cores”, PB §38 ou “o espaço claro-escuro”, PB §45) e de sistemas proposicionais (por exemplo, o sistema proposicional das cores: PB §84). Evidentemente, as noções ‘tipo’, ‘espaço’ e ‘sistema proposicional’ estão relacionadas. Um sistema proposicional é delimitado por um espaço ou tipo gramatical (‘cor’, ‘som’, ‘sensação’, ‘dor’, etc.). A noção de ‘espaço’ é também utilizada para explicar a conexão ou articulação entre linguagem e mundo: uma região da linguagem-mundo em que a verificação de determinado tipo de sentenças ocorre (PB § 28). Por exemplo, se expresso uma expectativa (“Espero ver uma mancha vermelha”), sei de antemão que algo visual vai preenchê-la (Há uma mancha vermelha no campo visual), e não algo auditivo. A mancha esperada e a mancha vista estão no mesmo ‘espaço’. O ‘espaço’ é a região de cada um dos sentidos que determina o tipo de evidência para a verificação de um evento físico (PB §119). Cada espaço é constituído por “um elemento formal de ordem” (PB §119). Assim, a minha expectativa de ver uma mancha vermelha é constituída pelas regras (elemento formal) do ‘espaço’ visual, e não pelas regras do ‘espaço’ auditivo (PB §45). Wittgenstein também fala em “espaço da dor” (PB §82) para indicar que a expectativa de dor só pode ocorrer relacionada à uma escala de dor.9 A partir da ideia ampla de gramática e do projeto do “livro da gramática”, podemos compreender certas características estruturais das PB e o propósito geral de vários “capítulos” como um primeiro esboço do livro da gramática filosófica de nossa linguagem. Um tal livro deveria conter uma parte dedicada à figuração (PB II-IV), à antiga lógica (ver PB IX sobre universalidade), à relação entre lógica e fenomenologia (ver VIII sobre As noções de ‘espaço’, ‘tipo’ e ‘escala’ só podem ser propriamente compreendidas a partir do verificacionismo em PB (a esse respeito, ver ensaios 3 e 4 sobre os caps. II-IV). 9

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proposições elementares), à relação entre lógica e matemática (ver X-XII); também deveria conter uma parte dedicada à matemática (ver XIII sobre o sentido de problemas matemáticos, XIV, sobre recursão, e XVII, sobre números irracionais); também uma parte dedicada à geometria (XVI) e sua relação com a fenomenologia (ver XX, sobre a geometria do campo visual); por fim, uma parte dedicada à fenomenologia (ver V e VII sobre tempo fenomenológico, VI sobre fenomenologia e a dispensabilidade de ‘eu’, XX e XXI, sobre o espaço visual, e XXII, sobre fenomenologia, física e probabilidade). As PB são apenas o primeiro modelo desse projeto. O projeto do “livro da gramática” continua depois de PB e tem uma nova versão no Big Typescript (cujo título mais adequado seria “Gramática Filosófica”).10 Como o objetivo geral a ser alcançado com o livro da gramática é a determinação daquilo que conta como parte da linguagem e aquilo que é contrassenso, Wittgenstein diz que “a gramática é uma ‘theory of logical types’” (PB §7). Ele não está, com a última frase citada, subscrevendo à teoria russelliana de tipos e ordens, muito menos supondo que objetos lógicos tenham papel na explicação da ‘necessidade’ de proposições. Ele está indicando somente que sua gramática visa classificar espécies de conceitos e, assim como a teoria dos tipos de Russell, determinar que certas combinações conceituais são contrassensos. Deve-se observar que Russell parece compreender ‘tipos’ como ordem ou hierarquia de funções e espécies de ‘coisas’. É nesse último sentido, evidentemente, que “indivíduos formam o primeiro tipo” e que “proposições que não contêm o mesmo número

Tal nome é sugerido no MS 112 e nas revisões do BT feitas nos MSS 114, 115 e 140 (MSS 114, 140 e 115, organizados por Rush Rhees com o título apropriado: Gramática Filosófica). Sobre as mudanças fundamentais que ocorrem entre PB e BT ver Engelmann (2013). 10

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de variáveis aparentes não podem ser do mesmo tipo” (Principia Mathematica *12).11 Assim, nas PB Wittgenstein está dizendo que os tipos de Russell (indivíduos e funções nárias) são, na verdade, espécies distintas de ‘tipos’. Comum aos dois significados de ‘tipo’ de Russell é a suposição de que algo externo (uma hierarquia de tipos) determina o papel de expressões linguísticas. Wittgenstein nunca aceitou tal suposição (ver NB, 2). Na seção 4 volto a tratar da “teoria dos tipos” de Russell. A introdução de espécies de conceitos na gramática é, como tentei mostrar, uma consequência do abandono de uma notação lógica estritamente vero-funcional, fundada nas formas função e argumento, e no abandono da ideia de uma linguagem fenomenológica completa. A “gramática lógica” (ou “sintaxe lógica”) mínima do Tractatus (T 3.325) mostrou-se incompleta e o seu complemento, inviável. As relações necessárias de inferência entre proposições que se evidenciam na linguagem ordinária, assim, só podem ser apresentadas perspicuamente em um gramática ampla. Contudo, os tipos da gramática filosófica de Wittgenstein não são os tipos da gramática dos gramáticos. De fato, a classificação fundamental de palavras em uma gramática ordinária em substantivos, verbos, adjetivos, etc., esconde, de acordo com Wittgenstein, diversos tipos “gramaticais” específicos. Assim, por exemplo, “as formas das proposições ‘O prato é redondo’, ‘O homem é alto’ e ‘A mancha é vermelha’ não têm nada em comum” (PB §93). Em cada uma dessas proposições temos espaços de exclusão (tipos) distintos: espaços geométrico, alto-baixo e cores, respectivamente. Observe que algumas substituições em termos de funções proposicionais e substantivos nas proposições acima, tomadas literalmente, geram contrassensos, por É nesse último sentido, de fato, que Wittgenstein entende ‘tipo’ já à época do Tractatus (ver Notes on Logic, 93-6). 11

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exemplo: “a mancha é alta” ou “o homem é redondo”. Assim, o critério wittgensteiniano geral para determinação de tipos é a substitutibilidade contextual (PB §92-6). 12 O que determina um gênero (Wortgattung) ou espécie de palavras (Wortart) são “todas as regras gramaticais” (PB §92). Se geramos um contrassenso com a substituição de certas palavras, temos obviamente palavras de tipos distintos: “Pode-se também dizer ‘Meça [para determinar] se isso é um círculo ou uma elipse’, mas não ... ‘Veja se isso é um chapéu ou é vermelho’” (PB §96). Do mesmo modo, a substitutibilidade pode indicar que a introdução do gênero, quando tratamos de espécies, gera contrassensos: “‘Isso foi um trovão ou um tiro?’ Mas não se pode perguntar nesse caso ‘Isso foi um barulho?’” (PB §96). A determinação de contrassensos entre gêneros de palavras mostra, assim, que a compreensão das regras do gênero (‘espaço’) é pressuposta na compreensão de sentenças em que a espécie aparece. 3) Contrassensos e Gramática Poderíamos pensar que a tarefa de explicitar a gramática e, assim, os limites do sentido da linguagem, não é suficiente para determinarmos contrassensos filosóficos, porque os filósofos podem não usar as palavras com seu significado usual. Wittgenstein tem consciência desse possível subterfúgio: A possibilidade de esclarecimento dessas coisas sempre repousa no fato de que o outro usa a linguagem assim como eu a uso. Se ele afirma que uma combinação de palavras, que para mim não tem sentido, tem sentido para ele, então só posso assumir que ele usa as palavras aqui com outro significado ou fala sem refletir (PB §7).

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Ver também WLC30-32, 3-5 e 13-16, e WWK, 46.

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“Falar sem refletir” é algo que não se leva a sério (é falar, quem sabe, como um papagaio, que, evidentemente, não possui os meios próprios de reflexão). Se, por outro lado, o filósofo pode usar as palavras “com outro significado”, é possível que não tenha percebido isso (PB §9). Nesse caso, a explicitação das regras da gramática poderá levar alguém que profere um contrassenso como “tal coisa é tão idêntica quanto a outra” a perceber que está usando uma palavra, por exemplo, ‘idêntico’, com significado distinto de ‘igual’ em “2+2=4” (PB §9). Com isso, presumivelmente, perceberá que quis dizer que tal coisa é tão grande ou comprida quanto a outra, e não que é tão idêntica quanto a outra. O fato da linguagem ordinária funcionar a partir de convenções determinadas ou acordos (ver PB §8), contudo, não exime o filósofo do uso das palavras seguindo os acordos estipulados ordinariamente. Por essa razão, como destaca Moore em suas anotações das aulas de Wittgenstein em 1930, Wittgenstein pode desconsiderar idiossincrasias linguísticas dos filósofos: “quando [Wittgenstein] afirma que filósofos dizem coisas ‘que não significam nada’ ou que são ‘contrassensos’ está dizendo que ‘Com o método ordinário de projeção isso não significa nada’ (Moore Wittgenstein’s Lectures, 260; ênfase no original).13 O objetivo de Wittgenstein não é tentar compreender o que o filósofo quer dizer exatamente com ‘identidade’ ou qualquer outra palavra. Essa tarefa cabe ao próprio filósofo, quando introduzido ao livro da gramática. No final das contas, assumida a ideia de uma gramática implícita na linguagem (e Wittgenstein certamente a assume), o filósofo que não segue as regras ordinárias de projeção está meramente violando as regras ordinárias. Assim, ou o filósofo não compreende o que ele mesmo diz, pois as regras da

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Esse, a meu ver, já é o ponto de vista do Tractatus (ver T 5.437n).

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gramática são condição necessária de compreensão (ver WWK, 78), ou brinca de Humpty Dumpty.14 Contudo, é evidente que, para ser compreendido, o Humpty Dumpty de Lewis Carroll diz o que quer dizer fazendo referência ao significado ordinário das palavras. Por exemplo, diz que “‘brillig’ significa quatro da tarde”. Assim, para dizer algo, retorna às convenções ordinárias que determinam o significado das palavras. Wittgenstein, contudo, não opera pacientemente com Humpty Dumpty. 15 Em sua primeira aula no início de 1930, quando trata de tipos de palavras, diz que a “substituição [‘cansado’ em “estou cansado” não pode ser substituído por ‘azul’] gera um contrassenso porque as palavras não são do mesmo tipo”. Logo a seguir, utiliza precisamente ‘brillig’, e demais expressões introduzidas por Lewis Carroll, para indicar que a gramática ordinária não explicita contrassensos por não ter meios de explicitar os ‘tipos’ da gramática filosófica: Podemos ver isso também ao considerarmos as rimas contrassensuais de Lewis Carroll. ‘Twas brillig [...] Isso pode ser analisado em sujeito e predicado e partes da fala, mas é um contrassenso (WLC30-2, 3).

Ver Carroll, L. Through the Looking Glass, cap. VI. Humpty Dumpty é o intérprete do poema Jabberwocky, que Alice precisa compreender (Wittgenstein cita parte do poema como exemplo de contrassenso em suas aulas). A característica mais marcante do personagem é determinar o significado de palavras a seu bel prazer. Por exemplo: “...Impenetrability! That’s what I say!” “Would you tell me, please, said Alice, ‘what that means?” … “I meant by ‘impenetrability’ that we’ve had enough of that subject, and it would be just as well if you’d mention what you mean to do next, as I suppose you don’t mean to stop here all the rest of your life.” “That’s a great deal to make one word mean,” Alice said in thoughtful tone””. 15 Esse ponto é relevante porque, nos últimos anos, os ‘leitores resolutos’ passaram a defender que a concepção de contrassenso de Wittgenstein, já no Tractatus, é de “contrassenso no varejo” (ver Diamond 2004), isto é, de que tenta estabelecer caso a caso o que se quer dizer com uma determinada expressão filosófica em lugar de meramente desqualificá-la como contrassenso a partir de um princípio mais geral. Imagina-se, assim, que o caráter dialógico das Investigações Filosóficas já está presente no Tractatus e permanece até os escritos tardios. Isso é falso. Primeiro, não existem interlocutores no Tractatus, nem uma espécie de dialética de esclarecimento. Segundo, nas PB o tratamento de contrassensos também não envolve uma paciente análise caso a caso. Sobre o surgimento da ideia de contrassenso no varejo na filosofia de Wittgenstein ver Engelmann (2012) e (2013). 14

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Em vez de pacientemente tratar daquilo que alguém poderia querer dizer com um uso idiossincrático de palavras, Wittgenstein meramente indica que a expressão é um contrassenso. Isso, é claro, de acordo com o nosso modo usual de projeção. Assume-se, portanto, que falantes preservem e queiram respeitar convenções. O modo direto de tratamento de sentenças idiossincráticas está em perfeito acordo com a concepção wittgensteiniana de gramática e contrassenso nas PB. Também está de acordo com seu objetivo de reconhecer as “engrenagens soltas” da linguagem (PB §1). 4) Sobre a Impossibilidade da Justificação da Gramática Pode-se dizer, a partir da perspectiva das PB, que o Tractatus estava correto em seu objetivo de mostrar o caráter não proposicional da lógica e indicar os limites da linguagem; correto também em mostrar que problemas filosóficos são fruto da incompreensão da lógica da linguagem (T, prefácio); por fim, certo em sua abordagem da linguagem ordinária (comparar PB §3 com T 5.5563). Contudo, o simbolismo do Tractatus simplificava a gramática (a lógica) da nossa linguagem: “As regras sobre ‘e’, ‘ou’, ‘não’, etc., que apresentei por intermédio da notação V-F, são uma parte da gramática sobre essas palavras, mas não toda [a gramática]” (PB §83). Dito de outro modo, o livro não dava conta da multiplicidade lógico-gramatical de nossa linguagem. Isso sugere que, em linhas gerais, a gramática das PB expressa uma adaptação do projeto original do Tractatus, e não um rompimento com o mesmo. Com ‘projeto original do Tractatus’ entendo a determinação dos limites do sentido a partir da lógica (gramática) implícita na linguagem. Essa gramática, como no Tractatus, é um conjunto de regras essenciais, e não de proposições. A grande diferença entre os dois projetos é que o simbolismo lógico do Tractatus apresenta,

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de acordo com as PB, apenas uma parte das regras essenciais da linguagem, como mostrei acima. O fato de que as PB apresentam uma adaptação do projeto tractariano é também mostrado, como veremos, pela tese da arbitrariedade da gramática, quando corretamente compreendida. A argumentação que visa mostrar a impossibilidade de justificação da gramática nas PB é feita de dois modos, com dois argumentos semelhantes. Wittgenstein argumenta de maneira geral e, também, através do exemplo de uma suposta justificação da gramática das cores. Aqui está o argumento geral: Não denomino a regra de representação uma convenção que pode ser justificada através de sentenças que descrevem o representado e mostram que a representação é adequada. As convenções da gramática não podem ser justificadas através de uma descrição do representado. Cada descrição já pressupõe as regras da gramática. I.e., aquilo que vale como contrassenso na gramática a ser justificada também não pode valer como sentido na gramática das proposições justificadoras, etc. (PB §7; MS 108, 104).16 ‘Convenções’ são sentenças que expressam definições (regras) que indicam supostamente a aplicação da gramática ou a conexão entre linguagem e mundo, como ‘Isto é verde’ (WLC30-2, 12-3; WLM, 4:30-3). É essa aplicação da gramática que a distingue de um mero jogo (WLC30-2, 12). Contudo, a aplicação não justifica a gramática, pois a pressupõe. Presumivelmente, se as convenções pudessem ser justificadas, seriam justificadas através de proposições, ou seja, a justificação seria feita através de uma descrição de fatos. Esses fatos justificariam a gramática, portanto, a partir de uma dedução

Mesmo que Wittgenstein nunca o mencione, o uso do termo ‘convenção’, em voga à época, remete a Poincaré (1902 e 1905). Para Poincaré, uma convenção é uma proposição parcialmente arbitrária. Isso significa que, em princípio, temos outras possibilidades (outras proposições ou axiomas) que poderíamos utilizar, de acordo com os ajustes que fizéssemos no nosso sistema axiomático. É preciso lembrar, contudo, que para Wittgenstein uma convenção gramatical é uma regra caracterizada pela impossibilidade de sua justificação e que seu modelo gramatical não é propriamente axiomático. Isso significa que Wittgenstein e Poincaré não estão de acordo no uso de ‘convenção’. 16

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lógica: de descrições p, q, r derivaríamos a regra R. Contudo, argumenta Wittgenstein, tais proposições justificadoras já pressuporiam as convenções (regras). Ele explicita o que significa ‘pressupor’. Para que as proposições qualifiquem como justificadoras, elas não podem ser contrassensos de acordo com a gramática que devem justificar (contrassensos, obviamente, não tem valor de verdade; portanto, não podem implicar nada). Assim, as proposições (descrições do mundo) têm sentido e pressupõem as convenções que determinam seu sentido. Portanto, a “justificação” seria circular, pois o próprio sentido das proposições já dependeria das convenções (regras) que deveriam ser justificadas. Mesmo se as proposições “justificadoras” pertencessem a outra gramática, seriam dependentes da gramática a ser justificada, pois, em princípio, não poderiam ser contrassensos na gramática a ser justificada. Contrassensos nada justificariam. Existe uma aparente dificuldade no argumento de Wittgenstein. Ele pressupõe que proposições que têm sentido na gramática a ser justificada também o têm na gramática justificadora. Poderíamos supor, contudo, que existem sentenças que são contrassensos somente na gramática a ser justificada, por exemplo, e não em ambas. O fato de Wittgenstein desconsiderar essa possibilidade indica, a meu ver, a pressuposição de que há, de acordo com as PB, somente uma gramática da linguagem com um conjunto de regras a ser explicitado. As regras da gramática estão implícitas na linguagem, mas podem ser representadas (ou apresentadas) de maneiras diversas. Assim, com ‘gramática’ na passagem acima, penso, Wittgenstein tem em mente uma representação das regras da gramática em oposição a outra representação (por exemplo, o octaedro e o círculo das cores).17 Como, contudo, escolher uma representação gramatical, se nenhuma proposição verdadeira poderia justificar uma ou outra regra Na perspectiva de Wittgenstein nas PB, a representação gramatical a ser 17

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Vejamos, agora, o segundo argumento. Como nossa gramática determina a representação dos fatos, a representação de fatos pode ser compreendida como sua finalidade. Precisamos, com essa finalidade em mente, fazer determinadas convenções? Wittgenstein argumenta, a partir do exemplo das cores, que nem mesmo a suposta finalidade da gramática poderia ter essa implicação. Aqui está o argumento: Se eu pudesse descrever a finalidade das convenções gramaticais por dizer que preciso fazê-las porque, por exemplo, as cores têm certas propriedades, então as convenções seriam supérfluas; pois, assim, poderia dizer (sagen) exatamente aquilo que as convenções excluem. Inversamente, se necessitava das convenções (sie waren noetig) – portanto, certas combinações de palavras precisaram ser excluídas como contrassensos – então não posso, exatamente por isso, indicar uma propriedade das cores que tenha tornado a convenção algo necessário (die die Konventionen noetig machte); pois, assim, seria pensável que as cores não tivessem tal propriedade, e isso só poderia ser expresso contradizendo as convenções. (PB §4) O que está em questão aqui é a possibilidade de justificação das regras da gramática

a partir de duas linhas argumentativas: 1) a suposta indispensabilidade de determinadas convenções (regras) gramaticais e 2) a dispensabilidade das mesmas. Será que as regras gramaticais são convenções necessárias, isto é, somos obrigados a criá-las ou eliminar a opção de outras regras por intermédio de propriedades reais (propriedades dos objetos existentes) Não, argumenta Wittgenstein, porque a própria suposição da derivação empírica das convenções (regras) – isto é, que a verdade de certas descrições as implicam – tornaria desnecessárias tais convenções (regras). Seriam dispensáveis porque poderíamos, nesse caso, dizer (verdadeira ou falsamente) aquilo que as convenções

preferida é aquela que é mais perspícua e evita confusões filosóficas. Esse ponto é exemplificado, por exemplo, no capítulo sobre diversas representações de cores (cap. XXI; ver ensaio de Carvalho neste volume). Mais tarde, Wittgenstein esclarece o ponto ao apresentar um critério mais geral. Defende que as representações de regras são escolhidas por questões de ordem pragmática, por exemplo, a simplicidade (BT, 453). Essa escolha pragmática, contudo, não pode ter a forma de uma justificação a partir de descrições: uma regra R não é derivada de proposições p, q e r, mesmo que entre elas esteja a descrição da suposta finalidade do conjunto de regras. Esse parece ser um dos focos do argumento de que trato a seguir.

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excluem, ou seja, aquilo que as convenções mostram ser contrassensos. Por outra lado, se assumimos que precisamos de convenções (regras), ou seja, se precisamos de regras que excluam certas combinações de palavras como contrassensos, então, argumenta Wittgenstein, também não podemos justificar as regras. Se, por suposição, uma propriedade das cores descrita em uma proposição torna certa convenção algo que precisamos assumir, então é concebível que as cores não tivessem tal propriedade. Isso porque, dada a bipolaridade das descrições de fatos, a possibilidade de convenções (regras) distintas implica a possibilidade de contradizermos as atuais convenções (a serem justificadas). Assim, assumiríamos a contingência da propriedade considerada necessária na presente gramática. Isso, contudo, contradiz a suposição de que as convenções (regras) são necessárias. O ponto central dos argumentos pode ser explicitado através das pressuposições de uma convenção: “Isto é A” (PB §6). Pensemos em “Isto é verde” (WLC30-2, 13; WLM, 4:32). De um lado, quando uso tal sentença como uma descrição, preciso determinar a que ‘isto’ se refere (por exemplo, um pedaço de madeira, cadeira ou uma cor). É preciso determinar de que ‘coisa’ falamos. Sem essa determinação, a sentença é incompreensível. Essa determinação, contudo, é dada pelos tipos gramaticais. O mesmo vale para ‘verde’, pois a proposição (verdadeira ou falsa) ‘isto é verde’ tem seu sentido dependente da regra (definição) ‘isto é verde’, etc. Por outro lado, se ‘Isto é verde’ é uma explicação ostensiva da cor, a aplicação que especifica um objeto só ocorre porque já sabemos que se trata de uma ‘cor’. Portanto, novamente, o tipo gramatical ‘cor’ é pressuposto juntamente com a regra ‘isto é verde’. Assim, convenções como ‘Isto é A’ não justificam, mas pressupõem a gramática.

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Supor o oposto disso, argumenta Wittgenstein, foi o erro fundamental da “teoria dos tipos”, isto é, Russell pensava que a natureza das coisas (uma hierarquia de tipos), algo externo e mais fundamental que a linguagem, poderia determinar a ‘gramática’. Russell pensava que “convenções falam sobre a aplicação da linguagem” (ver WLM 4:33; minha ênfase; ver também WLC30-2, 14). Convenções, contudo, não falam sobre nada; elas apenas explicitam a gramática da aplicação da linguagem. Assim, como no Tractatus, a questão central de Wittgenstein é que “não posso sair da linguagem com a linguagem” (PB §6). Dito de outro modo, lógica, gramática e linguagem devem cuidar de si mesmas. Os dois argumentos acima são repetidos no Big Typescript (BT, 238). Lá, são usados para mostrar que a gramática é arbitrária. Considerando que a gramática é arbitrária porque não pode ser justificada, e que esses mesmos argumentos são apresentados no Big Typescript, deve-se dizer que a tese já é defendida nas PB, mesmo que não seja assim denominada.18 Isso é confirmado, cerca de dois meses depois de coletar as observações das PB, pelo próprio Wittgenstein: “A sintaxe não se deixa justificar. Ela é, por isso, arbitrária” (WWK, 105; minha ênfase). Se são bons os argumentos de Wittgenstein, não podemos justificar a gramática a partir da descrição de fatos, isto é, as regras não correspondem a fatos e nem são derivadas a partir de sua descrição ou aplicação. 19 No vocabulário do Tractatus, isso significa que as regras mostram o sentido de proposições que dizem algo, mas, elas mesmas, não dizem nada e não são tornadas verdadeiras pelos fatos.

Isso não significa que a tese da arbitrariedade defendida nas PB e aquela do BT sejam idênticas. No BT, a autonomia da gramática é a ideia central. Lá, a arbitrariedade da gramática pode ser derivada da tese da autonomia da gramática: se o significado é completamente constituído e determinado pelas regras da gramática (autonomia), nenhuma proposição pode justificá-lo (arbitrariedade). 19 Assim, ‘arbitrário’ tem o sentido de não justificável, e não o sentido de um procedimento caprichoso. 18

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Qual poderia ser a razão de Wittgenstein para introduzir esses argumentos nas PB? Por que mostrar que as regras da gramática não são justificáveis? Para entendermos o que está em questão para Wittgenstein, penso, devemos considerar as consequências da possibilidade de justificação das regras. Se a gramática pudesse ser justificada, as relações necessárias entre um conjunto de regras gramaticais (por exemplo, relacionadas ao tipo ‘cor’) teriam um caráter contingente. A necessidade lógica (ou gramatical) em inferências de exclusão de cores, por exemplo, dependeria da constituição do mundo e de sua descrição. De modo semelhante, como vimos acima, poder-se-ia pensar que aquilo que é ‘necessário’ dependeria de uma teoria dos tipos à maneira de Russell. Assim, de um modo ou outro, o sentido das proposições seria contingente, e não teríamos relações propriamente necessárias entre sentenças. Se compreendemos o propósito dos argumentos dessa maneira, precisamos constatar que Wittgenstein mantém nas PB, na verdade, uma característica central da concepção de inferência e “leis lógicas” do Tractatus em sua versão ampla de lógica, isto é, na ‘gramática’. Para tanto, basta lembrarmos que as regras (ou leis) da lógica não podem ser nem confirmadas ou justificadas nem falsificadas por nenhuma “experiência possível” (T 6.1222). Contudo, no Tractatus, Wittgenstein não necessitava dos argumentos acima, uma vez que, dado o simbolismo no livro, é óbvio que nada no mundo poderia tornar uma tautologia verdadeira. O simbolismo lógico do Tractatus mostrava, através de tabelas de verdade, que a lógica é absolutamente a priori (independente de qualquer experiência). Como a gramática ampla das PB inclui regras de caráter não lógico, de acordo com os parâmetros do Tractatus, isto é, inclui necessidade não tautológica (vero-funcional), tais

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argumentos passaram a ser necessários. O propósito dos argumentos, assim, é determinar o caráter necessário de relações inferenciais entre sentenças de certos tipos gramaticais, mesmo que essas sejam, de algum modo, dependentes – mas não derivadas – do conhecimento de alguma experiência (portanto, no sentido estrito da lógica tractariana, não a priori), como é o caso das cores. Portanto, é a arbitrariedade da gramática que garante o estatuto necessário das regras gramaticais. Esse estatuto é garantido porque os argumentos mostram, de acordo com Wittgenstein, que não é possível derivar regras de descrições de fatos.20 Assim, os argumentos da arbitrariedade da gramática elucidam, em princípio, um insight que guiou também a construção da linguagem fenomenológica, como deixa clara a passagem citada abaixo, da época da construção da mesma. Ao explicar a eliminação da possibilidade de se atribuir o valor de verdade V em uma tabela de verdade para ambas sentenças “A é azul” e “A é vermelho”, Wittgenstein esclarece: Naturalmente, isso não significa que, agora, o deduzir poderia ocorrer não somente de modo formal mas também material. – Sentido segue-se de sentido e, por isso, forma de forma (MS 106, 85; PR §78). À época da linguagem fenomenológica havia, contudo, uma certa ambiguidade no modo como Wittgenstein apresentava sua investigação, uma vez que dizia que a análise dos fenômenos deveria ser feita “em certo sentido a posteriori” (SRLF, 163). Assim, poder-se-ia pensar, contra a concepção formal de Wittgenstein (citação acima), que fenômenos poderiam justificar a linguagem através de uma espécie de apreensão direta. Contudo, dizia “em certo sentido a posteriori” porque, entre outras coisas, era inegável que

Nada dito aqui deve sugerir que a ideia de ‘gramática’ defendida em PB é a mesma defendida por Wittgenstein mais tarde. Ao contrário; a esse respeito ver Engelmann (2011), (2013a) e (2013b). 20

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precisava assumir algum conhecimento a respeito de como percebemos o mundo para inspecionar os fenômenos (o fato, por exemplo, de que seres humanos enxergam várias cores). Pode-se dizer, portanto, que a arbitrariedade explica como é possível que uma investigação que assuma certos fatos seja, ainda assim, um meio para determinar relações necessárias na linguagem. Pois mesmo que não se possa falar de cores sem a consideração de fatos, não é possível que a estrutura inferencial de formas fenomênicas seja justificada por descrições de fatos. Portanto, a arbitrariedade da gramática sustenta uma compreensão específica de inferências a priori: “que inferência é a priori significa apenas que a sintaxe decide se uma inferência é ou não correta” (WWK, 92). Assim, é claro que os argumentos que estabelecem a arbitrariedade da gramática visam também esclarecer a diferença entre sentido (forma) e verdade: aquilo que não pode ser justificado por proposições é aquilo que dá sentido às proposições independentemente de seu valor de verdade. Caso as regras da gramática pudessem ser justificadas, ter uma proposição sentido dependeria da verdade de outras proposições. Aparentemente, isso significaria que a lógica ou a gramática seria abolida, uma vez que não podemos determinar que p é verdadeira sem que as regras da lógica e da gramática tenham determinado anteriormente o sentido de p. A arbitrariedade da gramática, bem como a distinção entre regras que determinam o sentido de descrições e descrições que descrevem fatos, explicita uma concepção de necessidade, uma concepção da compulsão lógica, já assumida no Tractatus, fundada em um claro corte entre forma e conteúdo. Ela visa evitar uma ilusão filosófica. Alguns filósofos pensam que a prosa a respeito de “algo tornar verdadeira uma proposição necessária p” é um modo de se explicar a natureza das proposições necessárias. Essa

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estratégia é adotada por realistas (Frege e Russell: reino de objetos matemáticos ou hierarquia de tipos) e por idealistas (Kant: as formas da sensibilidade). O resultado dessa estratégia, contudo, é precisamente o oposto do que se quer. Se algo ‘externo’ à proposição necessária p a torna necessária, é sempre possível supor que esse mesmo algo externo a torne contingente, uma vez que, por suposição, a verdade de p é garantida por algo (por objetos lógico-matemáticos, pela estrutura da mente ou “estrutura do mundo”, etc.). 21 Se a resposta daqueles que discordam de Wittgenstein é a de que o ‘algo externo que garante a necessidade’ é absolutamente necessário, cabe perguntar como e por que esse ‘algo’ não pode também depender de algo. Aqui não precisamos nem mesmo entrar no mérito de questões epistêmicas a respeito do acesso a esse ‘algo’ e ao modo (causal introspectivo?) como, supostamente, o conhecemos. Deve-se perceber que esse passo para trás é meramente estipulado e que, portanto, a estipulação poderia valer para o passo anterior. Toda a gramática de Wittgenstein visa mostrar que a compreensão da compulsão lógica de p só é possível se p não depende de algo que o torne verdadeiro, e que um p que expressa uma regra tem função muito distinta de um p que descreve fatos. 22

Entendo que o Tractatus já defendia o insight de que a lógica não depende de nada externo a si mesma (isto é, algo além de sua própria apresentação simbólica). Os Notebooks de 1914-16 começam com uma frase que é repetida no Tractatus: “a lógica deve cuidar de si mesma” (T 5.473). 22 Penso que esse é também o insight fundamental da filosofia da matemática nas PB. 21

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