ENSAIO SOBRE UMA PSICOLOGIA PORTUÁRIA E UMA ESTÉTICA DO DESATINO

May 26, 2017 | Autor: Elton Borba | Categoria: Friedrich Nietzsche, Estética, Psicologia, Filosofia
Share Embed


Descrição do Produto

112

ENSAIO SOBRE UMA PSICOLOGIA PORTUÁRIA E UMA ESTÉTICA DO DESATINO1 Elton Corrêa de Borba2 Meu Deus, o que é que esse menino tem? Já suspeitavam desde eu pequenino. O que eu tenho? É uma estrela em desatino... E nos desentendemos muito bem! (QUINTANA, M. Astrologia, 1981)

RESUMO: Neste artigo será abordada a questão da estética da existência do ponto de vista do desatino, ou seja, da falta de tino como crítica ao ideal racional predominante no pensamento psicológico. Esta psicologia predominantemente racional será aqui nomeada como psicologia portuária, por estar sob as forças de uma moral científica. A principal referência é a filosofia de Friedrich Nietzsche, utilizando-se de conceitos como o de forças ativas e reativas, bem como o conceito de transvaloração de todos os valores, para a construção de uma noção de psicologia de criação a partir do conceito de estética do desatino. PALAVRAS-CHAVE: estética do desatino, criação de valores, psicologia portuária, psicologia de criação. ABSTRACT: This article will address the issue of aesthetics of existence of the folly of view, ie, the lack of critical acumen as the prevailing rational ideal in psychological thinking. This predominantly rational psychology is here named harbor psychology, being under the forces of a scientific morality. The main reference is the philosophy of Friedrich Nietzsche, using concepts such as active and reactive forces, as well as the concept of revaluation of all values, to build a creation of psychology concept from the concept of aesthetics of folly. KEYWORDS: aesthetics offolly, value creation, harbor psychology,psychology of creation.

INTRODUÇÃO Este trabalho nasce dentro de confusões íntimas, inspiradas em manifestações que potencializam o devir e a desrazão enquanto crítica social. Esta pesquisa versa sobre o desatino, problematizando a racionalidade predominante nos discursos científicos 1 Texto retirado do Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado em Psicologia do Centro Universitário Metodista, do IPA, sob orientação da Profª Drª Ana Helena Amarante. 2 Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, psicólogo. Email: [email protected]

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

113

contemporâneos constituindo uma crítica a estes discursos sob forma de um pensamento estético da existência que se manifesta através daquilo que é ato ou expressão da desrazão. Aqui, a máxima nietzschiana de fazer uma filosofia à marteladas para uma transvaloração de todos os valores é pensada como uma ferramenta do psicólogo crítico, preocupado com a perspectiva ética de seu trabalho. Sendo que os caminhos aqui expostos são frutos do encontro entre a filosofia de Nietzsche e a Psicologia, construindo um pensamento inspirado em noções nietzschianas, mas que ensaiam a criação de novos conceitos. Pensamos a Psicologia como parte importante de um processo estético que é articulado com o outro, tal qual a composição de uma obra inacabada, onde somos todos atores e criadores compartilhando um mesmo espaço de inspiração. Dos modos de compreender o processo criativo ou da “arte” propriamente dita, destacamos a ideia de estética enquanto criação de valores de existência. Este modo de criar-se existencialmente será aqui nomeado como estética do desatino, considerando o desatinar como intervenção ética e estética frente à moral estabelecida pelo discurso científico racionalmente ideologizado no contemporâneo. Por entender que a liberdade na escrita proporcionada pelo ensaio permite ao autor expor indagações e fazer reverberar os diversos pensamentos encontrados pelo caminho, optamos por um artigo de cunho ensaístico. Sabemos que existem modos específicos de existir enquanto pesquisador, mas aqui afirmamos uma existência criadora de si que se estranha com o que é aparentemente natural e corriqueiro dentro do pensamento que se tem como predominante. Deste modo, a noção predominante de sujeito também é objeto a ser desmontado, para que a invenção de um sujeito singular e plural – singular enquanto diferença e plural enquanto multiplicidade – aconteça nestas intersecções criadoras de existência. Deste modo, toda possibilidade de distância crítica em relação ao presente, em relação ao momento social em que nos encontramos rompe a lógica de adesão constante aos valores que o nosso tempo glorifica. E mesmo estando imersos em círculos ideológicos que nos cercam de todos os lados, este trabalho pretende soar como um movimento crítico que busca saltar mais alto, alcançando o ar das montanhas para compor uma transvaloração de valores. Por certo, estes saltos se dão pelos atravessamentos das forças ativas que exploram a vontade de potência criadora de novidade em constantes embates aos atravessamentos reativos daquilo que deseja

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

114

conservar o que existiu sempre do mesmo modo. E sabendo que estamos cercados por diversos círculos de valores morais espalhados pelo social, não é possível pensar em uma separação completa entre o sujeito e o tempo histórico a que ele está submetido. Ou seja, não é possível fazer esta separação entre o eu – instância individual – e o tempo – instância social – já que aquilo que somos também faz parte do tempo que compõe estes valores que nos atravessam. De qualquer forma, não são todos os valores enaltecidos pelo tempo histórico que nos fazem sentido, sendo assim possível resistir a esta lógica de adesão à produção de um tempo conservador por uma política de um tempo criador. Para elaborar estas questões de modo mais claro, este ensaio se dividirá em dois momentos. No primeiro momento é explorada a força de atração gravitacional da moral que age como força reativa e que está presente no excesso de racionalização do discurso psicológico e na ideologia de saúde produzida a partir disto. Com esta delimitação, é possível abrir caminho para criar o conceito de psicologia portuária, conceito de uma psicologia que atua na função de um porto moral que se pretende protegido das intempéries da desrazão. No segundo momento, o conceito de estética do desatino é abordado como força ativa que afirma o desatino enquanto crítica ao ideal científico racionalista existente neste tipo específico de psicologia. Sendo possível assim pensar nesta estética da existência que se cria como força ativa da desrazão enquanto diferença, uma criação de novos valores guiados pelo devir como característica fundamental da constituição do existir e poderá contribuir para a psicologia como pensamento, teoria e profissão. SOBRE O ESPÍRITO DE GRAVIDADE A partir da morte de Deus anunciada por Nietzsche, a ciência, passou a ocupar uma posição privilegiada que anteriormente era reservada apenas à religião – o lugar de responsável pelo estatuto da verdade. Na carona destas transformações culturais, o a psicologia enquanto ciência moderna acaba sendo uma forte representante de uma moral racionalista que explica cientificamente comportamentos e condutas, espalhando-se pelo senso comum com mais um ideal de saúde moralmente definido. Sendo que em um mundo cada vez mais psicologizado, vemos os profissionais de psicologia sendo constantemente convocados como especialistas para atestar a sanidade ou enfermidade

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

115

de modo teoricamente fundamentado. Assim, a questão que se esconde está atrás da figura ética do psicólogo é a incapacidade de analisar o valor dos valores que se espalham através de seu discurso. Isto é, uma Psicologia que se torna um saber que orienta moralmente as práticas sociais, agindo através de juízos de valores das condutas supostamente mais saudáveis a serem realizadas despotencializa a si mesma em sua perspectiva ética de pluralidade. Porém, se enquanto psicólogos não podemos ser aqueles que guardam as respostas às dúvidas existenciais, ao menos não deveríamos nos colocar como aqueles que guardam as perguntas certas a serem feitas. E é justamente aí que se percebe o quanto um saber considerado como questionador de verdades institucionalizadas – supostamente um dos intuitos da Psicologia – permanece cego pelas luzes de um conhecimento científico que se sustenta na ideia de uma razão absolutamente esclarecedora. Para ilustrar esta crítica, temos à disposição uma imagem construída por Nietzsche (1976, p.205) em Zaratustra: “A avestruz ultrapassa na corrida o cavalo mais rápido, mas enterra pesadamente a cabeça na terra pesada; assim é o homem que ainda não aprendeu a voar. A terra e a vida pesam-lhe, e é isso que pretende o espírito de Gravidade”. O espírito de Gravidade é um peso sobre as costas de Zaratustra que o força para baixo, o peso da moral que sufoca aquele que deseja alçar voos mais altos, o mesmo peso que prende o homem à segurança firme do solo. Este peso é o do exagero racionalista que atravessa a história da filosofia e constitui um legado para o paradigma científico que minuciosamente explora o que resta ainda de verdade a ser desvendada. O espírito de Gravidade é o peso de uma moral que perpassa nossa história, de modo a fazer predominar no pensamento um conhecimento de mundo devidamente delimitado, ancorado firmemente às certezas do solo imóvel das verdades universais. Dentro deste sistema de valores, a racionalidade tem o lugar principal de força reguladora, dada a sua preocupação com a natureza humana e sua moralidade. No caso da Psicologia, a gravidade atua como força reativa em um ideal comum compartilhado entre os diversos paradigmas psicológicos, além de um ideal ascético de uma normalidade saudável alcançada através da conscientização de si. Cabe ao homem descobrir-se através da consciência de si mesmo, cabe ao homem encontrar bem lá no fundo sua natureza e sua razão. Contudo Nietzsche (1976, p.207) rebate: “O homem é difícil de descobrir, sobretudo quando se trata de se descobrir a si próprio. E muitas

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

116

vezes o espírito mente a respeito da alma. Eis a obra do espírito de Gravidade”. O espírito de Gravidade age como força sobre o homem objetivando-o, deseja mantê-lo imóvel e isolado do devir e da transformação. Esta referência nos permite construir uma noção de uma psicologia portuária que aglutina as diversas psicologias alicerçadas sobre um imperativo racional como dever único da saúde. A Psicologia que se estrutura como um porto tem como função ancorar os homens que buscam certezas e segurança, mas aprisiona aqueles que desejam navegar por horizontes desconhecidos. A PSICOLOGIA PORTUÁRIA E AS FORÇAS REATIVAS Seguindo nesta mesma linha de pensamento dedicada ao espírito de Gravidade já é possível esclarecer o problema que se encontra quando se pretende estabelecer um conceito de psicologia portuária. Este porto está alicerçado no litoral da racionalidade mecanicista que atrai à razão os viajantes perdidos no mar da insanidade. O uso destas imagens para chegar ao conceito de psicologia portuária se justifica quando pensamos que se a razão é uma ilha no mar da insanidade, certamente a psicologia é um porto neste vasto litoral. Esta referência é à sentença de Simão Bacamarte, personagem do conto “O Alienista” de Machado de Assis (2002) que soube brilhantemente ilustrar este pensamento a respeito da intempestividade característica da desrazão. A relação entre o mar e a loucura não é nenhuma novidade, mas certamente a alusão machadiana à relação existente entre a loucura e a razão parece ser perfeita para pensarmos na função exercida pela psicologia dentro dos padrões científicos estabelecidos. A psicologia portuária, ciência herdeira dessa racionalidade mecanicista existente na história do pensamento, é representante de uma moral reguladora da vida, dos modos de pensar e existir; a psicologia portuária do racionalismo e da ideologia cientificista está para além de um porto seguro, por que além de proteger esta aprisiona os viajantes desatinados sob suas leis morais alfandegárias. O porto que constitui esta psicologia deve ser problematizado por sua demasiada preocupação em dar algum retorno racionalmente cabível aos questionamentos que definem o existir humano. Esta psicologia distancia-se assim de uma perspectiva ética plural por apenas proliferar um dualismo entre bem e mal que condiciona condutas certas ou erradas. Este modo de fazer psicologia é reproduzido também pelo tecido

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

117

social, que através de suas falas carregadas de psicologismos reproduzem esses idealismos morais referentes à saúde mental. Para Nietzsche toda verdade é uma interpretação do mundo, sendo importantes dentro desse pensamento as noções que os valores de bem e mal possuem, valores estes derivados apenas de mais outra interpretação. Deste ponto de vista, os valores de bem e mal são perspectivas na impossibilidade de definir aprioristicamente o que é o bem e o que é o mal. Assim, uma psicologia que se utiliza de seu discurso científico como propagador de práticas essencialmente boas para alcançar um estado saudável está tecendo a sua interpretação. Contudo é fundamental deixar claro que também estamos situados dentro de produções sociais específicas e que estas atravessam nossa constituição de valores, de modo que são estes discursos científicos e morais preponderantes que estruturam nossa cultura contemporânea. Importa muito saber de que lugar e a qual lugar iremos nos dirigir, se somos capazes ou não de superar esses regimes de valores a fim de olhar as práticas psicológicas em direção ao horizonte de diferenças ou apenas mais do mesmo. Logo, quando se tem um porto do qual partir não será mais preciso saber que outro porto se quer desembarcar , traçando assim os rumos da viagem conforme as experiências do caminho. Mas não é isso que pensa a psicologia portuária, o homem sob o poder da psicologia portuária se petrifica sob sua forma, torna-se um recife de formas imutáveis, já que todas as suas rotas estão traçadas para garantir confiabilidade aos navegadores. A psicologia portuária é atravessada por forças reativas que estão a serviço de um niilismo pós-moderno, são forças fracas que inibem as forças potentes criadoras de diferença reciclando valores morais do passado. O imperativo da razão mecanicista predomina em nossa cultura contemporânea e apesar de vivermos cada vez mais uma variedade de modos de vida, nos vemos persuadidos por um sistema social e econômico que prega a adesão às rápidas mudanças em detrimento do fluir do tempo livremente. Estes modos de existência que encontramos nos meios de comunicação, nas redes virtuais e em estruturas institucionais, provocam uma completa reviravolta nas práticas éticas, seja afetando diretamente o sujeito conectado aos aparelhos de comunicação, seja construindo estruturas de pensamento que de qualquer outra forma nos atingem. Na esteira destes processos culturais, presenciamos o surgimento de um extenso espectro de males psicossociais que nos afetam só de ouvirmos falar neles. Soam como ecos reativos reverberando em costumes predominantes de uma grande quantidade de pessoas,

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

118

fazendo valer os valores de um determinado paradigma científico. Esses males constituem este novo tipo de niilismo que a filósofa Scarlett Marton muito bem diagnostica: Niilismos sísmicos revelam, pois, patologias que teriam por causa primeira a destruição de inteiras visões de mundo, de ideários e sistemas de valores, destruição essa que não visa substituir ou alterar o antigo pelo novo; melhor ainda, que não objetiva qualquer sorte de transformação, mesmo porque suprime todo antes e depois. (MARTON, 2008, p.31)

O niilismo sísmico vive o presente de maneira compulsiva, esfacelando valores éticos em uma completa falta de sentido de existência, as vidas passam a ser regidas pela repetição do que é comprovadamente bom. O que resta então?Em algum momento ter práticas resistentes era a saída à crise de sentidos proporcionada pela cultura pósmoderna, mas até os hábitos saudáveis deixaram de ser estratégias resistentes ao que é predominante e passaram a ser práticas obrigatórias que devem ser levadas a sério para atingir um niilismo sísmico. Hoje em dia, o ser ascético representante de uma moral cristã escrava que Nietzsche criticava está representado na figura do novíssimo ser saudável que é repetido incessantemente em mantras do consumo, de modo que fazer academia duas vezes por semana, fazer yoga, pilates, tomar complementos vitamínicos, ter uma extensa lista de alimentos recomendados pelos nutricionistas, além das psicoterapias ou práticas místicas passaram a ser a norma para atingir o nirvana de uma nova moral saudável. Essa política do ideal saudável não deixa de ser efeito de uma lógica cientificista que justifica suas verdades a partir da comprovação empírica dos benefícios da adesão a essas condutas. O niilismo contemporâneo provoca a adesão à privação; ou seja, a privação da vida livre/desatinada através da adesão às dietas, às práticas esportivas, entre outras tantas práticas de cuidados pessoais, a adesão à moral que tem na redenção do corpo/mente seu objetivo último. Somos produzidos de forma a aderir a estes regimes de práticas como uma expressão do niilismo contemporâneo numa falsa intensificação da vida, mas que se regra cada vez mais nas práticas do “viver intensamente”, por que não há tempo a perder em busca do ideal de como se “deve viver” saudável, competente e racionalmente normal. Como a Psicologia, através de seus conhecimentos e práticas, endossa esses modos de “ser saudável”? A resposta não é simples e aqui queremos apenas indicar uma íntima relação entre aquilo que a Psicologia “prega” como saudável e uma moral plena

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

119

de forças reativas que apenas reagem àquilo que é criador, àquilo que muda e que não pode ser contido em seus saberes demasiadamente precavidos. A vontade reativa atua na oposição daquilo que é considerado ameaçador à concretude dos estatutos de verdade. E em tempos de crise de respostas, nossa psicologia portuária não se exime da tarefa de referenciar caminhos na escuridão do niilismo pós-moderno. Para Lipovetsky (2005, p.96): “o pós-modernismo não é mais do que um outro nome para designar a decadência moral e estética do nosso tempo”. Ou melhor, os tempos atuais cunhados como pósmodernos são tempos de uma diversidade de relações com os valores, sendo que a ciência reativa ocupa despreocupadamente o posto a que é delegada, a serviço de uma boa e velha lógica moderna onde o progresso tecnocrático constituiu a instância última da superação da condição humana. Em consequência disso, existe uma espécie de abalo na reinvenção ética de nossos valores que se caracteriza pela busca de alguma coisa que se perdeu do passado. Para a superação do niilismo, não basta um crepúsculo de ídolos, a supressão da esfera supra-sensível e a reapropriação humanista; faz-se necessária a desconstrução do próprio homem que neles projetou suas necessidades, sua debilidade, sua inclinação à reverência, suas categorias. Não basta, portanto, colocar o homem no lugar de Deus ou devolver ao homem os atributos divinos, ou mesmo a criação dos valores, sem que se desmonte o próprio homem na sua configuração escrava, ressentida, culpada, reativa. (PELBART, 2008, p.99)

Deste modo como diz Pelbart, não é possível retomar aquilo que perdemos. Se deixamos passar fora por que não havia mais lugar a estes valores e só há uma solução – reinventar novos modos de existência, sem colocá-los como novos modelos. Nesta citação encontramos um importante material para criticar a ideia de um sujeito que foi se constituindo ao longo do tempo na Psicologia, pois não há como pensar a emergência da criação estética de existência sem interrogar aquilo a que nos apegamos fortemente – a ideia de um sujeito. É ele que se assujeita a estes modos, ele é o dono do porto. O niilismo contemporâneo que esfacelou uma série de valores antigos, de modo diferente do pessimismo que predominou no pensamento durante os dois últimos séculos, se caracteriza pelas compulsivas mudanças nas tendências e pela exasperada busca de um eu único e imutável esperando ser descoberto. Assim, diz o niilismo, será a suprema felicidade. E quem vem ao auxílio desta busca de conhecer a si mesmo? Quem acredita na essência que deve ser conhecida? A que valores este “tipo de vida” correspondem?

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

120

Por que será que os artigos de fé fundamentais, em psicologia, são apenas inverdades e falsificações da pior espécie? Por exemplo, este princípio: “O homem tende à felicidade”. Que há de verdade nisso? Para compreender o que é a “vida”, que espécie de esforço e de tensão é a vida, é necessário que a fórmula seja boa também para a árvore e a planta, como para o animal. “A que tende a planta?” Mas aqui nós já inventamos uma falsa unidade que não existe; é dissimular e negar o fato de que mil formas de crescimento, individuais ou semi-individuais, supor uma grosseira unidade como seria “a planta”. Os últimos e mais ínfimos “indivíduos” não podem ser assimilados a “um indivíduo metafísico” ou a um átomo, sua esfera de potência se desloca perpetuamente, e isso é evidente à primeira vista; mas, no decorrer dessas transformações perpétuas, tendem para a “felicidade”? Toda atividade de expansão, de assimilação, de crescimento é um tentativa de resistência. O movimento está essencialmente ligado a estados de sofrimento; o que aqui dá o impulso de necessariamente procurar outra coisa. Escolhendo a dor e procurando-a incessantemente. Por que as árvores de uma floresta lutam entre si? É pela felicidade? – É pela potência! (NIETZSCHE, 2010, p.171)

Quem vem auxiliar nesta busca pela essência é a psicologia portuária, que parece não se preocupar em desfazer o mito do indivíduo metafísico, mito que constituiu a base de toda a tradição do pensamento psicológico. Desde o estabelecimento de conceitos que pudessem delimitar a ideia de sujeito como firme e estável, as variadas escolas teóricas da Psicologia tentaram ancorar esta ideia em um porto seguro, reduzindo a psicologia a uma busca por um sujeito oculto que espera ser trazido à consciência para ser objetivado com precisão. SOBRE A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA Quando se fala em estética, logo se associa à beleza, sendo que usualmente é considerado estético tudo aquilo que está ligado ao conjunto das formas perfeitas. O uso da palavra estética também se espalha pelo senso comum através de centros de cuidados da aparência, ou seja, as estéticas ou salões de beleza que se proliferam pelos centros urbanos. No entanto, quando a questão está ligada ao pensamento filosófico, este ideal da forma perfeita se refere a um tipo específico de estética que constituía um campo de estudo sobre a teoria do belo. Porém o conceito de estética só fora introduzido na filosofia moderna por Alexander Baumgarten para designar um pensamento específico sobre a arte. A partir de então o conceito de estética ou o estudo da estética tem sido explorado por diversos autores, tendo cada um ao seu modo um projeto filosófico de estética. Alguns fundamentaram melhor a relação entre arte e fenômeno estético, mas é em Nietzsche que o fenômeno estético ganha aspectos de criação de existência. Na filosofia

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

121

nietzschiana

mais

madura,

mais

especificamente

a

partir

da

Gaia Ciência

(SALAQUARDA, 1997), Nietzsche passa a constituir um pensamento filosófico de proposição, passando do tom destruidor da moral para um tom filosófico mais construtor. A partir de então vemos em Assim falava Zaratustra um abandono do niilismo negativo por um niilismo ativo que tem na superação do homem moral uma proposta de transvaloração de valores. Havendo desta maneira uma transmutação na própria noção de sujeito, que não sobrevive ileso à noção de devir. Para Nietzsche, o tornar-se quem se é é um movimento em favor da vida, porque “longe de conduzir a uma identidade, esse processo se abre para a diferenciação: tornar-se quem se é sinônimo de transformar-se (inventar-se, diferir de si mesmo, reinventar-se)”. (ROCHA, 2006, p.272) Neste ensaio, a noção de estética que procuramos explorar está ligada a uma noção de estética da existência no pensamento nietzschiano. Assim, quando nos ocupamos com as passagens de Zaratustra, é possível localizar a proposição nietzschiana de uma estética de existência que se afirma sob a criação de valores éticos. Já que o conceito de arte inclui muito mais do que se acredita, a ideia de artista também pode ser tematizada muito além do stricto sensu, esta pode ser através da noção de cuidado de si abordada por Michel Foucault nos últimos cursos no Collège de France que inclui uma noção de ética e liberdade presente na sociedade grega e que

se liga com o que

compreendemos por estética da existência explorada neste trabalho. Para Foucault o cuidado de si é relacionado com as práticas éticas dos sujeitos da polis grega, sendo um importante fator de composição de valores, já que os valores criados individualmente são também aqueles que envolverão os sujeitos nas suas relações sociais. Na antiguidade a “ética como prática racional da liberdade girou em torno desse imperativo fundamental: ‘cuida-te de ti mesmo’”. (FOUCAULT, 2004, p.268) Esse imperativo ético-estético se diferencia da noção tradicional de “conhece-te a ti mesmo”, que é o reconhecimento de um eu verdadeiro a ser desvelado – princípio do que chamamos aqui de psicologia portuária. Neste caso, a noção foucaultiana vai em direção à criação constante da existência, sem leis pré-determinadas por uma razão supostamente soberana – elementos para uma estética do desatino ou o que chamamos aqui de psicologia de criação.

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

122

A ESTÉTICA DO DESATINO E AS FORÇAS ATIVAS Fazendo sombra aos nossos conflitos existenciais, está a velha moral dos bons costumes que vem nos guiando desde muito tempo e que em determinados momentos é questionada ou reiterada enquanto verdade de mundo. Na esteira destas interpretações, que ficam mais aparentes em momentos sociais críticos como o que vivemos, sofremos o retorno intermitente de pressões morais reacionárias que se voltam contra todas as conquistas éticas na tentativa de retomar uma racionalidade há muito tempo esfacelada. No entanto, como reflexo destes fenômenos culturais, um desejo de mudança se torna visível, um desejo pelo desatinar que desafogue os lastros do racionalismo exacerbado que há muito vem nos colocando sob regimes de práticas de existência cada vez mais reguladas pelo consumo e pela busca de ideais de saúde e de felicidade. Vivemos em razão do excesso, um excesso de razão que está constantemente produzindo ideais científicos e condutas morais. E é justamente em contrapartida a estes fenômenos morais que o desatino ganha corpo, ganha força para saltar sobre os limites de valores racionalistas instituídos pela nossa cultura. O desatino como proposta de estética da existência deseja apenas ser um pensamento que não necessita de tantas respostas, tarefa essa destinada à psicologia portuária. No dicionário Aurélio (2010) da língua portuguesa, o significado da palavra desatino é falta de tino, de juízo; loucura; ato ou palavras de desatinado, ou seja, perder o tino é perder a razão. Pode-se dizer que o desatino é também linguagem, expressão e criação. A expressão do desatino é criação de mundo, modo de se expressar livremente. A ciência e a arte constituem cada qual a sua maneira uma relação com o desatino, sendo na tentativa de racionalizá-lo como faz a ciência na tentativa de retomar o tino que fora perdido; ou como faz as artes que muitas vezes elogiam até de forma demasiadamente romântica a loucura. Porém, a falta de tino e a expressão da desrazão estão em profunda relação com a arte, a filosofia e a ciência, estando presente necessariamente no pensamento psicológico. O desatino é característica do existir humano, “é o que existe de mais imediatamente perto do ser, de mais enraizado nele: tudo o que ele pode sacrificar ou abolir de sabedoria, de verdade e de razão, torna puro e mais veemente o ser por ele manifestado.” (FOUCAULT, 2008, p.345)

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

123

Na velha distinção entre bem e mal, perder o tino perder a razão, ganha logo uma conotação negativa, tendo em vista que o paradigma cientificista é determinante para a fundamentação de novos e velhos saberes. Nietzsche, tecendo uma diferenciação entre a ordem apolínea e a ordem dionisíaca da vida, também fez uma crítica à racionalidade constituída até então na tradição filosófica e científica. No pensamento nietzschiano, esta relação entre os mitos gregos de Apolo e Dionísio diz respeito ao estabelecimento de modos de vida pautados na razão (a iluminação de Apolo), e na desrazão (a embriaguez de Dionísio). A distinção entre estes modos de vida serviu para Nietzsche estabelecer um pensamento que afirmasse um retorno a um modo dionisíaco de existência. Contudo o filósofo Peter Pál Pelbart, comenta que: Entre Dionísio e Apolo não há conflito, mas origem comum, que pode ser resumida numa única palavra: mania. A partir do delírio e da loucura como horizonte comum, teria se destacado algo como a sabedoria, que mais tarde daria origem à filosofia. Retenhamos por ora a conclusão maior de Colli, a sabedoria nasceu do delírio, antes de entrarmos na ilustração mitológica dessa hipótese espantosa. (PELBART, 1989, p.29)

Existe muita sabedoria no delírio, assim nos interessa a potência do delírio como criação, instância desatinada capaz de uma estética da existência. Para Pelbart (1989, p.31) “não há contradição entre Labirinto e Minotauro, Apolo e Dionísio, palavra e desrazão, pensamento e excesso, sabedoria e delírio, logos e mania”. O que nos faz pensar que estas contradições, na verdade, são faces de uma mesma realidade não como faces opostas, mas faces intercambiáveis que se atravessam e se atingem continuamente. A razão e a loucura estão em infinita relação, não de maneira oposta como se convencionou pensar a razão instrumentalizada, porém como faces que trocam de lugar, trocam de turno para possibilitar o descanso uma da outra. Deste modo, a existência de um devir desatinado não exclui a existência da razão e vice-versa, mas o excesso de razão constituiu um verdadeiro problema a partir da patologização da loucura, de modo a interferir no livre fluxo do desatino como prática existencial. Fonseca (2011, p.56) ainda nos traz uma perspectiva nietzschiana da capacidade de criação de novos valores que a loucura tem, para a filósofa: “A moralidade é criada, muitas vezes, pelos que são tomados como loucos pela sociedade (...). Os loucos estão suficientemente libertos do status quo para criarem e imporem novos valores morais”. É claro, o uso de Nietzsche só poderia conceber a loucura como transgressão ao

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

124

estabelecido, ao pensar que determinados sujeitos que romperam com os paradigmas de seu tempo foram vistos enquanto loucos pela sociedade. Sim, isto também faz parte da estética do desatino, aqueles que rompem com o comum são tomados como loucos pelos que desconhecem a potência criativa que existe no desatinar. A estética do desatino soa como uma provocação deste rompimento em favor da criação do novo dentre as possibilidades de existência. Pelbart (1993, p.12) nos instiga a brincar “de desfazer certas ordens cristalizadas no espelho do Tempo, incluindo aí novas e estranhas pedrinhas, a fim de criar outras ficções de vida, outras vidas”. Na concepção nietzschiana de moralidade, os valores têm algo de estrutural, mas não estrutural no sentido de intacto às mudanças ou aos acontecimentos, tampouco como algo essencial; mas como algo íntimo nos sujeitos, isto é, algo característico do individualmente singular. Os valores são passíveis de mudança e assim também a moral que, como diz o próprio Nietzsche, deve ser forçada a inclinar-se antes de tudo frente à hierarquia, é preciso lhes lançar na cara sua presunção, até que conjuntamente se dêem conta de que é imoral dizer: “o que é certo para um é certo para outro”. Assim pensa meu bonhomme [bom homem] e pedante moral: não mereceria talvez nossas risadas, exortando assim as morais à moralidade? Mas não se deve ter razão demais, quando se quer ter os que riem do seu lado; um pouco de falta de razão faz parte inclusive do bom gosto. (NIETZSCHE, 2005, p.113)

Os valores de um não são os valores do outro, embora vivêssemos compartilhando regimes de valores que são anteriores à nossa própria noção de moralidade. Porém os valores são mutantes, estão em constante transformação através da cultura e a cada novo tempo se estabelecem novas regras, leis que se estabelecem enquanto verdades de mundo. Estas leis são novas leis morais ou reedições de velhas morais que aparecem agora sob outras máscaras. Vivemos sob múltiplos regimes de leis morais que nos atravessam constantemente, algumas se chocam com nossa realidade, outras sequer nos tocam, mas vivemos, de modo geral, sempre cercados por algum estatuto moral que nos é anterior. Todavia, viver sob estatutos morais já estabelecidos não quer dizer que não possamos resistir a eles, e assim como Foucault nos diz, podemos resistir às relações de poder e aos jogos de verdade. Resistir não é imoral como alguns grupos da sociedade pensam, mas imoral é esticar estes valores a todos os grupos, de modo a tornar um

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

125

determinado tipo de valor moral mais e mais universalizado. A interrogação que fazemos é sobre esta moral universalizada que racionaliza em excesso, como a ciência, responsável pelos novos regimes de leis, dizendo da maneira mais racional possível o que é bom para todos. Por isso, quando Nietzsche nos fala da falta de razão como parte do bom gosto, pensamos na falta de razão enquanto uma saída aos valores morais da racionalidade, sendo esta possível saída tal como uma estética do desatino onde perder o tino é ter a liberdade de criar-se. Este pensamento estético busca afirmar-se numa vontade de potência ativa criadora de novos valores, muito além do que a simples estetização do corpo ou da mente, obras de arte do contemporâneo. Para o filósofo inglês Terry Eagleton (1993) a estética em Nietzsche é uma autêntica criação de uma obra de arte, em que criatura e criador residem em um único ser. Isto é, a clara noção de uma força ativa atuando em favor da vida criativa que faz do indivíduo criador e criatura de sua existência, não tomando a relação estética como uma relação obediente que se curva ao paradigma da objetivação da arte como sublimação do sofrimento de viver. A arte, enquanto vivência criadora, acontece nos diversos domínios da vida cotidiana, de modo que o existir patologizado é mais uma forma de existência que é atravessada pelas relações de forças ativas ou reativas que produzem determinadas experiências subjetivas. Mas quando ficamos doentes? Numa concepção desatinada de formas de existência, dentro dessa noção nietzschiana, viver é estar exposto aos riscos e aqui o ideal saudável como bem o conhecemos na saúde convencional não é um norte, mas uma perspectiva que objetiva o sujeito dentro de um “regime de cura” para aliviar o sofrimento de viver. Sobre isto, Deleuze escreve que a doença não é um móbil para o sujeito pensante, mas também não é um objeto para o pensamento: constitui de preferência uma intersubjetividade secreta no seio de um mesmo indivíduo. A doença como avaliação da saúde, os momentos de saúde como avaliação da doença: tal é a ‘inversão’, o ‘deslocamento das perspectivas’, em que Nietzsche vê o essencial do seu método, da sua vocação para uma transmutação de valores. (DELEUZE, 2001, p.11)

Desta maneira, ampliamos as noções de saúde de modo diferente do que vem se convencionando atribuir ao estar doente, é preciso pensar a saúde como transformação do sujeito, não como uma busca de caminhos já traçados, mas como criação e exploração de novos caminhos. Abandonemos, por enquanto, o dualismo existente entre saúde e doença principalmente no que distingue a saúde como ausência de doença; pensemos na

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

126

relação de forças que atuam nos sujeitos em diferentes condições que potencializam o criar-se muito mais do que medicar-se passivamente diante dos sofrimentos. Assim sendo, saúde e doença são pontos de vista, a visão através de um ponto determinado de uma perspectiva que pode ou não guardar alguma força ativa em direção à mudança. Não ignoramos os sofrimentos, mas salientamos o lugar da mudança como linha de fuga desses assujeitamentos. Nietzsche assim fala da mudança, pois os melhores símbolos são aqueles que falam do tempo e do devir; esses devem ser louvor e justificação de todo o efêmero. Criar – eis o que nos liberta da dor, eis o que aligeira a vida. Mas, para que nasça o criador, é necessária muita dor e grande número de metamorfoses. (NIETZSCHE, 1976, p.91)

É com dor e metamorfoses que a vida acontece e se supera, o poder criador da diferença existe como força ativa em direção da superação do humano. No entanto, nem todas as existências têm diante si a clareza deste poder criador, porque mesmo os modos de existência singulares ou homogeneizados são maneiras diferentes de se estar no mundo, por isso não podemos universalizar o que é o bom ou ruim para todos. Somos, a todo o momento, cercados por diversos regimes de valores que tentam fazer ancoragem em nossas vidas, mas o criador é aquele que pode saltar entre eles não se deixando amarrar pela pesada âncora da gravidade. Assim sendo, o processo de criação de novos valores, em vista da transvaloração proposta por Nietzsche, faz da estética da existência uma superação artística da relação humana com o mundo em que se encontra. Para compreender os processos transformadores possíveis de um devir de artista, é preciso relacionar arte e ética de maneira a construir modos de vida que expressem tal relação também como um modo desatinado. A estética do desatino é um conceito de viver artístico, como experimentar os caminhos que a vontade de potência toma enquanto se faz obra em criação. Zaratustra, que deseja realizar uma transvaloração dos valores, busca sujeitos criadores capazes de realizar esta tarefa: Vejam esses bons e esses justos! Qual é aquele a quem mais odeiam? É aquele que lhes quebra os quadros de valores, o estavanado, o malfeitor; mas esse, é o criador.O criador busca companheiros e não cadáveres; não quer rebanhos nem fiéis. Procura criadores que com ele se associem, desses que gravam sobre quadros novos valores. (...) O criador busca companheiros, desses que sabem aguçar e afiar as suas foices. Chamar-lhes-ão destruidores e detratores do Bem e do Mal. Mas são ceifeiros, que ceifam primeiro e só depois repousam. Zaratustra procura homens que queiram criar com ele, ceifar com ele, e com ele repousar. (...) É aos criadores, aos ceifeiros, aqueles que repousam acabada

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

127

a tarefa, que quero associar-me; mostrar-lhes-ei o arco-íris e todos os degraus que levam ao super-homem. (NIETZSCHE, 1976, p.23)

Zaratustra busca sujeitos capazes de criação, capazes de transcender as leis do bem e do mal e que podem descansar da árdua tarefa de se enquadrar nos padrões morais estabelecidos. A busca de Zaratustra resume uma ética nietzschiana que interroga a moral enquanto estatuto de verdade, a moral como caminho do bem comum e universal. Mas não será necessário avaliarmos o que se quer por bem e por mal? Por isso, o caminho de criação de valores é acima de tudo uma possibilidade de avaliação e de reflexão sobre o valor dos valores, de questionar a quem serve esta lei que nos cerca?! O processo criativo nos coloca constantemente sob análise, sob o questionamento de nossas existências. Aqui a relação entre os valores estéticos e o devir de novas formas de criação propiciam a liberdade de um agir distante de si muito mais do que consciente de si. Aqui já não se busca mais este indivíduo metafísico oculto, mas foge-se dele constituindo uma distância necessária. A estética do desatino enquanto superação da racionalidade moral que vem acompanhando o pensamento há muito tempo, permite um espaço de flutuação num devir de bifurcações. O pensamento se faz pelos encontros, e do mesmo modo é a vida que se transforma e que se supera nos encontros ativos. A ideia de um ser humano que a estética do desatino deseja é a que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espécie de acontecimentos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude”. (NIETZSCHE, 2005, p.176)

Nietzsche fala do übermensch, do além-do-homem que é capaz de superar os valores morais que seu tempo glorifica, mas este homem não é apenas um sonho a quem dedicamos o futuro, nem um ideal a ser seguido como uma fórmula, o além do homem é acontecimento, não pode ser medido ou testado, ele apenas pode acontecer enquanto potência ativa. Assim é também a estética do desatino que deseja superar o racionalismo exacerbado de seu tempo através da expressão de uma desrazão potente e livre, sem amarras ou âncoras. Mas o que resta ao ser humano? Aportar na ilha mais próxima, uma ilha bem protegida pela psicologia portuária. Ao ser humano desatinado não há porto suficiente, vale a grandeza de naufragar nas águas do desconhecido, por que; “A

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

128

grandeza do Homem está em ser ele uma ponte e não um final; o que podemos amar no Homem, é ser ele transição e naufrágio”. (NIETZSCHE, 1976, p.14) CONSIDERAÇÕES FINAIS Nietzsche se autodeclarava o primeiro grande psicólogo da Europa e sem sombra de dúvida o era, porque deixou uma vasta obra que ainda hoje reverbera em variados estudos pelo mundo a fora e compõe um riquíssimo pensamento sobre a cultura e o humano. Neste trabalho, a importância é reconhecer nesta filosofia deixada por Nietzsche o que não cessa de nos colocar diante do fatídico reflexo de nós mesmos, com aquilo que é mais abissal e mais potente. A condição humana em Nietzsche não é cristalizada sob uma forma de ser, mas como o próprio dizia, é um tornar-se quem se é, como nas três metamorfoses do espírito em que o homem deve superar a si mesmo. O camelo, o leão e a criança representam essa travessia da existência: como o homem suporta o peso de sua cultura nas costas como o camelo que não sabe dizer não e se apressa em buscar o deserto; depois o homem como leão que busca sua liberdade e se faz senhor do seu deserto; e por fim o leão que deve se tornar criança de um novo começo, do jogar inocente como afirmação da vida. É tarefa difícil concluir este experimento filosófico sobre a Psicologia sem reconhecer a necessidade de dar sempre movimento ao pensamento tamanha a quantidade de vértices possíveis de serem levados em consideração sobre o pensamento nietzschiano e sobre as questões e propostas suscitadas. Contudo este experimento é um ensaio de um desejo do tornar-se, daquilo que pode se tornar o pensamento além do ideal racional. Como todo trabalho exige certo esforço e um pouco de sofrimento, o trabalho de esculpir com Nietzsche novas formas de existência é um trabalho que necessita de martelo e coragem, mas, sobretudo um tanto de desatino. Assim espera-se que este mapa tenha seguido seu curso, por que se perder é mais importante do que se encontrar em outro porto de conceitos. Este perder o tino é um perder-se dos enrijecimentos dos significados, dos vieses e reflexos caleidoscópicos que a ciência psicológica possui e que nos exigem em alguns momentos filiação. Porém, quando se está determinado em perder o tino, em atirar-se nas águas da desrazão, um mar de outros sentidos possíveis se encontra abaixo deste barco abarrotado de significados

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

129

teóricos pretensamente sedimentados. Não é mais possível dar um ponto final, senão apenas reticências em uma história que ainda pode dar muito o que pensar e reverberar... REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. O alienista. Porto Alegre: Movimento, 2002. AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de filosofia. (Trad. João Paixão Netto; Edwino Aloysius Royer et al.). São Paulo: Paulus, 2006. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. (Trad.Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias) Rio de Janeiro: Rio, 1976. _______________. Nietzsche.Lisboa: 70, 2001. EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. (Trad. Mauro Sá Rego Costa). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5ª ed. Curitiba: Editora Positivo, 2010. FONSECA, Ana Carolina da Costa e. Doença e loucura na obra de Nietzsche. Contemporânea - Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre, n. 11, jan.-jun. 2011. FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. (Org. Manoel Barros da Motta). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. __________________. História da Loucura: na Idade Clássica. (Trad. José Teixeira Coelho). São Paulo: Perspectiva, 2008. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. (Trad. Therezinha Monteiro Deutsch). Barueri: Manole, 2005. MACHADO, Roberto. Nietzsche e renascimento do Trágico. KRITERION, Belo Horizonte, nº 112, p. 174-182, dez. 2005. MARTON, Scarlett. Niilismos Sísmicos: a compulsiva exaltação do presente. In: PECORARO, Rossano; ENGELMANN, Jacqueline (org.). Filosofia contemporânea: niilismo. política. estética. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008. p.17-37. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra: Livro para todos e para ninguém. (Trad. Carlos Grifo Babo). 3ª edição. Lisboa: Editorial Presença, 1976.

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

130

____________________. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. (Trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ____________________. A Genealogia da Moral: Uma Polêmica. (Trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ____________________. Vontade de Potência: parte II. (Trad. Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza) São Paulo: Escala, 2010. PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da clausura: Loucura e Desrazão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. _________________. Nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993. PELBART, Peter Pál. Biopolítica e contraniilismo. In: PECORARO, Rossano; ENGELMANN, Jacqueline (org.). Filosofia contemporânea: niilismo. política. estética. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008. p.83-112. QUINTANA, Mário. Os melhores poemas de Mário Quintana. (Seleção de Fausto Cunha). São Paulo: Global, 1982. ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Tornar-se quem se é: educação como formação, educação como transformação. In: FEITOSA, Charles; BARRENECHEA, Miguel Angel de; PINHEIRO, Paulo (orgs.). Nietzsche e os gregos: arte, memória e educação: assim falou Nietzsche V. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj: Unirio; Brasília, DF: Capes, 2006. p.267-278. SALAQUARDA, Jörg. A concepção básica Marton).Cadernos Nietzsche,v. 2, p.17-39, 1997.

ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

de

Zaratustra.(Trad.

Scarlett

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.