[Ensaio] Jorge Luis Borges: artífice da Eternidade

August 19, 2017 | Autor: Claudia Peterlini | Categoria: Literatura Latinoamericana, Literatura argentina
Share Embed


Descrição do Produto

Jorge Luis Borges: artífice da Eternidade 1 Claudia Peterlini . . .

Se perpassasse por seus cinquenta anos de produção literária, poderia discorrer acerca de um

Jorge Luis Borges que foi múltiplo, ou acerca desse mesmo Borges, que por sua vez, é único. Creio me ater nesse uno, artífice de uma arte que se move serenamente entre realidade e ficção, transcorrendo temporalidades e tangenciando o fantástico no ponto exato da vertigem. Sereno e preciso no manuseio da linguagem, Borges a toma, em contrapartida, como elemento perturbador dos sentidos da realidade e da razão. Vertigem, incorrer em sua linguagem é deixar-se absorver e devanear em seus labirintos. Lembro-me repentinamente de uma passagem de Sartre em que, ao refletir sobre a obra literária, nos lança uma espécie de alerta: “Você é perfeitamente livre para deixar esse livro sobre a mesa. Mas uma vez que você o abra, você assume a responsabilidade”2. A responsabilidade de trazer à existência objetiva uma espécie de “desvendamento” que o escritor empreende por meio da linguagem. Abri Borges várias vezes. (Tú que me lees, ¿estás seguro de entender mi lenguaje?

3

– A indagação ressoa, interferente). Alguns de seus

escritos me entorpeceram, fizeram-me parar, e por vezes retroceder àquela linguagem, àquelas linhas que culminaram, para mim, em algo que agora me parece como uma súbita suspensão de tempo e lugar, suspensão do acontecer, uma paralisia de sentidos diante da realidade que ele propôs e que eu me dispus a entrar. Um lapso, um instante de tomada de consciência. Encontrei nesse i nstante, nesse lapso meu, a idéia de eter n i d a d e em Borges.

!

¿Cómo pude no sentir que la eternidad, anhelada con amor por tantos poetas, es um artificio espléndido que nos libra, siquiera de manera fugaz, de la intolerable opresión de lo sucesivo? 4

!

A eternidade como uma instância desejada de tempo, através da própria essência inapreensível do tempo. Não se trata a eternidade, em Borges, de uma categoria temporal cuja acepção poderia se aproximar da idéia de uma “duração interminável”, mas sim de um esfacelamento da própria idéia de tempo, da noção de duração, esta, sem princípio nem fim … A eternidade residiria, dessa forma, na suspensão da consciência racional de tempo, deste sucessivo, e na subsequente tomada de uma consciência do tempo, que irrompe, quase inapreensível, na fugacidade do instante. Seria ainda a eternidade, essa consciência intempestiva do tempo capaz de prolongar esse instante … Teria sido em Ensaio apresentado à disciplina Literatura Ocidental II, do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina. Dezembro, 2014. 1

2

SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? Ática: São Paulo, 1989.

BORGES, Jorge Luis. La Biblioteca de Babel (p. 99). In: BORGES, Jorge Luis. Ficciones. 4 Ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2012. 3

4

BORGES, Jorge Luis. Historia de la Eternidad (Prólogo, p. 9). Buenos Aires: Debolsillo, 2011. !1

um desses fugidios instantes, que Borges se suspeitou possuidor do “sentido reticente ou ausente da inconcebível palavra eternidade”. Sentiu-se “morto”, sentiu-se como quem percebe “o abstrato do mundo”, revela, em um momento de verdadeiro êxtase de uma insinuação possível de eternidade. Ao tentar significar este momento, este instante em que a eternidade se insinua, Borges desenha, antes, o cenário desta intermitência, descreve o âmbito e narra sua circunstância, quiçá, para poder retornar a este instante, quiçá para apreendê-lo, ou simplesmente fixá-lo, como uma imagem em um ponto de tempo. Foi quando saiu a caminhar e recordar, em Barracas, sem rumo, apenas aceitando os “convites obscuros da casualidade”. Observa o espaço de sua infância na capital argentina, descreve a simplicidade de seus acontecimentos e, a partir de sua memória, o reconhece como sendo o mesmo de trinta anos atrás, vislumbra uma realidade em que passado e presente se apresentam simultâneos aos sentidos, indiscerníveis. Concebe assim o tempo como uma representação, e uma ilusão, na medida em que “a indiferença e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e outro de seu aparente hoje, bastam para desintegrá-lo”. Seria essa desintegração das “prováveis águas do tempo”, da coerência de uma suposta linearidade, o irromper da eternidade. “A eternidade, cuja cópia despedaçada é o tempo”. A eternidade, concebe ainda Borges, é um arquétipo do tempo.

!

El tiempo es um problema para nosotros, um tembloroso y exigente problema […]; la eternidade, un juego o una fatigada esperanza.5

!

Como um tenebroso e exigente problema, Borges concede ao texto literário a experiência do tempo. A eternidade, arquétipo do tempo e um jogo, torna-se um recurso que remete ao tempo, o problematiza e o coloca em evidência. Um recurso, um artifício portanto, que intenta aniquilar o sucessivo, essa consciência de tempo. A tentativa de suspender o tempo, de esfacelar a duração linear, a origem e o fim, Borges empreende por intermédio, naturalmente, da linguagem. A eternidade torna-se, dessa forma, matéria compositiva de suas narrativas, dentre elas destaco As Ruínas Circulares e O Jardim de Veredas que se bifurcam. Assim, a circularidade do tempo, o eterno retorno, a bifurcação do tempo, a imagem do labirinto, o espelho, ou duplo, estes temas tão caros à Borges, são também estes recursos, os quais não somente compõem os conteúdos destas narrativas, como também compõem-se, formam-se, através da própria linguagem e da forma do texto. Na materialidade do texto, o tempo cíclico, ou ainda, o eterno retorno, são como movimentos contínuos e circulares que recaem perpetuamente no retorno de momentos, em uma permanente sequência de ciclos repetitivos. Um tempo simultaneamente sem medida e desmedido. Borges assim o faz em suas Ruínas Circulares através do sonho, no qual não temos noção do princípio e do fim, mas concebemos que se fecha em um círculo, embora infinito, ainda que inapreensível, deve haver um primeiro sonhador, – e um último! –, pensamos vertiginosamente. Inserida nesta circularidade do tempo, a idéia do duplo como projeção de um indivíduo que parte dele mesmo, um sonhador que

5

Ibidem. (pag. 13). !2

projeta um indivíduo projetando-se a si mesmo. Portador de substância autônoma, alheio ao seu sonhador, partilha ainda como ele uma identificação, como sua projeção. Ambos são, pois, o espelho de si mesmos. Reflexos que levam ao infinito … o sonhador é, afinal, projeção de outro sonhador, e assim sucessivamente, ou melhor, ciclicamente, na medida em que concebemos a probabilidade daquele ser mágico, projeção de um sonho, também vir a sonhar um outro ser …. Circular, o relato em si concebe um ciclo, sua forma conforma um círculo, mas este se rompe diante da perspectiva de outros ciclos, similares e repetitivos, indefinidamente, aos quais se superpõe um ciclo maior e inapreensível, aquele que se fecha em um provável, embora inconcebível, primeiro e último sonhador. Um adendo, Borges parece se valer, ainda, da concepção própria de tempo da Gnose6, “cuja verdade”, complemento a partir de Agamben (2008)7, “se encontra no átimo de brusca interrupção em que o homem se apossa, com um súbito ato de consciência, da própria condição de ressurrecto” . Este átimo, este instante, é concedido ao sonhador na narrativa ao antever sua condição de projeção do sonho de outrem – condição de ressurrecto, que pressupõe um recomeço –, é precisamente neste instante, na narrativa, que o ciclo se rompe ad infinitum … Com efeito, a construção do tempo circular n'As Ruínas Circulares incide na própria desconstrução da concepção racional e linear de tempo. A narrativa não exclui o tempo sucessivo, insinua-o tacitamente como um possível tempo transcorrido na história. “Meia-noite”, “nove ou dez noites”, “antes de um ano”, “dois anos”. Um tempo possível, plausível e realizável, tão verossímil que de pronto é suspendido, aniquilado no instante do fechar e do romper de um ciclo. Ad infinitum … Ainda que de maneira fugaz, a eternidade, entrelaçada com a linguagem, tornase o fio, a matéria que tece o texto d'O Jardim de Veredas que se bifurcam. Este jardim, um devaneio através da linguagem, adquire contornos claros e (im)precisos na imagem de um labirinto. “Um labirinto de símbolos”, que por sua vez, é “um invisível labirinto de tempo”. Falo do texto e falo do Jardim. A imagem deste labirinto que inspira a narrativa, partilha com esta sua forma. Estruturada como um labirinto, a narrativa se bifurca em histórias que parecem correr em paralelo, bifurca-se em um ponto no enredo que se apresenta como casualidade, um encontro fortuito, contingente em tempo e espaço, mas que logo se interpõem, compondo um emaranhado de causas e efeitos. Causalidade que se principia ainda em ramificações diante da imagem do jardim de Ts’ui Pên, este labirinto de símbolos dedicado a tecer um labirinto de tempo. Passado, presente e futuro dimensionam o espaço-tempo desse universo labiríntico, tensionando o sucessivo, o tempo contado no relógio, este preciso e milimétrico, do qual esse universo se precipita. Milimétrico tempo, a “intolerável opressão do sucessivo” é experimentada visceralmente pelo narrador, que antevê com precisão, fadiga e consentimento, sua condição de “detido” ou “assassinado”. Em um lapso, deixa-se devanear pela insurgente imagem de um labirinto, imagem que irrompe o presente trazendo consigo ecos do passado e rumores de futuro. O tempo irrompe. “Absorto nessas ilusórias imagens”, sentiu-se “por tempo indeterminado, com 6

Há, nas Ruínas Circulares (1999), menção à Gnose (p. 502), por isso a pertinência deste adendo.

AGAMBEN, Giorgio. Tempo e História. Crítica do Instante e do Contínuo. In: AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 7

!3

percepção abstrata do mundo” … revela. Um instante que se prolonga como percepção abstrata do mundo,  constitui a própria concepção do “Jardim de Veredas que se bifurcam” de Ts’ui Pên. Este labirinto que concebe a possibilidade de diversos caminhos, diante do instante em que um homem se defronta com diversas alternativas. O instante irrompe desintegrando a concepção de tempo, despedaçando-o em bifurcações de tempos possíveis, “diversos futuros”, “tempos que também proliferam e se bifurcam” … Fazendo do tempo sucessivo um contingente, em que tempos se bifurcam em tempos que se bifurcam em tempos … ao infinito, à essência inapreensível do tempo. Esse Jardim de Ts’ui Pên não é apenas uma bifurcação do Jardim de Veredas que se bifurcam, mas sim uma espécie de duplo do próprio conto, uma projeção do conto sobre si mesmo … um labirinto de símbolos e um invisível labirinto de tempo. O Jardim de Veredas que se bifurcam é, como na ilusória imagem do narrador, um “labirinto de labirintos”. De sua linguagem labiríntica, podemos concluir com o próprio Borges,

! !

la eternidade es una imagen hecha con sustancia de tiempo.8 … esse construtor de labirintos, artífice da eternidade . . .

! !

! ! Referências

!

AGAMBEN, Giorgio. Tempo e História. Crítica do Instante e do Contínuo. In: AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

!

BORGES, Jorge Luis. As Ruínas Circulares. In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Volume 3. São Paulo: Globo, 1999.

!

_______. O Jardim de Veredas que se bifurcam. In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Volume 3. São Paulo: Globo, 1999.

!

_______. La Biblioteca de Babel (p. 99). In: BORGES, Jorge Luis. Ficciones. 4 Ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2012.

! _______. Historia de la Eternidad. Buenos Aires: Debolsillo, 2011. ! SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? Ática: São Paulo, 1989.

8

BORGES, Jorge Luis. Historia de la Eternidad (p. 13). Buenos Aires: Debolsillo, 2011. !4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.