Ensaio sobre a Natureza-morta e Intuições ético-estéticas sobre a leitura de Coetzee

July 1, 2017 | Autor: Lorrayne Colares | Categoria: Animal Ethics, Philosophy of Art, J. M. Coetzee, Still Life
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ENSAIO SOBRE A NATUREZA-MORTA E INTUIÇÕES ÉTICO-ESTÉTICAS SOBRE A LEITURA DE COETZEE Lorrayne Colares, 2014

O termo natureza-morta tradicionalmente aplica-se tanto a pinturas, desenhos e fotografias nas quais são representados objetos ou seres inanimados com o objetivo de ressaltar as qualidades de suas formas, cores, texturas e composições. Sendo assim, em tais obras encontramos diversas representações tanto de objetos naturais como objetos criados pelo homem, tais como comidas, frutas, flores, instrumentos musicais, utensílios domésticos, armas, caveiras e ossos, livros e demais objetos da vida privada, mas também representações dos assim considerados “seres inanimados”, ou seja, de animais mortos e vivos (sendo que na maior parte das pinturas eles estão mortos, e quando são representados animais vivos eles costumam estar interagindo com carnes e/ou cadáveres de outros animais), contudo tal classificação não inclui a representação de cadáveres humanos. Esse um gênero de representação artística que existe desde a Grécia Antiga e que possui grande importância na tradição pictórica. Segundo Norbert Schneider (2009), desde sua origem até a Idade Média a natureza morta foi considerada uma espécie de arte inferior devido ao fato de se ocupar com a representação de “formas de vida mais inferiores, ou simplesmente da natureza inanimada” (SCHNEIDER, 2009, p.8). Schneider chega inclusive a mencionar a Árvore de Porfírio, segundo a qual haveria uma hierarquização da evolução das coisas partindo de objetos inanimados ou não corpóreos, seguido dos corpóreos, dos seres animais e sensíveis e, por fim, estaria o homem. Entretanto, foi apenas em meados do século XVI que a natureza-morta passou a ser vista enquanto um gênero artístico independente. Em relação aos nomes que esse gênero artístico é conhecido pelo mundo, podemos observar pelo menos duas ramificações etimológicas. O termo em inglês “still life” teria surgido do termo holandês “stilleven”, que significava originalmente “objeto inanimado ou natureza imóvel. Já o termo que conhecemos em português, a dizer “natureza-morta”, se originou do termo francês “nature morte”, sendo que na França tais pinturas também eram conhecidas como “objetos imobiles”. Sendo assim, é possível observar um certo consenso em relação à imobilidade e à inanimidade das figuras representadas. A partir do Renascimento, e, sobretudo no século XVII, houve o período auge da representação de naturezas-mortas, principalmente devido ao advento da ciência e da vida moderna que por sua vez pregava uma valorização da representação da natureza tal como ela é observada.

Sendo assim, tanto a arte naturalista, quanto as naturezas-mortas e os desenhos científicos foram muito valorizados nessa época. Outro fator que influenciou esse acontecimento foi o fato de que muitos artistas no século XVII terem sido proibidos de pintar imagens religiosas por causa da Reforma Protestante. Pois, apesar da natureza-morta estar ligada desde os primórdios a uma representação realista dos objetos e a uma certa competência do uso da técnica, isso não significa que muitos de seus artistas utilizavam esses temas e objetos para representar símbolos de reflexões morais, políticas e religiosas. A maioria das naturezas-mortas, principalmente as anteriores ao século XVIII, contém frequentemente simbolismo religioso e alegórico em relação aos objetos e seres representados. Sendo assim, os holandeses da época da Reforma pintavam flores, cujas cores simbolizavam sentimentos, e animais, como a mariposa que representavam a ressureição e a transformação, como a libélula que representava a fugacidade e como as formigas que representavam o trabalho. Flores murchas e frutos em processo de degradação eram motivos que simbolizavam a brevidade e a efemeridade da vida e do corpo. Os cortes de carne, por exemplo, eram associados ao desejo, à tentação e aos prazeres carnais. Cenas de cortes de animais também eram relacionadas aos sacrifícios, que por sua vez eram associados à paixão de Cristo. As cenas de cozinha simbolizavam a economia doméstica e a satisfação da sociedade burguesa, além do espaço social no qual eram presentes hábitos tais como a caça e a pesca dentro dos ambientes aristocratas. Chegando até mesmo ao ponto de diante do medo da fome e da pobreza que sempre assolou a Europa, possuir quadros de naturezas-mortas com imagens de alimentos e animais mortos representava também status para as famílias mais ricas. A partir XIX há uma queda da importância das pinturas de natureza-morta na história da arte, apesar de nunca terem deixado de existir e importantes pintores, como Cézanne, terem se ocupado desse gênero artístico e dado novos significados a essa técnica. O que aconteceu, na realidade, é que nos três últimos séculos o significado da natureza-morta evoluiu devido ao próprio fato do significado dos objetos e da experiência subjetiva causada por eles terem se alterado. A invenção da fotografia, por exemplo, causou muito impacto sobre essa técnica, e, por outro lado, permitiu com que muitos artistas pudessem explorar aspectos que não os da “imitação do real”. E já na arte contemporânea ocorreu a inclusão e utilização de outros suportes à natureza-morta, tais como esculturas e instalações. Temos então, mais do que em qualquer outra época, a possibilidade de questionar muitos dos estatutos imagéticos tradicionais, e, sendo assim, lanço mão do questionamento: A natureza não é morta, nem está morta, nós a matamos todos os dias, a matamos cada vez que consideramos um animal como um objeto, cada vez que não permitimos que sejam

portadores de um alma, cada vez que os simbolizamos como carne e, até mesmo, quando vemos seus olhos sofridos representados por uma imagem e passamos despercebidos sem qualquer emoção. Refletindo a partir da frase de J. M. Coetzee na qual ele afirma que “a seriedade, para certo tipo de artista, impõe a necessidade imperiosa de se estabelecer uma ligação entre estética e ética” (Giving Offense: Essays on Censorship) e de algumas obras artísticas, levanto algumas considerações. Coetzee parece sugerir que a mera consciência ética a respeito do sofrimento dos animais não move o ser humano a agir contra esse sistema, sendo assim, ao longo de todo a obra A Vida dos Animais, através da personagem Elizabeth Costello, ele desenha a imagem de uma artista séria, velha, cansada de perder tempo e que recorre à emoção e não ao discurso acadêmico em sua comunicação. Sendo assim, a escrita de Coetzee (e, por sua vez, o discurso de Elizabeth) é extremamente imagética, e a todo momento suas analogias e referências recorrem a emoção e a imaginação do leitor, como, por exemplo, quando Coetzee retrata uma relação de semelhança entre os horrores de Treblinka e os empreendidos pela indústria da carne. Além disso, a escolha pela emoção não é uma escolha por uma irracionalidade, pelo contrário, é uma escolha mais rica, para que não nos reste uma razão meramente tautológica. Precisamos de uma racionalidade que não analise apenas o ser homem e o ser animal através de categorias abstratas e antropocêntricas, mas que também nos permita entender o ser para o homem e o ser para o animal e, sendo assim, respeitar todas as formas de existência em suas plenitudes. Elizabeth defende que precisamos abrir nossos corações, que precisamos ser capazes de relações simpáticas e aprender a nos imaginarmos como os outros e percebermos pelo pensamento o ser dos outros. E, mais, que não façamos isso apenas com nossos gatos, ou outros animais domésticos com os quais estamos mais familiarizados. Sendo assim, na segunda palestra, Elizabeth Costello analisa o poema de Hughes, e afirma que os seus poemas tais como um registro de um compromisso poético para com os animais podem nos ensinar muito mais do que ele sabe. A arte pode nos ensinar muito mais do que o artista sabe, a arte pode nos permitir que nos tornemos os outros, através de uma experiência estética. Sendo assim, acredito que seja possível elencar inúmeros exemplos na história da arte nas quais a obra em si pode nos ensinar muito mais do que seus criadores jamais pudessem imaginar. Pensando nisso, mil imagens vieram-me à cabeça, visualizei o quadro de Rembrandt (figura 1) e pensei no quão é tão natural (e, por isso mesmo, completamente anti-natural) imaginar a criança

que já aprendeu a olhar pra morte com indiferença. Me recordei ainda do boi esfolado (figura 2) representado em primeiro plano e de toda a perturbação que essa imagem me causa mas não parece causar na mulher representada ao fundo, e perturbação maior ainda é saber que pintar em matadouros já foi algo comum enquanto motivo pictórico. E mil figuras continuavam a surgir, as penas e os pêlos dos animais de Chardin (figura 3) que brilham intensamente apesar de estarem mortos e assim toda a discussão sobre a alma animal. Pensei no olhar da ovelha, do cão, dos peixes e perus de Goya (figuras 4 - 7) e cheguei à conclusão de que não importa se esses artistas eram vegetarianos, ativistas ou não, o que importa é que através da arte eu, enquanto ser humano, sou capaz de sentir através da obra de outro ser humano (do artista sério de Coetzee) esses animais enquanto seres plenos. E é assim que através de experiências estéticas eu vejo a ética com outros olhos.

(Figura 1: Rembrandt. Still life with two Peacocks and a Girl. 1639)

(Figura 2: Rembrandt. Slaughtered Ox. 1655)

(Figura 3: Jean-Baptiste-Siméon Chardin. A Green Neck Duck with a Seville Orange)

(Figura 4: Goya. Still Life With Sheep's Head. 1808-1812)

(Figura 5: Goya. The Dog. 1819-1823)

(Figura 6: Goya. Still Life with Golden Bream. 1808-1812)

(Figura 7: Goya. Plucked turkey and pan with fish. 1808-1812)

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