ENSAIO SOBRE O SAGRADO E O POLÍTICO EM COMUNIDADES DE TERREIRO

June 3, 2017 | Autor: Guilherme Nogueira | Categoria: Candomblé, Orixás, Comunidades de Terreiro
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ENSAIO SOBRE O SAGRADO E O POLÍTICO EM COMUNIDADES DE TERREIRO Guilherme Dantas Nogueira1 Resumo O presente trabalho busca explorar alguns elementos da constituição das comunidades de terreiro, que reúnem no Brasil os praticantes das religiões dos orixás. Essas comunidades são consideradas pelo Estado brasileiro como comunidades tradicionais e, portanto, uma vez reconhecidas formalmente, tornam-se beneficiárias de políticas públicas. Não obstante, as comunidades são formadas por meio de processos próprios, que seguem a lógica de elementos centrais das religiões dos orixás. A temática foi desenvolvida por meio da confrontação de conceitos da antropologia política com os mitos e fatos históricos da formação dos terreiros e de suas comunidades. O que se relata ao longo do texto é que sagrado e político coexistem nas comunidades, cada um desempenhando seu papel. Palavras-chave: orixás, terreiros, política. Introdução Mais do que filosofias orientadoras da devoção e de diversos aspectos da vida de seus praticantes, as religiões reúnem núcleos de vívida atividade social, visto abarcarem não somente conjuntos de práticas pessoais diversas, mas também locais de prática espiritual e vivência coletiva de seus adeptos. Esses locais são inúmeros e seguem a lógica da religião que lhes concebe. Assim, os católicos freqüentam missas em suas igrejas em todo mundo. Os cristãos protestantes assistem a seus cultos em seus diversos templos. Os muçulmanos vão regularmente à mesquita buscar o alimento espiritual de que carecem. E os seguidores das religiões dos orixás, como lhes denomina Prandi (2002), no Brasil vão aos terreiros pelas mesmas razões. Terreiros são, portanto, locais de prática no Brasil, das religiões de matriz africana, originárias, sobretudo, mas não exclusivamente, do chamado povo iorubá, cujo grande contingente desembarcou nas Américas à época da colonização, em função do trabalho escravo. Os orixás, por sua vez, são as divindades cultuadas por esse povo, tanto na África quanto em alguns dos países que lhes receberam em função dessa diáspora, como Cuba e Brasil (PRANDI, 2002). Embora originários dessa mesma matriz africana, os ritos e crenças iorubás assumiram formatos distintos nesses países, dado aos diferentes contextos locais com que se depararam e com os quais passaram ao longo do tempo por processos de influências mútuas (SANTOS, 2009). No Brasil podem ser identificados principalmente como os cultos de candomblé, por vezes também chamados por outros nomes como macumba no Rio de Janeiro ou xangô no estado do Recife. Esses cultos podem, ainda, variar internamente no Brasil, em função da tradição que seguem ou dos desígnios de seus sacerdotes. Não obstante, a presença de elementos centrais, como o culto aos orixás, a arte da comunicação entre os homens e aqueles por meio do jogo de búzios e o sacerdote capaz de realizar tal jogo são elementos centrais. Outro elemento importante que se soma a esses é o fato de serem essas religiões iniciáticas. 1

Mestrando em Ciências Sociais com especialização em Estudos Comparados sobre as Américas, pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas, da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected].

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Ou seja, o praticante deve passar por um processo de iniciação, em que passa a fazer parte da comunidade formada pelos outros praticantes – chamados de filhos de santo –, recebendo nessa um papel a desempenhar, de acordo com os desígnios do orixá de que se crê descendente (BRAGA, 1998). A soma dos filhos de santo, reunidos em um terreiro e liderados pelo sacerdote desse, que é o pai de santo – ou mãe de santo, caso se trate de uma mulher – forma a comunidade do terreiro. Essa, por sua vez, pode ser reconhecida legalmente no Brasil como uma comunidade tradicional, em um processo de apreciação de pedido realizado pelo governo federal, no seio da “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais” (PNPCT). Embora possam ser consideradas centrais na formação cultural brasileira, as comunidades de terreiro ainda são pouco estudadas pela academia desse país. Entende-se aqui, não obstante, que estudos que lhes enfoquem não beneficiam somente à ciência, por meio do enriquecimento de seu conjunto de conhecimentos, em particular no que tange à temática aqui trabalhada, cujas publicações são escassas. Mais adiante, beneficiam ao próprio Estado brasileiro, que poderá contar com mais uma fonte a que recorrer tanto para a compreensão de sua própria formação, quanto para a formulação e avaliação de suas políticas; e beneficiam às comunidades de terreiros, visitadas a partir da perspectiva da ciência, que pode lhes auxiliar, dentre outros, em seus pleitos por reconhecimento político e social. Uma vez identificadas como comunidades tradicionais, as comunidades de terreiro passam a ser beneficiárias de políticas públicas, podendo, inclusive, trabalhar como articuladoras dessas. Mais adiante, tornam-se núcleos institucionalizados e reconhecidos pelo governo federal brasileiro, com o qual passam a se relacionar continuamente. Nesse sentido, é de se esperar que possuam um sistema de organização interna, que deve ser estabelecido em seus próprios termos. Seguindo essa linha, busca-se nesse trabalho explorar, a partir da perspectiva da antropologia política, as relações entre o poder político e o religioso nas comunidades de terreiro. Trata-se de uma análise breve e que não esgota a temática, dado a proposta ensaística do trabalho. Metodologia Trata-se de um estudo bibliográfico, que visa levantar aspectos das relações entre o poder político e o poder religioso nas comunidades de terreiro. Para tanto, é necessário, antes de tudo, conceituar tais poderes, para, a partir disso, começar sua exploração. Há dois elementos dispersos, que devem ser considerados. O primeiro deles é o próprio poder político exercido no âmbito da comunidade de terreiro. E o segundo é o fator religioso, central nesse tipo de comunidade, que se estabelece em torno da religião. Ao passo que no governo de um Estado dito moderno, como o brasileiro, a liderança religiosa já foi separada de outras, como aquela da política, o mesmo não se observa inicialmente nas comunidades de terreiro, que tem em seu principal sacerdote, o pai ou a mãe de santo, seu único líder máximo. Parece resultar disso que cabe ao sacerdote governar as comunidades por meio dos dois tipos de poder, tanto o político quanto o religioso. Dumont (1992) busca diferenciar essas duas esferas explicando que a política se encarrega do domínio da força. Cabe a ela o controle sob o domínio daquilo que é material e que existe fisicamente sobre o território a que se circunscreve. Por outro lado, à religião cabe o domínio do imaterial e eterno – ou do sagrado. Em outras palavras, o poder político se ocupa daquilo que existe materialmente e o religioso, do que existe imaterialmente. Essa diferenciação é central para esse trabalho, em que se verifica os aspectos do governo das comunidades de terreiro. Essas são lideradas, como se colocou acima, por seu 2

sacerdote, que exerce efetivamente apenas o poder religioso sobre as mesmas, dado o fato de não ser esse um líder político no sentido do domínio da força dentro da comunidade. A verdade é que o sentido de governo que aqui se apresenta não é aquele mesmo compreendido pelo direito brasileiro, que reconhece apenas o governo central do Estado – que exerce o poder político – como legítimo. Nessa linha, o único domínio que resta às comunidades de terreiro é, exatamente, o religioso, de que se faz soberano o pai ou a mãe de santo. Sendo assim, ao se falar em governo em comunidades de terreiro, fala-se em um governo religioso, o que não deve ser confundido com um Estado teocrático. Para Dumont (1992), sejam existindo de maneira separada ou conjunta em um mesmo governante, ambos os poderes político e religioso fazem parte daquilo que seria o poder de um rei, ou de um soberano. Ambos conferem um domínio régio a seus detentores. Não obstante, podem estar separados, como ocorre no Brasil e é também observado nas relações do governo com as comunidades de terreiro. Uma prova cabal disso é o fato de que essa titulação, ainda que auto-identificada, só é efetivamente concedida pelo Estado, que o fará por meio de seus processos formais, legalmente instituídos. Um fato importante a que essa constatação parece chamar a atenção é aquele que aponta para o universo de classificações feitas pelo Estado e pela própria sociedade. O Estado precisa estabelecer conceitos – classificar – para que possa orientar sua ação. No caso das comunidades tradicionais, isso é feito por meio da definição dessas. De acordo com o decreto presidencial 6040, de 08 de fevereiro de 2007, essas se tratam de grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007, artigo 3, parágrafo I).

Ainda que essa classificação seja ampla, pode-se conceber que não abarque detalhes importantes para as comunidades de terreiro. Ou, em outros casos, que uma comunidade de terreiro se identifique como tal, mas não seja assim reconhecida pelo Estado, em seu processo de concessão da identificação como comunidade tradicional. Disso resulta haver um potencial conflito na interação entre Estado e comunidade de terreiro, poder político e poder religioso, se vistos nesses termos. Resultados e discussão À luz do conceito de comunidade tradicional – que se aplica da mesma maneira a uma comunidade de terreiro – o esforço que se empreende a seguir é o de explicar como funciona internamente uma comunidade de terreiro. Isso passa inicialmente pela compreensão da dinâmica das religiões dos orixás. Prandi (2002) conta que, de acordo com a mitologia dessas religiões, um orixá mensageiro denominado Exú desempenhou o papel sagrado de reunir, durante suas andanças pelo mundo, uma coleção de problemas que afligiam a todos, tanto homens quanto orixás. Nessa busca, Exú teria sido orientado a reunir também os problemas que afligiam aos animais e outros seres que, junto ao homem habitavam a terra. Toda e qualquer narrativa de guerras e problemas, conquistas, derrotas e vitórias, bem como todo e qualquer drama, juntamente com sua solução, deveria ser reunido por Exú. Como resultado, esse orixá teria reunido 301 histórias, o que era considerado um número incontável pelos iorubás antigos. De posse dessa coleção, Exú passou a ter consigo o conhecimento necessário para a solução de todo e 3

qualquer problema que se apresentasse na face da terra. Para os iorubás, nada pode acontecer de novo que já não tenha acontecido alguma vez no passado. De modo que todos os problemas do presente podem ser endereçados pela mesma solução do passado, a que passou a ter conhecimento o orixá Exú. Prandi (2002) segue explicando que tal conhecimento foi repassado por Exú a Ifá, que se tratava de um adivinho também chamado de Orunmilá. Por sua vez, esse lhes repassou aos sacerdotes do oráculo de Ifá, seus seguidores, que são homens denominados pais do segredo, ou babalaôs, pelos iorubás. A figura do babalaô já não mais existe no Brasil, tendo sido substituída pelo pai ou mãe de santo. Cabe a esse, todavia, seguir a tradição ancestral da adivinhação, sendo toda a mística dessas religiões organizada em torno desse processo. Braga (1998) explica, por sua vez, que durante o processo de iniciação de um novo membro nas religiões dos orixás cabe ao pai de santo, por meio do jogo de búzios, contar ao iniciante seu próprio caminho e o conjunto de regras que deverão balizar sua vida, uma vez iniciado (PRANDI, 2002). Mais do que o papel de sacerdote e adivinhador, cabe ao pai de santo exercer o papel de regente de seu terreiro, papel em que é empossado. Isso é feito dentro das regras milenares das religiões dos orixás, que são seguidas dentro dos terreiros. Há, portanto, uma hierarquia de poder dentro dos terreiros. E um de seus elementos centrais, que conferem ao iniciado “autoridade e força”, é sua idade. Por idade, não se deve entender apenas os anos de vida do iniciado, mas também seus anos de iniciado, ou anos de santo. Acredita-se que uma pessoa adquire mais conhecimento ao passo que se torna mais velha, sendo a velhice um fator de respeito (EUGÊNIO, 2011). Os terreiros foram formados no Brasil a partir do desembarque dos negros africanos no país, para o trabalho escravo (BRAGA, 1998). Fundaram-se com base nas indicações dos jogos de búzios, realizados pelos pais ou mães de santo, como se explicou acima. Por sua vez, esses exercem, como também já foi dito, o governo religioso dos terreiros e de suas comunidades, formadas por todos os seus filhos de santo. E as comunidades seguem, à sua forma, os preceitos sagrados de sua religião. Finalmente, deve-se aqui salientar que essa fórmula geral pode variar regionalmente, de um terreiro para outro, dado o fato de que os terreiros se encontram dispersos por todo o território nacional. Deve variar, também, tradicionalmente, dependendo da tradição específica que seja seguida pela comunidade, que pode ser aquela de Angola, Queto ou outras (IPHAN, 2009). Mais do que da ciência e ou de comunidades, deve ser interesse dos tomadores de decisão dentro dos Estados, entender os vários segmentos que formam suas sociedades, visto que, com isso, podem atuar de maneira mais assertiva. No Brasil, dado o processo de formação histórica do país, que foi diversificado, os segmentos sociais são múltiplos, e formam tanto grupos que racionalmente ignoram suas relações com seu passado, quanto comunidades tradicionais. As comunidades tradicionais são formadas por brasileiros assim compreendidos à luz das instituições nacionais. Não obstante, preservam as raízes de sua constituição original que, formalmente, não precisam conter elementos da burocracia pública estatal, nem essa precisa lhes considerar. O fato é que as comunidades tradicionais existem por força de sua tradição, que não depende do Estado para ser legítima. As comunidades de terreiro se adéquam perfeitamente a esse raciocínio. O que a dinâmica do jogo de búzios demonstra, dentre outras coisas, é que o processo de formação de um terreiro, bem como da escolha de seu líder, podem ser para os membros da comunidade deixados a cargo do divino. Efetivamente, é exatamente esse caráter religioso, que torna tal 4

liderança legítima. E é exatamente por ser legítima que tal liderança deve ser respeitada pelos membros da comunidade de terreiro, sendo seu governo, sagrado. Não obstante, as comunidades de terreiro fazem parte do Brasil, estando sujeitas a seu poder político. Ainda que existam apesar dele, é exatamente o reconhecimento estatal de uma comunidade de terreiro que lhe confere tal título. E é apenas a partir disso que, para o governo brasileiro, os direitos de uma comunidade de terreiro se tornam reconhecidos, beneficiando-se essas, com isso, de ações e políticas públicas para elas direcionadas. Considerações finais As comunidades de terreiro estão sujeitas aos desígnios de ambos os poderes, político e religioso. Fazem parte de sua constituição tanto os elementos do sagrado quanto aqueles da burocracia pública. Da mesma forma, ainda que apartados formalmente da esfera política, pode-se dizer que elementos do sagrado dos terreiros influenciam também ao próprio Estado, visto participarem em maior ou menor grau da vida de seus cidadãos, que, em conjunto constituem sua sociedade. O que se buscou nesse trabalho foi discorrer brevemente sobre a relação entre o político e o sagrado nas comunidades de terreiro. Esse mesmo estudo pode ser beneficiado por pesquisas mais aprofundadas, que podem focar, dentre outros, desde aspectos da administração interna dos terreiros, até a validade das políticas públicas direcionadas para essas comunidades. Efetivamente, esse resumo reúne elementos trabalhados na dissertação de mestrado do autor, que aprofunda a relação entre o sagrado e o político nas comunidades de terreiro. Concebe-se aqui que estudos dessa natureza são benéficos não apenas para a ciência como um todo, mas para o empoderamento das comunidades de terreiro, para a compreensão de diversos aspectos da formação do Estado brasileiro, e para a tomada de decisão de seus administradores. Referências bibliográficas BRAGA, Júlio. Fuxico de candomblé. Feira de Santana: UEFS, 1998. BRASIL. Presidência da República. Decreto 6040 de 08 de fevereiro de 2007. Institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. Diário Oficial da União. Brasília, 08 fev. 2007. DUMONT, Luis. “Apendice C: A concepção da realeza na Índia antiga”. Homo hierarchichus: O sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992. EUGÊNIO, Rodnei William. A senhoridade nos terreiros de candomblé. In: Jornal Maturidades. São Paulo: PUC São Paulo, 2011. Disponível em: . Acesso em 27 jan. 2011. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Inventário dos Terreiros do Distrito Federal e entorno: 1ª fase. Brasília: IPHAN, 2009. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001. SANTOS, Edson. Apresentação. In: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Inventário dos Terreiros do Distrito Federal e entorno: 1ª fase. Brasília: IPHAN, 2009.

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