Ensaio sobre Design e as Artes

June 7, 2017 | Autor: Ed Sarro | Categoria: Design Research, Culture, Arte
Share Embed


Descrição do Produto

ENSAIO SOBRE DESIGN E AS ARTES.

Ed Marcos Sarro
Mestre em Design e Arquitetura (FAU/USP)
Doutorando em Ciências da Comunicação (ECA/USP)
Professor de desenho e representação gráfica nos cursos de Design e Engenharia da Universidade São Judas Tadeu – SP, Brasil.

Design: desejo, desígnio, desenho. Desde muito cedo o desenho faz parte da nossa vida; registro gráfico de nossas primeiras incursões na exploração do espaço físico que nos cerca: seja ele o papel, a parede de casa ou o sofá da sala, o desenho parece fazer parte de forma muito íntima do nosso pulsar primeiro de vida. Vida que nasce sedenta de vida mesma e que vai desejando tudo o que ela pode proporcionar, dentro dos desígnios que a existência nos impõe e nos apresenta aos olhos; não sem um pouco de sedução. Sedução essa tanto do olhar quanto do toque (que desenho é toque e olhar fundidos) que levou nossos ancestrais a querer possuir – ainda que em imagem do desejo – os animais que viam ao seu redor e dos quais dependiam para sobreviver; ou outros, cuja imagem era bem conhecida e temida, que eram ameaça à própria sobrevivência: ter a imagem do animal era como dominar um pouco o medo que se tinha dele.
Assim, surge em tempos imemoráveis a figura(!) do primeiro designer visual, profissional dedicado a desenhar de forma eficaz os animais para caça, os predadores a evitar, o registro de caçadas e guerras, ou seja, a crônica visual da vida do clã. Misto de feiticeiro e artista pode ser considerado o primeiro exemplo de atividade profissional com fim específico, especializado e essencial: através do seu trabalho se contava aos jovens a história da tribo, tendo sua arte como recurso instrucional, além de servir como referência visual para o treinamento nas artes da caça e da guerra. A arte servindo às artes. Artes servindo à Vida.
Mas a vida não para e os homens não param dentro da vida e na vida, sendo que uma geração vai sucedendo a outra, numa dança de chegadas e saídas que vai deixando marcas na própria vida, indícios desses passos, sinais de orientação de quem vai para quem chega, tanto para os olhos quanto para o toque. Se a arte é a expressão da alma, alma essa que se "anima" e deseja (porque viver é ir desenhando uma trajetória na existência em direção aos desígnios inexoráveis do estar vivo) então a arte é ao mesmo tempo forma e função da alma que vive, não só nos sonhos mas no estado de vigília. Assim, a alma humana vai empreendendo sua jornada sobre a face da Terra, alargando sua visão e aumentando seus conhecimentos bem como sua consciência de si mesma e do outro.
O homem ama, odeia, ri, chora, mata, morre, guerreia, conquista, ora, ri, chora, diverte-se e reflete, refletindo-se, imprimindo nas coisas e nos lugares por onde passa os sinais de sua alma inquieta, através do engenho e da arte. E como o que os olhos não veem o coração não deseja (já dito pela sabedoria popular) esse fazer da vida, esse construir da história se vai consolidando num contínuo pulsar de imagens, cores e formas, impregnando as coisas práticas do dia-a-dia das instâncias da alma. Se os olhos são as janelas da alma, então são eles os principais pontos de entrada (e saída?) para as coisas que nutrem a alma e a motivam a prosseguir: pôr-do-sol, sorriso de criança, rosto da pessoa amada, bandeira da pátria, paisagens da infância, cores do time do coração, luzes da cidade, formas do desejo, signos da ideologia, imagens do paladar, indícios do perigo e cifras da economia: economia não só de valores, mas de imagens que pululam ao nosso redor solicitando nossa atenção e nossa aderência. Imagens que geram valor e lucro, mas que podem levar ao vício e à ruína. Imagens com desígnio. Imagens visuais (mas não só), que nos falam de desejo e satisfação, quase sempre com arte, seja ela boa ou não. Porque nem toda a arte é essencialmente boa.
Quando os homens criaram a indústria e revolucionaram as formas de resolver seus problemas diários através de produtos baratos, produzidos em larga escala, dentre esses problemas estava a necessidade de arte, de alimentar a alma com arte. Assim, também a arte virou um produto industrial, incorporada à forma visual e à função das coisas fabricadas, ou arte industrial mesmo, "kitsch", imitando infinitamente, via máquina, aquela arte que só o artista habilidoso sabia fazer, com a alma e o coração. Mas nem sempre foi assim: os homens ricos, que começaram a produção em larga escala foram se cercar de artistas para desenhar o visual e a forma tanto das suas fábricas quanto dos produtos que se faziam nelas, reproduzindo assim o repertório do burguês mecenas que os precederam, única referência que tinham. Fábricas que, como escreveu Francesc Petit, ainda hoje continuam a ser obras de arte, tanto que mesmo não gerando mais produtos industriais, algumas acabaram se tornando centros culturais onde se produzem conhecimento e arte. Os mesmos conhecimento e arte que nos tempos das cavernas se cristalizavam na sílica, hoje circulam no ciberespaço quase imaterial dos chips de silício refletidos no fulgor azulado da tela de computador, que nos hipnotiza. Fogueira fria na nova caverna virtual. Caverna essa meio que mágica, porque leva seus habitantes quase que à ubiquidade do olhar, sem, no entanto, sair do lugar onde está. O artista-bruxo na nova caverna cibernética já não precisa mais desenhar o animal para caça-lo: agora o olhar vai até ele, o "mata" e devora na forma de bytes que viajam através da webcam, pequeno ciclope docilmente assentado na CPU do computador.
Nessa taba global, do desenhista pagé cibernético, que faz o rito de passagem visual do humano ao pós-humano, o poder é de quem detém a marca, o signo, o controle sobre o objeto do desejo dos olhos e do coração, para o bem ou para o mal. Aqui, a mulher de César não precisa mais parecer virtuosa, mas ser virtual. Na verdade, não precisa ser nem mulher, e talvez nem ser alguém de fato, pois o Photoshop, o Maya ou algum outro programa de computação gráfica poderão cria-la à imagem e semelhança de alguma top model do momento. Para ser possuída, ainda que em imagem, por um exército de leitores sequiosos de uma revista masculina e circulação planetária. Planetária sim, porque o suporte não é mais a fibra física do papel, mas a luz colorida RGB que circula nos neurônios artificiais desse grande cérebro coletivo chamado internet, onipresente e onisciente, pseudo-deus pagão que exige em sacrifício crianças, cartões de crédito e horas de sono.
Nesse mundo eminentemente visual e de miragens eletrônicas que imitam oásis, as crianças já não podem fazer "arte" como fazíamos ao nosso tempo: as janelas do vizinho Bill Gates não se quebram, pois não são de vidro. A arte fica por conta dos novos Leonardos, adolescentes de quarenta anos a criar os labirintos virtuais dos games onde se matam os minotauros sem sujar o carpete. Mas como não há nada totalmente bom ou mal de si mesmo, no nascer desse admirável mundo novo continua o designer visual a beber da boa arte para produzir arte, seja ela em que forma e suporte forem; desenhando os mapas para os navegadores de hoje. Mapas de papel, mapas de luz, mapas para as estrelas.
[email protected]


PETIT, Francesc. Marcas e meus personagens. São Paulo: Editora Futura, 2003.


2


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.