Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje.pdf

May 26, 2017 | Autor: Cezar Migliorin | Categoria: Brazilian Cinema, Documentary Film, Cinema brasileiro, Documentário
Share Embed


Descrição do Produto

1

Ensaios no real Apresentação Cezar Migliorin

2

3

Cezar Migliorin (org.)

Ensaios no real

azougue editorial 2010

4

Coordenação editorial Amélia Cohn e Sergio Cohn Capa Carolina Noury Foto Pablo Lobato e Cao Guimarães Equipe Azougue Carolina Noury, Eduardo Coelho, Elisa Ramone, Evelyn Rocha, Filipe Gonçalves, Giselle Andrade, Ingrid Vieira, Karina Lopes, Luana Maria e Marta Lozano Revisão Gabriel Cohn CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E52 Ensaios no real / Cezar Migliorin (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7920-040-3 1. Documentário (Cinema) - Brasil. I. Migliorin, Cezar. 10-3967. CDD: 791.430981 CDU: 791.222.2(81) 12.08.10 23.08.10 020953 [ 2010 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. Rua Jardim Botânico, 674 sala 605 CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel/fax 55_21_2259-7712 www.azougue.com.br azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura

5

Documentário recente brasileiro e a política das imagens Cezar Migliorin 9 A representação da política no documentário brasileiro Miguel Pereira 27 Deslocamentos subjetivos e reservas de mundo Ivana Bentes 45 Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna Ismail Xavier 65 Cinema documentário e efeitos de real na arte Andréa França 81 Perguntar (não) ofende Anotações sobre a entrevista: de Glauber Rocha ao documentário brasileiro recente Stella Senra 97

6

A câmera lúcida José Carlos Avellar 123 Na contramão do confessional: O ensaísmo em Santiago, Jogo de cena e Pan-Cinema Permanente Ilana Feldman 149 Ensaios de uma imagem só André Brasil 169 Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo César Guimarães 181 A superfície do cotidiano Uma aproximação a Acidente e Uma encruzilhada aprazível Cláudia Mesquita 199

7

Cotidianos em performance: Estamira encontra as mulheres de Jogo de Cena Mariana Baltar 217 Bibliografia 235 Sobre os autores 247 Agradecimentos 253

8

9

Documentário recente brasileiro e a política das imagens Cezar Migliorin

O documentário contemporâneo é o nome de uma multiplicidade, de algo indefinível, de uma imagem que é arte e que não é, que é afetada e transforma o real, que é fundamentalmente aquela imagem que no cinema se liberou de uma identidade. Se digo documentário não sei do que falo, pelo menos não exatamente, mas ao mesmo tempo ele existe e insiste, se transformando a cada filme. O que a princípio pode ser um problema é, na verdade, o grande trunfo do documentário. Lembremos de Agamben quando diz que o Estado – e eu pensaria nos poderes – não sabe agir quando as reivindicações vêm de um lugar sem identidade, ou melhor, os poderes sabem lidar com as reivindicações que partem de um lugar definido. O lugar do documentário é esse lugar de indefinição, inapreensível. Dito de outra maneira: todo poder sabe lidar com o que ele sabe nomear. Todo poder sabe administrar as reivindicações daqueles que ele pode reconhecer como sujeitos de direito, mesmo que seja para dizer que eles não têm direito – ainda, agora, aqui. O documentário hoje é o nome de uma liberdade no cinema. Seria tentador inventar outro nome para essa entrada definitiva na indiscernibilidade desse cinema, porque, convenhamos, o nome documentário não é lá grande coisa, tão impregnado ele está de um regime de imagens em que a representação era o único problema a ser considerado, o que certamente não é o caso da produção contemporânea. O que não significa que o desafio de apresentar o outro, de forjar encontros e pensamentos com o desconhecido das vidas e das imagens não seja o que move o melhor desse cinema. *

10

O documentário, urgentemente; esse poderia ser outro título para este livro. Não é pouca coisa o que acontece no país quando identificamos um grande interesse pelo documentário presente nas políticas públicas, nas publicações, nos festivais, entre os jovens e nas múltiplas estéticas que essa produção apresenta. Não é pouca coisa. Mais do que falar sobre o documentário, esse interesse parece se pautar por uma atenção a esses modos de estar no mundo e de inventar mundos e, ao mesmo tempo, compartilhar essas invenções. O documentário não é o que diz ou mostra o que existe, mas o que inventa a existência com o que existe. “Retocar o real com o real”, como dizia Bresson. Atravessa o documentário um interesse pelo humano. O que esse homem comum faz, como aquela mulher ganha a vida, como conta seu passado, como mobiliza a palavra e enfrenta os poderes, como exerce o poder, como afirma sua inteligência, como ocupa os espaços, como formula o futuro ou se livra do presente. O documentário que nos interessa é essa arte no humano. Mas, como arte, não lhe interessam apenas suas possibilidades de apresentar ou escrever os sujeitos, mas também suas capacidades produtivas. A busca de uma maneira de abordar o mundo, de estar em contato com outras vidas e outros espaços nunca esteve tão próxima de um problema estético, de uma reflexão sobre os modos de operar essa aproximação, esses encontros entre cenas. Cena do realizador, cena do filmado, cena do espectador, cada cena dialogando com múltiplas e heterogêneas forças. Os artigos presentes neste livro são ações que enfatizam determinadas vibrações ou apenas as mantêm em movimento. Na escrita e nas escolhas dos filmes, na atenção que dedicam a este ou àquele gesto, a este ou àquele filmado, vão delineando um universo de crenças no documentário e no real, forjando, com os filmes, o mundo em que vivemos. Ao reunirmos artigos com múltiplas abordagens do documentário temos consciência da heterogeneidade deste livro; entretanto, essa aparente fragmentação é fruto, acredito, do momento que vive o documentário

11

brasileiro. Filmes complexos que ensejam abordagens teóricas diversas, todas atentas às suas condições de possibilidade e às escrituras ali forjadas. Pensar é também operar por montagem, aproximar eventos, fatos, fragmentos, imagens e sons, possibilidade de uma memória se tornar um acontecimento. Assim, é o pensamento que se esboça em um livro que reúne estudos apoiados em bases teóricas e abordagens distintas. Entretanto, há um norte em todo o livro: trabalhamos com filmes brasileiros recentes. Os textos, evidentemente, são autônomos, escritos por ensaístas e pesquisadores diferentes, mas o contato entre eles não é nada desprezível. Nas próximas páginas o leitor poderá percorrer alguns dos mais importantes conceitos inventados para se trabalhar com o documentário contemporâneo; porque assim ele demanda, poderá acompanhar algumas análises minuciosas e artigos mais amplos, imbuídos de um esforço de síntese. Muitos dos mais importantes documentários brasileiros aparecem neste livro: Jogo de cena (2008), de Eduardo Coutinho; Estamira (2004), de Marcos Prado; Juízo (2008), de Maria Augusta Ramos; Santiago (2006) e Entreatos (2004), de João Salles; Pancinema permanente (2008) e Preto e branco (2004), de Carlos Nader; Man. Road. River. (2004), de Marcelvs L.; Landscape theory (2003), de Roberto Bellini; Do outro lado do rio (2004), de Lucas Bambozzi, Rua de mão dupla (2003), de Cao Guimarães; A pessoa é para o que nasce (2003), de Roberto Berliner; Vocação do poder (2005), de Eduardo Escorel e José Joffily; Utopia e barbárie (2005), de Silvio Tendler; Acidente (2006), de Pablo Lobato e Cao Guimarães; Encruzilhada aprazível (2007), de Ruy Vasconcelos, entre outros. Da mesma forma, esta introdução também opera por montagem. Se aqui dedicarei algumas páginas para falar de capitalismo, modos de subjetivação contemporâneos, formas de poder ou espetacularização do eu, não é para chegar a conclusões fechadas sobre a atual fase do documentário, mas por necessidade e intuição; é preciso aproximar

12

eventos que dizem sobre o real, os sujeitos em que o documentário está interessado e os múltiplos modos de constituição de si no mundo contemporâneo. Sujeitos comuns, banais, eventualmente espetacularizados em relação com os mais diversos poderes. Arriscaria ainda: uma leitura atenta dos artigos que aqui colocamos em contato torna possível um diagnóstico do mundo atual. Sem esse contexto é impossível pensar o documentário contemporâneo, parecem nos dizer, com frequência, estes pensadores. Esse contexto que fala de poder, mídia, Brasil, subjetividade e capitalismo está constantemente atravessando os filmes. O documentário está colado à política e, por isso, é aqui frequentemente pensado como operador no real. Às vezes é preciso um olhar atento, delicado, para o cotidiano, pois ali se insinuam as diferenças, uma outra prática de consumo, de relação com as imagens. Dizer, por exemplo, que o capitalismo é essencialmente homogeneizador do desejo é ignorar a micropolítica em que estão engajados os sujeitos nas suas relações cotidianas com as imagens ou com o consumo. No cotidiano se esboça a imaginação sobre si e sobre o outro. Estar com o outro, tornar visível um modo de vida sem fazer com que essa aproximação se confunda com um modo de gestão da vida do outro, um modo de inventariar mais uma excentricidade, eis o desafio do documentário. Como estar com esses outros sem que eles sejam parte de uma unidade que religa suas singularidades de maneira homogeneizante, em torno de linhas consensuais: o louco, o sábio, o pobre talentoso etc. Nesse sentido, veremos como diversos filmes estão atentos às vidas que escaparam à funcionalização. Não se trata apenas da escolha dos personagens, mas de uma abordagem que se distancia do idealismo ou do discurso acabado para estar com os corpos, com os gestos, com as falas, em frequente deriva. Jogo de cena é, provavelmente, o filme mais presente nestas páginas. O filme de Eduardo Coutinho coloca ênfase na dimensão coletiva das falas,

13

algo que já vinha acontecendo em Edifício Master (2002), Santo forte (1999) ou Babilônia 2000 (2000), mas que nesse filme ganha contornos comoventes. O texto é dito por alguém, mas ao mesmo tempo que é dito faz a pessoa desaparecer como indivíduo para ser uma ponte para a própria linguagem. Uma enunciação sem propriedade. Eis a dimensão coletiva da linguagem, uma luz que Coutinho lança sobre seus outros filmes recentes. A fala sai de “um” e se torna “infinita”; do “um” ao “múltiplo” com um corte. Nesse gesto, a fala não pertence a mais ninguém e, ao mesmo tempo, pertence a todo mundo. É o que acontece quando percebemos que duas mulheres contam a mesma história como o mesmo grau de envolvimento. Maneira explícita de destruir as fronteiras entre o individual e o coletivo. E não sei mais quem é Fernanda ou Andréa, Marília ou… A “prisão” de Coutinho aqui ganhou asas e se liberou, nem por isso deixou de ser um dispositivo. Eis uma das mais fortes dimensões políticas dessas imagens. Momento em que o filme nos apresenta o que há de mais singular circulando de maneira desregrada pela comunidade. Mas não são apenas as falas e entrevistas que circulam. Depois de abrir o século com a entrevista pautando o documentário brasileiro, o silêncio é uma reação, como Cláudia Mesquita nos lembra em seu artigo. Ao mesmo tempo, ao incorporar o encontro, operação fundamental no cinema de Jean Rouch nos 1950, o documentário contemporâneo com frequência duvidou dele também. Até que ponto o encontro não é apenas um jogo, um conexionismo desprovido das tensões lentas e a longo prazo? Quanto de desafio pessoal é o que move o encontro? No lugar da presença do outro, da relação e da imaginação, inseparável do estar junto, o encontro não pode se tornar apenas um desafio de performance? Uma ansiedade em instaurar a transformação já com o filme. Eis o risco, e mais uma tensão: que o documentário não se confunda com o audiovisual que coloca o espectador no lugar daquele que julga se o realizador e os filmados estão se saindo bem diante do risco do encontro, mobilização fundamental dos reality shows.

14

Muitos dos mais relevantes filmes recentes, como sabemos, foram fundados nessa disposição para o encontro. Acompanhamos nos últimos anos uma série de dispositivos, entrevistas e invenções de situações em que não havia uma roteirização possível, em que o documentário se colocava sob o “risco do real”, como escreveu Comolli. Esse risco permitia marcar a diferença e a contraposição entre cena e roteiro. Oposição construída por Comolli para que possamos pensar a partir da presença ou não de um operador externo. Ou seja, a cena é o lugar da negociação das representações em que os sujeitos operam, enquanto o roteiro aparece como uma operação exterior às tensões da cena, colocando o espectador não como um eventual personagem ativo da cena, mas como um consumidor do quadro acabado. No roteiro, o sujeito encontra seu papel já desenhado, sabe como deve atuar para que a ordem narrativa funcione, enquanto a cena é política. O sujeito na cena tem o seu papel a definir, ou seja, ele tem a definir sua função na polis, a forma como sua palavra vai operar e transformar. Ora, Comolli escreve, então, em Ver e poder: “O imperativo do ‘como filmar’ (...) coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme.” O filme aqui não é apenas uma sequência de imagens que tem uma determinada duração, isso aparece quando se faz um filme, mas para que haja filme é preciso que a cena se reconstitua, que o espectador seja transportado para a instabilidade do encontro entre sujeitos políticos, operando na polis e não apenas executando um roteiro que servirá para o consumo. Se a copresença dos elementos que compõem uma cena não é necessária e, pelo contrário, deve ser domada, é a cena que se torna inútil. Se a imagem que me chega perdeu toda potência de contágio de outras imagens e outros sujeitos, é a própria cena que tende ao desaparecimento. A retirada, neste caso, é da política mesmo. O risco do real, trabalhado por Comolli para caracterizar o encontro e largamente utilizado por nós, críticos e pesquisadores, não pode,

15

entretanto, se reduzir a um elogio ao conexionismo, como se qualquer corpo a corpo com o real regido pelo acaso trouxesse a dimensão desse risco do real. Da mesma maneira, antes do corpo a corpo, há o risco das imagens. Também aí estão em jogo as indeterminações e descontroles, o imprevisto e o improvável, ou seja, a potência acontecimental. O documentário se faz sob o risco das imagens, com ou sem roteiro ou dispositivos, sozinho ou com outros corpos; as imagens têm a potência de se desdobrarem em mundos desconhecidos, irredutíveis à programação. Para o documentarista, um dos riscos dessa política dos encontros reside no papel preponderante que o acaso assume na seleção dos encontros no momento em que o realizador está de saída. A saída do realizador, sua impossibilidade de enunciar de fora pode se configurar como uma nova transcendência, a do acaso. No lugar da Voz de Deus, a Voz do Acaso. A saída do realizador do filme se faz com tal intensidade que o filme é tomado não mais por uma individuação coletiva, ou seja, pela copresença criativa de vários sujeitos, mas pelo esvaziamento da cena e das tensões a ela inerentes. Sem o filme, sobram o jogo e as regras. Eis outro risco com que se depara um cinema político baseado no encontro; conexionista. Ou seja, nem a entrevista/conversa, nem o dispositivo, nem o filme de busca traziam em si qualquer garantia e, além disso, serão vistos com desconfiança por aqueles que começam a duvidar do próprio conexionismo como possibilidade política para o documentário. Coloca-se no problema do encontro a questão de até aonde ir, que distância manter em relação ao outro, que garantias prever no dispositivo. Volto a Coutinho e seu mais recente filme, Moscou (2009). Uma das mais importantes formas de o documentário mobilizar o espectador é o modo como ele compartilha a possibilidade de ele não se fazer, não se realizar, de o encontro não se efetivar, de o dispositivo não funcionar, de o personagem não “render” – triste expressão. Depois de vários filmes

16

em que o risco da própria existência do filme mobilizava o espectador, mas em que algo se atualizava, a noção mesma de fabulação – tão utilizada para pensarmos a obra de Coutinho – implica uma atualização; uma organização da memória e dos eventos que inventam um mundo, uma pessoa, inexistente até então. Em Moscou, a concentração parece se deslocar de maneira incisiva para a individuação, para o coletivo, para o que faz passagem entre as atualizações. A diferença é, antes de tudo, uma vibração que ainda não tomou corpo. O que nos mobiliza nos documentários fundados na fabulação, no desejo de fabulação, nos acontecimentos de linguagem é a passagem entre atualidades que fazem sentir a multiplicidade, ou seja, entre indivíduos que dão a ver as possibilidades de criação que os ultrapassa. O outro se propagando no filme, o outro se inventando com o filme e com a memória. Se na fabulação há a passagem entre singularidades que se fazem coletivas na medida em que se transformam como parte de um devir coletivo, entendo que em Moscou há uma concentração no que ainda não achou a singularidade onde se desdobrar. Pois Moscou, e não apenas, parece já ser um desdobramento contemporâneo de uma prática que não para de se colocar à prova. Notas Flanantes (2008), de Clarissa Campolina, Sábado à Noite (2007), de Ivo Lopes, ou Encruzilhada aprazível (2007) de Ruy Vasconcelos, se juntam a Moscou ao forçarem o limite, desconfiarem do dispositivo e mesmo do encontro e praticamente evitarem que algo realmente se atualize. São filmes que se colocam sob o risco da não-atualização, seja dos personagens, dos discursos ou de um espaço. O interesse do documentário está em sustentar o “entre atualizações”, a individuação, a virtualidade, aquilo que ainda não pertence a x ou a y, mas que vibra e está a ponto de se atualizar. Nesses casos, filmes muito estranhos e curiosos, é como se essa vibração fosse o filme todo, na carência de algo que se solidifique, para o qual possamos tranquilamente apontar. São filmes que parecem estar ainda na vibração, sem o encontro (ainda), como se tivéssemos chegado cedo demais. Desde Rouch nos interessamos pelo documentário

17

fundado nessa atualização do ser. O sujeito, no filme, produz uma fala até então desconhecida, constrói uma ideia, transforma sua memória, inventa um corpo. Vemos e nos encantamos com filmados em vias de desaparecimento, não como sujeitos, mas como identidades. Como se a imagem fosse apenas um clarão fugidio de um ser que aparece e desaparece para que continuemos com tudo que está para além e aquém dele. Eis o lugar em que o espectador se insere. No desequilíbrio e no risco de nada se atualizar. Coutinho e Comolli se aproximam, Coutinho na angústia de não saber se há filme enquanto filma – às vezes nem enquanto monta. Comolli ao dizer que o problema é como fazer para que haja filme. Ora, e se nada se atualizar, e se o real não deixar a sua vibração e potência, e se não vier à superfície aquilo que se atualiza em direção a mil mundos possíveis? Seria essa suspensão radical, esses filmes silenciosos e dispersos, uma reação à inflacionada presença do homem ordinário na imagem, na televisão e no documentário? Homem ordinário esse que tão raramente aparece fora dos polos que o colocam entre exemplo – Estamira (2004), de Marcos Prado – ou puro grito, tão frequente no jornalismo. Ser exemplo ou um grito é sempre uma construção exterior, uma fabricação discursiva e estética; o papel do documentário é recolocar esses sujeitos na política, o que não se faz sem escritura, sem tensão e dissenso – entre as próprias imagens –, sem paciência de todas as partes. O exemplo e o grito (Rancière, 1995) são velhos conhecidos, a política é a diferença; o um qualquer que pode aparecer de qualquer lugar e fazer diferença na polis. O personagem exemplar deve atender às necessidades que não lhe pertencem, o personagem que grita, que reclama, pode ter sua demanda aceita, como discurso, mas se enquadra no próprio discurso que avisa que sua demanda não pode ainda ser atendida. Nos dois casos, na excentricidade ou na nulidade, não há comunidade possível, não há conexão, tensão. Pensar o outro como singular é colocá-lo como presente na polis, alguém que não é exemplar, mas faz diferença na comunidade, por vezes simplesmente porque nele

18

passa um mundo que não é igual sem ele – microesteticamente falando. O singular não é o exemplar, nem o que sente diferente do outro ele é; justamente o que faz vibrar – sem isolamento – um mundo na sua diferença, eis o interesse da singularidade no cinema documentário. Mas, como vimos, não podemos nos fiar em um elogio incondicional do encontro e da conexão entre os múltiplos atores que fazem a cena documental. Conectar, se colocar em relação com o outro, procurar coimplicações, confrontações com o espaço coletivo; ação no lugar da contemplação, a experiência para alargar o saber, os gestos, as atitudes, os conhecimentos, dinamizar as criações e as conexões, possibilitando a vivência de fenômenos inéditos, “o cineasta como conector”. Enfim, são exemplos em que a crítica ao isolamento do artista, que enseja uma territorialização do ser e do mundo, encontra, no elogio à proposição contrária – conexão, “estar junto”, improviso, escuta e experiência com a diferença –, os caminhos para um processo de individuação do espectador e do documentarista que forjam um outro mundo sem isolamento. Entretanto, com sabemos, é o próprio lugar do capitalismo e de diversos poderes contemporâneos que, ao estabelecer um lugar crítico em relação à disciplina, passa a operar buscando a experiência e a conexão. A experiência, a produção subjetiva, o elogio ao conexionismo não estão separados de um paradoxo próprio às formas como a vida e suas potências estéticas, conexionistas e afetivas interessam os mais diversos poderes. Foi a própria expansão do capitalismo que demandou uma ruptura com padrões de conduta normatizados. Como escreveu Vladimir Safatle, com base em uma leitura de O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, “o capitalismo não procura mais impor conteúdos normativos privilegiados, mas socializar o desejo por meio de sua desterritorialização violenta, da fragilização de seus próprios códigos, da flexibilização das identidades que ele mesmo produz”. Se efetivamente estamos em uma sociedade de controle que enseja transformações radicais na forma como a vida é demandada pelo

19

poderes, não apenas o corpo da disciplina ou a gestão da população na biopolítica, mas uma liberação de potencialidades de invenção subjetivas que gerará novos produtos e consumidores capazes de fazer, inventar e reinventar o – e no – capitalismo hedonista, pós-disciplinar, não-normatizador, decodificador dos fluxos sociais e subjetivos, seria o próprio roteiro – essa mão invisível fora das tensões cotidianas e subjetivas, como colocado por Comolli – que não operaria mais nos destinos do capitalismo. Nossas vidas são demandas fora do roteiro, e talvez não exista maior motivo de angústia do que a exigência de sair do roteiro. Se há uma dicotomia entre a cena como o espaço do acontecimento – esse encontro entre vários em que algo se produz – e o roteiro como a ordem que carece de acontecimento, despotencializada, não podemos simplesmente aderir a uma tomada de posição sem levar em consideração que é próprio ao capitalismo contemporâneo uma apropriação da invenção subjetiva individual e coletiva; aliás, mais do que uma apropriação: o capitalismo contemporâneo é a atualização de uma potência dos sujeitos e do capital. Potência de invenção (e captura) de mundo sensível. “Uma produção que não se faz sem uma produção de mundo que é o próprio acontecimento entre os sujeitos e seus processos subjetivos e as forças do capitalismo. Uma empresa não cria um objeto (mercadoria), mas o mundo onde o objeto existe”, escreve Lazzarato ao discutir as “revoluções do capitalismo”. E nós completaríamos: esse mundo é feito com a participação e o engajamento dos sujeitos, não necessariamente privilegiados, pelo funcionamento do capitalismo. Eis seu efeito simbólico. Lazzarato completa afirmando que na sociedade de controle a questão é efetuar os mundos. Podemos dizer, assim, que a guerra econômica do capitalismo é uma guerra sensível, uma disputa que se dá na virtualidade, no acontecimento. É nessa disputa sem fora que o documentário encontra e tensiona o capitalismo. A luta é paradoxal e sem inimigos localizáveis. Toda percepção foucaultiana de poder – em sua dimensão produtiva e micropolítica –

20

parece mais atual do que nunca. No momento em que as disputas se dão no nível das produções subjetivadas, não mais por molde – “seja isso ou aquilo” –, mas por modulação – “seja isso, mas invente algo” –, o documentário é um projeto político e estético inserido no interior desse paradoxo, já que interessado no outro, nas trocas, nas diferenças e no desconhecido. Em algum momento esse fluxo de produção subjetiva, de formas de ser e habitar o mundo, deve ser interrompido pelo capital para que ele possa ser funcionalizado. Fluxo e corte, velocidade e estagnação – essas duplas andam juntas no capitalismo. Mas imaginar e inventar o real é um meio sem fim, definição mesma da política (Agamben, 2002). O documentário não opera interrompendo o fluxo, sua velocidade é infinita e anacrônica. Em seu artigo, André França recoloca a sempre necessária pergunta: por que fazer documentário? Certamente não há uma resposta única, mas se o documentário insiste, urgentemente, é porque o real está sendo inventado, com imaginação e ficção, porque podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam sem fazer diferença no mundo, porque os recortes do que é visível e do que é dizível dependem da nossa força de imaginação e de invenção do real. Porque diante da dor do outro não há retake. * Rouch – sempre ele – percebera pela antropologia algo de que o cinema iria se apropriar de maneira indelével: a realidade é inseparável da imaginação. Ficcionalizar e viver a realidade, sonhar e carregar sacos no porto de Abidjan (Eu, um negro, 1958) são partes de uma mesma vida que o documentário não pode negligenciar. “Fazendo de conta, ficamos mais perto da realidade”, diz Rouch. Fazer de conta nos filmes de Rouch não era apenas um agenciamento para fazer parecer verdadeiro o que era falso, não se trata de encenar para o filme o que na vida acontece coti-

21

dianamente, mas de fazer da cena a possibilidade de um acontecimento, fazer da encenação uma diferença com o já conhecido. Ficcionalizar já é em si mudança, e não mimese realista, o que vemos com toda clareza na mimese irônica do mundo inglês feita pelos Houka, em Gana, no filme Os mestres loucos (1955). Uma prática renovada em documentários recentes como o próprio Jogo de cena, mas também em Avenida Brasília formosa (2009), de Gabriel Mascaro, no brilhante Aquele meu querido mês de agosto (2008), do português Miguel Gomes, e na trilogia do também português Pedro Costa, O quarto de Vanda (2000), Ossos (1997) e Juventude em marcha (2006). Uma das noções que permitem abordar essa relação reflexiva e inventiva com o real no documentário contemporâneo é a de ensaio. Estava claro que o documentário se distanciava de uma cientificidade e de uma possibilidade de pura objetividade em relação ao seus objetos. Estava claro que os realizadores se faziam presentes ao falarem na primeira pessoa, ao forjarem montagens de imagens com encadeamentos que passavam pelos desejos, histórias e contextos do filme e do realizador. Entretanto, estava claro também que havia nesse lugar reflexivo dos filmes um desejo de outro: outras instituições, outras vidas, outros ritmos, sons e histórias – o teatro, o índio, o cotidiano de uma pequena cidade . O ensaísta estranha e conecta, estranha e observa, estranha e se interroga, sempre no limite do fracasso. André Brasil reflete sobre essa forma ensaio com base em quatro vídeos que transitam entre o documentário e o universo das artes. Em seu artigo, mais do que uma análise das obras ou uma reflexão sobre a forma ensaio, o autor mimetiza a característica que mais lhe interessa nas obras, um certo movimento do pensamento que não cessa de se diferenciar de si mesmo. Utopia política na imanência, como escreveram Deleuze e Guattari: “O pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito.” Nesse sentido, interessam-nos os filmes que não renunciam a um desvendar da história e do outro, mas se propõem a fazê-lo de

22

maneira fluida, incerta, ficcional, esburacada. Seres sem limites claros, sem palavras precisas, mas que precisam de palavras; sem imagens ou espaços precisos, mas que se ensaiam com as imagens. Por vezes é com atores que se chega nas invenções com o real, outras vezes na recepção do acaso ou na insistência dos tempos. No artigo “A câmera lúcida”, José Carlos Avellar escolhe dois filmes paradigmáticos dessa relação entre fabulação das pessoas que viveram a história e atuação de atores que, de maneiras distintas, nos dão a ver ainda outras formas de estar no mundo, além daquela que interpretam, para depois fazê-los dialogar com um filme de ficção, Mutum, de Sandra Kogut. O texto entra, assim, no próprio processo dos filmes. Adorno nos diz que “o ensaio não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório”. E Comolli lembra que “o movimento do mundo não se interrompe para que o documentarista possa lapidar seu sistema de escrita”. O homem ordinário do documentário, por mais banal que seja, não está na rua, à disposição de uma narrativa fechada e bem-acabada. O documentário ensaístico se dispõe ao risco dos movimentos que são próprios às vidas. Movimentos por vezes minimamente perceptíveis, fagulhas de desejo e de tesão, vontades de vida presentes em um gesto, em uma fala confusa – Andarilho (2006), Acidente (2006), As vilas volantes, O verbo contra o vento (2005) Jogo de cena (2008), Do outro lado do rio (2004), Man. Road. River. (2004). Eis a complexidade com a qual o ensaio se permite um contato. Complexidade do pensamento que se aventura no sem-limite das vidas. O complexo não demanda a profundidade, confusão que a busca da objetividade e do pensamento dedutivo arraigou no pensamento complexo. A profundidade frequentemente traz a limpeza que subtrai o ser. A complexidade do ensaio é frequentemente de superfície, operando em extensão, por montagem. A montagem: possibilidade de multiplicar e fazer coexistirem velocidades e vetores antagônicos, a velocidade da queda livre que leva Carapiru – Serras da Desordem (2006), de Andréa Tonacci, ao centro

23

do capitalismo que continua a demandar energias arcaicas, à velocidade da flutuação de Carapiru entre línguas que ele desconhece e deriva no consenso do “é bom”. Acordo e desacordo em uma mesma frase/gesto. Disparidade de vetores: do indivíduo e suas profundezas, do índio para o mundo e suas superfícies. A instabilidade dos enunciados do ensaio não se faz em detrimento nem da profundidade, nem da extensão em superfície. Nesses filmes e ensaios que aqui nos interessam, junto às vidas há o próprio trabalho das imagens. São essas também que os documentários põem a trabalho. Mas, quando é que as imagens param de trabalhar? Primeiramente quando ela é tudo o que se pode ver ou dizer sobre um evento, quando ela dá conta de todo dizível, quando ela não tem mais nada a esconder e passa a operar em um tal nível de transparência que nada resta – uma hipertransparência. Essa falta de trabalho aparece de maneira premente nas imagens mais ligadas a um certo cinismo do capitalismo, aquele que não esconde mais seus objetivos outrora inconfessáveis. Cinismo que aparece no cerne da democracia liberal contemporânea, em que não há mais nada a ser desmascarado, mais nada a ser denunciado, apenas um acordo consensual entre a lógica capitalista e o poder político. As denúncias de corrupção e manipulação servem antes como forma de exercer a falsa consciência esclarecida (Sloterdijk) da mídia. Como nos lembram Deleuze e Guattari, “no capitalismo, tudo é racional, menos o capital”. Racionalizar o capital é parte da operação mais cínica que envolve as imagens. A publicidade incorporou sua crítica ou o voyeurismo das emissões televisivas que visam a moldar os participantes, como o quadro “Mudança geral”, apresentado no programa Fantástico, da Rede Globo, em 2009. Nestes casos, a adequação absoluta entre o fim e os meios elimina a imagem como trabalho que demanda o espectador, uma vez que tudo o que há a sentir e dizer já está dito na imagem e na sua perfeita adequação; mesmo que o fim seja perverso, nada precisa ser escondido. A imagem para de trabalhar quando, por outro lado, não há mais nada para ver. Quando ela não se liga mais com nada. Quando ela

24

é apenas uma aparição que perdeu o evento. Uma publicidade de um carro que anda a 200 km por hora e que perdeu a poluição e o engarrafamento da Linha Amarela. Uma mãe que perdeu o filho com a queda de um barraco. Seu choro para as câmeras do jornalismo não apresenta qualquer distância em relação ao clichê do que é o barraco cair com a chuva, no Rio de Janeiro ou em Bangladesh. A imagem para de trabalhar quando o grito não se liga com o contexto, só nessa abertura é possível fazer diferença na polis. É só na possibilidade de o grito se conectar a outras imagens e outros eventos que a imagem passa a existir. A democracia liberal, a face administrativa do capitalismo contemporâneo, nos acostumou à universalidade dos direitos; entretanto, dentro de seus princípios, a presença da voz e das reivindicações dos excluídos e explorados aparece no momento em que estão organizados e como minoria – numericamente falando –, uma minoria que deve ter a paciência e a continuidade das lutas ininterruptas e lentas. Como representações efetivas, são irrelevantes na polis. Pois no documentário que nos interessa, quando se aproxima daquele que não tem uma parte que faça diferença na polis, é de outra democracia que se trata: urgente e estética, opõe resistência nas formas como ocupa e inventa o tempo e o espaço. Imagens e sons operando resistências no nível mesmo da linguagem, resistência às máquinas de apaziguamento político dos conflitos estéticos operadas, principalmente, pela grande mídia. Compartilhar, urgentemente, um lugar para uma presença estética de outra ordem, que arromba o dizível, que inventa sensíveis e faz o pensamento não caber nele mesmo, eis o que nos parecem fazer as dobras das imagens – Juízo, Jogo de cena, a reencenação Serras da Desordem, e circulação não individual do texto e da estética – Acidente, Jogo de cena –, a atenção ao tempo e aos pequenos gestos do cotidiano – Encruzilhada aprazível, Man. Road. River. –, as reflexões sobre o poder – Santiago. Nessas invenções estéticas reside o documentário como força política que não reivindica nem a indignação do espectador, nem a culpa, mas uma

25

participação com um trabalho que não se faz sem a inadequação entre o narrado e a narração. Fazer as imagens trabalharem, ver duas vezes, dobrar a imagem para que o texto, o evento não sejam mais a história de um indivíduo, mas para que ela passe a ser compartilhada e engaje múltiplas subjetividades em suas diferenças.

26

27

A representação da política no documentário brasileiro

Miguel Pereira

Política é um termo de definição complexa. Cobre múltiplos significados, dependendo do contexto em que é aplicado. No presente texto, pretende dar conta do que podemos chamar de campo institucional da política. Não se trata do conceito de biopolítica utilizado por Michel Foucault para se referir aos procedimentos do poder enquanto forma de sujeição dos indivíduos ou sujeitos, utilizados como “máquina de produzir”. Partimos do pressuposto de que a política é a arte e a técnica de um discurso sobre a organização da sociedade. Estamos assim mais próximos do sentido original criado pelos gregos relacionado à polis, isto é, ao espaço da convivência e da troca das experiências humanas. Ao mesmo tempo, o lugar da organização dos espaços públicos como ambientes comuns diretos ou indiretos, por meio de representatividade ou outras formas de legitimação, onde se movem todos os atores de uma sociedade. Também faz parte da política o processo ritualístico e consensuado desses movimentos que podem tomar feições múltiplas e diferenciadas de cultura para cultura. É neste sentido provisório que vamos analisar três documentários brasileiros recentes que tratam exatamente do movimento que constrói a ação política e seu discurso sobre ela. Entreatos, de João Moreira Salles, é um documentário lançado em 2004 nos cinemas brasileiros, que narra os últimos 30 dias da campanha política do então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva. Vocação do poder, de Eduardo Escorel e José Joffily, é também um documentário que acompanha seis candidatos a vereador, durante o processo eleitoral, no município do Rio de Janeiro, em 2004. Utopia

28

e barbárie, de Silvio Tendler, recém-terminado, é um longa-metragem com lançamento previsto para 2009. Seu tema é uma viagem à segunda metade do século XX, focando episódios em que as utopias dos anos 1960 convivem com as barbáries das sociedades do período. Esses três documentários têm em comum a política na sua conceituação mais estrita, isto é, a conquista do poder. Poder e representação fílmica Michel Foucault fala do poder como algo que perpassa todos os meandros da vida humana. Significa dizer, pelo menos para Foucault, que a política faz parte do jogo da vida. Por outro lado, o discurso, aqui entendido em sua acepção ao mesmo tempo ampla e difusa, é a moeda central da dinâmica que sustenta o espaço onde se dão as negociações políticas. Portanto, quer falemos de política no seu sentido estrito como no amplo, uma gama enorme de possibilidades de abordagem desse tema se apresenta para quem se propõe refletir, de um modo minimamente sistemático, sobre esse campo da atividade humana. No caso presente, interessa apenas a representação da política mediada pelo cinema, e, em especial, pelo cinema documentário brasileiro recente. No entanto, antes de chegarmos aos documentários, merece um pequeno exame o conceito-chave de representação que aqui está referido. Como o de política, também a questão da representação se abre a inúmeras significações, a tal ponto que hoje já se fala da crise da representação. Na tradição do termo, representação significa imagem ou ideia. Portanto, intimamente ligada ao conhecimento, entendido com “semelhança do objeto”. Esta tradição vem da filosofia tomista, para a qual a representação deve “conter a semelhança da coisa”. Citando Guilherme de Ockham, Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de filosofia, faz uma espécie de minipercurso do conceito:

29

Guilherme de Ockham distinguia três significações fundamentais: Representar – dizia – tem vários sentidos. Em primeiro lugar, entende-se por este termo aquilo por meio de que se conhece algo e nesse sentido o conhecimento é representativo, e representar significa ser aquilo por meio de que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar, entende-se por representar o fato de se conhecer alguma coisa, conhecida a qual conhece-se outra coisa; e neste sentido a imagem representa aquilo de que é imagem, no ato da lembrança. Em terceiro lugar, entende-se por representar causar o conhecimento, da maneira como o objeto causa o conhecimento. No primeiro sentido, a representação é a ideia no sentido mais geral; no segundo sentido, é a imagem; no terceiro, é o próprio objeto. Estas são, na realidade, todas as significações possíveis do termo: o qual foi tornado novamente significativo pela noção cartesiana da ideia como “quadro” ou “imagem” da coisa; e foi difundido sobretudo por Leibniz, que considerava toda mônada como uma representação do universo.

Representar, portanto, não significa substituir ou igualar, mas de algum modo fazer inteligível o objeto cuja realidade precede a representação. Para Fernando Gil, “a representação testemunha uma eficácia daquilo que é representado sobre o representante. Mas ela é igualmente o produto da atividade construtiva do sujeito: mesmo a receptividade da sensibilidade se acha submetida a regras”. Isto nos leva à questão da objetividade do conhecimento, levantada por Kant, entre outros pensadores. Diz Fernando Gil:

30

Para haver objetividade requer-se uma homogeneidade entre o sujeito e o objeto, que apenas pode assentar sobre a organização da representação pelo sujeito. Mas essa mesma atividade construtiva ameaçará, por outra via, a objetividade e a verdade da representação: como pretender, então, que esta se refere ao objeto que supostamente descreve?

Essa pergunta nos conduz a inúmeros impasses a respeito da representação. Portanto, não podemos pensar a imagem como um duplo igual do mundo. Assemelha-se a ele, mas não é ele. A representação tem assim um dado fundamental em sua natureza própria. Ela é do âmbito do sujeito e ao mesmo tempo guarda semelhança com o objeto. Se o que vemos na tela é uma representação, é óbvio que a sua construção é o lugar de um sujeito, aquele que se coloca como observador e criador dessas imagens. Temos assim uma operação complexa que começa com o sujeito-realizador, a mediação de uma técnica e de uma equipe, composta de outros sujeitos, em diferentes fases de elaboração, um objeto construído ou não para a câmera, e um outro sujeito, este o espectador, que reconstrói todo o processo complexo com a sua capacidade intelectual e emotiva. Significa dizer que o documentário como representação só se realiza inteiramente ao nos colocarmos no ambiente de um processo que só acontece com a projeção ou exibição da obra. Portanto, dentro de uma fenomenologia ampla, complexa e sempre circunstanciada em relação às diferentes experiências envolvidas nesse processo construtivo. Bill Nichols caracteriza esses passos do mesmo fenômeno com algumas modalidades de representação que ele classifica em expositiva, de observação, interativa e reflexiva. Completa seu quadro estabelecendo o lugar de cada ator envolvido nesse processo do realizador ou espectador, passando pelos diversos sujeitos da representação. Assim, questões como a ética, a política e a ideologia são campos necessariamente presentes em qualquer forma de cinema documentário.

31

No caso específico dos filmes que vamos analisar, a esses diferentes filtros acresce ainda o dos sujeitos-objetos dos filmes. São falas e expressões únicas, individuais, dramatizadas ou espontâneas, que também são construídas pelo poder das ideologias, tanto próprias de cada sujeito, quanto expressas por algum tipo de consenso. Não são, porém, coletivas. Este foi certamente um erro histórico de formas políticas que pretenderam ser totalizantes. Não se trata de projetos. Política aqui entendida é mesmo o poder. O que fazer com ele é exatamente o sentido dado ao espaço ocupado pela política, onde o conceito de representação não se reduz à imagem, mas assume a ideia da proporcionalidade, e, portanto, a forma institucional de se realizar o processo democrático da cidadania. Estamos assim diante de um emaranhado desafiador e de extrema complexidade e inteligibilidade. É, portanto, um desafio buscar nos documentários o sentido da representação social que eles captam e jogar sobre ele outras leituras também condicionadas por sujeitos distantes do processo, isto é, aqueles, como eu, que se apropriam dessas representações e a elas dão um sentido particular. Vocação Quando Eduardo Escorel e José Joffily decidiram investigar o que motiva uma pessoa a optar pela carreira política, tinham saído de uma outra experiência em que a pergunta era mais ou menos a mesma. O chamado de Deus, filme anterior de ambos, focava jovens que decidiram ser padres. Investigavam, portanto, a formação dos futuros sacerdotes católicos, os chamados seminaristas. De certo modo, Vocação do poder também focaliza a formação do político, embora não do ponto de vista intelectual ou doutrinário. O que está em jogo neste filme é o processo eleitoral e, em especial, a campanha eleitoral. O mesmo acontece com Entreatos, filme de João Moreira Salles, que registra a fase final da campanha de Lula à presidência da República, onde a construção do político se expressa em sua maturidade e domínio da cena. Em pouquíssimos

32

momentos do filme a atitude do candidato é insegura ou titubeante. A sua imagem é a de um sujeito que domina o espaço de sua ação com extrema familiariedade, talvez por já ter vivido, como derrotado, outras jornadas. A parte relativa à formação política de Lula está em outro filme, Peões, de Eduardo Coutinho, onde as inseguranças pessoais são evidenciadas em certas imagens repetidas na montagem realizada pelo cineasta. Também Utopia e barbárie, de Silvio Tendler, fala da vocação política, neste caso, uma vocação estendida a uma geopolítica mundial. Assim, os três documentários têm a mesma questão como ponto de partida: a política como vocação. O filme de Eduardo Escorel e José Joffily selecionou seis candidatos a vereador do município do Rio de Janeiro a partir de critérios que procuravam contemplar diversidade de representações partidárias, diferentes áreas geográficas e sociais da cidade e que fossem estreantes em eleições. A escolha recaiu sobre três na faixa etária dos 20 anos, dois na de 30 e uma na de 40, uma mulher e cinco homens. Segundo informações contidas no press release do filme, Antonio Pedro Figueira de Mello era um empresário de 30 anos. Foi coordenador de eventos da subprefeitura da Barra da Tijuca e diretor do Parque Nacional da Tijuca. Suas propostas para a Câmara de Vereadores incluíam ações voltadas para a melhoria do turismo e da qualidade de vida dos cariocas. Já Carlo Caiado, de 24 anos, começou a atuar na política como assessor do deputado estadual Elder Dantas. De 2001 a 2004, atuou na Subprefeitura da Barra da Tijuca, foi administrador regional do Recreio dos Bandeirantes. Quando era candidato, Caiado estava concluindo o curso de Administração de Empresas na PUC-Rio. André Luiz Filho, de 21 anos, concorreu ao cargo de vereador pelo PMDB. Era o herdeiro político dos pais, a deputada estadual Eliana Ribeiro e o deputado federal André Luiz, que teve o seu mandato cassado depois de encerrada a edição final do filme. André Luiz Filho estudava Direito na PUC-Rio. Márcia Teixeira, de 45 anos, era pastora do projeto Nova Vida, fundado junto com o marido,

33

Ezequiel Teixeira. Realizava trabalhos em várias comunidades do Rio de Janeiro, especialmente, em Irajá. Na época da produção do filme, o projeto tinha mais de 50 igrejas no Brasil, Portugal, Argentina e Estados Unidos. MC Geléia, de 27 anos, compositor de rap e produtor musical. Fundou o Instituto Cidadão Funkeiro, que objetiva a integração social através da música. Morava em Anchieta e concorreu à vereança pelo Partido Verde. Por fim, Felipe Santa Cruz, advogado e mestre em direito pela UFF, era professor universitário. Na faculdade, foi presidente do Centro Acadêmico de Direito e do Diretório Central dos Estudantes. A descrição do material de imprensa traça um perfil sintético dos candidatos à maneira como se apresentam nos programas eleitorais gratuitos. à exceção da pastora Márcia, que já passava dos 40, todos eram ainda muito jovens, mas tinham algum tipo de experiência com o espaço público. Mesmo o mais novo, André Luiz Filho, tinha uma atuação política compartilhada com os pais, profissionais da política, estando, portanto, habituado com os rituais desse tipo de processo. O filme, no entanto, foi construído a partir de um questionário online onde os candidatos interessados em dele participar poderiam responder a 16 perguntas referentes à sua orientação política, partidária e às condições da campanha. Este primeiro questionário, que obteve cerca de 70 respostas, permitiu a identificação de possíveis personagens. Na etapa seguinte foram realizadas 30 entrevistas com câmera digital que, depois de analisadas, resultaram no acompanhamento de 12 candidatos no início da campanha, durante os meses de junho e julho de 2004. Desses 12, dois não quiseram continuar no filme e outros quatro foram eliminados antes da gravação final. As filmagens foram feitas durante 42 dias descontínuos. Como resultado, foram gravadas mais de 89 horas, das quais restaram 110 minutos. É óbvio que muitos filmes diferentes poderiam ser feitos. Proporção bem maior foi o material gravado por João Moreira Salles para Entreatos, mais de 240 horas. Diante desse monumental registro, João se interessou apenas pelo que ele chamou de “cenas não públicas

34

de Lula. Lula nos carros, nos hotéis, nos aviões, nos camarins”, isto é, “cenas mais reservadas”. João diz isso em off, logo no início do filme, mas não explica com mais detalhes o porquê da escolha. Simplesmente realiza o filme com este critério básico. Dos poucos discursos registrados na versão final do filme está o que poderíamos chamar de a sua “vocação da política”, logo no início do filme. É quando Lula fala para representantes de mais de 25 sindicatos de Osasco e diz: (...) tudo que eu sou não é fruto da minha inteligência, não. É fruto da consciência política da classe trabalhadora brasileira. Na medida em que vocês evoluíram politicamente, na medida em que ficaram mais exigentes, tive o privilégio, quem sabe a graça de Deus, de ter aparecido no sindicato e virei o porta-voz de uma ansiedade que existia na classe trabalhadora (Falas tiradas da banda de diálogos do filme).

Essa, sem dúvida, foi a formação política de Lula. Suas palavras, no entanto, parecem revelar certa predestinação, certo messianismo. Uma consciência de si como uma pessoa imbuída de uma missão. Não falo da real intenção de Lula, pois só ele pode revelar esse desejo de forma mais explícita. Mas não parece restar dúvida que esse é o pensamento de João Moreira Salles quando seleciona esta fala de Lula logo no início do seu filme. Isto é, Lula fala em nome de... Tem, portanto, um projeto político que envolve o grupo que o fez, ou, em outras palavras, revela a intenção de satisfazer a ansiedade de sua classe. Certamente essa possibilidade passa pela chegada ao poder. Vocação política é indiscutivelmente a de Silvio Tendler. Utopia e barbárie é uma espécie de autobiografia espiritual do cineasta. Fala de suas crenças, de sua trajetória, como uma espécie de viagem às ilusões e desilusões experimentadas no decorrer do seu tempo existencial. Seu ponto de vista parte do fora de si, isto é, dos acontecimentos históricos

35

que o marcaram, para se indagar enquanto um ser político que atua no mundo para mudá-lo, ajudar a corrigir seus erros, para buscar soluções, para educar e se educar. Esta dimensão pedagógica é absolutamente intrínseca ao cinema de Silvio Tendler. Ele acredita no poder da política. Explicita em cada detalhe de seu trabalho essa ansiedade de que fala Lula em seu discurso para os sindicalistas de Osasco. Silvio atravessa as fronteiras geográficas e se liga num mundo em que ainda existem ideias a ser elaboradas e processadas. Se o Vietnã de hoje está globalizado nas marcas de produtos ocidentais, como mostra o filme, não significa que existe uma capitulação ao sentido apenas hedonista da vida. As palavras finais de Apolônio de Carvalho conduzem a um pensamento mais generoso de um futuro que suplante a barbárie. Silvio Tendler é hoje o que sempre foi: um crente na política como modo de transformação do hoje pelo amanhã melhor, republicano. E nisso é didático em sua cinematografia poderosa. Mas é um didático que elabora o conhecimento, que constrói o saber, que articula os discursos dos outros para construir o seu, sempre fundado na esperança de um mundo em mudança para melhor. Espaço e tempo Construções diferenciadas que privilegiam espaços e tempos diversos. Se Entreatos focaliza um personagem que se desloca por inúmeros espaços na dimensão do nacional, Vocação do poder se concentra no município do Rio de Janeiro e registra a trajetória de seis personagens, enquanto Utopia e barbárie tem como palco o mundo e grandes personagens da história do século XX. Mas, os três filmes nos propõem aquilo que Tomás Gutiérrez Alea define como “o outro em nós”. Na verdade, os três buscam fora de si o sentido para o “acontecimento” ou os “acontecimentos” que também estão em nós, ou, melhor dizendo, que nos dizem respeito. Assim, da épica ao drama, a construção passa pela emoção e pela razão. Citando Gutiérrez Alea na comparação que faz entre Eisenstein e Brecht:

36

Se de um lado Eisenstein vai “da imagem ao sentimento e do sentimento à ideia”, Brecht dá um passo a mais e adverte-nos que embora o sentimento possa estimular a razão, esta, por outro lado, purifica nossos sentimentos. Paradoxalmente, Eisenstein, o mais apaixonado, conduz seu trabalho investigativo para a lógica das emoções, ao passo que Brecht, o mais frio aparentemente e em todo caso o mais rigoroso, deixa-se vencer pela emoção da lógica.

Do mesmo modo que se pode dizer, ainda com Gutiérrez Alea, que os dois momentos da relação espetáculo-espectador são de um lado “o pathos, o êxtase, a alienação; e de outro lado o distanciamento, o reconhecimento da realidade, a desalienação”, a relação do sujeito-realizador com o seu objeto também passa por este mesmo processo. Isto é, espaço e tempo do pensar e do viver perpassam a experiência que se traduz na realização de um filme, em especial de um documentário em que as negociações são, frequentemente, atravessadas por acasos, imprevistos, descontroles, emoções, enfim, toda uma gama de experiências que hoje já se tornaram, em muitos casos, matéria das narrativas. Quando as imagens não conseguem explicar tudo, a voz em off entra para dar ao espectador um recado organizador. Isso acontece com João Moreira Salles e Silvio Tendler. Mas também os textos ajudam nessa forma de narrar, pois dão ordem, estabelecem conexões, ajudam no raciocínio do espectador. A lógica desse processo passa primeiro pelos realizadores. São decisões muitas vezes consensuais, outras casuais, outras ainda ditadas pela necessidade de um certo didatismo. Assim, os três filmes, de um modo ou de outro, se utilizam de estratégias semelhantes, embora busquem estilos próprios ao narrar e deixar-se narrar por seus personagens. O espaço fica diluído entre o lugar do narrador-primeiro que se utiliza dos procedimentos e estratégias inerentes ao aparato e o lugar do aprisionado pela representação de si que nada pode fazer, a não ser ver o resultado

37

final. É curiosa, por exemplo, a fala de João Moreira Salles quando afirma, em off, que Lula em nenhum momento pediu para exercer algum controle sobre o filme. A observação faz sentido, pois talvez não existisse filme caso o candidato fizesse essa exigência. Afinal, não se tratava de um filme publicitário. Lula não era o cliente de João Moreira Salles. Assim, os atores dessas representações estão em posições espaciais diferentes e se encontram ou desencontram em tempos iguais. A variável tempo não muda. Foi o que foi no primeiro tempo e é o que é nos tempos seguintes. Encurta apenas em função da narração. Mas é sempre presente, toda vez que a obra é exposta. Atravessa todos os espaços mapeados pelas imagens dos fatos ou dos objetos e a imaginação, sentimento e razão dos sujeitos últimos, ou seja, dos espectadores. O documentário exerce um poder de ambiguidade talvez maior que a ficção, pois sua construção é reconstruída infinitas vezes. É quase sempre uma obra em aberto, mesmo que conduzida pela mão firme de seu autor. Entreatos, visto hoje, depois da crise vivida pelo governo Lula, da sua aparente superação e da sua significativa popularidade, adquire o sentido de uma história de fadas. Nem parece um filme político. É a história de uma vitória que impactou o país e o mundo, pois Lula teve uma estrondosa votação e vem construindo a figura de um lider mundial reconhecido. Um capital de grande poder simbólico que resiste a muitos estragos que ainda poderão aparecer. A opção de João Moreira Salles por se fixar nas cenas menos públicas do candidato revelou-se um instrumento eficaz de observação da atitude humana, dando ao documentário um sentido em que o político não se separa do pessoal, comprovando, portanto, o que Foucault chama de biopolítica. Além disso, seu filme atravessa as conjunturas e revela um personagem vitorioso, determinado, condutor de sua cena, autônomo. Mesmo em conversas ao pé do ouvido, a imagem que o filme constrói de Lula é de uma pessoa que escolhe da gravata ao tipo de vida que deseja. Trata-se de um personagem que parece realizado. Concretizou o sonho. Fez

38

da política a sua realização pessoal legítima. Mas, diferentemente dos personagens do filme Vocação do poder, Lula ainda está embalado por um sonho utópico. Essa parece ser a crença do filme de João Moreira Salles. Lula torna-se o símbolo de uma nação “imaginada”, para usar a feliz expressão de Benedict Anderson. Neste particular, Entreatos tem mais pontos de contato com Utopia e barbárie do que com Vocação do poder. O que os aproxima é essa visão da possibilidade, ou da utopia, para usar o sentido que lhe dá Apolônio de Carvalho numa das suas eloquentes falas no filme de Silvio Tendler. Aliás, a expressão de felicidade estampada no rosto de Lula é muito assemelhada à do veterano militante que não perdeu o encanto pela vida, que já está bem perto do seu fim. Apolônio morreria pouco depois da entrevista que deu a Silvio Tendler. Já os personagens de Vocação do poder repetem uma tradição que teima em persistir na vida social brasileira. Do assistencialismo à imagem pública projetada pela mídia, a política é feita com os mais elementares princípios de um país ainda atado pelo obscurantismo de suas elites. Acrescenta-se a isso o pragmatismo de uma ação voltada para essa imagem construída pela expressão de um processo de esquecimento histórico. Não existem propostas além da carreira de cada um. Há uma certa dose de aventura inconsistente. Os dois vitoriosos estão articulados com máquinas muito expressivas. Uma religiosa e outra assistencialista. Um terceiro cuja votação foi bem superior à candidata da facção religiosa era também assistencialista. A pastora Márcia ganhou a eleição pela legenda. Mas, de qualquer modo, surge aí um novo fenômeno na política brasileira. O fundamentalismo religioso assumindo uma proposta de poder que não tem limites. A própria candidata fala da presidência da República como uma aspiração, segundo a vontade de Deus. Ora, esse novo político nada tem de novo. Apenas a idade, pois repete as mesmas práticas que há séculos são de uso corrente na política brasileira. Do clientelismo ao patrimonialismo, passando pelo populismo e o assistencialismo, agora

39

associados ao fundamentalismo religioso, Vocação do poder nos dá certo desalento em relação ao que se espera da política em nosso país. Ao mesmo tempo, as expectativas de mudança real parecem desencantar a muitos com os problemas que surgiram a partir de sucessivas crises do governo. Por outro lado, a barbárie está em todos os cantos do mundo. Do Iraque ao Rio de Janeiro, passando por Paris, Londres, Moscou e Nova York, o mundo “civilizado” está longe da civilização. Será que valeria a pena um retorno ao tempo dos projetos e dos sonhos coletivos? Há ainda alguma esperança na vida política do planeta? Esse parece ser o mote do filme de Silvio Tendler. Se de um lado mostra as frustrações dos sonhos acalentados por gerações formadas pelo desastre da Segunda Guerra Mundial e pela Revolução Russa de 1917, por outro se abre para a busca de alternativas que suplantem os conflitos mais próximos de cada sujeito e ator da vida social. Um exemplo de possíveis alternativas está no teatro de integração racial e religiosa testemunhado em Israel e Palestina por personagens do filme de Silvio Tendler. Tempos e espaços vividos por jovens que buscam saídas para a convivência entre os diferentes. Ao contrário do início do filme, que mostra o cinismo com que o presidente Truman anuncia a vitória americana depois de lançar a bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, o seu final nos dá um certo alento por registrar ações concretas de solidariedade e sociabilidade positiva entre israelenses e palestinos. Não estamos mais diante das dualidades simplistas e redutoras de um mundo polarizado, mas em complexos emaranhados de redes que subsistem aos controles finos ou agressivos do selvagem mundo capitalista. Ao argumento de Truman, que diz que “usamos a bomba para aliviar a agonia da guerra. Para salvar milhares de jovens americanos. Gastamos mais de dois bilhões de dólares na maior aposta científica da história. E vencemos!”, Silvio contrapõe a fala de Eduardo Galeano, que diz:

40

Por mais feitos que estejamos, não estamos terminados. E se não estamos terminados, podemos nos refazer, fazer-nos de novo, nos fazermos de outra maneira para que o mundo seja uma casa de todos, e não um campo de concentração para a maioria de seus habitantes. E para que sejamos capazes de recuperar a visão do outro, do próximo, deste que passa pela rua. Deste homem ou mulher que não conhecemos e que anda por aí. E deixarmos de vê-lo como ameaça e passarmos a vê-lo como uma promessa.

A distância entre as duas falas, uma no início e outra no final do filme, abrem e fecham um ciclo da nossa história que Edgar Morin sintetiza com precisão: “Vivemos a incerteza do futuro”, depois de passarmos pelas crises da modernidade com suas crenças na ciência, no progresso, na razão, na democracia. De certo modo, vivemos um tempo caracterizado pelo provisório, pela contínua mutação da ciência, da técnica, dos vírus, dos afetos e dos próprios seres humanos que se imaginam num espaço de fantasia ilimitada e potente. Estaria, então, o poder na natureza de cada um de nós e nos caberia, pois, civilizarmonos? Tendo ou não essa crença, como tantas outras que existem por aí, o filme de Silvio Tendler afirma o poder como algo que saiu do âmbito dos poderosos que faliram em suas ambições para o espaço dos indivíduos e suas capacidades de sobrevivência. Voltando ao início do filme, esse lugar é ocupado pela descrição da senhora Matsugawa, uma japonesa sobrevivente de Hiroshima que presenciou a cena de uma jovem mãe carregando o bebê nos braços e pedindo água para ele sem perceber que tinha no colo apenas o seu corpo sem a cabeça. Esse desespero cego é o outro lado da mesma moeda. Sabemos que a barbárie está também em nós. Silvio nos convida a nos percebermos como humanos e não como os seres descartáveis que a violência é capaz de produzir em nós. Os horrores continuam em múltiplas instâncias do cotidiano de todos

41

os lugares. Assim, o discurso de Silvio Tendler, proferido em seu nome próprio, mesmo que apropriando-se do dos outros, assume o espaço intervalar que Dziga Vertov teorizou em seus escritos sobre o cinema militante da Revolução Russa. É uma visão do global e não apenas do local. Essa intuição que percebe o pequeno no grande e o grande no pequeno nos joga nas fendas da vida e nos aproxima com uma nova potência do poder, aquele que se expressa pelo organismo vivo que todos somos. Intervalo Como dizia Dziga Vertov, o intervalo não é apenas um espaço entre uma coisa e outra. Na imagem do cineasta russo, é uma casa de doze paredes, tomadas em diferentes partes do mundo, formando uma “sala de intervalos” que não tem existência real, senão através do filme e de sua montagem. Isto é, tudo se toca, num movimento contínuo. Dizia ele: A matéria prima da arte do movimento não é de maneira alguma o movimento em si mesmo, mas os intervalos, a passagem de um movimento para outro. São eles (os intervalos) que levam a ação até a solução cinética. A organização do movimento é a organização desses elementos, quer dizer, dos intervalos em frases. Em cada frase há um ponto de partida, um apogeu e uma queda (que se manifestam em um grau mais ou menos elevado). A obra se constrói com frases da mesma maneira que cada frase se constrói com intervalos de movimento. Ao conhecer com precisão o cine-poema ou o fragmento, o kinok deve saber inscrevê-lo de maneira exata para poder dar-lhe vida na tela, em condições técnicas favoráveis.

Não importa se estes três filmes fazem parte de um só movimento ou não. Certamente, são poemas diferentes que têm em comum o

42

desejo da política ou, melhor dizendo, o desejo do poder. Mas, acima de tudo, esses três filmes são construídos também por seus intervalos. Não se trata simplesmente de uma interrupção do movimento, mas, de fato, de sua continuidade. Um discurso entra no outro como se fizessem parte de um único filme. Embora os estilos e formas cinematográficas sejam diversos, o ritmo sociopolítico aparece nesses pontos de ligação ocupados pelas montagens que tematizam as diferenças. Assim, do pragmatismo contemporâneo às relações com um mundo ainda sonhado do abrandamento das diferenças sociais, os três filmes encontram esse lugar construído pelos intervalos da reflexão sobre a política como vocação e como ação da mudança possível. De qualquer modo, cabe-nos perguntar se o movimento é uma dessas paredes, para usar a imagem de Vertov, que são construídas nos intervalos da globalização, fazendonos crer que o mundo ainda pode ser reconstruído de um modo mais humano e fraterno.

43

44

45

Deslocamentos subjetivos e reservas de mundo Ivana Bentes

Morrinho. Uma maquete de 300m2 na favela do Pereirão, no Rio de Janeiro, reproduz, a céu aberto, numa construção impressionante feita de barro, tijolos pintados, material reciclado, fiação, um duplo miniaturizado da própria favela. Caos-construção de casas, ruas, miniaturas de carros, postes, objetos, num conjunto impressionante. Uma maqueteminiatura-gigante, e mais: “vivendo” nela, uma população de moradores e visitantes, bonecos feitos de blocos de Lego que se movimentam pela mão de seus criadores. Além da arquitetura impressionante, a vida da favela é recriada, resignificada pelos brinquedos em miniatura, carrinhos, caveirão-Lego, moto-táxi-Lego, contador-de-história Lego (mestre Renato), molequeLego, dona-de-casa-Lego, uma escola de samba inteira em Lego, traficante-Lego, policial-Lego, e ainda Lego-artista, Lego-Saci-Pererê, miniaturas de dinossauros de banca de jornal, enfim: um mundo-ambiente que não reproduz simplesmente o estado das coisas, mas é pleno de virtualidades, saído da mais pura e primeira brincadeira de crianças, brincada por Nelcirlan Souza de Oliveira desde 1998, quando tinha 14 anos, no quintal de casa. A brincadeira juntou mais sete garotos que passaram a dar vida à micro-comunidade que nascia no quintal da casa de Nelcirlan, uma brincadeira tão intensa que se tornou a vida mesmo dos meninos, cada um assumindo diferentes personagens/bonecos Legos, com vozes, estilos, atitudes singulares, numa deriva sem fim. A maquete do Morrinho virou atração turística no Pereirão (apareceu no Faustão, viajou para Alemanha, Áustria etc.), e talvez se

46

tornasse só mais uma curiosidade turística (ao lado das esculturas de areia na praia, ou turismo de “experiência” na Rocinha) se o projeto não tivesse evoluído para a TV Morrinho, produção de micro-filmes em que os próprios garotos passaram a documentar as histórias, brincadeiras e dramas dos seus bonecos Lego na comunidade.1 Depois da TV Morrinho, veio a Ong Morrinho e dentro dela o projeto Morrinho Exposição, Morrinho Social etc. O fascínio pela maquete/cenário, brincadeira-arte, documentário das vidas/ficções dos bonecos Lego e seus criadores levaram o projeto, em 2006, a participar da 52a. Bienal de Veneza. A favela-maquete transplantada e remontada nos jardins da Bienal, na Itália. Tudo isso impressiona quem conhece o projeto, mas a questão que interessa aqui e que queremos pontuar passa pela transmutação ou fusão da vida em linguagem. Como a brincadeira dos meninos da favela, aquilo que era o não-valor, o tempo ocioso, o entre-escola, o intervalo entre os pequenos trabalhos e ocupações, se tornou valor, estética, trabalho-vivo, mobilizando a vida de cada um como um todo. Essa transmutação da vida em linguagem, um ponto de reviravolta nas suas trajetórias, se dá a partir do momento em que as fabulações experimentadas no quintal de casa, em que cada um assume um personagem Lego e lhe injeta tempo, subjetividade, vozes, gestos, passam a ser registradas/ficcionadas pelos próprios meninos, resultando em micro-filmes surpreendentes,2 ficções-documentais ou documentários das fabulações. 1 “No ano de 2001, em uma visita à comunidade para a realização de um documentário sobre a maquete, os diretores Fábio Gavião, Marco Oliveira e Francisco Franca convidaram os garotos para participar do trabalho de captação de imagens.” Fonte: www.tvmorrinho.com 2 A Piscina do Peri. O que acontece quando Peri constrói uma piscina e tem Dicró como vizinho?; Fico assim sem você. Videoclipe da versão remix da música “Fico assim sem você”, com interpretação de Adriana Calcanhotto, inspirado em Romeu e Julieta, de Shakespeare. Baile Funk. Baile funk na maquete do morrinho e na vida área. Acadêmicos do Morrinho parte 1 e 2 MC. Maiquinho, convicto cantor de funk, tem um grande desafio: cantar na escola de samba Acadêmicos do Morrinho; “A Revolta dos Bonecos”. Bonecos-Lego iniciam uma revolta no Morrinho, na tentativa de viajar para a Bienal de Veneza acompanhados de seus autores. Fonte: www.morrinho.com

47

Os vídeos de poucos minutos da TV Morrinho, todos realizados dentro da favela-maquete (Saci no Morrinho, A piscina do Perri, Acadêmicos do Morrinho I e II; A revolta dos bonecos) dissolvem a fronteira entre documentário/ficção, funcionando como autoetnografia, fabulação do cotidiano, ficcionalização do real, jogo/existência. A estética desses microfilmes nos interessa como ponto de partida de um mapeamento e análise, apenas esboçado e inicial, dos documentários produzidos fora do ambiente corporativo (dos “profissionais”) vindos das periferias, produzidos por amadores, por não-profissionais, por jovens das escolas livres de cinema e audiovisual, por todo um precariado urbano, em oficinas que se multiplicam em todo o país. Questões que não são exatamente novas, basta olhar para a história do cinema, o fascínio diante da banalidade/singularidade cotidiana no chamado cinema das origens: a vida nas ruas, os transeuntes e curiosos e suas reações diante da câmera, multidões entretidas pelas vitrines, flanando, ou absortas pelo trabalho como nas descrições de Benjamin e Baudelaire. Ou ainda a cidade “fábrica de fatos” de Vertov, e a massa/ sujeito da história de Eisenstein, o cinema verdade e cinema direto, as inquietações de Jean Rouch diante do outro, os personagens sem qualidades de Godard, até chegar a algumas questões do moderno cinema brasileiro e ao contexto contemporâneo. Momentos e problemas distintos nos quais não iremos nos deter aqui invocando apenas algumas inquietações recorrentes: a fragilidade conceitual da busca e afirmação das “identidades sociais” e a insuficiência das teorias das representações sociais para dar conta das singularidades das vidas-linguagens. Não se trata aqui, pois, de fetichizar a produção desses outros sujeitos do discurso, relacionados aos territórios da pobreza, nichos e guetos (e que muitas vezes reproduzem os mesmos clichês e estéticas dominantes). Não se trata também de carimbar essas produções com qualquer tipo de selo de “autenticidade” ou de autoridade, discurso

48

de afirmação de identidades e legitimação de grupos que incorrem no mesmo erro “essencialista” da busca de identidades prontas, mais ou menos valorizadas nas bolsas da cultura e que podem simplesmente produzir novos “clichês” e discursos de verdade. O que surpreende nesses microfilmes da TV Morrinho é uma restituição e transfiguração do “comum”, não simplesmente o “estado das coisas” e a banalidade cotidiana, no seu lirismo e/ou brutalidade, ou a encenação dos discursos midiáticos que contaminam o cinema brasileiro contemporâneo com filmes que muitas vezes são réplicasmaquetes do “senso comum”, duplicações de matrizes sociais gastas e despotencializadas. Se os filmes da TV Morrinho também trazem alguns discursos prontos (e certa infantilidade desconcertante), são de tal forma atravessados pelas vidas-linguagens que se expressam ali que vemos emergir qualidades novas, singularidades capazes de potencializar a pobreza dos discursos, a pobreza dos cenários e da realidade, tornados exuberantes na sua fantástica miniaturização, capazes de fazer aparecer a riqueza da pobreza, uma bios tornada estética e linguagem, que transborda e fere de morte os próprios clichês que porventura se instalem ali. A questão interessa para tentarmos abordar e pensar essa produção audiovisual “fora do lugar”, vinda de outros territórios e sujeitos que traz consigo um potencial político-estético ou, poderíamos arriscar, capazes de constituir uma bioestética, que poderíamos tentar definir por uma pergunta: Quais as possibilidades estéticas que essas vidas encerram? Ou, simplesmente, quais as potências e devires dessas existências? Pois o que surpreende nesses vídeos e filmes vindos de um “fora”, não simplesmente das favelas e de seus personagens, mas da favelamaquete que documenta e ficciona a vida, é a capacidade de produção de valores estéticos, estilos, modulações subjetivas, produção do sensível, de espaços nos quais se desenvolvem relações, lutas e produções de poder (biopolíticas).

49

A força desses microfilmes está na tensão que instituem entre esse cenário/maquete, colorido, vital, brutal e as vidas-Lego (bonecos que se movimentam pelas mãos dos meninos, com as suas mãos visíveis e vozes que vem do extracampo. O que surpreende é essa vida-estética, essa bios-linguagem que nasce daí, no confronto entre diferentes dispositivos: a favela-maquete, os personagens-Lego e as vozes, mãos, gestos dos meninos que fabulam a própria vida. A primeira vez que vi esses doc.fábulas, sua singularidade e ambiguidade me mobilizaram. Por encontrar uma certa falta de medidas, um incomensurável dessa vida-linguagem expressa pelos micro-documentários fabulados. Em Saci no Morrinho, de 2007 (realizado para o canal Nickelodeon)3, o Lego de Mestre Renato conta a história de um desconcertante Saci Pererê, deslocado para a favela do Morrinho. Um saci sinistro, com voz cavernosa e cheio de gírias e malandragens, capaz de assustar e dar uma surra completa em um morador do Morrinho que rouba doce de crianças. A infância e a infantilidade dos contos e histórias vão sendo coladas, fundidas com os personagens cotidianos do morro/morrinho. O vídeo começa com uma criança cantarolando pela favela quando é abordada por um garoto mais velho (“Aí menor, me dá teu doce, perdeu! Me dá teu doce se não vai levar uns cascudos”) e acaba com uma surra do saci-justiceiro, que ajusta condutas. Folclore brasileiro e folclore urbano se contaminam, fundem, em fábulas amorais e histórias atravessadas pelas imagens do mundo, do cinema e da mídia, como a história da invasão do Morrinho por dinossauros, ao som de vozes estridentes, urros, gritos e confusão. Esse misto de jogos infantis e brincadeiras naïfs atravessadas de crueldade e violência nos gestos, vozes que animam os cenários, objetos, personagens, faz surgir nesses vídeos uma vida que transborda o “estado das coisas”, os clichês sobre a favela, a violência, o tráfico. 3 Saci no Morrinho, de Nelcirlan Souza, José Carlos (Junior), Rodrigo de Maceda. Animação. Livre. Rio de Janeiro/RJ, 2006. 4m.

50

Não se informa nada ali. O registro da fabulação dos narradores (os donos das vozes dos bonecos), em filmagens feitas pelos próprios garotos da TV Morrinho incorporadas na brincadeira (a câmera faz parte do jogo), colocam uma série de tensões em cena. Em A revolta dos bonecos, de 2008, da TV Morrinho e Ong Morrinho, essas tensões entre real e ficção chegam a um nível sofisticado de metalinguagem, quando os bonecos-Lego descobrem que os meninos que lhe dão voz vão viajar para a Bienal de Veneza sem levá-los. Iniciam uma revolta no Morrinho/maquete, na tentativa de viajar para a Itália acompanhando seus criadores. No meio da encenação de um tiroteio na maquete, com caveirão, BOPE, tiroteios, confusão, ameaças, os bonecos se revoltam e param a cena ao saber que os meninos vão viajar para o exterior sem eles. Param a cena para questionar os estatuto deles de “bonecos/trabalhadores” versus o mundo dos artistas/criadores, o trabalho vivo dos autores das histórias e o trabalho morto dos bonecos que “ficam aqui comendo farinha” enquanto os meninos viajam. Os bonecos ameaçam com protesto e greve, esvaziam o cenário, criando uma vazio de vida, êxodo e deserção (evadirse, estratégia biopolítica, esvaziar os lugares de poder): “Se eu não for pra Veneza nós vamos parar, o morrinho vai falir, vai dar caô, colocar na internet e no You Tube, a porrada vai comer adoidada se a gente não for”. Os meninos aparecem inteiros na imagem, entram na história dos Legos e resolvem reconsiderar. Os bonecos Lego “originais” vão para Veneza, e não apenas as suas réplicas novinhas e sem “história”. A cena final: a alegria dos bonecos com malas nas mãos e nas costas, atravessando uma ruela de maquete. No meio de todo os artifícios e brincadeiras cruzam um caminho de formigas reais, saúvas e Legos se cruzam, signos dessas vidas alheias/alheadas, a vida dos objetos, a vida das imagens, que se tornam pulsativas e pulsantes, se tornam verdadeiramente documentários de uma outra categoria, justamente quando atravessadas pela ficção.

51

A produção da TV Morrinho (bruta, direta) coloca em cena as questões que vamos encontrar em muitos documentários e produções realizadas fora dos ambientes profissionais. São os jogos de linguagem, paixões, afetos, formas de conceber e experimentar fabulações coletivas, outras organizações do sensível e do espaço-tempo. Muitos dessas produções trazem uma ausência de explicações, ausência de referências que nos coloca diante de uma outra forma de pensar o político. Mais do que conhecer as razões que produzem tal ou tal vida, “o confronto direto entre uma vida e o que ela pode” (como coloca Jacques Rancière a propósito dos filmes de Pedro Costa e em especial na sua análise de O quarto de Vanda). Nesses filmes de “quintal”, realizados no território real (o quintal de casa, literalmente), ou nessas “reservas de mundo”, que se tornaram os territórios da pobreza, nichos e guetos, esses lugares, pelas mais diversas razões, não podem ser pensados apenas como o signo mais visível do colapso social, da crise do Estado e da crise da própria racionalidade e planejamento urbanos. Muito menos podem ser reduzidos à doxa dos “espaços partidos”, com “ilhas” de riqueza e funcionalidade de um lado e territórios “apartados”, como se fosse possível isolar partes do tecido urbano em guetos incomunicáveis. Essas reservas de mundo, esses territórios heterogêneos, são lugares de produção do sensível, de espaços e tempos, de formas que ultrapassam em muito o debate sobre os “temas”, informações e personagens dos documentários. Em meio a crises diversas, esses territórios são percebidos como laboratórios de subjetivação, laboratórios de uma outra experiência de cidade que funciona paralelamente, em parceria ou mesmo contra o Estado, funcionando na tensão entre uma nova produção cultural, entre “economias substitutas” auto-organizadas e o estado de exceção a que são submetidos (como as favelas e guetos globais). O “quintal” de casa pode ser literal, mas também os computadores pessoais, as lan houses, o quarto de dormir ou as nuvens de dados na internet,

52

tornados laboratórios, salas de “estar” e ateliê. Pois é preciso criar/contar com essas reservas de mundo, mais talvez que uma Second Life. Insisto nas questões de lugar, habitação, estar, porque muitos documentários feitos nesses regimes não-profissionais extraem sua estética dessas relações entre arte, trabalho e os arranjos/disposição do espaço social. Citando longamente Rancière, quando, ao discutir a “partilha do sensível”, escreve sobre essa configuração do sensível:

(…) a arte não é política pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de. Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela

53

determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências que definem uma comunidade política.

A inclusão subjetiva A questão trazida por Rancière se aplica aos documentários e ficções realizados pelos novos sujeitos do discurso, quando ele insiste que “o que falta aos proletários não é a consciência da condição deles, mas a possibilidade de mudar o ser sensível que está ligado a essa condição”.4 No momento em que a cidade é pensada como a “nova fábrica”, como propõe Antonio Negri, ou ainda como laboratório experimental do capitalismo cognitivo, podemos dizer que a cultura urbana está na gênese da própria ideia dessa “multidão” produtiva, formada por singularidades que não podem mais ser representadas de forma tradicional e que começam a atuar de forma comum ou em projetos e ações partilhadas. A cultura urbana hoje passa a ser entendida como produção de riqueza e a cidade; as metrópoles estariam para a multidão como a fábrica estava para os operários, o laboratório a céu aberto dessas bioestéticas. A difusão da produtividade e da criação de valor se desloca para o campo das relações sociais, dos fluxos e trocas. A cidade se informatiza, assim como a produção e o trabalho. A cultura urbana torna-se uma das bases do capital que busca extrair valor das redes espalhadas pela cidade: redes de cultura, redes de saber, redes de afetividade e sociabilidade. Mais quais as condições de possibilidade para que as redes de cultura urbana se apropriem e dinamizem o território urbano? “Não existe inclusão sem inclusão subjetiva”. Essa proposição do projeto Reperiferia 4 RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Tradução: Mônica Costa Netto.Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005).

54

de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro,5 pode se articular com a questão que estávamos enunciando até aqui: a transformação do sensível, as reservas de mundo carregadas de estéticas potenciais, vidas-linguagens. É que não existe “inclusão” ou partilha sem a posse das linguagens, o último muro ou barreira para uma partilha do sensível. Tão importante quanto o acesso à infraestrutura tecnológica, o acesso às redes: sistemas de informação e comunicação que permitam a comunicação barata, autônoma e colaborativa, gerando um aumento da produtividade social por computadores, softwares, câmeras digitais, internet livre, ambientes coletivos para se “estar junto”. Mais que tecnologias de comunicação, estas são as condições de funcionamento de novos processos sociais e criação de capital social, aumentando a “intelectualidade de massa” e a produtividade social em todos os níveis. Mas o que seria essa sustentabilidade e inclusão subjetiva, que é tão importante quanto a existência de infraestrutura tecnológica instalada, seja low tech, seja high tech? Muitos aspectos dessa sustentabilidade “imaterial”, simbólica, são tão ou mais importantes que as questões bem materiais e concretas da necessidade de tecnologias instaladas no corpo da cidade, de forma pública e gratuita. A posse da linguagem Nesse contexto das redes e cultura urbanas, podemos destacar a diversidade das linguagens e sua incorporação como elemento determinante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens urbanas a produção audiovisual e a música estão presentes na produção cultural, educacional, estética, contemporânea, de forma ampla. A maioria dos grupos culturais urbanos no Brasil não trabalha com uma linguagem exclusiva. Diferentes linguagens são mobilizadas na sua produção, mas todos reconhecem uma dimensão decisiva hoje 5 Citado por Marcus Faustini, coordenador do projeto Reperiferia no evento Onda Cidadã, promovido pelo Itaú Cultural no Circo Voador, Rio de Janeiro, novembro de 2007, onde participamos coordenando o grupo de audiovisual.

55

na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual, e a necessidade de “posse” dessas linguagens e de sua potência, assim como a posse e a desconstrução das linguagens do poder. De fato, o desejo difuso é experimentar todas as linguagens, compartilhar a emoção, a inteligência, disputar com a cultura de massa, potencializar e empoderar os discursos, tomar posse dos processos, criar linguagens, estilo, valor. Também é interessante pensar as culturas urbanas como experiências radicais de educação não-formal, em que a experiência audiovisual (entre outras) aparece como conhecimento lúdico, posse da linguagem como porta de entrada privilegiada para essa inclusão subjetiva e para o trabalho vivo. Destituindo a oposição entre letrado/oral, popular/erudito, tecnológico/artesanal, a cultura urbana vai incorporando as mais distintas estéticas, utilizando desde o mais experimental até as linguagens que já circulam na cultura de massas. As estratégias são múltiplas para essa apropriação das linguagens. Uma dinâmica recorrente na constituição de grupos, coletivos, projetos de cultura urbana é começar com as referências existentes dos jovens, sejam quais forem. Um posição bem distinta da formação clássica, que trabalha com um repertório de referência pré-constituido. Uma jovem da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, por exemplo, quer produzir clipes para as músicas evangélicas e religiosas da sua igreja; um menino quer aprender a fazer filmes de ação tipo James Bond, o professor não vai dissuadi-los dos seus projetos e motivações, mas vai lhes apresentar novas referências. Já no projeto “coletores de imagens”6 são os registros do cotidiano, da vida, de cada um que serão analisados nas aulas. Parte-se do cotidiano, da vida, para pensar uma estética ou linguagem expandida para outros campos, repertórios e referências. 6 Experiências relatadas por Marcos Faustini, criador da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu.

56

Um garoto traz as imagens em vídeo das irmãzinhas tomando banho em nudez inocente, no projeto TV Lata, da Bahia, o mediador/ professor, Joselito Crispim, tem que perguntar se o garoto acha mesmo que pode mostrar as irmãs para qualquer um ver. O garoto recua, melhor não expor as irmãs à curiosidade de desconhecidos. Ética das imagens que nasce do fazer, sentir, perceber. Imagens que vamos reencontrar muitas vezes à deriva, fragmentadas, desconectadas, jogadas ao acaso das apropriações no esgoto público das imagens. Found footage e remix que são a base de uma cultura do excedente, das sobras, do excesso de referências e suas potências. A questão, em muitas dessas propostas, é a partir do concreto se chegar ao conceito, à ética (nunca pensados como abstração, norma, transcendência), chegar à própria história do cinema e da videoarte. Partir dos códigos do melodrama ou da novela para reconfigurar o sensível. Partir do sabido, do consumo, para trazer outras referências. Como na história, roteirizada, de um garoto que quer incorporar o nome, a marca Nike, no seu sobrenome, e tatuá-lo na pele, relata Luciana Bezerra do núcleo de cinema Nós do Morro. A proposta do grupo de audiovisual do Nós do Morro é justamente partir do estado das coisas, mas sair do gueto subjetivo, sair da exigência e do discurso que cria um “nicho” de consumo para os filmes/ vídeos produzidos ou vindos dessa produção periférica. Nem sempre conseguem, mas sair do gueto tem esse outro sentido, abandonar o lugar que lhes deram, sair desse lugar inclusive conceitual que responde a conceitos problemáticos (subalternidade, marginalidade, excluídos, periferia, que vão se constituindo, inclusive, como novos clichês teóricos). Conhecido inicialmente pelo trabalho no teatro, o Grupo Nós do Morro (Rio de Janeiro) vem realizando experiências no audiovisual desde 1996, com alguns resultados expressivos, como Picolé, Pintinho e Pipa, de Gustavo Melo e roteiro de André Santinho (2006). São ficções atravessadas por uma experiência documental, de um frescor que vem

57

dos corpos, gestos, falas, locais de filmagem. A favela, aqui o morro do Vidigal, com suas ladeiras e esquinas de frente para o mar, surge nas sua espacialidade-temporalidade outra, o tempo de uma kombi de troca-troca anunciar pelas ruelas que troca sucata, garrafa vazia, bacia e panela velha, garrafão de vinho, etc. por picolé, pintinhos vivos e pipa. O anúncio pelo alto-falante provoca uma agitação, aceleração, precipitação das crianças pelas ruas, lixeiras, estoques familiares de bugigangas. O tempo se acelera e precipita os pequenos dramas e impasses, diante da promessa de trocar lixo/sucata por objetos do desejo. A reinvenção da infância e da criança, a reinvenção da ideia de juventude, em muitos desses curtas, desenha essa outra sociabilidade, outras temporalidades: aquele tempo que escorre de horas jogado num sofá diante da TV, comendo “besteiras” ou dormindo, mas também um tempo distendido de brincadeiras fabuladas e inventadas pelas ruas, o tempo “ocioso” das crianças que ainda não estão submetidas a uma produtividade standard. O “tempo” – não seria esse hoje o maior luxo dos pobres ou de quem ainda não entrou de vez na disciplina da produção? Essa experiência do sensível será mais ou menos explorada nesses curtas cujos atores, em sua grande maioria, são integrantes do Nós do Morro. O roteiro, de autoria de Gustavo Melo e André Santinho, foi premiado num concurso do ministério da Cultura, que financiou a sua produção, no ano de 2006. O que mostra a entrada e disputa desses grupos no mercado cultural. Em outros curtas do Nós do Morro, Mina de Fé (2004), de Luciana Bezerra, ou Neguinho e Kika, de Luciano Vidigal, também encontramos uma ficção atravessada pela deriva documental. Pode-se perceber uma tentativa de escavar o real, passando dos estereótipos e objetividade, a “mulher de bandido” em Mina de Fé ou “o garoto que quer sair do tráfico”, em Neguinho e Kika, para as questões subjetivas, a dobra afetiva que cria outra relação com o que vemos e ouvimos: são questões prosaicas que emergem do olhar de uma menina/adolescente, namorada do chefe do tráfico local que engravida dele. O que já seria problemático (gravidez

58

precoce, a instabilidade do namoro entre adolescentes, a disputa entre mulheres pelo homem de poder do pedaço) se intensifica pela experiência que se tem que viver tudo isso num tempo hiperacelerado, em alguns poucos meses ou anos. Antes do próximo tiroteio, antes da próxima morte, antes da viuvez, fuga, abandono. Mais uma questão de temporalidade, não mais distendida, mais acelerada e precipitada. Aceleração do tempo, a vida curta, as decisões precoces também são questões no curta Neguinho e Kika, de Luciano Vidigal, também circunscrito nesse mundo de crianças/adolescentes crescidos, deslocados em decisões e dramas que se precipitam sobre sua adolescência. O que surge como novidade nesses filmes é a emergência de um espaço-tempo outro, relações de vizinhança, afetividade, alianças provisórias, comunidades improvisadas, em que a violência e o afeto são experimentadas de formas muito diversas. Em O campim (2006), documentário da ClanDestino Filmes com apoio do Nós do Morro, filmado por dois moradores do Morro da Grotta – Jéferson de Oliveira (Don) e Eduardo Dornelles, no complexo das favelas do Alemão, no Rio – a experiência de um sensorium espaço-temporal que, nos termos de Rancière, “determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de” ganha uma expressão singular. Algo muito prosaico, criar um campinho de futebol na vizinhança, a partir de um terreno usado como depósito de lixo, cemitério de gatos e cachorros, faz emergir um “comum”, uma experiência poderosa de organização do tempo de “lazer”, das relações sociais e da vida. A comunidade em torno do campinho de terra vai emergindo, com questões difíceis da autogestão, as dificuldades e conflitos com os vizinhos, lideranças, em torno de um espaço de 28 metros por 9 metros que reconfigura parte da vida social dos moradores em seu entorno. A afetividade em torno de um projeto comum que deriva em organização e partilha, criação de um mundo de colaboração, mas

59

também pequenas rivalidades e ressentimentos. A bola que quebra uma torneira da vizinha, a dificuldade de manter o campo cercado, a emergência de liderança e reinvindicações em torno de um território mágico, o “campim” da favela que surge como mundo cheio de virtualidades, riqueza da pobreza. O documentário acompanha, durante um ano e meio, o cotidiano de moradores que utilizam o “campim” ou são afetados por ele. O diretor se apropria da linguagem dos DJs e VJs, editando e manipulando as imagens para apresentar os seus personagens, mas também adentrado a favela em planos-sequência em que o tempo escorre, continuo. O uso do plano-sequência como forma recorrente de filmagem pelos becos e ruas das favelas é uma constante em muitos desses filmes (Picolé, Pintinho e Pipa, Neguinho e Kika, Mina de Fé, 7 minutos, de Cavi Borges, e muitos outros). Penetrar o “real”, rasgar o sensorium espaço-temporal, descrever, monitorar, varrer os dados, são muitas e diferentes funções dessa câmera que entra pelas favelas nos trazendo a sensação de um acontecimento que se desdobra ao vivo diante de nós, diante da câmera, numa performance irrepetível em que o território percorrido é “visado”, monitorado, perscrutado de forma violenta, nesses planos-sequência que nada têm de contemplativos, e em que a câmera se comporta como mira-olho, varrendo o território. A ambiguidade de algumas proposições, oficinas e experiências em audiovisual na escolas livres, oficinas, curso de cinema, com a inclusão da formação audiovisual no currículo das escolas de ensino básico, sempre foi, ao meu ver, se configurar uma “educação para pobres”, em que se restringem as linguagens e experiências a certos repertórios. Algumas propostas começam a questionar essa educação para pobres e incorporam linguagens e estéticas outras: vindas de jogos eletrônicos, moda, publicidade, cinema experimental, videoarte, não se restringindo a uma produção “documental”, no sentido mais clássico.

60

Pois é a posse (mesmo que para a deserção e abandono) dessas linguagens que qualificam os grupos a disputarem os discursos contemporâneos. Para muitos grupos (que trabalham com jovens das periferias) o ponto de partida nesse trabalho de educação/ocupação/formação de jovens é um certo confinamento nas políticas de identidades fixas, guetos subjetivos que afirmam uma nova “essencialidade” ou excepcionalidade desses grupos. Apesar de serem propostas legítimas politicamente, é preciso perguntar como criar um “pertencimento” social (uma reserva de mundo ou de “reconhecimento”), criar uma “comunidade” subjetiva, um comum, uma inserção pelo compartilhamento de linguagens, estéticas, modos de ser/estar no mundo, sem anular as singularidades. Essas estratégicas são ainda ambíguas, mas apontam para essa passagem de objetos a sujeitos do discurso, uma mobilidade social que significa não apenas se movimentar pelos códigos, linguagens, estéticas do poder, mas produzir linguagens, estéticas, valores outros e afirmálos na cultura urbana contemporânea. Essa é a radical mudança nas produções vindas das periferias ou das escolas livres de audiovisual, a disputa pelo sensível, junto com a sua “partilha” que pode produzir tanto acontecimentos quanto clichês. Nesse sentido apontamos a insuficiência do discurso teórico que analisa essa produção e a legitima simplesmente enquanto fato sociológico, representação social, “aumento de autoestima”, “pertencimento”, tomada do discurso, etc. Uma celebração do pobrestar/popstar, uma nova figura de centralidade que pode operar criando um novo “gênero” ou nicho cinematográfico. Hoje esse tipo de proposição explodiu no Brasil, educação nãoformal audiovisual, com metodologias, tempo de duração e objetivos os mais distintos. Além dos grupos já citados, inúmeros festivais de cinema aderiram a essas propostas. Uma referência são as Oficinas da Kinoforum, realizadas desde 2001 dentro do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, com seu acervo e resultados publicados

61

na web.7 Desde 2001, 751 alunos produziram, dirigiram e fotografaram, sempre a partir de seus próprios argumentos, 174 curtas digitais. Outros festivais, especificamente voltados para essa produção, surgiram, como o Visões Periféricas e o Festival de Cinema da CUFA, no Rio, o Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (FEPA), reunindo diferentes iniciativas em nível nacional, cineclubes nas favelas, como o Cineclube da Maré etc., parcerias entre esses grupos e as universidades (parceria do Curso de Comunicação da CUFA com a Escola de Comunicação da UFRJ), parcerias com empresas privadas, com o Estado, etc. Um mapa a ser desenhado e uma produção que ainda não está “legitimada” como parte de um corpus a ser analisado esteticamente. Ao mesmo tempo, com a proliferação da cultura urbana vinda das periferias é preciso problematizar o discurso assistencialista e paternalista que se apresenta como “salvador” ou “messiânico” ou de “tutela” desses movimentos, que surgem rompendo com velhos discursos sobre a pobreza. É a preocupação do grupo Nós do Morro de sair do discurso paternalista dos projetos que têm como missão ou objetivo “tirar jovens do tráfico”, “tirar jovens da rua”. O discurso é outro, para empoderar esses jovens, lhes restituir autonomia, criar novas condições de uma inclusão subjetiva ou uma “intrusão social”, a aposta é a apropriação tecnológica e simbólica, tudo o que produza um aumento de potência/autonomia/autogestão. “Não nos coloque no gueto”, “não nos reduza a produzir uma ‘estética da periferia’”. Ou, ainda, “não nos reduza a uma pobreza folclórica”, é uma das questões recorrentes da cultura urbana periférica, um segundo momento, de saída do discurso da “identidade” e do “gueto”. Outros Circuitos Na TV Ovo, do Rio Grande do Sul, a formação de jovens através do audiovisual tem como objetivo formar e multiplicar formadores, passar da formação para a produção e exibição e criar um circuito novo. 7 http://www.kinooikos.com

62

Por exemplo, a TV Ovo no Ônibus, que produz curtas para serem vistos dentro de ônibus comuns que recebem um aparelho de televisão. O ônibus vira um espaço de exibição. Passageiros passam da sua parada original para acabar de ver o vídeo no Bus TV. Ainda na criação de circuitos, temos a TV Minuto. Debates relâmpagos no trânsito são feitos enquanto o sinal fecha, com um banquinho de plástico e uma pauta. Paródia dos debates de TV em que não se discute nada. A correria e a preocupação com o sinal que vai abrir ou fechar já bastam para “entreter”. Em relação a novos circuitos, o Filmagens Periféricas tem como um dos projetos do grupo, depois das oficinas de vídeo na cidade de Tiradentes-SP, a exibição do material produzido no MIS, no CCBB, locais que muitos moradores de Tiradentes, periferia paulista, não tem acesso, não sabem o que é. Surge então o “Cinema de Periferia” com a ideia de colocar todos os vídeos realizados pelo Filmagem Periférica em uma fita ou DVD e distribuir nas locadoras de Tiradentes. Com o apoio do Programa de Valorização das Iniciativas Culturais do Município de São Paulo, o Filmagem Periférica conseguiu produzir, em 2003, 120 cópias com 13 curtas-metragens, que foram distribuídas nas sete locadoras do bairro e podem ser retiradas gratuitamente quando o cliente aluga algum filme comum. O que essas propostas têm em comum? A horizontalidade das redes, a tendência a abolir a rigidez de hierarquias e burocracias. Essa cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, mídia, vídeo, moeda, educação) surge como um discurso político “fora de lugar” (não vem da universidade, não vem do Estado, não vem da mídia, não vem de partido político) e coloca em cena esses outros mediadores e produtores de cultura, todo um precariado emergente de rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados, produtores da chamada economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma

63

muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso político urgente e de renovação num capitalismo da informação. Essas redes culturais locais se constituem em contrastes com as políticas públicas organizadas do centro, super hierarquizadas, centralizadas e que não resolveram ou reduziram a um nível desejável as desigualdades sociais. Hoje nós temos uma oportunidade histórica de experimentar outros modelos de políticas publicas, ainda embrionários, redes socioculturais que funcionam justamente de forma horizontal, acentrada, rizomática, organizando a própria produção.

64

65

Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna1 Ismail Xavier

No documentário contemporâneo, temos visto uma variedade de caminhos na construção da “personagem”. Esta é entendida dentro de um largo espectro, pois pode ser um sujeito presente ao longo de um filme que nele se concentra – como é o caso de Sandro em Ônibus 174 (2002), de José Padilha e Felipe Lacerda, ou de Nelson Freire no filme Nelson Freire (2003), de João Moreira Salles, ou de Paulinho da Viola em Paulinho da Viola – meu tempo é hoje (2003), de Izabel Jaguaribe; ou pode ser uma pessoa entrevistada (ou que conversa com o cineasta), antes desconhecida, cuja presença na tela é mais efêmera, às vezes reduzida a uma única cena. Dependendo do método e dos materiais mobilizados pelo cineasta, nem tudo o que se mostra de uma personagem se reduz a entrevistas. Estas são formas particulares do sujeito entrar em cena, compor a sua imagem, atuar; mas ele pode também ser filmado “em ação”, em pleno exercício de uma atividade que o caracteriza na sociedade ou fazendo outra coisa qualquer. Pode também ser objeto de 1 Nota do Autor: Este texto foi publicado no Catálogo da Mostra “Eduardo Coutinho: cinema do encontro”, organizada por Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva no CCBB, São Paulo, em outubro de 2003. Naquele momento, eu estava lançando o livro O olhar e a cena: Hollywood, melodrama, Cinema Novo, Nelson Rodrigues, pela CosacNaify, que focaliza as relações entre cinema e teatro, e encontrei no cinema de Coutinho um notável experimento para a reflexão pelo que já se via até Edifício Máster. Sua forma de compor o ritual da entrevista ensejou esta análise do seu depurado jogo de cena. Mais tarde, ele decidiu desdobrar este jogo, fazê-lo exibir a sua própria lógica no espaço de um teatro, com a arquitetura típica, o que foi feito em Jogo de cena (2007). Se antes o espaço da conversa era a casa do(a) entrevistado(a), agora um grupo de mulheres subia efetivamente a um palco para encontrar o cineasta e o olhar da câmera, sentadas e dando as costas para uma platéia vazia, pois os espectadores éramos nós do lado de cá da tela. No espaço do teatro, houve a mistura feita de entrevistas com pessoas que seguiam a regra usual, ou seja, o falar de si, e entrevistas envolvendo atrizes (super conhecidas ou desconhecidas) cuja regra era seguir, em primeira instância, um script, transcrição de depoimento de uma outra pessoa que, por sua vez,

66

outros relatos, quando nos é dada uma imagem indireta, mediada por outros discursos. É o que acontece com Paulinho da Viola, mas não propriamente no filme Nelson Freire, onde se evita o discurso crítico, o depoimento de fãs, tudo o que redundaria em comentário explícito sobre a personalidade do músico. Por sua vez, Sandro é construído como uma personagem clássica no relato de Ônibus 174, numa montagem paralela que alterna a cena decisiva, definidora de um destino, com o retrospecto construído pelo “mosaico de depoimentos”. Não temos, porém, a sua entrevista, a menos que se tome o que ele diz quando se assoma para fora da janela do ônibus como uma espécie de coletiva de imprensa, no calor da hora e segundo a sua estratégia. De qualquer modo, nestes três casos há um contexto para as situações de entrevista; e esta tem função variável, notadamente em Ônibus 174, pois nem todos os entrevistados são personagens no mesmo sentido. Tudo muda conforme a posição de cada um no jogo e conforme sua relação com o “assunto” (protagonista, observador teórico, porta-voz da “opinião pública”, testemunha-fonte de dados) – há uma hierarquia, como nos filmes de ficção que, por sua vez, não excluem entrevistas, depoimentos, desde Cidadão Kane. O que me interessa aqui é o caso extremo em que a entrevista (ou a conversa, como prefere Coutinho) é a forma dramática exclusiva, e a presença das personagens não está acoplada a um antes e depois, nem a uma interação continuada com outras figuras de seu entorno. teria ou não entrado em cena ao longo do filme, incluindo-se as situações de acoplagem direta entre seu depoimento e o das atrizes. Montou-se um jogo de espelhos que convidou à decifração de suas regras e do estatuto de suas falas. No caminho, o filme nos fez testemunhar a atitude das atrizes e sua eventual passagem ao confessional pelo abandono do script e pela conversa em que tomaram a palavra, assumindo a enunciação, o dizer “eu”, em outra chave. A partir desse jogo de espelhos e de identidades trocadas, Coutinho criou o laboratório em que o efeito-câmera torna mais radical sua sempre ambígua teatralização de gestos e falas, de modo a tornar tudo mais instável quando se pensa a relação entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, para usar um jargão talvez fora de moda, mas que configura bem o problema. Em entrevista a Felipe Bragança, que organizou o livro Encontros/Eduardo Coutinho (Azougue, 2008), Coutinho comenta o seu diálogo com este meu artigo na gestação de Jogo de cena.

67

Aí se define uma identidade radical entre construção de personagem e conversa, outros recursos sendo descartados, como é o caso do próprio Coutinho. No centro do seu método está a fala de alguém sobre sua própria experiência, alguém escolhido porque se espera que não se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social. O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa. Tudo o que da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera, da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográfico. O documentário de Coutinho, como forma dramática, se faz desse enfrentamento entre sujeito e cineasta observados pelo aparato, situação em que se espera que a postura afirmativa, a empatia e o engajamento na situação superem as forças reativas, travos de várias ordens. Dentro de diferentes tons e estilos, cada conversa se dá dentro daquela moldura que produz a mistura de espontaneidade e de teatro, de autenticidade e de exibicionismo, de um fazer-se imagem e ser verdadeiro, dualidade que está bem resumida na fala de Alessandra, a garota de programa de Edifício Master (2002), exemplo notável de intuição do que está implicado no efeito-câmera. Ela diz “eu sou a mentirosa verdadeira”, depois de uma sedutora performance em que explicou como se pode mentir quando se fala a verdade ou ser verdadeiro quando se mente. Forma atual de inversão do paradoxo do comediante (Diderot) intuída por uma jovem inteligente? Reconhecimento definitivo do documentário como um jogo de cena? As perguntas procedem, mas há algo mais aí, sem dúvida. Esta dualidade presente na situação não é desconhecida dos cineastas. Coutinho, em particular, sabe como poucos trabalhar dentro desta premissa para compor um cenário de empatia e inclusão que se apoia numa filosofia do encontro que não é difícil formular em teoria, mas cuja realização é rara.

68

Ela exige a abertura efetiva para o diálogo (que não basta programar), o talento e a experiência que permitam compor a cena apta a fazer com que aconteça o que não seria possível sem a presença da câmera. O conhecido efeito catalisador do olhar do cinema na gestação da fala inesperada deve chegar à sua potência máxima, de modo a compensar a assimetria dos poderes. Assimetria que o cineasta deve trabalhar sem a ilusão de subtraí-la, pois ela está lá mesmo que seu objetivo não seja extrair do entrevistado o que julga útil para uma causa. De um modo ou de outro, as tensões permanecem, por maior que seja a disposição para a escuta – porque, afinal, há a montagem, o agenciamento, o contexto; e há a mise en scène (um espaço, uma cenografia, um enquadramento, um “clima”, uma disposição dos corpos que condiciona o registro da fala). Tomemos dois exemplos. No caso de Alessandra o plano é mais fechado, sem nada de muito “marcado” à sua volta, enquanto que o senhor Henrique, também de Edifício Master, cuja entrevista é mais demorada, pode se mover e nos mostrar mais do seu espaço: uma imagem de Cristo na parede, a modéstia do mobiliário escasso, o aparelho de som de onde vai sair a voz redentora de Frank Sinatra. Ou seja, cada qual recebe o que o cineasta julga melhor como efeito de produção de sentido na imagem que dá conotação às falas; ora é a força do rosto, ora do gesto, ora do ambiente, tudo dependendo da duração dos planos. Em Coutinho, esta é generosa, pois ele busca atenuar o efeito dos fatores que condicionam a atuação da “personagem”. Todas precisam de tempo para se por em cena, conseguir criar as condições para que o momento se adense e seja expressivo, com surpresas e acasos, revelações nos pormenores, seja a felicidade de uma palavra, o drama de uma hesitação ou o um gesto extraordinário feito por mãos seguras, como o de Dona Teresa, em Santo forte (1999). A duração é a condição para que se possa compor um olhar e uma escuta capazes de satisfazer às demandas de uma descrição fenomenológica, com uma abertura para o acontecimento e uma compreensão não escorada em categorias pré-definidas, atenta ao que

69

permite ao entrevistado pontuar o processo, o ritmo da cena (de novo, como Dona Teresa). Não usei por acaso esse vocabulário de feição existencial-humanista bem típico aos anos 1960. Acredito que vale aqui uma indagação (que apenas esboço) sobre as afinidades entre esta observação da fala e do gesto do entrevistado e algo que nos faz lembrar a concepção que se tinha da personagem no cinema moderno de ficção, a par do que já se observou sobre a sua relação com a tradição do documentário. O cinema recente de Eduardo Coutinho pode ser visto como um modo de enfrentar questões trazidas por aquela experiência da ficção, agora radicalizada em outra forma. Há em comum com ela esse movimento de ruptura com a linearidade da experiência (ou do argumento) enquanto suposta base de qualquer produção de sentido, linearidade que inscreveria cada momento vivido numa lógica determinada, de modo a fazer com que a manifestação e o conhecimento de uma personalidade (digamos, a verdade de um sujeito) fizesse necessária uma concatenação, um engajamento em momentos sucessivos de ação aptos a compor uma história de vida a que teríamos acesso por meio, por exemplo, de narrativas clássicas. O cinema moderno liberou a personagem dessa grade de ações e motivos, dessa lógica natural, psicológica e social. Recusou uma forma de representação que, pela sua natureza, criava a expectativa de que tanto a estória (ação, espaço, tempo) quanto seus agentes em conflito (as personagens) seriam organicamente compostos, coerentes e mais próximos de um tipo ideal do que indivíduos, sendo tratados dentro de certa economia, regras de coerência interna e verossimilhança. Na ficção clássica, o importante é aparentar verdade, pela coerência interna das relações, e não buscar o “verdadeiro” no sentido do fato realmente acontecido. A representação da lógica do mundo envolve a focalização do que pode acontecer e que seria mais típico a uma certa ordem de coisas; não a exposição do que empiricamente acontece em certo local e hora, fato que pode ser improvável, extraordinário, e que,

70

embora ocorrido, não representaria a ordem do mundo porque não seria característico. Em suma, a ficção clássica abre um campo do possível onde estão articulados os traços pertinentes essenciais à descrição de um mundo, campo em que o dado-chave na definição de uma personagem é sua ação. Embora ela possa ser motivo de um retrato falado, de uma descrição externa minuciosa do seu perfil psicológico, ela só existe para valer no drama clássico a partir da decisão que toma, da sua ação progressiva até o desenlace que sela o seu destino (os manuais dizem: o final é a moral da estória ). Para o cinema moderno isto não é verdade, é uma convenção a recusar. Tanto os filmes quanto a crítica a eles afinada ressaltaram que o ponto decisivo é a “poeira” que se levantava no caminho, a força de cada episódio, o que há de revelador em cada instante de vida (onde podem emergir os dados que escapam à racionalidade da concatenação), dentro do que pode ser uma série descontínua, até arbitrária, de experiências. Em consonância, o que se fez foi explorar o esgarçamento da narrativa, a perambulação, os impasses, a impotência da ação, ativando uma sensibilidade ao fragmento, ao que se esboça mas não termina. Consagrando o instante, como diria o poeta a respeito de seu ofício. A personagem clássica de ficção, porque um ser lapidado segundo princípios de coerência, modelos de ação e um certo senso comum psicológico, tem o seu teste (competição e risco, vitória ou derrota) no terreno da relação com os outros, enquanto age e volta a agir, não havendo participação de agentes externos à diegese. A personagem moderna pode ser mais errática, não se define inteira no seu destino, pois o desenlace nem sempre é consequência lógica de premissas contidas nas ações já vividas; há lugar para a incoerência, opacidade de motivos, sucessão mais aberta em que há a brecha para que algo inusitado ocorra. É um campo de descontinuidades, do mesmo tipo do que ocorre, por exemplo, na sucessão desses momentos em que se dá a conversa entre sujeito e cineasta no documentário, desde que este se atenha à entrevista

71

como forma. Neste caso, a composição da cena e sua duração buscam potencializar a força do instante; produzir no encontro a irrupção de uma experiência não domesticada pelo discurso, algo que, apesar da montagem e seus fluxos de sentido, retém um quê de irredutível na atuação do sujeito, mais ou menos revelador, sempre conforme o que uma combinação peculiar de método e de acidente permita. Assim, o drama aí se decide em outro eixo: o da exclusiva interação do sujeito com cineasta e aparato - única ação pela qual os entrevistados podem ser compreendidos, julgados. Tudo se concentra nessa performance, nesse aqui-agora, pois não há pares com quem interagir (sim, há a variante da entrevista com casais, ou grupos, onde se dá esta interação intra-social diante da câmera, o que sem dúvida muda as regras do jogo). E esta atuação, embora balizada pela situação criada pelo cineasta, não segue um script fechado, o que, embora relevante, está longe de indicar uma liberdade absoluta, pois continuam aí presentes as pressões do verossímil, a questão da aparência de verdade. A tendência é o entrevistado compor a sua fala segundo o que julga ser a opinião do interlocutor (o cineasta e a “opinião pública” que a câmera representa). Esta ação é às vezes um mero automatismo, que Coutinho combate com vigor, às vezes um dado significativo da postura do sujeito que sabe ser necessário não confirmar o esperado, mas ironizá-lo, manifestando sem demora o desejo de combater estereótipos, denunciar o preconceito do mundo sobre certa comunidade – lembremos o filme Babilônia 2000 (2001), em várias passagens marcado por esta atitude dos entrevistados, cientes de que há uma imagem a combater. De qualquer modo, já ficou evidente no cinema de Coutinho um conjunto de vitórias sobre essa pressão do verossímil e da opinião pública, em ocorrências que podem ser erráticas, em lances que podem ser improváveis, os mais incaracterísticos e inusitados. Lances que ganham seu efeito pela relação entre o inesperado e a sanção do real (do aquiagora em que câmera, cineasta e sujeito em foco estão implicados). Do

72

ponto de vista da verdade de cada um, seja o que for que se diga, seja o que for que resulte como imagem, ninguém precisará confirmar expectativas ou desmentir-se em outra cena, em outra ação. Como observei, o sentido da ação da personagem, neste tipo de documentário, não está na relação com os seus pares numa trama, mas na exclusiva força de sua oralidade quando em interação com o cineasta e o aparato técnico. Ao minimizar o contexto e os recursos narrativos, o documentário procura se otimizar como forma dramática feita deste embate decisivo que traz ao centro a fala, ressalvada a dimensão de relato tácito (caminho de investigação) que se insinua na descontinuidade que separa as entrevistas. Muito de nosso interesse se apoia neste drama, na “agonia” do entrevistado, não aqui no sentido de sofrimento, mas de competição, desafio ao encarar o efeito-câmera. Se o que se quer ressaltar é a força do instante, a espessura própria de um momento de vida, melhor que se faça a câmera participar desta situação (não por mera ideia de autenticidade, honestidade para com o espectador, mas para não se perder o que a câmera pode abrir à percepção, o que pode se produzir de acontecimento nesta situação). Este é um procedimento que a “ficção moderna” incorporou na relação entre o ator e a câmera, favorecendo o que, no clássico, seria da ordem do “acidente”, do “irracional”, buscando a irrupção de “algo” (inconsciente?) que trairia a verdade do sujeito, para além de sua representação pelo discurso. Enfim, algo que, a seu modo, o documentário tem estado a buscar apoiado na performance diante da câmera assumida como ação na esfera do contingente, do que ocorre e pode desafiar uma rede de noções e saberes. No entanto, trata-se de um “contingente” que não se pode tomar como lugar do espontâneo, da ação autônoma, absorvida em si mesma, mas como atuação para um interlocutor e dois olhares (o do cineasta e aquele ao qual me refiro como efeito-câmera, gerador de performances). Arma-se a cena como momento de vida, passagem efêmera, pela sua

73

duração e abertura, mas o olhar do aparato e a moldura do processo marcam uma dualidade clara: trata-se de um encontro que num extremo chegaria à ontologia de Bazin, caminharia na direção da revelação do mundo (o “ser em situação” se revela em sua autenticidade); em outro, seria puro teatro. Na prática, há sempre essa dualidade constitutiva, e a questão, para Coutinho, é saber trabalhar com ela, apostando na espessura da relação intersubjetiva (entre ele e o escolhido) sem esquecer esta marca de ambiguidade, pois tudo se dá no seio da operação do dispositivo (aí, ninguém é inocente, embora a assimetria da situação confira ao cineasta maior autoridade e “culpa”). Da parte do entrevistado, há um desejo de apropriação da cena, tomar o momento da filmagem como afirmação de si em consonância com a situação dialógica aí procurada. Compor um estilo, um modo de estar e de se comunicar. O espaço é demarcado, mas se abre para um campo de falas possíveis muito peculiar, pois a entrevista é fala pública (para o olhar da câmera). Como tal, sua esfera não é a do depoimento em tribunal nem a do interrogatório da polícia; há um quê de confessional, mas que nada tem a ver com a cobrança de instituições de controle do Estado. É um falar de si, da intimidade, que torna quem fala uma “personagem” no sentido etimológico do termo (ou seja, uma figura pública). O cineasta não é o pai, nem o patrão, como bem lembra, em Edifício Master, a moça tímida que tem dificultar em encarar o cineasta. Embora um estranho, ele é uma visita esperada – elegeu o sujeito e porta uma indagação. Visita que traz consigo a premissa da confiança, o senso partilhado de um “nós” que dê lastro ao movimento da troca. Há neste caráter público, para além do que é vetor intersubjetivo que só envolve os sujeitos em presença, a observância de um decoro, de parte a parte, numa tonalidade que afasta a escuta do cineasta da escuta psicanalítica, embora muitos de nós tenham reiterado essa metáfora referida ao poder (psico) analítico da câmera de cinema desde o início do século XX. Tal poder catalisador da confidência é um pilar do documentário – sinal de

74

sua força, mas não de sua “objetividade” ou neutralidade, nem tampouco da ideia de que tudo aí é terapia. O sujeito fala para dois interlocutores: olha e reconhece o diretor (figura que sanciona um sentido de confidência possível), mas sabe da câmera e se exibe, queira ou não. Face à câmera, se vê ator em cena, cumprindo a regra clássica da auto-absorção dos que atuam e não devem reconhecer outro olhar que não o de quem está literalmente presente no seu espaço (e também atua no jogo). Monta-se aí um dispositivo curioso pelo qual a conversa (a troca entre o sujeito e o cineasta) se confessa enquanto filmagem (mostra a câmera e outras coisas mais), mas a atitude do entrevistado tende a obedecer à regra teatral clássica da quarta parede. Quase sempre, as câmeras estão lá e registram tudo em nome da captação do real; mas os sujeitos em foco atuam como se ela não existisse, de olho no cineasta e equipe, nos que estão de corpo presente. Um bom exemplo disso é o da cena com o senhor Henrique, de Edifício Master, personagem que o cineasta encontra no terreno mesmo da auto-exclusão, onde a solidão já se fez sistema e montou seu ritual na identificação com um célebre hino dos ressentidos – “I did it my way”. O senhor Henrique coroa sua presença no filme com uma performance em que vale o dueto com Frank Sinatra; lá está a câmera a pôr em foco uma “segunda unidade” que se faz mais invasiva diante da catarse lacrimosa, compondo bem de perto uma imagem que não veremos exatamente daquele ponto de vista, pois a cena de Edifício Master requer esta combinação de insistência (na duração) e recuo (na modulação do que há de invasivo no olhar). E requer que o senhor Henrique viva a sua catarse como um ator que ignora a câmera, elegendo o cineasta como mediador (é para ele que olha e é com ele que conversa). Restaria perguntar o que está implicado nesta postura dos sujeitos ao respeitar a “quarta parede” embora, em princípio, não estejam no teatro. Eles podem ser instruídos nesta direção ou agir assim de forma espontânea, talvez por

75

uma dificuldade de olhar o aparelho de frente, ou seja, o “público”, o interlocutor virtual, não visível.2 Mostrar o senhor Henrique e, ao mesmo tempo, a segunda câmera que o focaliza mais de perto é uma forma de explicitar a regra do jogo, colocar os dados da representação ao alcance do olhar; advertir que a empatia tem seus limites e coordenadas. É afirmar as premissas de uma ética que está na contramão daquilo que nos cerca de manipulação na esfera das imagens dentro da rotina da mídia. O cineasta evita a interpelação que constrange, se faz presente na forma do recuo, da expectativa, deixa espaço e tempo, certa liberdade para o sujeito. Em suma, sua virtude é saber criar um vazio, digamos, de tipo socrático, para fazer emergir a auto-exposição e, na melhor das hipóteses, um conhecimento de si produzido pela troca em que, mesmo efêmero, se define esse “nós”, uma partilha de experiência projetada no plano desejado em que o envolvimento deve ir fundo sem nunca chegar a ser obsceno, pois que é público. Aqui, há uma nova inflexão face ao que seria uma herança do cinema moderno em sua relação com a experiência fragmentária, singular. A ficção dos anos 1960 e 1970 trabalhou as experiências de crise do sujeito conferindo mais espaço para personagens admitidos como mais complexos, porque mais sensíveis a perda de valores e às desumanizações implicadas em certo tipo de desenvolvimento técnico-industrial-urbano. Enfim, deu atenção aos dotados de marcas singulares de percepção e, especialmente, dos inclinados à reflexão, contrapostos a uma suposta massa de sujeitos comuns que estariam condenados à pobreza de experiência, já que enredados nas malhas do universo convencional, dos clichês da mídia, das formas de raciocinar que têm afinidade com o preconceito, com a ideologia não refletida. O “comum” interessava? Sim, pelo que 2 O exemplo de outra forma de se comportar vem de O prisioneiro da grade de ferro, de Paulo Sacramento, onde os presos olham e falam para a câmera, além de manuseá-la, definindo o seu olhar, apropriando-se, enfim, do aparato – ainda com molduras de controle, pois não chegam à montagem.

76

nele se manifestava o que havia de geral. Sabemos que o movimento de Coutinho é na direção contrária da massificação, uma forma de humanismo que se quer em estado prático no contato com quem é, em geral, visto como convencional, desinteressante, enquadrado em fórmulas (religiosas, ideológicas, consumistas, paroquiais); figuras que ele põe em situação para surpreender, quebrar tais pressupostos. Ou seja, seu cinema recente – notadamente Edifício Master – se faz para evidenciar que as pessoas são mais do que aparentam e não menos, e podem atrair um interesse insuspeitado pelo que dizem e fazem, e não apenas pelo que representam ou ilustram na escala social e no contexto da cultura.3 Claro que há indagações a fazer nesta direção, pois o conjunto escolhido tem certo efeito porque ajustado a tal objetivo. Seria ingênuo imaginar que a amostra poderia ser qualquer, devendo o espectador ser prudente em seu afã de tornar o que vê “representativo”. Não é este o objetivo, visto que há uma insistência de Coutinho na questão da singularidade. Neste sentido, Edifício Master inaugura um movimento de consulta que se afasta daquele usual contato que elege as classes populares, comunidades marcadas por uma forte personalidade enquanto grupo (ligado pela religião, o espaço de moradia, a classe social). Trata-se agora do mergulho no que lá atrás se definia em Arnaldo Jabor como o terreno da “opinião pública”, observada a partir de uma ótica específica, com ênfase para a uniformidade, a partilha do medo e do conservadorismo. Aqui, se há em Coutinho uma recusa das posturas apriorísticas que lembra aquela tônica do “dar voz” ao outro, típica dos anos 1960 e 1970, a sua investigação empírica tem outros pressupostos, pois não se atém a perguntar o que pensa o sujeito a respeito de certo tema de relevância para a discussão política. Ao não se conformar com os clichês da fragmentação, da crise do sujeito e da massificação consentida, seu horizonte é um movimento contrário de afirmação, de encontro com narradores, figuras capazes de 3 Nesta direção, ver Consuelo Lins, “Coutinho encontra as fissuras do Edifício Master”. Sinopse, São Paulo, nº 9, ano IV, 2002.

77

falar sobre a experiência, expor um imaginário, figuras que, curiosamente, buscam ser personagens no sentido clássico, não propriamente figuras da alienação e da fragmentação, não-sujeitos. O que resulta desta tensão entre convite à abertura e um possível abrigar-se na convenção é muito variável, e a leitura de cada cena é sujeita à controvérsia.4 De qualquer modo, o diálogo capaz de ensejar a reposição do sujeito deve começar pelo convite à fala, por mais que aí se reitere o impulso das pessoas a se projetar no que julgam ser as expectativas do olhar público a elas dirigido. O anseio delas é montar uma biografia que faça sentido, alinhavando um passado (resumido), explicando-se de forma a despertar interesse, expondo-se de forma sedutora (mesmo que timidamente), buscando aproveitar a chance para mostrar desenvoltura ou sinceramente confessar desorientação (“eu não sei”), como o faz a última entrevistada de Edifício Master. O movimento do documentário atual se liga à tradição do moderno, mas muitas de suas personagens querem ser “clássicas”, compostas – eis um ponto notável de tensão. Ponto a que Coutinho responde com o gesto contra-corrente de radicalizar o estatuto da palavra no cinema, numa inversão de tudo o que foi valor estético nas teorias defensoras de sua especificidade. A valorização da oralidade é o modo de combater os próprios limites desta nas situações usuais do cinema e da TV; é o modo de combater a situação de assimetria na divisão dos poderes. Mobiliza com paciência o que é prerrogativa de todos – não tem pressa, não tem ansiedade de concatenação. Uma vez tomadas as providências, não se faz depositário da ilusão de falas plenas a todo instante, pois muito nos filmes se faz como exposição do que há de inacabado nesta auto4 Embora haja quase um consenso quanto ao que de bem sucedido há no cinema de Coutinho nesse fazer emergir o singular (o campo de um imaginário pessoal na instância da conversa com o cineasta), um exemplo de debate é o artigo de Francisco Elinaldo Teixeira, “Enunciação do documentário: o problema de ‘dar a voz ao outro’”, in Estudos Socine de Cinema – Ano III, org. por Mariarosaria Fabris e João Guilherme Barone Reis e Silva (Porto Alegre, ed. Sulina, 2003), que traz uma crítica incisiva aos pressupostos da leitura mais corrente do cineasta, não sem ressalvar que o cinema de Coutinho apresenta instâncias em que realiza uma operação dialógica mais consistente, tal como o autor a concebe em seu texto, recuperando as formulações de Pasolini e Deleuze.

78

construção da personagem esboçada na entrevista, com sua fala dividida entre o espontâneo, o deslize e o esforço consciente de coerência, de moldagem de um estilo. Os filmes de Coutinho não são uma pletora de falas expressivas, um mundo de comunicação plena; são a exposição de um movimento nesta direção que depende do que, como afirmei, a combinação de método e de acaso permitam. Vale aí o princípio de que as pessoas são interessantes quando se libertam do estereótipo, recuperam na conversa um sentido de autoconstrução que tem sua dimensão estética. No limite, o cinema de Coutinho tem como horizonte um apresentar-se do sujeito como foco de um estilo (no sentido shakespeariano da auto-conformação, não no sentido de adoção de fetiches da moda). Não se trata mais da fé no natural, no absolutamente espontâneo, na verdade já dada sobre quem quer que seja. Trata-se de evidenciar as práticas da oralidade e dos gestos pelas quais um sujeito se apropria de sua condição, é criativo.5 Dentro dessa mescla de teatro e de autenticidade catalisados pelo efeito-câmera, cada um é cheio de dobras e se faz sujeito na prática, no embate com a situação ou na invenção de um modo de viver certa condição, incluída a breve experiência diante desta visita do cineasta a seu mundo. Neste sentido, o interesse do cineasta não se atém à visada exclusiva do sujeito como vetor de transformação, ator político cujo drama se definiria no desdobramento de sua ação no mundo (e não na hora da entrevista), palco de um destino de vitória ou derrota. A política aqui está concentrada num modo de filmar a conversa com qualquer pessoa, não importando seus vetores. O ponto decisivo está na qualidade do aqui-agora da filmagem, na atenção a esse fazer-se sujeito (ou imagem) diante da câmera, ponto de afirmação de um diálogo que se põe na contra-corrente da mídia, pois o cineasta busca em todos o que o tempo 5 Para um exame do espírito lúdico e da incidência do humor na adversidade, ver Consuelo Lins, “Rindo de quê? O humor no documentário de Eduardo Coutinho”, in Estudos Socine de Cinema – Ano III.

79

está a lhes sabotar: a condição de sujeito, mesmo que se saiba ser talvez impossível que esta se exerça plenamente nos termos da auto-formação e do auto-cultivo tal como postos pela tradição humanista.

80

81

Cinema documentário e efeitos de real na arte Andréa França

E se nada se encaixa no entendimento imediato, tanto melhor. O impasse do espectador é um avanço rumo a regiões obscuras do cérebro humano. Luiz Rosemberg Filho O território só vale pelo que sai dele; não há território sem um vetor de saída. Gilles Deleuze e Félix Guattari

Introdução As raízes das artes – a pintura, a poesia, o futurismo, o surrealismo, o construtivismo – no campo do cinema documentário não são novas. A história do cinema mostra que realizadores como Jean Vigo, Dziga Vertov, Joris Ivens, Alberto Cavalcanti, Luis Buñuel, para citar alguns, viram no procedimento da montagem, na fotogenia e no ritmo da imagem cinematográfica um modo de retirar os objetos e as coisas das sombras da indiferença, tornando-os revestidos de propriedades poéticas e expressivas jamais imaginadas. Se, de um lado, o cinema documentário se consolida como um campo em diálogo com a cultura científica moderna que valorizaria os fatos e os documentos na sua relação com o conhecimento e o saber positivistas, por outro, esse mesmo cinema manteria, em vários momentos de sua história, um diálogo profícuo com os movimentos de vanguarda dos anos 1920, dando espaço para outras formas de experiência, onde o conhecimento do outro e do mundo implicaria em aproximações mais associativas, intuitivas, reflexivas, poéticas.

82

Luis Buñuel dizia que o cinema deveria ser um instrumento de poesia “no sentido libertador, de subversão da realidade, de inconformismo...”. Para além das fronteiras, sempre tênues, entre o documentário e a ficção, o cineasta espanhol iria defender, dando continuidade ao projeto surrealista no campo do cinema, o gosto pelo insólito e uma metodologia de montagem capaz de juntar planos contraditórios e realidades díspares, de modo a produzir uma outra agenda para o olhar moderno. Claro que, para cada um desses cineastas citados, a noção de intervenção poética não designa exatamente a mesma coisa. Mas, no âmbito deste artigo, interessa que Buñuel, ao realizar o documentário Terra sem pão (Las Hurdes, 1932) deseje mostrar a vida dos habitantes da Serra de Las Hurdes, uma região miserável e inóspita da Espanha e, ao mesmo tempo, queira revelar, pela montagem, pelo ritmo veloz e pela disparidade entre imagem e som (a narração que insiste quase sádica sobre as imagens tristes do povoado), os estereótipos que cercam o registro de povos pobres e excluídos, a dimensão humanista que adocica de forma recorrente os espetáculos da miséria. O campo do documentário, nos anos 1930 do século passado, é tensionado pela intervenção desconcertante e incisiva do artista, pelo tom falsamente objetivo e sarcástico da voz over, pelo modo duro e “anormal” de se colocar diante de uma realidade tão desprovida de tudo, de saúde, alimentação, água, higiene, alegria, moradia, juventude... Como arrancar essas imagens, desprovidas de tudo, do lugar emotivo que costumam ocupar? Como mantê-las do lado do inimaginável? O projeto cinematográfico rigoroso do cineasta não permite que, face às imagens de miséria, se instaure no espectador um coração choroso, piedoso, lastimoso; ao contrário, trata-se de um projeto que, em meio ao cinema hollywoodiano nascente, deseja instilar, diante de realidades precárias, revolta e perturbação. Sem dúvida, Buñuel, Vertov, Ivens, Vigo, Paul Strand dão mostras de que, quando o cinema documentário se mesclou à arte da vanguarda, pode dar suas próprias respostas estéticas ao projeto moderno de desvelamento das zonas sombrias do mundo,

83

muitas vezes redimensionando sensorial e plasticamente os objetivos racionalistas e a curiosidade científica, presentes na origem da câmera cinematográfica, do “cine-olho”. Dentro desse horizonte de questões, o que o documentário pode oferecer hoje ao mundo da arte, da videoarte, e o que esse mundo das artes pode oferecer hoje ao campo do documentário? A proposta do artigo é discutir os pontos de convergência e as passagens entre o documentário de cunho social e as experimentações de linguagem, gêneros e meios, tendo como referência maior os documentários Do outro lado do rio, de Lucas Bambozzi (2004) e Preto e branco, de Carlos Nader (2004). Filmes que destacam o papel ativo e assertivo da câmera na situação de filmagem e que extraem desta consciência uma dimensão poética trabalhada sobretudo na edição, momento de reconhecimento da intervenção do filme, assim como de sua parcialidade. As mil faces do documentário Preto e branco (Carlos Nader, 2004), Do outro lado do rio (Lucas Bambozzi, 2004), Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2003), A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner, 2004), Passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2001), 33 (Kiko Goifman, 2003), para citar alguns, são filmes brasileiros que ajudam a pensar o método documental de maneira ampla. Experiências que se apropriam de métodos e formatos de outras artes – o vídeo experimental, a video-instalação, a performance, as artes plásticas – e propõem uma reflexão sobre a maneira segundo a qual a abordagem documental é intercambiável com outras formas poéticas de pensar o real. Realizadas inteira ou parcialmente em vídeo, essas imagens não são usadas como mero registro de situações preexistentes, mas como processo que impulsiona e estimula diferentes formas de representação das imagens que compõem e dão sentido ao mundo. O cinema documentário se vê aqui expandido pelo vídeo experimental, pela videoarte, pelo cinema de gênero, confrontado com

84

seus limites. As pesquisas audiovisuais realizadas por Bambozzi, Nader, Berliner, Goifman, Guimarães, fazem ressoar experiências mais antigas, de artistas brasileiros como Marcelo Tas, Arthur Omar, Éder Santos, Walter Silveira, e mesmo Sandra Kogut, que vão usar o vídeo, nos anos 1980, como domínio estético autônomo, “impuro”, em que circulam imagens gráficas, sons, ruídos, narrativas, de modo a promover um descondicionamento do olhar através da descontextualização das imagens e de sua reinserção em outros campos cognitivos, perceptivos, sensoriais, afetivos. Se, para Arlindo Machado, a experiência brasileira do vídeo nos anos 80 cria “uma outra antropologia”, distante da proposta cinematográfica do período que pretendia fazer uma apropriação ingênua e sem questionamentos da imagem do outro, é importante fazer um recuo no tempo para marcar que esses videoautores buscavam também inspiração e diálogo no cinema dos anos 1960, em filmes que, tanto no campo do documentário como no da ficção, inaugurariam toda uma problematização a respeito das imagens do mundo, dos recursos de montagem disponíveis, da possibilidade de falar do outro, da dinâmica das subjetividades em jogo no momento da filmagem. É, sem dúvida, o cinema de Jean Rouch que explicita e interroga, pela primeira vez, esse encontro que ocorre, desde as origens do cinema documentário, entre diretor e personagem no momento da filmagem. Encontro até então ocultado, deixado de lado, removido para o extracampo ou esquecido nas sobras do material bruto, este encontro passa a ser o cerne do próprio filme, sua razão de ser, à medida que torna visível uma certa metodologia, um método que exibe e interroga as condições de produção, as formas e o que está em jogo com suas imagens. Tais tradições, tanto no campo do cinema como no campo do vídeo, não só enfatizam a fragilidade dessa ponte com o mundo do outro, como mostram também a multiplicidade de procedimentos estéticos e recursos técnicos que podem ser empregados, experimentados e inven-

85

tados na relação entre imagem e mundo e entre as próprias imagens. As experiências de entregar a câmera para o personagem (Aluysio Raulino), de realizar (anti) documentários sobre a ilusão de conhecimento que uma certa tradição do documentário está sempre a prometer (Arthur Omar), de reduzir a expressão do cineasta ao mínimo para que a voz do outro se apodere do filme (Eduardo Coutinho), de utilizar o recurso da póssincronização como um método para que o personagem invente uma história e se invente diante de suas próprias imagens projetadas (Jean Rouch), são tentativas de partilhar esse poder/saber do documentarista, de insuflar espaços de liberdade e negociação, de liberar o filme de situações narrativas pré-determinadas e enrijecidas.1 Arthur Omar, nesta perspectiva, é o artista brasileiro que inaugura um percurso que vai do cinema às artes plásticas, deslizando pelo vídeo, pela fotografia, pelas videoinstalações e instaurando com sua obra um ponto de encontro e ao mesmo tempo de trânsito entre meios, gêneros e gerações. Sua obra dialoga com questões históricas que marcam o cinema da vanguarda europeia dos anos 1920 (as artes plásticas, a repetição, a fragmentação, a descontinuidade, a “montagem disruptiva-associativa”, tal como cunhada por Vlada Petric no seu estudo da obra de Dziga Vertov), o cinema moderno dos anos 1960 (o registro do imaginário como questão, assim como a reflexão do que está em jogo com as imagens do cinema) e, ainda, o cinema marginal brasileiro (a atenção às atitudes e posturas do corpo, o corpo como “matéria” e paisagem da obra, os filmes de Andrea Tonacci e Rogério Sganzerla). O documentário O inspetor, de 1988, é um curta instigante de 11 minutos que conta a trajetória do inspetor de polícia Jamil Warwar, policial que fica famoso nos anos 1970 por ter solucionado o assassinato da jovem Cláudia Lessin Rodrigues. O inspetor Warwar teatraliza, diante 1 A metodologia de entregar a câmera para o personagem, recurso utilizado por Aluysio Raulino no documentário Jardim Nova Bahia, de 1971, será retomada por Paulo Sacramento em O prisioneiro da grade de ferro (2004), filme em que é Aluysio Raulino quem assina a direção de fotografia.

86

de uma câmera completamente arrebatada pela metamorfose pela qual passa o seu corpo, seus inúmeros disfarces cotidianos para desvendar “casos difíceis” – um dia é padre, outro é travesti, ou ainda empresário da noite... Todo um devir artista que convoca o policial a interpretar, durante o seu ofício de detetive e de personagem do filme de Omar, múltiplos papéis, convidando a câmera não só a uma imersão extasiada no imaginário daquele que está diante dela, mas também a uma espécie de “documentação” de elementos caros à imagética do cinema marginal, como a pop art, o tropicalismo, a contracultura, a presença de O bandido da luz vermelha (Sganzerla, 1968) na composição formal, no tema, no ritmo da montagem. É essa imersão extasiada nas fantasias/fantasmagorias do outro, esse mergulho na materialidade da própria imagem – seja do cinema, do vídeo ou da fotografia – enquanto textura, fluxo torrencial, intensidade rítmica e pulsação, que filmes como o curta A coroação de uma rainha (1993) e o longa Sonhos e histórias de fantasmas (1996) também investigam; enlaçam-se, ambos, aos espíritos, rostos e espectros encarnados nas comunidades negras e sofridas do interior de Minas Gerais, de modo que Omar se vê na obrigação de inventar toda uma iconografia que possa sustentar essa “antropologia da face gloriosa” que desconstrói a presença do outro na sua dimensão humana e, no mesmo gesto, o captura sob uma outra dimensão, inumana e transcendente. Em Sonhos e histórias de fantasmas, o mundo dos espectros de outrora, encarnado numa comunidade quilombola, irrompe abruptamente em um hino cantado pelos MC’s cariocas aos mortos do tráfico. É claro que o documentário hoje se confronta com inúmeras questões. Jean-Louis Comolli diz, em Voir et pouvoir, que os documentaristas atuais se deparam com problemas ligados a um mundo que já se dá como imagem, um mundo onde “ser filmado” e “tornar-se personagem” é um dado concreto. Sem dúvida, a fotografia, a televisão, o cinema, a internet, a disseminação de câmeras de vigilância, dotaram

87

cada um (substituir um por indivíduo) desta consciência a respeito da imagem de si a mostrar, a exibir, a colocar em cena. Dessa consciência, por parte do personagem de um documentário, vem a armadilha para o documentarista: faz-se o papel que se imagina que a câmera/ diretor deseja e espera, isto é, exagerar na história, dar um ritmo adequado à fala para ganhar visibilidade e não ser cortado na edição, etc. É um campo de cinema que tem um trabalho difícil, pois precisa lidar diariamente com o mundo dos clichês veiculados e disseminados pela cultura do espetáculo e incorporados, conscientemente ou não, às relações sociais cotidianas. Por outro lado, dessa consciência por parte do documentarista vem o reconhecimento de sua responsabilidade na construção da realidade que se fabrica ali, no momento da filmagem, sem existência antes ou depois do filme, e que por isso mesmo pode ensejar novos modos de compreensão do devir do mundo (espetacularizante, exibicionista, transformado frequentemente em um grande confessionário a céu aberto). Uma imagética para a palavra do outro Preto e branco e Do outro lado do rio são filmes que querem fazer a ponte entre o documentário social e o vídeo mais experimental. Tanto um como outro discutem os constrangimentos e os interditos derivados da condição socioeconômica no Brasil, partindo de um contexto de fraturas sociais, de segregações resultantes de diferenças econômicas, raciais, culturais. Do outro lado do rio explora o imaginário da diferença (territorial, linguística, cultural) como expectativa de melhores condições de vida – são personagens que querem atravessar a fronteira do rio Oiapoque a qualquer custo porque acreditam que, do outro lado, na Guiana Francesa, a vida poderá ser melhor. Preto e Branco explora o imaginário da diferença (da cor de pele no Brasil) com uma trama complexa e discordante de discursos, pois aqui é a cor da pele que está em foco, sustentada pela colonização histórica do país.

88

Estes filmes, de realizadores provenientes do campo das artes plásticas e da videoarte,2 creditam um papel essencial à palavra do outro. Há uma escuta que se traduz de forma poética e marcadamente subjetiva, distanciando-se muito da mudez da videoarte que, como sabemos, tantas vezes produziu e produz indiferença e tédio no público que pretende mobilizar. A palavra do outro importa aqui. Mas não é a palavra captada rapidamente, como nas reportagens televisivas, interessadas em editá-las de acordo com certos pressupostos e ideias já construídas de antemão, nem tampouco a palavra que se inventa ali, diante da câmera, cabendo ao cineasta praticar uma operação de subtração visual de tudo que ele não considera essencial, como nos filmes de Eduardo Coutinho. A palavra, em Do outro lado do rio e em Preto e branco, existe para ser acolhida, debatida e demonstrada visualmente, de modo que sua escuta se mostra em função de escolhas e procedimentos expressivos, tais como enquadramentos, sobreposições, texturas da imagem, slow motion, grafismos, paisagens compostas de desfigurações progressivas. Trata-se de uma escuta que ganha demonstrações visuais e que explora os dispositivos tecno-estéticos da imagem. Em Preto e branco a trama de discursos divergentes sobre a questão da raça e do preconceito no Brasil mobiliza a imagem como suporte informe, fluido, progressivamente desconfigurado e colorido. O filme do paulista Carlos Nader imprime visualidade à palavra discordante através da interação sempre tensionada entre personagens/diretor, personagens entre si, o próprio corpo consigo mesmo. Em Do outro lado do rio é a palavra da expectativa que imprime à imagem os recursos do ralenti e/ ou da aceleração, construindo variações rítmicas diversas. O realizador mineiro, Lucas Bambozzi, se deixa levar pela aventura instável de seus 2 Carlos Nader é documentarista e videomaker. Realizou, entre outros, O beijoqueiro (1992, com muitos prêmios internacionais), Trovoada (vídeo experimental, 1995), Território do invisível (1994, com Marcello Dantas), Concepção (2001), Carlos Nader (1998). Lucas Bambozzi é documentarista e videomaker. Realizou, entre outros, O fim do sem fim (2001, documentário em longa metragem), Aqui de novo (2002, vídeo experimental de 6’), Eu não posso imaginar (1999, vídeo experimental, 22’), Ali é um lugar que não conheço (1997, vídeo experimental, 7’).

89

personagens, todos desejosos de atravessar ilegalmente a fronteira do Brasil com a Guiana, corpos errantes e seduzidos pela transgressão – o corpo refugiado, clandestino, prostituído – cujas palavras convocam do filme procedimentos de “descorreções de luz”, de sobreposição, de zapping, amalgamados com referentes indiferenciados, tais como o rio por onde transitam barcos, crianças que mergulham das pedras que margeiam o rio, rostos tristes à espera de alguma coisa incerta. Bambozzi participou em 2004 da programação da série “Noitadas” no Museu da Imagem e do Som (São Paulo), apresentando a performance “A parte precária: vídeos em processo, ruídos e improvisos visuais”. Tratava-se de uma projeção de ruídos e improvisos a partir de imagens que retratariam a ideia de precariedade. O que interessa, neste evento, é como o artista vai trabalhar conceitualmente a noção de fragilidade da imagem, reconhecendo sua natureza “falha” e explorando, a partir disso, o silêncio, o intervalo, o ruído, a violência dos fluxos. Do outro lado do rio é um desdobramento da série Viagens na fronteira, um conjunto de cinco vídeos de curta duração dirigidos por diferentes artistas, realizado pelo Itaú Cultural (1998) e que teve como título Fronteiras.3 O curta Oiapoque-L‘Oiapoque (11 minutos), de Bambozzi, um dos vídeos desta série, funciona como campo de pesquisa – de personagens, lugares, situações, imagens e sons – para o longa que faria alguns anos depois. Do outro lado do rio se detém em quatro personagens (um garimpeiro, uma prostituta, uma secretária, um refugiado) que estão vivendo há algum tempo na fronteira do Amapá. As expectativas e os desejos são muitos – “ganhar dinheiro”, “viver aventuras”, “casar com um francês e ter um filho de olhos azuis”, “ir pra Paris porque aqui é o início da França” – e o filme dialoga com esse imaginário de desejos incertos ao produzir dissoluções rápidas do figurativo e ao combinar 3 Para uma discussão mais ampliada e analítica desta série realizada pelo Itaú Cultural, em 1998, ver artigo de minha autoria, “Viagens na fronteira do Brasil e do cinema”, na revista Devires: Cinema e Humanidades v. 4.

90

grafismos com flashes de rostos desamparados, pássaros voando, um cachorro correndo atrás de um laser, bocas com dentes de ouro reluzentes, uma bandeira do Brasil flanando sem as palavras “ordem e progresso”. Trata-se de uma gama de efeitos plásticos e sensoriais que aceleram o ritmo da edição, como se Lucas Bambozzi buscasse uma sintonia visual para a dinâmica que envolve seus personagens, movidos pela excitação do desconhecido e por um desejo de infração, de transgressão dos limites, de ultrapassagem, de fuga incontrolável para um ponto sem luz, obscuro, indefinido. Em Preto e branco a cor da pele funciona como fronteira, como diferença que precisa ser confrontada, debatida, teatralizada no âmbito do privado. O foco do filme é a divergência e o conflito radical dos depoimentos de “especialistas” (antropólogos, escritores, músicos, filósofos) sobre a questão étnica. Não há concordância e os pontos de convergência são mínimos. Embora o filme procure harmonizar essa dissonância no final, com as imagens coloridas do carnaval, a festa e o êxtase para além das diferenças, o que interessa são as situações em que os quatro personagens – o cego, o advogado, o antropólogo, a modelo – são convocados a encenar situações domésticas: seja da chegada do resultado de um exame genético, seja de um almoço em família, seja de um reencontro entre antigos amigos. Há uma tensão que passa pela dificuldade de acolher a diferença, mesmo na intimidade, no âmbito do privado. Daí a importância do primeiro personagem, o cego de nascença Eduardo, cheio de preconceitos com relação aos orientais, que “mentem muito”. Depois de ir a uma clínica para fazer um exame de genes, acompanhamos a chegada do resultado do teste na casa de Eduardo e de seus pais. Há toda uma situação criada para o filme e pelo filme. O resultado da leitura do exame gera surpresa, pois ter ancestrais ameríndios significa aceitar que a diferença existe não apenas socialmente, mas que ela habita o próprio corpo. Filme e biotecnologia produzem uma proble-

91

matização do sujeito, o corpo humano tornado estranho, opaco, uma paisagem ao mesmo tempo íntima e desconhecida. A leitura do exame põe a nu um tema recorrente na obra de Carlos Nader, que passa pela própria definição do que é humano, do que é sujeito, questão já sugerida em um outro trabalho do artista, Concepção (2001), onde o corpo serve como “matéria” (estética, médica, biotecnológica) para um exame de endoscopia: pressão arterial, pulsão dos órgãos, batimentos cardíacos tornam-se absolutamente estranhos, justamente quando exibidos em uma radical proximidade/intimidade, ou seja, através das entranhas. Também em Carlos Nader (1998), o próprio artista joga ironicamente com essa dimensão da intimidade tornada estranha, difusa, ao declarar, diante da câmera, que contará um segredo que nunca tinha revelado a ninguém. Sua voz torna-se então gradativamente inaudível e o que se vê é um fluxo de imagens justapostas, fragmentadas, desconexas. Em Preto e branco, a edição de Nader e José Tenório explora as imbricações de imagens umas nas outras (carnaval, candomblé, samba, multidão de pessoas numa rua paulista), slowmotion, distensão de sons, ruídos, palavras, criando uma espécie de sopa primordial de diferentes padrões de formas e cores e colocando em questão a própria definição do que é a cor de pele no Brasil ou em qualquer outro lugar. A escuta desses descompassos se traduz nas imagens em metamorfose, em uma morfogênese que encena o que poderíamos chamar de “teatro íntimo da diferença”, seja no corpo biológico, seja no corpo social/individual. Esses filmes têm uma dimensão documentária indiscutível. Ao trabalhar com situações em que os personagens vivem e reagem ao momento da filmagem, Bambozzi e Nader produzem acontecimentos especificamente fílmicos, acontecimentos que não estavam previstos antes da filmagem e que o ato de ligar a câmera provoca, intensifica, captura. É claro que tais imagens correm o risco constante de se desfazer diante das contingências do real, como acontece em Do outro lado do rio, quando João Gomes diz que o documentário que estão fazendo com

92

ele é dos “gendarmes”, que ele foi enganado pela produção, ameaçando equipe e diretor. Em Preto e branco, após a leitura do resultado do exame, Eduardo se cansa das perguntas de Nader e questiona, mal-humorado, a relevância e os objetivos do filme que estão fazendo, deixando sua mãe constrangida. Essas imagens criam momentos de suspensão do tempo, de fratura, de “documento”, mostrando que o importante para o resultado do filme é que as personagens possam se constituir gesto por gesto, palavra por palavra, fabricando a si próprias à medida que o documentário avança, gradualmente, de modo que o momento da filmagem possa agir sobre elas como um revelador. Para cada pequeno avanço do filme, a possibilidade de desenvolver ou inventar um novo comportamento, a duração do documentário e da personagem convergindo e coincidindo, como assinala Comolli. Em função destes momentos, e a partir deles, podemos retomar a frase de Godard – “o cinema é a verdade 24 vezes por segundo” –, pois eles revelam histórias onde o filme também é o documentário de sua própria filmagem. São nestes momentos de suspensão que as personagens ganham em complexidade e densidade, liberando o filme que fazem para uma espécie de falha, de ranhura, de inconsistência. Não resta dúvida que essas imbricações entre o documentário de cunho social e as experimentações de linguagem, de meios, de métodos, não qualificam nem desqualificam, a priori, filmes, obras ou projetos. Há que se estudar caso a caso, claro, e o que interessa, nos limites deste artigo, é que existem consequências estéticas e políticas nessa hibridação. Brasis imaginados Há nos documentários de Bambozzi e Nader uma pesquisa sensorial e plástica que busca enlaçar os múltiplos imaginários do Brasil, longe de estabelecer uma falsa totalidade ou de querer retratar o país com o mote “o Brasil que o Brasil não conhece”. Destacaria o modo

93

como estes filmes lidam com a fronteira (simultaneamente limite e passagem, sempre), sejam elas de cor, de língua ou de territorialidade. Em Preto e branco tais fronteiras são vividas e teatralizadas tanto social como biologicamente, já que no interior do próprio corpo habita o “estrangeiro”. Em Do outro lado do rio a fronteira é não só a passagem para um desconhecido desejado e idealizado, como implica também a criação de vizinhanças e laços precários. O rio Oiapoque materializa essa operação de passagem e, por isso mesmo, a prostituta Telma é o centro de gravidade do filme, personagem que conduz e estrutura a narrativa, centro móvel e deslizante que leva consigo a promessa imaginária do encontro derradeiro. Não se trata, portanto, de partir de ideias (boas ou ruins) já conhecidas de antemão a respeito do Brasil, mas de acontecimentos nãoprevisíveis que a própria metodologia do filme propicia, acontecimentos que escapam à lógica na qual tudo já é sabido a priori. Em Do outro lado do rio, a conversa gaguejante entre Elaine, que deseja um novo visto, e o chefe da aduana é exemplar: a língua falada entre os dois (francesa, portuguesa?) é pátria e exílio, sentimento de pertencimento e despertencimento, pois o desejo de diálogo sugere uma língua outra, desconhecida, que funda suas próprias coordenadas e afetos, arrastando a língua identitária para uma outra, virtual e alternativa (Deleuze e Guattari). Este estranho diálogo é fundamental naquilo que revela ser o “gesto” do próprio filme, isto é, o movimento de desnaturalizar língua, território e terra natais. Em Preto e branco, diferentemente, a trama rica de discursos sobre o problema da cor de pele no Brasil se encaminha para um movimento de harmonia que as imagens do carnaval propiciam, imagens da festa popular reconhecida por aproximar, reunir, amalgamar sagrado e profano, sublime e insignificante, misturar o que é da ordem dos contrários. A solução talvez seja frágil para um diagnóstico que, desde o início, se mostra de forma tão discordante, potente e complexa. Por isso mesmo, são os momentos de teatralização da intimidade, do corpo social ou biológico,

94

que não só encenam uma realidade multifacetada como fornecem sentidos, imaginários e sensações que resistem bravamente ao agenciamento totalizante com o qual o filme pretende finalizar. Ao redimensionar o sentido do próximo e do distante, estes documentários inventam procedimentos técnicos e estéticos para dar conta de limites que não passam pelas especificidades nacionais, étnicas ou biológicas, e se afastam de qualquer discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza. Os cineastas analisados aqui fazem um trabalho de investigação a respeito de formatos e métodos, vindos tanto do documentário como do campo da arte, que possam se enlaçar aos acontecimentos do mundo e, mais do que isso, promover uma espécie de contra-discurso em meio à avalanche de imagens simultâneas e coextensivas aos acontecimentos. Longe de uma articulação com os discursos da reportagem, do melodrama ou das pregações moralizantes, que se empenham em fornecer uma leitura social acabada e teleológica do país, esses filmes buscam romper, tanto na forma como no conteúdo, com as imagens-clichês do que seja o cinema documentário, o vídeo experimental, os estereótipos comportamentais do que seja um delegado da polícia carioca, uma comunidade quilombola do interior de Minas Gerais, um cego de nascença, a língua e a terra natais. Trata-se de toda uma pedagogia audiovisual que ensina ao olhar “formas de ver”, como a comunidade quilombola que vive num cenário depauperado e a comunidade funk, de jovens da periferia carioca, tornadas ambas, pela máscara/câmera de Arthur Omar, não um objeto de saber antropológico ou sociológico, mas uma paisagem de rostos desconcertantes e intensos, rostos abstraídos de seu entorno imediato e que inventam, nas palavras de Ivana Bentes, “tribos estranhas, nações africanas desconhecidas, periferias obscuras de alguma cidade sem nome; ao contrário de reiterar formas cúmplices de ver, presentes nas imagens humanistas, edificantes e/ou traumáticas, essas experiências audiovisuais prolongam e fazem ressoar uma pedagogia que, nos anos

95

1930 do século passado, Luis Buñuel já anteciparia, a partir de toda uma metodologia surrealista, com seu documentário sobre o povoado miserável de Las Hurdes. Promovem tais filmes uma pedagogia audiovisual que implica interrogar diariamente: como e por que fazer cinema documentário no Brasil? Tal pergunta precisa ser constantemente renovada, pois ela traz não só a cultura e o pensamento audiovisual para o centro das questões contemporâneas (lembremos que, no Brasil, a televisão ou expõe sujeitos quaisquer a uma visibilidade excessiva, espetacular, ou faz deslizar suas singularidades para o domínio da invisibilidade), como pressupõe também a necessidade de ampliar e experimentar os limites, tênues e frouxos, do campo deste cinema que, nos seus melhores momentos, cria realidades da ordem do impensado e mostra sua distância do modo cotidiano de circulação de palavras, sons, imagens, gestos e afetos, ao refletir sobre o efeito de suas formas. A disputa de sentidos com a agenda da mídia também se faz aqui.

96

97

Perguntar (não) ofende Anotações sobre a entrevista: de Glauber Rocha ao documentário brasileiro recente Stella Senra

1 Lá pelo final dos anos 1980, o colunista José Simão, da Folha de S. Paulo, cunhou a expressão “perguntar não ofende”, reiterada quando trazia à baila algum acontecimento da atualidade – em geral de cunho político – para introduzir uma pergunta pretensamente inocente, com a função de expor a má fé de sua versão “oficial”. Com a malícia que costuma ser dom dos humoristas ele percebeu que essa capacidade de dar a entender, sem afirmar, fazia da pergunta o instrumento ideal para pôr em evidência o que não podia ou não estava sendo dito com todas as letras. Além dessa falsa candura, que acabava revelando a desfaçatez com que se pode mentir, a pergunta do crítico ainda tornava patente um fenômeno na época pouco discernido, mas que não parou, desde então, de se acentuar: o “entorpecimento” da linguagem, uma espécie de “indiferença” muito característica do nosso tempo, que permite a circulação, sem entraves, pelo discurso, das mais descaradas mentiras – como se elas estivessem praticamente “fadadas” à aceitação pública. Com certeza esse caráter corrosivo da pergunta, sua capacidade de “deixar no ar” o que de outro modo não pode ser afirmado, fazem dela um instrumento extremamente atraente para o exercício do humor; instrumento cujo poder de fogo torna-se, de resto, ainda maior quando o campo visado é a arena política, território por excelência da palavra, do discurso, do jogo com o dito e o não dito.

98

É justamente o poder implícito no ato de perguntar que o escritor Elias Canetti evocará em seu Massa e poder, livro que focalizou o desencadear das massas do século XX, atravessadas pela dialética da ordem e do comando. Ao tratar com agudeza a questão da ordem e da obediência à ordem, Canetti destaca a força da pergunta usada como exercício de poder, e recorre à metáfora da lâmina e do corte para reconhecer, no ato de perguntar, a mesma capacidade de penetrar “na carne do questionado, cortando fundo”. Canetti considera a pergunta como uma intromissão, um modo de “entrar pela força” e analisa de um ponto de vista político a dupla pergunta-resposta como situação de confronto, de tensão, como um embate de forças – em vez de tomá-lo, como se tende a fazer, como uma relação da ordem do diálogo, que propicia o entendimento, o encontro. As perguntas são concebidas com vistas a obter respostas, diz Canetti, para obter algo que se está buscando. “Sabe-se de antemão o que se pode encontrar, mas quer-se descobri-lo e tocá-lo de fato”. Evocando a figura do cirurgião, Canetti diz que o inquiridor se precipita sobre os órgãos do interrogado, mas que seu interesse é manter “viva sua vítima [ênfase minha] para saber mais sobre ela”. Ao emprestar desse profissional que interfere no corpo do outro o caráter invasivo de seus gestos, Canetti ressalta, entretanto, que a situação da pergunta põe em cena uma “espécie particular de cirurgião”, cujo procedimento implica numa insidiosa estratégia: “provocar deliberadamente a dor em certos pontos” (...) e estimular “certas porções da vítima para saber de outras com maior segurança”. Dotada dessa capacidade de dissimular seu objetivo, a pretensão da pergunta é dissecar, observa o escritor, dando prosseguimento a sua metáfora médica. Tal operação é iniciada pelo contato, que visa diferentes pontos; ao não encontrar resistência, ela avança, mas nem sempre vai diretamente ao ponto almejado: sorrateira, a pergunta pode reservar o resultado de sua colheita para utilização posterior. Há algo na pergunta que é da ordem da cisão, diz Canetti, como uma faca que separa duas partes: antes dela não se sabe ainda o que se

99

pensa. É ela que obriga a refletir, a separar prós e contras. Mesmo uma pergunta inocente, como a direção de uma rua, faz o inquirido parar, interromper o fluxo de seus pensamentos e, ao aceitar respondê-la, o obriga a desenhar um “mapa mental” onde passará a buscar o local procurado. É por causa de seu decisivo poder de corte, de sua “afiação”, que a pergunta é tão mais poderosa quando, certeira, pede apenas duas respostas, o sim e o não – a aquiescência à resposta implicando, por sua vez, um grau de comprometimento sem volta possível. Sem dúvida certas situações podem restringir a ação – e, portanto, a força – do inquiridor. Assim, diz Canetti, as formas da civilidade impedem que se façam certas perguntas a um estranho; enquanto manter-se nessa reserva dá a este a sensação de ser respeitado – e, portanto, de ser mais forte. É o suposto equilíbrio de forças propiciado por tal distância que permite a convivência entre os homens. Canetti opõe dois tipos de pergunta, segundo a distribuição de poder na qual operam: a pergunta dirigida aos mais fortes, pergunta “suprema”, “colossal”, que diz respeito ao futuro e é endereçada aos deuses; desobrigados de responder, eles podem também dar respostas ambíguas, difíceis de decifrar. No polo oposto, a pergunta endereçada ao mais fraco, cuja situação extrema é o interrogatório que obriga à resposta sob pena de tortura e morte. De acordo com esse ponto de vista, o ato de perguntar implica, como todo exercício de força, a constituição de uma estratégia; e esta desencadeará, por sua vez, no campo do inquirido, o uso de procedimentos ou de “métodos” de defesa: responder com outra pergunta, usar da astúcia para desencorajar o inquiridor, recorrer ao silêncio são alguns dos mecanismos que o inquirido pode acionar para se opor à intromissão da pergunta. Além de obter a satisfação de seu desejo, o efeito das perguntas sobre o inquiridor é, naturalmente, o aumento de sua sensação de poder, observa Canetti. O que provoca nele a vontade de fazer mais e

100

mais perguntas; enquanto isso, o inquirido submete-se tanto mais ao seu poder quanto mais consente em responder – tornando-se, por sua vez, mais fraco. O lugar do político É essa dinâmica instituída pela pergunta – o exercício do poder, por um lado, e o acionamento de mecanismos de defesa, por outro – que o cineasta Glauber Rocha explora na série de “entrevistas” postas em cena nos anos 1979-1980, ao longo de sua intervenção no programa Abertura da TV Tupi.1 Ao participar desse programa que tirava proveito do processo de abertura política para incrementar o debate democrático no país, o diretor de cinema, que sempre acreditara na importância da televisão, aproveitava-se de seu tempo de antena para uma intervenção política radical, tanto na forma quanto no conteúdo. Intervenção na qual o uso da forma-entrevista – ou melhor, a “política” da pergunta –, ao encenar as ambíguas relações de poder da sociedade brasileira, não se limitava a deslocar o eixo do debate que então se travava, buscando ainda pôr em discussão uma série de temas (o cinema, a literatura, a psicanálise...) que visavam destacar o papel decisivo da dinâmica cultural naquele momento político. Como Rosselini tinha apostado, em seu tempo, no uso pedagógico da televisão, Glauber estava apostando no seu uso político ao pôr o poder de comunicação desse veículo a serviço da incipiente abertura democrática – tema que já vinha evocando com insistência em suas intervenções públicas desde o final dos anos 1970. Mas para o autor de Estética da fome, que nunca separou estética e política, pôr a proveito a 1 Abertura foi ao ar de fevereiro de 1979 a julho de 1980 na rede Tupi de Televisão, dos Diários Associados, com direção geral de Fernando Barbosa Lima e direção de imagem de Alberto Loffler. Regina Mota relata que ele reuniu um dos melhores times de intelectuais, artistas e jornalistas jamais mostrados pela TV brasileira e foi o primeiro, depois do período da censura, a abordar aspectos políticos da realidade brasileira. O programa era composto por vários quadros, cada um apresentado por uma pessoa. Ele fornecia o equipamento e liberdade para a concepção de cada um. Barbosa Lima editava, a partir do material que recebia. À precariedade da produção modesta correspondia a liberdade de expressão de ideias e do tratamento televisual. Ver Regina Mota, A épica eletrônica de Glauber Rocha - Um estudo sobre cinema e TV. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

101

função política da televisão não se resumia à mera substituição de conteúdos, ou, como se diz, de “mensagem”; implicava, igualmente, numa crítica da linguagem da televisão. O que ele empreenderá com grande entusiasmo e senso de humor, dando origem a uma série de programas até hoje de grande frescor. A linguagem da televisão brasileira se cristalizara segundo os parâmetros estabelecidos ao longo dos anos 1960-1970 pela recémcriada TV Globo. Sob o lema bastante repisado da “qualidade técnica” (o chamado “padrão Globo de qualidade”), abrigavam-se objetivos políticos que, embora não reconhecidos, visavam atender às demandas do regime militar. Ao tornar de certo modo “homogêneo” um meio de grande diversidade social e cultural como o brasileiro, a TV Globo atuou no sentido de “integrar”, por meio da imagem, o território nacional no momento em que a ditadura, implantada em 1964, precisava de “unidade ideológica” para desenvolver o seu projeto político. O tão prestigiado apuro técnico deu lugar, como se sabe, a uma estética comprometida com tal objetivo político. No que diz respeito à informação, privilegiou-se o seu bom acabamento: imagens bem feitas, edição precisa, ritmo dinâmico – assimilando qualidade técnica à objetividade. Também a figura impecável do jornalista, a solenidade da sua voz reforçavam a ideia de uma informação isenta, destituída de paixão. Tudo isso fez com que a qualidade técnica se tornasse um signo de “transparência”, uma “garantia” de objetividade – empreendimento bem-vindo após anos de censura, que tinham comprometido a reputação da informação e de seus veículos. Foi assim que se definiu uma “estética da limpeza”, com imagens impecáveis e a atualização constante do aparato tecnológico. O tão louvado “padrão Globo de qualidade” parecia constituir, no final das contas, o álibi perfeito para um “saneamento” da informação que não se limitava às suas “impurezas” técnicas, mas contemplava também a sua dimensão ideológica.

102

Enquanto no plano da informação se promovia a “depuração” da imagem, esta, por sua vez, era preparada para a “entrada do povo”. O avanço técnico que criou o “padrão de jornalismo” Globo não só permitira a captação da imagem de gente comum, trazendo para o vídeo a cara da população: ele deu lugar também ao desenvolvimento de novas iniciativas que visavam tornar “visível” o país para si mesmo, trazendo “democraticamente” para a tela aqueles que, antes, se contentavam em ficar à sua frente. Foi nesse mesmo empuxo que se cunhou, ou melhor, “patenteou” uma “imagem” do povo brasileiro e até uma ideia do que seria a “cultura brasileira”. A maneira pela qual os pobres, em particular, adentraram a tela da televisão se fez sob o império de uma das características mais marcantes da cultura brasileira: a combinação, de dosagem variada, entre autoritarismo e paternalismo. Desenvolveu-se um “modo” muito próprio de falar com eles, de “mostrá-los”. Na “melhor” das hipóteses, como “vítimas” da situação social do país – o que funda um discurso benevolente, cheio de “boas” intenções, que confere ao mesmo tempo à câmera o direito de vasculhar suas vidas, suas dores e alegrias, sua intimidade, enfim, a título de uma vaga “denúncia social”. Na pior das hipóteses, como “bandidos”, objetivados por um discurso moralizante e que, por já terem “escolhido” a exposição pública, também podiam, do mesmo modo, ter sua imagem devassada e descaradamente explorada, sempre em nome do “bem público”. Foi assim que os pobres foram como que “desapropriados” de fala e de sua face, rentabilizadas no mercado de imagens. Glauber chega à televisão quando o País atravessava uma situação política de transição, com promessas de fim da censura, redemocratização do regime e convocação de eleições diretas. Seu intuito é interferir nesse processo, fazendo valer o poder de comunicação que creditava à televisão o espírito inovador do Abertura. Além disso, a linguagem cristalizada da TV, o comprometimento das emissões ao vivo pela censura seriam decisivos para que o diretor definisse a modalidade de sua intervenção do diretor.

103

Ao final dos anos 1970, a televisão já incorporara, como seu “trunfo” maior, a “imagem” do povo brasileiro; e conseguira integrar, por meio do assistencialismo e da mais crua manipulação, a “participação” dos pobres: eles não estavam apenas nos programas de auditório, mas também as reportagens tinham nessa população um objeto privilegiado de atenção. Situação que não podia ser ignorada por um projeto de intervenção política via TV, sobretudo em se tratando de Glauber, diretor cuja obra primou pelo seu empenho no conhecimento do povo brasileiro. A participação de Glauber contemplaria, desse modo, duas dimensões políticas inseparáveis: a intervenção direta por meio do trato de temas políticos, que podia passar tanto pelas desabridas entrevistas com personalidades do meio político e cultural quanto pelo seu próprio discurso sem papas na língua; e uma crítica da estética da televisão, que tinha em mira a sua linguagem cristalizada. Não se tratava de uma crítica metódica da linguagem – como no Godard dos anos 1970 –, mas de uma ruptura de limites que resultava tanto da exploração de um novo veículo pelo diretor quanto do caráter radical da sua intervenção, que atropelava a divisão de gêneros televisivos e propunha outra abordagem do público. Glauber tinha autonomia para conceber seu quadro, de menos de dez minutos. Mas em vez de permanecer por detrás da câmera, ele se põe diante dela e assume o papel de entrevistador, de animador que se dirige diretamente ao público, de agitador político que o interpela e até mesmo de provocador, fazendo-se, para tanto, também “personagem”. Recebia muitos convidados: políticos (a maioria da oposição), figuras públicas, que entrevistava em torno de seus temas preferidos: a política “das aberturas”, como ele a denominava, o processo de redemocratização, as reformas sociais, o resgate da memória e da história política, a cultura, a literatura, o teatro e o cinema brasileiros. Também podia ocupar o tempo com uma fala sobre esses assuntos, dirigindo-se diretamente à câmera. O tom direto, como se estivesse ao vivo, rompia com os padrões impostos pela censura em busca de interlocução com o público, os políticos, os responsáveis

104

pela produção cultural e artística, a imprensa: Glauber sempre encontrava lugar para uma cerrada e impiedosa crítica da mídia, brandindo no ar o jornal ou revista visados, enfiando–os na frente da câmera ou interpelando nominalmente jornalistas, jornais e revistas.2 Ao lado dessas modalidades de intervenção, que nas mãos de Glauber tornavam-se um verdadeiro desafio à televisão e ao modo como esta se dirigia ao público, o diretor “criou” também dois personagens emblemáticos do povo brasileiro: um negro e um nordestino, com os quais interagia em nome de uma crítica das relações e representações que a própria televisão, as elites, as instâncias de poder faziam dessa população, sem se esquecer do que também fora elaborado sobre o tema nas imediações da esquerda e no cinema. “O povo no poder” Em seu livro A épica eletrônica de Glauber Rocha, Regina Mota enumera algumas das rupturas das normas televisivas que o diretor promoveu, relacionando-as de preferência com o cinema e com a linguagem cinematográfica que ele tanto inovou. Aqui se trata de considerar o programa de Glauber do ponto de vista de seu embate direto com a televisão e, particularmente, com a linguagem da informação. A postura de Glauber se contrapunha à clássica oposição entre redação e rua, que fixara dois regimes de linguagem para a informação. Na redação, a estabilidade do quadro, a pequena variação dos ângulos de tomada, a “boa” distância da câmera (nem muito perto nem muito longe), a disposição equilibrada dos jornalistas no centro do quadro e sempre atrás da mesa “de trabalho”; as vozes pausadas e o olhar para a câmera (em geral duas e não mais), a redação (ou o logo da emissora) como fundo, o corte harmônico e em sintonia com o olhar/câmera – tudo concebido para 2 Glauber se valia da imprensa para abordar temas da atualidade. Além de servirem como “fonte” – em geral criticada –, jornais e revistas e também livros se prestavam a experimentos com o uso da palavra impressa na tela; ademais, ao movimentá-los criava uma nova dinâmica no quadro, usando-os, como notou Regina Mota, como elementos internos da edição para “cortar” e “montar”.

105

assegurar uma ideia de “equilíbrio”, de comedimento e seriedade diante dos fatos reportados. Na rua, “liberdade” da câmera para acompanhar os movimentos do repórter, o quadro mais instável, sublinhando a urgência da ação – enfim, a mobilização de uma série de recursos de linguagem de forma a “conotar” o calor, a emoção do acontecimento “vivido”. A intervenção de Glauber punha abaixo essa clássica separação redação/rua e eliminava a distinção entre os dois regimes de imagem: não apenas ao levar a emoção, o calor e o movimento para o espaço fechado, atuando ainda como se estivesse sempre “ao vivo”, mas também ao colocar na rua cenas que, de hábito, seriam abrigadas na redação. Sem diferenciar um do outro, o diretor fazia ainda um uso perturbador do espaço fechado, ignorando as suas coordenadas de modo a torná-lo às vezes até irreconhecível – muitas vezes não sabemos se estamos no lugar “público” da redação, ou no espaço “privado” de ( sua?) casa. Quando leva em conta as referências espaciais, é para mostrar um lugar inusitado para um programa de televisão: a sala de uma casa (a do entrevistado?), por exemplo, ainda por cima com personagens que não costumam aparecer em tais circunstâncias: a babá com seu filho, a esposa... O diretor usou a entrevista como um artefato político que põe em cena o embate, o enfrentamento de forças, o que lhe permitiu exercitar, de forma impiedosa, uma crítica da dinâmica do poder na sociedade, no jornalismo e na televisão. Não se tratava apenas de se contrapor à “isenção” que o jornalismo reivindica, em razão da qual foi concebido o “ritual” de apresentação da notícia. Tratava-se também de propor outro tipo de jornalismo, tanto na concepção da imagem quando no registro da fala. Glauber punha alegremente em xeque a “neutralidade” e a solenidade da fala ao assumir um tom apaixonado, ao tomar sempre partido, ao se dirigir diretamente ao espectador de modo coloquial, atropelando-o com o ritmo acelerado de sua fala e interpelando-o e interpelando-o com ardor. Também ao exibir aparência mal cuidada, destoava do jornalismo empostado “de terno e gravata” e, ao agitar-se continuamente em

106

cena, criava a instabilidade do quadro, a perda do foco, gerando grande movimentação da câmera e cortes bruscos – “dirigindo” praticamente a cena em total oposição à estabilidade e harmonia habituais do quadro, à fixidez da câmera, à limpidez da imagem buscada pela informação. Tais elementos de linguagem, nunca vistos no telejornalismo, recriavam a mesma dinâmica das emissões ao vivo, chamando o envolvimento do espectador e reforçando o tom de urgência do diretor. Muito antes que tais práticas se generalizassem, Glauber fez na rua entrevistas ainda hoje de raro frescor, em meio aos carros, aos passantes, ao ruído do trânsito, incorporando à cena tudo o que se passava no entorno. Além de agir na contracorrente do modelo dominante e de propor um jornalismo cheio de verve e humor, a intervenção do diretor se contrapunha à imagem “limpa” a que o público se acostumara, pondo em xeque esse signo de transparência que escondia compromissos – estes sim, políticos – com o regime militar. Sua imagem era propositalmente “suja”, mas os elementos de linguagem: o plano-sequência insistente, o tremor, a perda de foco, o corte brusco não constituíam propriamente efeitos “buscados”; eles eram fruto de sua decisão política que não separa o que está sendo feito do modo de fazer. Também sua atuação, como se estivesse “ao vivo”, interpelando diretamente o público, que inovou a linguagem visual e o registro da fala na televisão, reflete e ao mesmo tempo revela o caráter de “urgência” de sua intervenção, como uma “necessidade” inadiável. Vamos nos deter na mais polêmica das entrevistas, justamente aquela com um dos emblemas do “povo brasileiro”: o negro chamado Brizola. Já nos referimos ao modo paternalista por meio do qual a televisão brasileira exercitou o mais cru autoritarismo ao lidar com os pobres, “apagando”, por meio de fingida intimidade, uma distância social evidente (postura que, de resto, ela não inventou, mas que reproduzia modos de ser e procedimentos da própria sociedade). Também mencionamos o papel que a TV Globo se arrogou na construção de uma “imagem” do povo brasileiro, da qual praticamente assumira os direitos de propriedade.

107

O povo brasileiro é uma entidade que esteve desde sempre na mira dos políticos; mas foi também objeto de profundas indagações por parte dos antropólogos, dos sociólogos, dos cientistas políticos, além de desafiar o entendimento da esquerda em todos os seus matizes e, também, o do Cinema Novo – particularmente o de Glauber. Quando o diretor chama o negro Brizola de “representante do povo brasileiro”, ele tem em mente essas várias facetas que a questão assume no cenário cultural e político do país; mas por se tratar de uma intervenção na televisão, é nesta que o diretor se inspirará para encontrar o tom de crítica política de sua fala, sua impostação adequada. A impostação de Glauber vem da TV. Como notaram os críticos, ela é inspirada no animador Chacrinha, criador de um personagem que os tropicalistas adotaram como uma espécie de “antecessor”: originário do rádio, ele somava às técnicas populares de animação de auditório, nas quais era um mestre, uma construção visual, reunindo traços arcaicos da cultura brasileira que viraram clichês (como a melancia pendurada no pescoço) a signos “modernos”, como os da era da comunicação (o telefone gigantesco sobre a grande barriga), combinados com a mesma liberdade com que as escolas de samba carioca “construíam” seus personagens; tudo isto compondo, ao final, a figura do palhaço que podia rir-se e desafiar a todos, por ser o primeiro a não se levar a sério. Ao usar a figura de Chacrinha, Glauber não “se inspira” na televisão, mas retoma a leitura que dele fizeram os tropicalistas nos anos 1960, ao tomarem-no como um de seus emblemas. Do animador ele assume a liberdade de acionar e jogar com signos contraditórios, o tom farsesco, desaforado: era inspirada no seu gesto de jogar comida para o público e num de seus motes –“Vocês querem bacalhau?” – a frase com que o diretor abria seu programa: “Alô, alô, povo do sertão, carne, arroz e feijão”. Ao adotar a mesma postura debochada e galhofeira nas suas entrevistas, Glauber explicita a distância social entre entrevistador e entrevistado – uma distância que a prática jornalística procura disfarçar

108

com diferentes técnicas e que o diretor, ao contrário, não quer ocultar. É justamente o modo de jogar com essa distância que constitui o eixo da entrevista com Brizola. As vozes Glauber foi sempre uma figura forte, de opinião, que fez valer sua persona em inúmeras circunstâncias. Também evocamos o termo “personagem” a propósito de sua atuação. Mas algo a mais se passa nessa entrevista, algo que se repete também nas várias intervenções do nordestino Severino – na verdade o responsável pelos cabos no programa, que aparece muitas vezes em vez de ficar detrás da câmera, é entrevistado e assume diferentes papéis. Agora é hora de precisar que não se tratava propriamente de “persona”, nem de “se fazer personagem” – como é hoje tão corriqueiro – mas de uma operação de outra ordem. Para tanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Como Glauber tem uma concepção política da entrevista, ele a utiliza para explicitar uma relação desigual de forças, utilizando criticamente a distância que o separa do entrevistado para expor as relações de poder na sociedade brasileira. Atuando na contracorrente dos jornalistas sempre “amáveis” com o entrevistado, que agem como detentores de um mandato do leitor e como se fossem, eles próprios, isentos de opiniões e de compromissos, Glauber sempre manifestava sua opinião; além de assumir a distância que o separa de seu entrevistado, ele tomava a pergunta “como a faca que corta na carne do outro” para pôr em evidência as formas que assume a dinâmica do poder na sociedade brasileira. Em vez de entrevista, propriamente, trata-se do recurso à forma-entrevista para uma mise-en-scène do exercício do poder e dos seus diferentes discursos, por um lado; por outro, das modalidades de fuga ou das formas de resistência a ele. A entrevista anunciada fazia esperar o líder Leonel Brizola, então no exílio. Mas esse é o apelido de um negro favelado, apostador de cavalos e torcedor do Flamengo. No lugar do branquíssimo caudilho populista,

109

cuja volta assinalaria a abertura política, um homem do povo, negro. Mas que povo, exatamente? Por certo não se tratava da visão das elites, nem da representação consagrada pela TV; nem tampouco daquela construída nas imediações da esquerda e até no cinema. O Brizola de Glauber está em sintonia com a abordagem “do povo” na cena do comício do líder populista em Terra em transe; mas já não se trata de ficção e sim de alguém capaz de reações próprias, que não revelará nem a fraqueza de Jerônimo nem a rústica revolta do homem do povo do filme. A cena se passa na rua, lugar onde ainda não se faziam entrevistas e onde líderes políticos habitualmente não são vistos. Glauber faz desabar sobre Brizola, como um opressivo muro de linguagem, uma saraivada de perguntas; não inquire propriamente, mas parece “esgrimir” suas perguntas. Não espera pelas respostas, acumulando novas perguntas. Se o diretor usa a faca de que fala Canetti, não é propriamente para “separar” as partes, mas para expor a prepotência do entrevistador que “corta” a palavra, pondo em cena a relação de poder estabelecida pela entrevista como estratégia crítica de outras formas de poder em exercício na sociedade. E que perguntas! Uma saraivada de temas políticos (reforma agrária, Diretas, Figueiredo, o próprio xará Brizola...), que o entrevistado evidentemente não sabe responder. São variadas as nuances das perguntas e muitas as mudanças de estratégia da entrevista: Glauber passa do autoritarismo mais cru ao paternalismo mais benevolente, “temperando” com futebol e samba o tom de sua fala. Por meio dessa caricatura da TV, são expostos os vários discursos do poder que baixam seu muro de linguagem sobre os desapropriados de fala e, ao mesmo tempo, a sua outra face: a benevolência do paternalismo. Glauber assume a voz de comando não apenas ao impor suas perguntas e cortar as respostas; ele puxa o entrevistado pelo braço, muda-o de lugar, reclama da sua falta de empenho, se faz brincalhão, fala com os passantes – tudo entra no quadro, obrigando a câmera a movimentos inusitados, a desenquadramentos que tornam a cena de uma vivacidade então desconhecida na televisão.

110

Por que a expressão “personagem” não parece adequada a tal atuação? Glauber não está propriamente “preenchendo” um papel quando adota a voz de comando; ao contrário, ele parece ter se “esvaziado” de seu papel (se é que há um), de qualquer papel ao assumi-la, para se deixar atravessar pelas muitas vozes de mando que expressam, de diferentes maneiras, as forças dominantes na nossa sociedade. Em sua análise dos programas, na qual dá ênfase à persona de Glauber, Regina Mota menciona uma pluralidade de vozes na voz de Glauber: do pregador e do missionário, do coronel, figura arcaica (mas nem tanto!) de um modo de exercer o poder, do Chacrinha. Estas e muitas outras vozes fluem, com efeito, por meio da fala de Glauber: a do latifundiário, a do senhor, a do político, a do intelectual de esquerda (que Glauber sempre criticou), a dos próprios jornalistas, a dos apresentadores de televisão, último e menos perceptível elo dessa longa cadeia de mando – todas embaladas na voz do Chacrinha, por meio da qual o diretor, na forma do deboche, atualizará o mando. Trata-se de uma “sinfonia do mando” sempre temperada, como convém numa sociedade paternalista, pelo tom “simpático”, pela “intimidade” que transpõe distâncias quando se exerce em terrenos “comuns”. Mas o diretor nem as incorpora, como um personagem, nem se soma a elas, como persona; ele as vocaliza. Em seu Mil platôs Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem o conceito de agenciamento coletivo de enunciação, que lança luz sobre a fala de Glauber. Não há enunciação individual, dizem os autores, nem sujeito da enunciação. Sabemos que não somos proprietários do que dizemos; muitas vozes falam pela nossa voz sem que possamos discerni-las. Toda enunciação é coletiva, dizem os autores, mas o caráter social da enunciação só é intrinsecamente fundado (na linguagem) se pudermos mostrar como ela remete por si mesma a agenciamentos coletivos. “Só há individuação do enunciado e subjetivação da enunciação na medida em que o agenciamento coletivo impessoal o exija e o determine”, escrevem eles. “Este é o valor exemplar do discurso indireto e do discurso indireto livre: não há contornos

111

distintivos nítidos, nem encaixamento de sujeitos de enunciação diversos, mas um agenciamento coletivo que determina como consequência os processos relativos de subjetivação, as designações de individualidades e sua distribuição movente no discurso. Não é a distinção de sujeitos que explica o discurso indireto, é o agenciamento tal como aparece livremente no discurso que explica todas as vozes presentes numa voz coletiva”. Ao “vocalizar” as vozes de comando, Glauber se faz veículo dessa enunciação coletiva, conferindo-lhe o valor imediato de um agenciamento político: elas fluem na sua fala e são desnudadas pelo uso da forma-entrevista (lugar de confronto pela palavra) como instrumento de crítica – uma crítica que terá lugar justamente na televisão, veículo por excelência do comando e da manipulação em massa. Mas lembremos que Canetti evoca também modos de “escapar” ao poder da pergunta. Não responder, responder outra coisa, se esquivar. O negro favelado também conhece, a seu modo, as vozes de comando atuantes na sociedade. Aprendeu, não se sabe a que custo, a lidar com elas. Sem se deixar “apertar” pelo muro de linguagem erguido pelo interlocutor, ele faz exatamente como sugere Canetti: esquiva-se das perguntas difíceis. De política diz, sem se rebaixar, que “não entende patavina”. Dos políticos, do presidente, diz que são “boas pessoas”, arranjando-se para não ficar mal com ninguém. Assumindo um nacionalismo corriqueiro, aceita criticar Pelé por ter ficado nos EUA – mas gostaria de ser como ele. Como o mais acabado clichê do “povo”, gosta de futebol e de samba, torce pelo Flamengo. Como se costuma dizer, Brizola “se vira bem” na situação, encontrando um jeito de escapar à voz de comando pelo “jogo de cintura”, pela fala esquiva.3 3 Glauber pode inverter a situação, quando é ele o entrevistado. Na entrevista que concedeu a Célia Portela, sua crítica à figura do jornalista é arrasadora. O espaço fechado não se identifica – talvez seja uma sala de montagem. A jornalista, toda maquiada, está sentada num banquinho giratório – o que já rompe com qualquer “estabilidade” da parte de quem pergunta. Glauber vai, de fato, fazê-la “balançar”: não apenas “literalmente”, mas no seu papel de entrevistadora. Não responde sua única pergunta e fala do que bem quer, brandindo a revista Veja no ar. De pé, não para de se movimentar, obrigando a câmera a persegui-lo e impedindo que se constitua “a cena” da entrevista: é praticamente impossível captar os dois interlocutores juntos; muito

112

Glauber encerra o programa dizendo que “está passando o poder ao povo”, numa última provocação ao projeto voluntarista de parte da esquerda brasileira e do próprio cinema. Projeto que, longe de estar morto, ressuscitaria anos mais tarde, sob novas modalidades: afinal, a conquista da palavra, o direito à palavra, dar a palavra ao povo são temas que ressurgem com força no cinema brasileiro a partir dos anos 80 e são retomados após a chamada “retomada” dos anos 90 não apenas como objeto de várias obras, mas de acalorado debate. 2 O predomínio crescente da entrevista no documentário brasileiro mais recente sugere que o tema seja retomado. Com efeito, os especialistas apontam os anos 1990 como a década de florescimento do documentário e, ao mesmo tempo, da presença impositiva da entrevista, que não apenas se presta a coletar informações, mas chega até mesmo a constituir o “corpo” da obra: cunhou-se até uma espécie de “fórmula” para o documentário, por meio da qual se enfileiram imagens, entremeando-as com entrevistas. À luz do uso que Glauber Rocha fez da entrevista, talvez valha a pena deslocar um pouco a questão da entrevista propriamente, para focalizar o modo segundo o qual tem sido acionada a dupla perguntaresposta. Como se pergunta? Por que se pergunta? Por que se aceita responder? Por que se entra nesse “jogo” desigual, em que uns acabam podendo mais que os outros? Existe um novo contexto por trás da pergunta? Ou, melhor ainda, que situações estão sendo criadas no documentário para propiciar o ato de perguntar? Estas questões sugerem que seja incorporado à discussão um novo dado, próprio do documentário contemporâneo: o recurso crescente ao “dispositivo”. menos a jornalista, patética no seu silêncio constrangedor. Quando Glauber finalmente “pede” a pergunta, a jornalista já perdeu o pé. Sem ação, ela conclui que “está respondida a sua pergunta” e ele ordena, como diretor: então corta, porque já acabou....

113

A “virada subjetiva” São grandes as transformações que o Brasil conheceu a partir dos anos 1980, quando Glauber encerrou sua participação no Abertura. Elas não se limitam ao fim da ditadura, com todos os seus desdobramentos, mas derivam também da conjuntura mundial: com a globalização, a queda do muro, o mundo se redimensionou do ponto de vista econômico e político, transformando-se profundamente o vínculo entre representação cultural e imaginário político. Os novos temas e as novas problemáticas que emergiram no campo cultural pediram novas posições dos criadores, dos intelectuais. No cinema, essas transformações vêm mostrando a necessidade de se pensar, do ponto de vista crítico, uma redefinição do estatuto do político nos filmes. O que caracteriza a produção cultural das últimas duas décadas e meia é sua filiação ao que a crítica Beatriz Sarlo chamou de “virada subjetiva”, que se manifesta tanto como tendência acadêmica quanto no mercado de bens simbólicos e se propõe a reconstituir “a textura da vida”, a verdade contida na rememoração da experiência, a promover tanto a valorização da primeira pessoa como ponto de vista, quanto a reivindicação de uma dimensão subjetiva. “A atualidade é otimista” – escreve a crítica – “e aceitou a construção da experiência como relato na primeira pessoa, até mesmo quando não acredita que todos os demais relatos possam remeter de modo mais ou menos pleno ao seu referente”. Por isso, nota ela, “se multiplicam em diferentes formas as narrações chamadas de não-ficcionais nos jornais, na etnografia social e na literatura: são testemunhos, histórias de vida, entrevistas, autobiografias, recordações e memórias, relatos identitários”. Sarlo observa que a dimensão intensamente subjetiva, “um verdadeiro renascimento do sujeito que se acreditava morto nos anos 1960 e 1970”, é uma das características do presente, o que acontece igualmente nos discursos cinematográfico, plástico, literário e midiático. “Um movimento de devolução da palavra, de conquista da palavra e de direito à palavra se

114

expande, reduplicado por uma ideologia da ‘cura’ identitária por meio da memória social ou pessoal”. Esse “reordenamento ideológico e conceitual” da sociedade e do passado, concentrado sobre os direitos da subjetividade, coincide, de acordo com Sarlo, com uma renovação análoga da cultura e dos estudos culturais, onde a identidade dos sujeitos voltou a ter o lugar que, nos anos 1970, foi ocupado pelas estruturas. “Foi restaurada a razão do sujeito que, há décadas atrás, foi mera ‘ideologia’ ou ‘falsa consciência’ (...)”. Sarlo sugere que se examinem os privilégios desse “eu” que há três ou quatro décadas despertava suspeitas. A abordagem crítica das novas modalidades da entrevista deve seguir essa direção. Com efeito, num contexto em que a subjetividade toma a dianteira e a entrevista se torna um recurso freqüente no cinema, tal exame deve ser feito de um ponto de vista político. O dispositivo como “prisão” A entrevista pode preencher várias funções no documentário, mas, sem dúvida, é aquela que se refere à experiência e aciona a subjetividade que tem despertado o maior interesse: basta atentar para o sucesso de uma obra como a de Eduardo Coutinho, baseada, como a definiu Consuelo Lins, “no encontro e na interação com os personagens”, da qual a entrevista é constituinte. Como se sabe, Coutinho teve grande influência sobre o documentário brasileiro dos últimos anos; e é em virtude desse seu papel que deve ser examinado seu modo de conceber e usar a entrevista. Segundo o crítico Ismail Xavier, a entrevista (ou a conversa, como prefere o diretor) constitui a forma dramática exclusiva nos filmes de Coutinho, a presença dos personagens não estando acoplada a um antes e depois. “No centro do seu método está a fala de alguém sobre sua própria experiência”, explica o crítico, “alguém escolhido porque se espera que não se prenda aos clichês da sua condição social. O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa. Tudo o que

115

da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera”, prossegue ele, “da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográfico”. Presença “crucial” na obra do diretor segundo Consuelo Lins, o exame do dispositivo se torna importante porque parece lhe caber, justamente, o papel de criar condições para uma situação na qual a entrevista pode acontecer. Vejamos. No cinema de Coutinho, o termo dispositivo tem uso muito amplo e designa diferentes procedimentos envolvidos no ato de filmar.4 Também denominado por ele como “prisão”, o dispositivo se refere, na verdade, a um conjunto de elementos díspares que condicionam a realização do filme: dentre outros, a locação única, o uso do vídeo, a equipe mostrada na imagem, a pesquisa prévia na locação; alguns podem variar de filme a filme, outros podem ser mantidos com constância. Como os filmes de Coutinho são compostos por entrevistas, o dispositivo pode ser considerado como o aparato mobilizado para que elas possam se efetivar; ou seja, para que ele possa fazer perguntas. Assim a pesquisa prévia, por exemplo, por meio da qual o diretor toma conhecimento da população visada pelo filme através de relatos e imagens produzidas por pesquisadores, lhe permite conhecer, de antemão, a história do entrevistado, seu modo de falar, sua “dicção” e até seus limites, facilitando o contato. Com efeito, o conhecimento antecipado favorece a elaboração das perguntas e o desenvolvimento da “conversa”, que flui mais “naturalmente”, como uma troca entre “iguais”. Ele permite ir direto ao assunto, contribuindo para “concentrar” a espessura do momento e acentuar a impressão de autenticidade. A familiaridade que o entrevistador pode 4 Contemplado pela reflexão teórica nos campos do documentário e do vídeo, o dispositivo se refere, segundo Cezar Migliorin, à disposição de elementos que constituem uma obra. No campo do documentário, ele implicaria em linhas ativadoras de um universo que predeterminam um espaço e um tempo, um tipo ou quantidade de atores, acrescentando-se a tal universo outra camada, que forçará movimentos conexos entre atores (pessoas, técnicos, clima, aparato técnico, etc). “O dispositivo como estratégia narrativa”. Digitagrama – Revista Acadêmica de Cinema. Número 3, 2005.

116

mostrar com o entrevistado sem nunca tê-lo encontrado é, também, um fator que estimula ambas as falas e contribui para a maior aproximação. Além disso, ao permitir a redução do número de perguntas, torná-las mais precisas e curtas, mais “afinadas”, a familiaridade leva o diretor a uma intervenção menos invasiva, mais “discreta”. Também a opção pelo encontro único (Coutinho só vê seu entrevistado uma única vez, na hora da filmagem) é considerada como um dispositivo e tem o intuito de valorizar o instante da entrevista, de preservar seu frescor, de conferir espontaneidade ao ritual “duro” da pergunta e resposta; ainda mais, lembra Consuelo Lins, quando “o entrevistado deve partir do princípio de que é a primeira vez que Coutinho está escutando o que ele diz”. Nesse contexto, fica claro que as perguntas não são mais o lugar do confronto, da diferença – como definiu Canetti –, mas do entendimento, de uma aproximação como que natural “entre iguais”. Familiarizado de antemão com a sua história o diretor não precisa “cortar na carne”, nem recorrer à estratégia insidiosa do cirurgião, que provoca dor em certas partes da vítima para saber de outras: ele já sabe, por antecipação, o que pretende querer saber. E se a insídia existe, ela pode ser relacionada justamente com esse conhecimento prévio, que faz da pergunta quase um fingimento. Ora, se a pergunta não visa “descobrir” algo desconhecido, que função teria ela no filme de Coutinho? Ou melhor: se na entrevista do diretor o político não se manifesta por meio da diferença, do confronto, do enfrentamento, onde e como se manifestaria ele? Coutinho sabe que não há “igualdade” na situação da entrevista, ele que define seu “ato de filmar” como “uma experiência de igualdade utópica e provisória”.5 A propósito de seu cinema, é o termo “encontro” 5 Citado por Consuelo Lins. O próprio diretor evoca a metafísica ao descrever a filmagem como “momento único, não houve antes, não há depois”; o que pode ser relacionado, numa outra chave, com outra de suas afirmações: “O que o outro diz é sagrado.”

117

que costuma ser evocado. O que leva de imediato à pergunta: seria o encontro propiciado pela entrevista, aquela “experiência única” (expressão também do diretor) vivida no ato de filmar, o responsável pela anulação da diferença? Com certeza a “igualdade” alcançada por Coutinho não se mede pelos mesmos parâmetros que aferem a “diferença” fundadora do político. Mas se ela se realiza em outro plano, numa dimensão que não é aquela em que a diferença se manifesta, é porque o político, no cinema de Coutinho, passa para o terreno da utopia. A mão dupla do dispositivo. Filiados à “virada subjetiva” apontada por Sarlo, quando o eu, o sujeito e a identidade ganham evidência, a maioria dos documentários recorreu, dos anos 1990 em diante, a diferentes dispositivos com a função de mediar a abordagem de entrevistados. Em tempos de correção política, era preciso achar novos modos de lidar com a distância que separa quem pergunta de quem responde – mais ainda quando se trata de população pobre, preferida pelo documentário. Ao mesmo tempo, novas estratégias e novas poéticas foram concebidas que, escapando do ranço da subjetividade e fugindo da entrevista, ou dela fazendo outro tipo de uso, também fizeram outros usos do dispositivo. Um dos exemplos mais sugestivos é o do documentário Rua de mão dupla (2003), de Cao Guimarães, no qual o dispositivo desempenha um papel em sintonia com seu uso nas artes do vídeo: ele se transforma numa estratégia narrativa “que produz um acontecimento tanto na imagem quanto no mundo”.6 Vejamos como isso se dá. Três pares de indivíduos que não se conhecem são escolhidos para passar 24 horas na casa um do outro. Os critérios de escolha não são explicitados e deles só saberemos o nome e a profissão. Todos têm uma câmera, com a qual devem filmar a casa que os recebe, com o intuito de “descobrir” como é o seu dono 6 É nesses termos que Cezar Migliorin define o dispositivo em sua análise dessa mesma obra: http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp

118

(idade, sexo, atividades, gostos, etc). O documentário é composto pelas imagens produzidas pelos seis e mostradas, por par e simultaneamente, na tela do vídeo dividida ao meio. Depois, sempre com a tela dividida, cada um faz uma espécie de “retrato imaginado” de seu anfitrião diante da câmera enquanto, na outra imagem, este assiste à cena sem comentar. Em Rua de mão dupla o diretor não produz nenhuma imagem e só interfere por meio da organização dos depoimentos, sempre com a câmera fixa e na distância tradicional. Além do dispositivo criado por Cao não passar pela entrevista, quem fala não está falando de si, mas de outro, um desconhecido. Ademais, Cao incorpora mais um dado à fala – a imagem que cada um faz da casa do outro. O maior interesse dessas imagens é a sua dupla carga de significação: elas significam “por si mesmas” (no sentido de que um vaso, uma torneira são reconhecidos por nós) e carregam, ainda, uma significação “indireta”, ou melhor, “em suspenso” – aquela que o visitante procura nos objetos ou lugares e que lhe parece apropriada para definir uma pessoa. Por virem de amadores, essas imagens praticamente explicitam muito bem, como cada um vai, de modo hesitante, procurando e achando os objetos que lhe parecem mais “significativos”; e como, ao fazêlo, projeta no outro a sua sombra. Ao mesmo tempo, numa operação duplicada, nós, seus espectadores, vamos “processando” esse processo, nos confrontando tanto com o autor das imagens e com suas projeções quanto com o seu objeto oculto – o dono da casa – e, enfim, com nós mesmos, que processamos o processo. Esse tráfego intenso de significações nos obriga a um trabalho constante de leitura, de decifração, de remissões cruzadas que revolve ainda as camadas estabelecidas da nossa percepção e desafia a confiança “cega” que depositamos no nosso olhar. Examinemos um traço desse conjunto de imagens: o que parece praticamente comum a todas elas é a insistência no zoom. Todos se aproximam canhestramente, por meio dele, das coisas, dos lugares, como se quisessem deles “extrair” toda significação. Esses closes lembram a

119

descrição que Canetti faz da situação arcaica, que corresponde à “primeira pergunta” (nome?) e à “segunda pergunta” ( endereço?). “Nela, identidade e lugar ainda coincidiriam (...)”, escreve o autor. “Essa situação arcaica se verifica no contato hesitante com a presa. Quem é você? Você é comestível? O animal em sua busca incessante por alimento toca e cheira tudo quanto encontra. Mete seu focinho em toda parte: você é comestível? Que gosto você tem? A resposta é um odor, uma reação, uma rigidez inanimada. O corpo estranho é também seu próprio lugar: cheirando-o, tocando-o é que é conhecido ou – traduzindo para nossos costumes – é nomeado.” Essa “pergunta muda” feita pela câmera não constitui, evidentemente, uma experiência primitiva; é um gesto que se define no campo da cultura. Mas por não passar pela palavra, que dominamos, e sim pela imagem, com a produção da qual não estamos familiarizados, o estranhamento provoca movimentos que têm muito do gesto de tocar e de cheirar do animal. Cada objeto “tocado” pelo “nariz” da câmera deve ser, supostamente, “revelador” de gostos, de escolhas, de padrões, permitindo descobrir quem é o anfitrião; ao mesmo tempo, para o espectador, a escolha feita por cada hóspede parece reveladora do que seria ele. E ele fica passando de uma a outra figura, sem que seja possível se deter numa delas, já que o que o dispositivo busca é justamente essa impossibilidade de decidir, essas idas e vindas, essa constante indagação sobre a identidade: do dono da casa, do hóspede, a nossa própria. A fala de cada um é também reveladora dessa mesma indeterminação. Às vezes o visitante tem dificuldade em extrair do amontoado de coisas uma abstração, “um personagem” – isto é, um significado que as ultrapasse. Quando o “retrato” do anfitrião vem à tona, ele parece mais revelador de quem o faz do que de quem estaria representado. De todos esses discursos, o que emerge é essa “construção”: do olhar, do outro, de nós próprios. Em vez de nos contemplar com a solidez de sujeitos definidos, donos de sua escolha, o dispositivo de

120

Cao revela as linhas grosseiras por meio das quais fomos “esboçados” (pela história? pela sociedade? pela cultura?), nossa baixa “definição”, os conteúdos “comuns” partilhados por tantos, nossa unidade impossível. Somos ao mesmo tempo “muito pouco” e “muitos” – ou seja, não sabemos quem somos; e o que o dispositivo faz é a mise en abîme da identidade, revelando-a como construção (histórica, cultural, ideológica). Um dos participantes parece levar o dispositivo até as suas últimas consequências. O poeta negro, para quem ser recebido na casa de um desconhecido, que generosamente lhe abre as portas e deixa à vista sua intimidade, é um gesto comovente. Ele não chega a elaborar um retrato de seu personagem; acumula perguntas, aponta sinais, se angustia com a força do mistério desse outro ausente. “Quem será ele?” “Quem somos nós?” São as únicas perguntas enunciadas no vídeo – a primeira reatando com aquela que pôs o dispositivo em ação e a última “encerrando” o experimento do poeta, e dando por encerrada a função do dispositivo. Em Rua de mão dupla não há pergunta formulada ao outro, no sentido da entrevista. ”Chega-se” a uma pergunta, se levarmos em conta esta que o personagem endereça a si mesmo. Ora, esta não é mais uma pergunta que se faz no registro do poder, mas justamente porque foi perdido o poder que estávamos certos de deter, no mais fundo de nós – o de sabermos quem somos. Uma pergunta que só pode ser feita quando já se sabe que ela não tem resposta. Onde estaria, agora, o político? Ao que parece, ele é acionado pelo próprio dispositivo, que põe em dúvida a suposta unidade, a identidade; e pela própria estratégia narrativa do documentário, por sua vez constituída pelo dispositivo. Dispositivo de mão dupla, portanto, capaz de operar, ao mesmo tempo, como experimento e narrativa, para quem participa, e como narrativa e experimento para o espectador. *

121

Glauber com o povo brasileiro, Coutinho com o encontro e Cao Guimarães com a desconstrução estão trabalhando, cada um a seu modo, com o mesmo tema: a identidade. Se o trabalho de Glauber evoca o povo brasileiro, não se trata, no entanto, de uma indagação sobre a sua identidade. O que lhe importa não é saber quem ele é – o que todos os poderes vocalizados pela sua fala não param de fazer – mas convocá-lo enquanto força, cuja vitalidade e plasticidade lhe conferem o dom da resistência ao poder, ao poder do discurso. Coutinho também trabalhou e trabalha com gente do povo, mas sua produção ganha fôlego na era da “virada subjetiva”. Voltada de início para a experiência e a fala dos sujeitos, sua obra caminhou para uma crítica do documentário, pondo em questão as dualidades que o fundam, como os pares verdadeiro/falso, realidade/ficção. Tal ponto de vista repousa, entretanto, sobre o jogo com outra dualidade, sujeito/ personagem, jogo que só funciona ao sustentar tal oposição, fechando o círculo vicioso da identidade.7 O trabalho de Cao Guimarães também opera, embora de modo enviesado, no universo da identidade. Mais precisamente, no seu limite – quando ela se perde nos meandros da sua própria construção, tornando-se impossível.

7 Sujeito ou personagem, esta aparente ambiguidade se desdobraria em Jogo de cena, onde o relato da história das entrevistadas é repetido pelas atrizes, a ponto de se diluir a autoria da fala. Colocar em questão a “verdade” do relato por meio de sua “distribuição” entre diferentes vozes não vira o jogo no que ele tem de fundamental – a cena continua sendo a mesma, a do sujeito. Ismail Xavier notou que os entrevistados de Coutinho se constroem como personagens clássicos – isto é, ainda dentro dos limites dessa mesma cena; um lugar de onde a “representação” das atrizes não pode subtraí-los, mas só “encarná-los”. O personagem moderno não se sente bem nesta cena, da qual, sabemos, é difícil escapar. Jean Jourdheuil propõe um caminho, por meio da noção de ”papel”, designação que conferiu ao Hamlet de Heiner Müller: em Hamlet-Machine este deixa de ser o sujeito de uma história para se tornar uma figura atravessada por forças históricas, afetivas, conscientes, inconscientes, físicas e metafísicas, que o acionam dentro de contextos complexos. Nesse sentido, o ator não “encarna” mais uma dada subjetividade, real ou fictícia, mas se constitui ele próprio como vetor de um campo de forças em movimento. In Muller,H. Manuscrit de Hamlet-Machine. Les Editions de Minuit, Paris, 2003.

122

123

A câmera lúcida José Carlos Avellar

1 Mãe severa (“Chamam para roubar e você vai?”), ela repreende o filho que se portou mal (“Podia estar lavando um carro, podia estar vendendo uma bala. Mas, não. Está roubando os outros”). Madrasta, ela briga com as filhas (“Vocês não têm idade para ser mãe. Agora, arrumaram? Segurem o pepino!”) porque roubaram, dizem, para alimentar os filhos (“Não tem justificativa. Está sem serviço? Vai procurar”). Mãe feita em pedaços (“Teu pai te educou com muita dificuldade e não foi para ser ladrão”), ela teme perder o filho (“Quer morrer? Na hora do pipoco quem vai levar tiro da polícia é você”) que perdeu o juízo (“Um cara que você nem conhece manda você segurar uma arma e você segura”). O filho baixa a cabeça (“Sim, senhora”) e baixa a voz (“Nós só puxamos e corremos”). A filha engole o que diz (“Foi na hora do nervoso”). Os filhos falam mais com reticências e silêncios que com palavras (“Aí... eu encontrei ele nesse lugar.... aí, ele me chamou para fazer isso... aí, eu fiquei até meio assim... mas aí, ele falou: ‘vambora, embora logo’... aí, eu fui”). A imagem ensina a ouvir o que se fala e também o que se cala na sala de audiências da Segunda Vara da Justiça do Rio de Janeiro. O som ensina a ver a sociedade como uma fusão de partes que não se falam. A juíza e o menor dentro do mesmo quadro são figuras de espaços diferentes. A sala de audiências produz uma fusão momentânea. Uma imagem aparece dentro da outra. Uma presa na outra. As duas

124

como se fossem uma só. Mas pertencem de fato a universos distintos e distantes um do outro, assim como a favela distinta da cidade: em fusão, dentro dela e simultaneamente fora dela. O que se vê e o que se ouve em Juízo (2008), de Maria Augusta Ramos, é que a favela da cidade fala uma língua e a cidade da favela uma outra. A juíza pergunta ao menor se valeu a pena abandonar a família e a escola. “Valeu a pena ser preso?” Ele não entende a pergunta, quer dizer que não mas diz que sim, que valeu a pena. Um beneficiado com uma “L.A.” não entende que o sistema judicial lhe concedeu uma Liberdade Assistida e por isso foge do Instituto antes de ser libertado. Volta a ser preso como fugitivo da lei que o libertou. O promotor quer saber a idade do infrator (“Nasceu quando?”) e a resposta absurda vem num tom banal (“Não sei”). O promotor não entende que alguém não saiba o dia de próprio aniversário e repete a pergunta (“Não sabe sua idade? Não sabe o dia de seu aniversário?”). O menor não sabe e, parece, não está interessado em saber (“Não sei não. 14? 15 anos?”). O que foi preso por tentativa de roubo diz que que não queria roubar nada, pulou o muro da casa para ser preso. A juíza não entende a explicação que parece absurda (Ela está certa de que existe aí uma boa dose de esperteza): ele queria ser preso para, na prisão, ir à escola. Num canto da cela, fora de quadro, conversa a meia voz, dois internos do Instituto Padre Severino se entendem: “Aí, Filipinho: como é que eu faço? Vou sair daqui. Quero comprar um tênis, 450 reais. Eu trabalhando, ganho 350. Vou comprar como? Vou voltar a vender droga.” Com as imagens das celas do Instituto Padre Severino, das ruas e casas da favela e especialmente com as imagens da sala de audiências da Vara da Infância e da Juventude, o filme compõe um quadro-síntese

125

do mecanismo social que produz o menor infrator. Nas audiências, Juízo torna visível não apenas as audiências. No ritual da justiça ele revela também (no modo de ver o que vê) a desigualdade social que conduz à vontade de roubar ou de vender drogas para comprar o tênis mais caro que o salário mínimo. Silenciosa e atenta por trás do menor acusado, de frente para a juíza e para o promotor, ao lado do defensor público, a câmera não perde de vista o que de fato se expõe na audiência: a impossibilidade de diálogo. A língua parece a mesma, mas as palavras se referem a realidades e experiências diferentes. Promotor, réu, defensor, juiz, inspetor, parentes dos acusados, ninguém tem certeza de entender o que acabou de entender. Que fazer? Como segurar o pepino? Que fazer com o infrator que fugiu do instituto depois de ser declarado em liberdade? Que fazer com a menina-mãe que roubou uma câmera fotográfica do turista no Leblon para sustentar a filha? Que fazer com o menino-pai que trabalha como engraxate para sustentar o filho? Que fazer com o filho que matou o pai que batia nele? Que fazer com o menino sem pai nem mãe que roubou uma bicicleta na Lagoa? Que fazer com o menor que em liberdade voltará a se envolver com o tráfico? Que fazer com a menina que prefere permanecer presa a voltar para casa? Que fazer ? Olhar de frente, sugere o filme. Para começar, olhar de frente, encarar a questão. Na sala de audiências – cena teatral, espelho da sociedade – a juíza aparece como uma imagem-síntese das diversas mães sem condições para impedir que os filhos se tornem infratores. Está na outra ponta do problema, instada a fazer justiça num contexto que não deu às mães as condições mínimas para que as elas pudessem dar aos filhos uma educação justa. Existe na juíza um pedaço da mãe que chora porque a filha não quer voltar para casa (“é muita função em cima de mim sozinha, eu tenho que fazer o papel de mãe e de pai, dar carinho, dar amor e corrigir”).

126

Um pedaço da mãe que explica com um leve aceno de cabeça que não tem como sair da favela em que mora para afastar o filho das más companhias. Um pedaço da mãe que defende o gesto extremo do filho que matou o pai a facadas (“Ele batia de cinto nele todo dia. Chegou a quebrar a fivela. Ele até desmaiou. Por duas vezes ele desmaiou”). Um pedaço das mães abraçadas aos filhos no silêncio arranhado no dia de visitas no Instituto Padre Severino, breve instante em que as famílias desagregadas se reúnem de novo. A juíza é um pouco de tudo isso e mais do que tudo isto: é uma tentativa desesperada de manter um mínimo de lucidez. Além da imagem não muito distante das mães dos menores em julgamento, a juíza (bem entendido: a juíza enquanto imagem do filme) tem um quê de câmera de cinema. Ela é a autoridade que fala firme ao repreender a menina que se tornou mãe antes de deixar de ser menina. É a autoridade que quase se cala diante do menor que matou o pai a facadas. Procura não perder o foco, não errar na luz, não descuidar da composição do quadro. O cinema na sala de audiências ensina a ouvir as entrelinhas e a ver o fragmento de realidade documentado como cena real e ao mesmo tempo como cena de cinema. Como cena que no que está ali se refere também ao que não está ali. Como cena consciente de que no cinema todo campo revela o contracampo, todo quadro fala também do fora de quadro. Na sala de audiências, o cinema, como de hábito, ou um pouco mais do que de hábito, diz que é preciso ver em movimento, De repente, a câmera toma o ponto de vista da juíza e o espectador se confronta diretamente com o menor interrogado  – o que roubou a bicicleta, a que puxou a máquina do turista, o que participou do assalto a mão armada, a que não quer voltar para casa, o que pulou o muro para ir à escola, o que matou o pai porque ele batia nele e batia na mãe, falam de frente para o espectador.

127

O rosto do jovem infrator que responde à juíza é, digamos assim, metade da figura que o espectador recebe. Ver o rosto do menor que responde é, ao mesmo tempo, ver o rosto da juíza, naquele instante fora de quadro. Na imagem, nesta aqui como em qualquer outra de cinema, o espectador se dá conta do que está na imagem e igualmente do ponto de vista de onde a imagem foi filmada. É como se a pessoametade que o espectador é durante a projeção de um filme saltasse para fora de si para ver de outro ponto de vista. No cinema, enquanto passa o filme, tal como quando sonhamos, somos uma fusão: metade de nós vê a cena a meia distância, metade vê do ponto de vista do personagem em cena. Como a identificação de menores infratores é vedada por lei, Juízo propõe uma imagem que resulta de um procedimento aparentemente simples: eles são substituídos por jovens não-infratores que repetem de frente para a câmera o que os réus disseram na audiência em resposta às pergunta dos juízes. O que parece simples na verdade não é nada simples, pois não se trata de mostrar a audiência, assim como uma ação é narrada nos filmes (pelo menos em grande parte dos filmes de ficção) com um olhar que se move do campo para o contracampo e logo retorna ao campo. De frente para a câmera, intérpretes – mas não exatamente atores. Os que interpretam os menores infratores são jovens que vivem em condições semelhantes às dos reais infratores que vemos de costas no tribunal. Eles recitam os textos, reconstituem o instante de interrogatório a partir de suas diretas experiências de vida. A não-interpretação não é resultado de um método, de um efetivo trabalho de ator. Para se preparar eles viram as imagens das audiências. Decoraram as falas e no banco dos réus repetem as respostas para a câmera na cadeira da juíza – uma câmera que, então, talvez mais intensamente que em outro qualquer momento, documenta. Documenta não a interpretação, mas a pessoa que interpreta. Documenta o intérprete. Juízo não vê propriamente o personagem que o jovem não-ator

128

interpreta, mas sim o jovem que interpreta. Este quase-ator não faz parte da cena, mas está numa outra cena que se superpõe àquela que interpreta, está em cena como a pessoa que realmente é. Está presente, visível, mas como se fosse o fora de quadro da cena, como se fosse apenas uma sombra do que realmente se encontra na luz do ponto de vista dramático. Sem perder de vista a luz, vemos a sombra. Isto que, numa ficção, desmontaria a encenação – o ator, por uma razão qualquer, mais aparente que o personagem que interpreta –, aqui, ao contrário, torna a cena mais expressiva. O espectador é solicitado a estabelecer uma outra relação com a imagem: juízes, procuradores, defensores, inspetores, familiares, as pessoas reais na Vara de Justiça e no Padre Severino, são percebidas como fragmentos de realidade usados, digamos assim, para montar uma quase ficção. Como é normal no cinema, o sentido da imagem ultrapassa o simples reconhecimento da forma. O registro, o pedaço de cena real registrado é a matéria bruta para a construção de uma representação, uma composição cinematográfica. A realidade, uma vez transposta para a imagem do filme, passa a existir como ficção. Ao contrário, os intérpretes que repetem as respostas dos menores infratores no julgamento real são fragmentos de ficção usados, digamos assim, para ultrapassar a carga de encenação que possuem e retornar à realidade que originou a cena. A ficção, ao mesmo tempo em que não deixa de ser o que efetivamente é, uma encenação, deixa de ser o que é para se transformar num registro vivo: documenta a realidade do quase-ator, capaz de reconstituir uma experiência realmente ocorrida porque direta ou indiretamente ela também foi vivida por ele. O infrator, o que esteve de verdade no banco dos réus, é seu outro eu. Ao interpretar o outro, cada um dos jovens não-atores interpreta a si mesmo. A grande semelhança entre os meninos e meninas vistos de costas na sala de audiências e os meninos e meninas que se voltam para a câmera cara a cara não se deve a nenhum especial efeito

129

cinematográfico. Eles têm o mesmo gesto reprimido, a mesma voz encolhida, são, a rigor, a mesma persona. A presença simultânea de dois eus talvez possa ser melhor compreendida se estabelecemos um paralelo entre Juízo e Jogo de cena. Os dois filmes foram realizados quase ao mesmo tempo, em 2008, e se servem de um mesmo procedimento cinematográfico, a montagem de cenas de ficção ao lado de cenas reais. Digamos assim, cenas reais e cenas de ficção, mas não é certo que se possa falar de ficção nas cenas de ficção que vemos em Maria Augusta Ramos e em Eduardo Coutinho. Nem é certo que se possa falar de realidade nas cenas reais que vemos nestes filmes. Neles, a ficção não se contenta em ser a cena livremente inventada que pelo menos em grande parte é. Nem a cena real se contenta em ser o direto reflexo de um fragmento da realidade que pelo menos em grande parte é. O que temos nos dois filmes é um mecanismo de reconstituição e de reflexão que insere no quadro um fragmento da realidade e de seu outro eu. O que temos é a radicalização de um comportamento essencialmente cinematográfico. 2 Imaginemos a reconstituição não como um modo de compor um reflexo de um fato realmente acontecido, mas como um modo de figurar uma reflexão – a palavra aqui tomada como peça de um jogo de cena: reflexão como um aumentativo de reflexo. A presença simultânea na imagem de um personagem real e de seu outro eu resulta do desejo de não simplesmente reapresentar o mundo visível por meio de um mecanismo cinematográfico – não re/apresentar: representar. Tornar visível o que não se vê. Colocar na tela uma imagem de cinema e seu outro eu, a realidade.

130

[Realidade: a palavra aqui deve ser tomada como imagem, expressão aberta e naturalmente ambígua, como são as imagens. Portanto, realidade como a imagem formulada por Pier Paolo Pasolini pouco depois de filmar Teorema (1968): “De fato, meu único ídolo é a realidade. Escolhi ser cineasta ao mesmo tempo em que um escritor, porque em lugar de exprimir esta realidade por meio de símbolos, que são as palavras, preferi neste outro meio de expressão, o cinema, exprimir a realidade por meio da realidade.”]

Tornar visível um pedaço da realidade até então encoberto talvez seja a vontade maior que alimenta Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat, a montagem alternada de cenas reais – depoimentos de ex-presas políticas torturadas durante a ditadura militar – e cenas de ficção em que uma personagem interpretada por Irene Ravache comenta o que se conta nas entrevistas. Diferentes texturas fotográficas são usadas para marcar as cenas reais (filmadas em luz ambiente com câmera fechada no rosto das entrevistadas) e as cenas de ficção (feitas com luz artificial e com a câmera aberta ao cenário em que se encontra a personagem). Mas, ainda assim, também aqui não é certo que se possa falar de cenas de ficção na ficção que vemos no filme nem de cenas reais nos registros documentários. O estilo de composição do filme de Lúcia Murat de certo modo antecipa os procedimentos que Juízo e Jogo de cena retomam e ampliam. A cena de cinema, diz o filme de Lúcia Murat, reafirma os filmes de Maria Augusta Ramos e Eduardo Coutinho sem estabelecer diferenças de textura entre as imagens; toda e qualquer cena de cinema traz dentro de si ficção e documentário. O hábito de se referir a uma destas forças da invenção cinematográfica como oposta à outra se deve à sensação imprecisa – mas comum – de que o cinema foi inventado para repro-

131

duzir a realidade em movimento tal como ela é. E, em consequência, à preocupação de definir se e quanto o realizador interferiu na cena que filma para pensar os limites, a natureza e intenção desta interferência. Que bom te ver viva, por exemplo: a intervenção da realizadora nas cenas reais em que as mulheres contam como se reinventaram depois da brutalidade da prisão prepara o espectador para as cenas de ficção. É uma intervenção que deixa a câmera quase tão solta para enquadrar, cortar e montar quanto a de um filme de ficção. A aparência externa do quadro nas cenas reais prepara os olhos para o que se encontra dentro do quadro de ficção, quando a câmera, então, age com uma discrição semelhante à que costuma adotar num filme documentário. Esta aparente subversão da ordem, o documentário filmado como uma ficção e a ficção como um documentário, permite a compreensão simultânea de diferentes dimensões da experiência vivida pelas personagens – as que elas conseguem traduzir para a câmera nos depoimentos e as que talvez só possam ser contadas numa ficção. Num depoimento, uma entrevistada pergunta quem estaria interessado em ir ao cinema ver um filme sobre a tortura. Pergunta como quem já sabe de antemão que o interesse será pequeno. “Toda a gente acha melhor esquecer, talvez para não entrar em contato com uma coisa tão dolorosa.” Adiante, outra entrevistada diz que cinema é bom porque, a partir da realidade pintada na tela, “a gente pode fantasiar, temos inspiração para sonhar, para deixar a cabeça livre”. A conversa (cinema e realidade, cinema e sonho) continua na cena de ficção (no que se diz e no modo de dizer). Esta personagem é, talvez, um outro eu da realizadora, que também foi presa no período da ditadura. É talvez uma imagem-resumo das entrevistadas. Com toda a certeza é uma personagem solidária com as outras, capaz de sentir o que elas sentem e ao mesmo tempo capaz de distanciar-se o mínimo necessário para pensar o sofrimento comum em voz alta: “Quem vai ver o filme além de nós? Nossas guerras são menores ou apenas nosso medo é maior?”

132

Na cena de ficção, um discurso inconsciente. Não menos verdadeiro e documental, mas diferente daquele em que as ex-presas políticas contam um pedaço de suas vidas diretamente para a câmera. Na cena real, personagens que falam como quem está bem consciente do que fala. Na ficção, uma personagem que fala para si mesma, e não tão segura de si, um discurso interior. A personagem de ficção não reconstitui um determinado instante ou acontecimento. Prossegue, responde, analisa, imagina. Vive num outro espaço e tempo o que as mulheres entrevistadas viveram entre a prisão e a retomada de suas vidas. Revela um outro aspecto deste processo. Fala como se fosse a realizadora na sala de montagem (ou como se fosse uma espectadora na sala de projeção), e talvez por isso se possa dizer que o filme (não apenas nestas imagens em que mostra a personagem de ficção, mas o filme como um todo, os depoimentos das personagens identificadas mais o monólogo interior da personagem que não tem nome) se compõe como um autorretrato da diretora: todas as mulheres que vemos ali são seus outros eus. 3 Talvez seja possível dizer assim: consciente ou inconscientemente, o realizador de um filme documentário discute parte de si mesmo na imagem do outro. Compõe uma espécie de autorretrato na questão que filma (como observa Eduardo Coutinho: “Eu só filmo o outro para resolver um mal-estar comigo mesmo”). Em maior ou menor escala, enquanto filma, o documentarista deixa de ser ele mesmo: filma como se fosse outra pessoa (como observa Cao Guimarães: “Enquanto filmo eu sou outro, sou um cavalo-de santo, como se diz no candomblé sobre aqueles que recebem: dou forma a algo que está além do que sou capaz de entender”); se esvazia de si mesmo para filmar melhor (como diz Geraldo Sarno: “Alguma coisa se ilumina

133

na relação com o outro e, em alguma medida, o outro me invade”); talvez seja possível dizer que o documentário é a possibilidade de uma absoluta fusão entre o eu da pessoa que filma e o eu da pessoa filmada (como diz João Moreira Salles, num documentário “o autor entrega parte da autoria à realidade, entrega a possibilidade do filme ter alguma força a pessoas que ele não controla”); ou que o documentário é o instante em que o gesto da pessoa que filma se alinha com o da pessoa filmada e com o da pessoa que vê o filme. Talvez seja possível dizer que num documentário o realizador se encontra ora em seu lugar, ora no lugar do entrevistado, ora no do espectador e que o caminho que se percorre então é todo o tempo de mão dupla – o espectador ora assume o lugar do entrevistado, ora o lugar de realizador; todos trocam de posição a todo instante. Este é um dos temas de Jogo de cena, documentário que se realiza por inteiro no espaço inventado para dar vida à ficção: um palco de teatro. A câmera olha para a plateia vazia. Os espectadores estão num palco de teatro. Os espectadores, isto é: o que na projeção vê o filme com a sensação de se encontrar no palco de um teatro; o que vê o filme no exato instante em que ele se faz por trás do visor da câmera (neste documentário, mais do que em qualquer outro, o diretor se reduz a um quase espectador da cena real que filma); e também as mulheres entrevistadas, que se sentam no palco de costas para a plateia, de frente para a câmera e para a equipe. Não só o que é essencialmente um espectador, o que vê a projeção do filme, pode ser tratado como tal: também o diretor e as pessoas que falam para a câmera de Jogo de cena se comportam, numa certa medida, como espectadores. A câmera, no palco do teatro, de frente para a plateia vazia, está à espera das pessoas que serão entrevistadas. Na cadeira dos entrevistados, somente mulheres. Quase todas se apresentam em resposta ao convite publicado num jornal e reproduzido na primeira imagem do filme:

134

“Convite. Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos.” Além das mulheres que se apresentam em resposta ao anúncio, atrizes convidadas pelo diretor para ocupar a mesma cadeira e repetir as histórias contadas nas entrevistas. Convidadas para transformar em ficção as histórias contadas pelas personagens reais, algumas atrizes também são entrevistadas. Ora comentam a experiência de criar uma cena inspirada numa pessoa real que esteve pouco antes naquele mesmo espaço, ora contam uma história pessoal para a câmera. Em jogo, portanto, personagens reais e personagens de ficção. Às vezes uma personagem real sai de si mesma e (consciente ou inconscientemente) inventa uma ficção para se explicar – para si e para os outros. Às vezes uma personagem de ficção sai de si mesma (poderíamos dizer assim?) para melhor representar a personagem real que a corporifica: a atriz fala de seu processo de trabalho ou conta uma história pessoal, sem relação direta com a personagem que interpreta ou reconstitui. Reconstituição: esta talvez seja a palavra que mais se aproxima do que as atrizes fazem ao repetir o texto das entrevistas. E também a que mais se aproxima do que as entrevistadas fazem ao contar suas histórias para a câmera. Sem dúvida, diferentes níveis de reconstituição, diferentes processos, entre o intuitivo de uma e o metódico de outra. Mas atrizes e não-atrizes se encontram aqui neste ponto do palco em que a representação consiste em reconstituir uma pessoa ou acontecimento. Como atrizes e não-atrizes reconstituem uma história real, é difícil, quase impossível, identificar quem é quem. O que vemos enquanto vemos? Uma atriz que representa uma mulher entrevistada para um documentário? A real entrevistada? Uma atriz que fala de si na personagem que interpreta? A única certeza, talvez: num caso e noutro e noutro vemos personagens – criadas pelas mulheres entrevistadas ou pelas atrizes convidadas

135

para repetir o texto das entrevistas. Na imagem, todo o tempo, personagens. A regra do jogo exige não revelar se o espectador vê uma cena de verdade ou de ficção, mas exige também deixar claro que o jogo existe. Ele se anuncia no título, na imagem que abre a narrativa e na presença de atrizes conhecidas por seu trabalho em cinema, teatro ou televisão, como Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra. Atrizes e personagens reais se alternam de modo aleatório. Uma história começa a ser contada por uma mulher e subitamente outra mulher recomeça a contar a mesma história. Uma história começa a ser contada por uma mulher, passa a ser contada por uma outra, retorna à primeira narradora: cada uma delas conta um pedaço do que aconteceu. Ou ainda: uma história contada por inteiro algum tempo antes reaparece mais tarde interpretada por outra pessoa. E como também o diretor interpreta – isto é, repete para as atrizes as perguntas que fez para as mulheres que entrevistou –, a sensação é de que todos representam, mesmo quem conta algo que de fato viveu. O cinema no palco de teatro nos diz que não importa identificar onde estamos, na ficção ou na realidade, mas reconhecer uma coisa na outra, como duas dimensões superpostas. A atriz, enquanto interpreta, não deixa de ser ela mesma. Vive na própria pele o processo de composição de um filme documentário: ela se esvazia de si mesma para incorporar seu outro eu, a personagem que interpreta. E a real entrevistada, enquanto narra a história que viveu de verdade, interpreta. Conta o que viveu numa figura de ficção que inventa para se fazer compreender por seu interlocutor. Conta como de fato é para a câmera por meio de um seu outro eu. A verdade da ficção, deste modo, não pode ser dissociada da ficção da verdade. O filme se realiza num espaço em que tanto pode ser discutido como uma ficção com trechos de documentário quanto como um documentário com trechos de ficção. Melhor: se realiza num espaço em que a câmera revela o tanto de construção formal que faz parte de todo o

136

documentário e o tanto de documentário que faz parte da ficção. Mostra o que o documentário essencialmente é: cinema. Não uma tentativa de compor um registro objetivo da realidade – antes, o objetivo do registro é subjetivo. Assim, ao levar uma atriz a interpretar uma personagem real, Jogo de cena mostra numa imagem como o cinema documentário registra e interpreta um acontecimento real. 4 Convém trazer à memória a imagem verbal inventada para se referir ao mecanismo criado para registrar, através de uma objetiva, a aparência de pessoas e coisas: falamos de câmara obscura; falamos de câmara lúcida. Costumamos dizer que nos apagamos para receber a luz ou que nos projetamos na razão desperta para definir a experiência de ver o mundo pela fotografia. Fotografamos não para imitar, mas para pensar a natureza, para criar uma realidade outra. Convém trazer à memória a contradição que faz parte da essência mesma do cinema desde a primeira sessão do cinematógrafo, a contradição entre Lumière, La sortie des ouvrières, e seu outro eu, L’arroseur arrosé. Um certo quê de ficção orienta a câmera quando ela fotografa uma cena real, a saída dos operários da fábrica. Um certo quê de documentário orienta a cena de ficção quando ela posa para a fotografia num cenário real, a história do jardineiro que recebe um jato de água na cara. Com os operários e o jardineiro de Lumière na memória, talvez seja possível imaginar que, numa certa medida, nos movemos todos dentro de um processo fotográfico de compreensão da realidade: o realizador, na filmagem, se converte numa câmera lúcida diante da cena; o ator, na cena, se transforma numa fotografia do gesto que uma pessoa inventou para fotografar o que pensava e sentia; o espectador, na projeção, se reduz a uma câmara obscura dentro de outra câmara obscura, expressão radical deste processo de fotografar fotografias.

137

5 “A empreitada se revelou dificílima”, lembra Fernanda Torres na revista Piauí de dezembro de 2006. Ela fora chamada “para repetir, como atriz, o depoimento que uma mulher havia dado dias antes ao diretor. Não uma personagem de ficção, mas uma mulher de verdade, que contou sua história. Me mandaram a fita com o depoimento dela. Eu deveria assistir e encontrar uma maneira de interpretá-la, repetindo o que ela havia dito”. O que Coutinho de fato propõe é um jogo de mão dupla que começa numa entrevista em que uma mulher conta um pedaço de sua vida, passa pela cena em que a atriz interpreta o texto da entrevista e termina numa outra entrevista, então com a atriz, depois da cena, sobre a experiência de interpretar uma personagem real. Assim, terminada a cena, a conversa entre Marília e Coutinho continua. Eles concordam: foi uma interpretação contida, mas num dado momento ela quase chorou (“Quando falei da filha dela, veio na minha memória afetiva a imagem da minha filha”). Quase chorou, mas conseguiu conter as lágrimas (“Quando o choro é verdadeiro a pessoa sempre tenta esconder”), porque as pessoas não são como os atores (“O ator, principalmente o ator hoje, o ator da tela, o da televisão tenta mostrar a lágrima”). Marília não chorou, mas veio preparada para chorar (“Pensei assim: se o Coutinho quiser muito, muito, muito, muito que eu chore...”), existe o cristal japonês (“é só você passar um pouquinho e chora-se muito”). Depois de interpretar seu personagem, Andrea diz que não queria chorar (“Eu não preparei choro nenhum, não queria”), mas não conseguiu recitar o texto sem chorar (“Não sei o que senti; se tivesse me preparado como atriz para chorar eu não teria ficado tão incomodada”). Fernanda, no meio da cena, engasga. Começa a recitar o texto (“Acho que sou uma pessoa não-assertiva, uma pessoa que não sabe colocar suas opiniões quando encontra alguém que sustenta bem as dela,

138

entendeu?”), mas para no meio. É como se a câmera estimulasse na atriz um comportamento – não-assertivo? – idêntico à da personagem. Para. Comenta o impasse a meia voz (”Que doido, cara!”). Tenta prosseguir, não consegue (“Que doido isso! tão engraçado, gente; vamos ver isso de novo?”). Preparou tudo, sabe o texto de cor, (”Mas, conforme fui falando, você me olhando, parecia que estava mentindo para você; não sei, é delicado”), mas não consegue recitá-lo (“Que loucura, gente! que loucura! que dificuldade que estou passando”). Desvia os olhos para o chão, estica o silêncio até um riso sem jeito (“Que loucura, Coutinho”), um riso quase igual ao que descobriu na personagem real. Comenta que para representar uma personagem de ficção “basta atingir um certo grau de realidade, aquela pessoa passa a existir. Mas uma personagem real esfrega na sua cara onde você poderia chegar e não chegou”. No citado texto da revista Piauí, Fernanda lembra uma expressão em inglês – suspension of disbelief, a suspensão da descrença – que “define o estado do espectador que aceita a ilusão criada em seu benefício. Um ator precisa que a plateia embarque na mentira, assim como uma criança precisa da outra criança para brincar de polícia e ladrão. É um fingimento mútuo: eu vou fingir que não sou eu e você vai fingir que acredita”. Talvez o olhar do diretor de algum modo não lhe tenha passado a cumplicidade que estimula o fingimento (quem faz documentário olha como quem procura a realidade em estado bruto e não uma representação dela?). O certo é que no dia da filmagem Fernanda foi para lá nervosa, “com a tal mulher no corpo, doida para me livrar dela. Na hora combinada, diante da câmera, o personagem em mim, a equipe continuou a se relacionar comigo, a Nanda Torres, e aí me deu um curto, a boca secou, a mulher se escafedeu, sumiu”. E conclui com uma frase de Amir Haddad: “A pior coisa que existe é você estar com a entidade no corpo e os outros insistirem em falar com o cavalo”. Com um certo exagero talvez seja possível dizer que o filme de Eduardo Coutinho trata principalmente desta questão que Andrea,

139

Marília e Fernanda – esta última, de modo mais intenso – vivem diante da câmera. Talvez seja possível dizer que em Jogo de cena as pessoas reais entrevistadas são a matéria bruta para a elaboração do que de fato interessa, a cena com as atrizes. As entrevistas são a cena antes da cena existir de fato, antes de ser posta em jogo pelas atrizes. O filme, na realidade, é sobre as atrizes. O que o documentário verdadeiramente documenta aqui é o processo de criação de uma personagem – em particular o processo de criação de uma personagem pelo ator, o tanto deste processo que se inspira diretamente na realidade. Por isso mesmo a conversa tem início com uma mulher que nos conta que se descobriu como pessoa de verdade ao se transformar numa atriz. Com um certo exagero, também, talvez seja possível dizer que o filme de Maria Augusta Ramos se volta principalmente para os intérpretes, se não esquecemos que em Juízo os intérpretes não são intérpretes – são jovens que saíram dos mesmos bairros à margem da cidade em que viviam os verdadeiros infratores. Em parte, porque são deles os rostos que vemos. Eles emprestam seus rostos aos menores infratores que vemos de costas na sala de audiências, no refeitório e na sala de visitas do Instituto Padre Severino. Em parte, também, porque os menores infratores na sala de audiências existem quase exclusivamente enquanto voz: a imagem é a da juíza. A atenção do espectador está no menor de costas para a câmera, na imagem, mas fora de quadro, porque o que se vê, de fato, é a juíza. Ela é o que o espectador vê. O olhar se desloca da quase silenciosa silhueta do menor em julgamento para a figura bem iluminada e falante da juíza. Mas o olhar não tem para onde se desviar quando diante do não-ator que encena as respostas para a câmera – e sua presença, o que ele nos diz com sua presença, é (talvez porque estamos no cinema) mais forte que as histórias contadas nos trechos em que aparecem os reais infratores. O que o documentário verdadeiramente documenta aqui é a presença destes não-atores, é o que eles mostram de si mesmos ao mesmo tempo em que reconstituem o que seus outros eus

140

viveram na sala de audiência ou nas celas da prisão. Eles reconstituem um pouco de si mesmos para uma câmera discreta e firme, toda ouvidos, olhos nos olhos deles, contam que vivem uma condição como a de um acusado diante do juiz. Reconstituem como meninos e meninas iguais a eles sentem quando o juiz repete o que a cidade diz para eles com outras palavras todo o tempo: tenha juízo, “Está sem serviço? Vai procurar”. Ou, como ordena o guarda do presídio na hora da comida:“Baixa a cabeça! Todo mundo! Em linha!”.   6 A pergunta surge de modo inesperado no meio da entrevista. Surge como se a regra do jogo não estivesse claramente estabelecida. Num instante de Edifício Master (2002) Coutinho se volta para Daniela e pergunta o que em princípio não caberia perguntar porque perguntar é a essência mesma de uma entrevista: “Posso perguntar uma coisa?” A pergunta nos conduz a outra: o quê um documentário pergunta ao fragmento de realidade que documenta? Um documentário não necessariamente se realiza com entrevistas, nem necessariamente numa entrevista propõe perguntas objetivas à espera de uma resposta objetiva. Basta lembrar o que Eduardo Coutinho pergunta a certa altura de Boca de lixo (1992) a uma mulher que trabalha do vazadouro de Itaoca: “É bom trabalhar aqui no lixo?” A pergunta, então, não está à procura de uma resposta. O que a imagem mostrou até então é mais do que suficiente para revelar o absurdo da pergunta. A imagem apresentou a resposta antes mesmo que a pergunta se formulasse. A questão se propõe para provocar a conversa, para estimular a fala. Um documentário, portanto, não necessariamente busca respostas. Não necessariamente propõe perguntas ao fragmento da realidade diante dele. Ou, se pergunta, não o faz para obter um esclarecimento, uma explicação, uma resposta clara. Formula uma questão,

141

uma hipótese, uma dúvida, para deflagrar (e flagrar) a cena real que se produz a partir da pergunta. Cena real que se produz porque o cinema se insere na realidade, provoca a cena. Que se produz essencialmente como cena de cinema, embora o cinema, depois de provocar a cena, não tenha mais controle sobre ela. A pergunta pode provocar uma cena, um instante, um encontro, como os filmados por Coutinho em Edifício Master. Instante em que uma pessoa resume sua experiência num depoimento: Henrique conta como foi importante subir no palco e cantar um verso de My way ao lado de Frank Sinatra – os versos da canção contam a história dele. Esther conta como se desesperou ao ser assaltada e como ainda hoje sofre com a lembrança do roubo. Antônio Carlos fala da timidez, da gagueira, da infância pobre e explica como foi importante receber o reconhecimento de seus méritos pelo chefe de seu departamento. A pergunta ou hipótese formulada por um documentário pode flagrar um instante em que se define a experiência que as personagens vão viver a partir daí, como as audiências na Segunda Vara de Justiça do Rio de Janeiro, filmadas por Maria Augusta em Juízo. A pergunta pode ainda gerar um instante qualquer, um instante que não condensa uma experiência vivida nem antecipa uma experiência por viver. A pergunta pode não querer como resposta nada além do que se produz, ou não, por acidente naquele exato momento, como occorre na conversa de beira de estrada surpreendida por Cao Guimarães em Andarilho (2006) – o estrondo que vem do céu bate na imagem como uma resposta zangada às ofensas de um dos andarilhos contra Deus. A pergunta que Coutinho propõe a Daniela talvez possa ser retirada do preciso contexto em que se faz (ele queria saber porque ela conversava com ele mas não olhava para ele) para representar algo que se encontra na raiz do gesto documentário, empenhado em construir uma realidade outra para representar a realidade diante da câmera: “Posso perguntar uma coisa? Por que a gente conversa e você não olha para mim?”

142

7 Dois planos aparecem um depois do outro, no trecho final do filme: O rosto de um menino de óculos. Uma paisagem dominada por uma árvore. Parte da cena é o que nela se vê. Parte, o que nela se representa. E mais: tão importante quanto perceber os dois planos pelo que significam na narrativa em que estão inseridos é percebê-los como uma imagem da estrutura que organiza a narração. Na cena, o menino e a árvore que o espectador vê como se filmada por trás dos olhos de Tiago, que graças às lentes dos óculos vê pela primeira vez a árvore que via todos os dias. Na memória afetiva do espectador o pequeno míope vive experiência idêntica à que cada um de nós viveu quando viu o mundo pela primeira vez através das lentes do cinema. E, assim, a alegria do menino com os óculos emprestados pelos dois visitantes que passam ao acaso é o que o espectador vê nos olhos do personagem (bem abertos para o brilho das cores e a definição das formas descobertas através das lentes) e o que ele vê através dos olhos do menino: uma representação da descoberta do cinema. A cena pode ainda ser compreendida como uma imagem-síntese da estrutura de composição do filme, como uma figura equivalente aos óculos que abrem a visão de Tiago. Quase ao final da narrativa, estes dois planos ajustam o foco: as imagens vistas na projeção, ainda que bem definidas na tela, compreendemos então, foram feitas por um narrador míope. Mutum (2007), de Sandra Kogut, é uma soma de detalhes observados bem de perto e colados um depois do outro como anotações soltas: o vento forte que derruba tudo no quintal; a brincadeira com a lama depois da chuva; a roça; o trabalho de capinar com o pai; a gargalhada aberta na porta da cozinha; a nuvem branca perdida no céu azul;

143

o banho de chuveiro nos passarinhos; a boca cheia de água para cuspir suave na gaiola; a tristeza pela doença do irmão. Tais imagens não se articulam por uma qualquer relação de causa e efeito. O que dá unidade e continuidade a estas notas é a comum preocupação de ver do ponto de vista de uma criança duas vezes míope: porque seus olhos não veem em foco o que se passa distante, porque os adultos não deixam que ela veja em foco o que se passa ali perto: o pai briga com a mãe por uma razão não conhecida e por trás da porta fechada; o tio lhe dá uma carta que ele deve entregar em segredo, sem ler. Na imagem em que Tiago descobre a árvore, graças aos óculos, nenhum efeito especial – apenas uma paisagem fotografada com boa luz e definição; apenas um instante em que um plano está ligado em direta continuidade com o anterior. O foco que se estende do primeiro plano até o fundo do quadro é o suficiente para o espectador sentir (muito provavelmente sem ter consciência disso) que até aquele momento fora convidado a ver como um míope para jamais perder Tiago de vista; para não tirar os olhos do menino míope; para continuar a vê-lo mesmo quando ele não se encontra em cena. Mais do que não tirar os olhos de Tiago, o espectador vê pelos olhos de Tiago – a miopia aqui é a ficção; a história parece feita de pedaços de uma história de verdade. E ver a realidade de modo fragmentado, limitado por uma espécie de miopia, contribui para a compreensão de que a realidade se apresentava deste mesmo modo para Tiago: fragmentada. Em Juízo e em Jogo de cena, podemos dizer, o documentário incorpora procedimentos de ficção. Em Mutum, o caminho inverso: a ficção incorpora procedimentos do documentário. Na origem, um texto de Guimarães Rosa. Para transformar o texto em filme, muitas viagens pelo sertão e quatro ou cinco versões de roteiro (que foi escrito com a colaboração de Ana Luiza Martins Costa). Mas, a rigor, o filme filmado não é o filme escrito. Com algum

144

exagero é possível dizer que Sandra escreveu um filme não para filmá-lo assim como anotado, mas para estimular na filmagem a invenção de um processo cinematográfico semelhante ao processo de criação literária de Guimarães Rosa. Uma adaptação mais fiel ao escritor, a seu modo de se relacionar com o sertão e as pessoas, do que ao texto propriamente dito (“Não é exatamente uma adaptação, acho que é mais uma conversa com o livro”). Mais conversa do que texto – por isso a decisão de não mostrar o roteiro a ninguém, nem aos intérpretes, nem à equipe técnica (“Tudo foi transmitido oralmente”). Na filmagem, um certo quê de cinema documentário. Intérpretes não-profissionais escolhidos entre gente da região (“As crianças e os vaqueiros nunca haviam ido a um cinema”). Reunidos na fazenda onde a história acontece, foram convidados a viver a história com seus nomes verdadeiros, e não com os dos personagens de Guimarães Rosa (“O trabalho dos intérpretes se construiu a partir da proximidade entre a vida deles e a de seus personagens”). Em improvisações estimuladas pela diretora, deixaram-se filmar (quase exatamente) assim como são. A ficção, aqui, para se realizar como ficção e não para fingir que é outra coisa, estimulou a mais ou menos livre invenção de situações não-controladas pela câmera. De certo modo, a ficção de Mutum documenta a rotina de uma fazenda que continuou funcionando durante as filmagens (“Cuidavam dos bichos, capinavam, trabalhavam juntos com as roupas deles, brincavam os brinquedos também”). O Tiago do filme, por exemplo, é em parte o protagonista da história de Guimarães Rosa e em parte ele mesmo, Tiago da Silva Mariz, menino de dez anos que não sabia o que era cinema e que não ouvira falar de Guimarães Rosa, e em parte o Tiago que interpreta no filme. Todo esse cuidado (chamemos assim) documental não resulta de uma preocupação etnográfica, mas de um processo de conhecimento dos personagens inspirado no texto do escritor, esclarece a diretora. Nos livros, Guimarães Rosa “documenta” (“Muitos detalhes da natureza, da vida no sertão”) em

145

forma de ficção (“O texto não é descritivo, tudo ali fala do mundo interno dos personagens, as paisagens do livro são para mim paisagens internas”). [Convém lembrar o que disse certa vez Walter Salles: “Se existe um mestre que me inspira no documentário, ele não está no cinema e sim na literatura: Guimarães Rosa. Rosa cristalizou uma escuta, incorporou um não-dito à realidade brasileira. Sua obra não era norteada por um desejo catequizante. Ouvia e dividia aquilo que ouvia com os outros.”]

Um quadro de Mutum visto isoladamente parece documentário, cena que incorpora o gesto espontâneo das pessoas, mas esta “imagem mais crua e simples” está de fato a serviço da ficção, trata-se de espontaneidade cuidadosamente construída fora de quadro – para “manter as relações entre os personagens sempre em primeiro plano: a mãe consolava Tiago quando ele levava uma bronca, mesmo que eu não a filmasse”. Espontaneidade trabalhada fora de quadro para que os intérpretes “não se sentissem dominados pelo dispositivo do cinema”. Imaginemos que Mutum procure o documentário assim como Juízo e Jogo de cena procuraram a ficção. Imaginemos que a ficção procure seu outro eu, o documentário, para esquecer o dispositivo do cinema (“sem, no entanto, jamais esquecer que estávamos fazendo um filme”) e, deste modo, reinventar o dispositivo, reinventar a cena, que é o que de fato importa. Cinema, diz Sandra, documentário ou ficção, “é sempre uma questão de mise-en-scène. A única realidade que existe num filme é a realidade interna de um filme”. 8 Talvez para atender à pressão do modelo dominante de produção e de circulação dos filmes, o cinema tenha reduzido num certo

146

momento de sua trajetória a importância do conflito criativo que se dá no instante da filmagem entre a câmera e a cena diante dela – ou, mais exatamente: o conflito com o material bruto que ela transforma em cena de cinema. Este conflito fundamental no processo cinematográfico no período que vai da invenção de Lumière aos primeiros filmes com longos letreiros explicativos entre as imagens reduziu-se gradativamente a um procedimento mecânico para ilustrar o filme tal como pensado e imaginado antes da filmagem. O confronto com o fragmento vivo diante da câmera passou a segundo plano desde que o roteiro passou a ser pensado não como um estímulo para a filmagem e montagem, mas como um completo plano de trabalho, como se neste primeiro instante do processo o filme já existisse praticamente acabado e restasse às etapas seguintes somente cumprir à risca o que foi previamente planejado. Talvez para continuar a se expressar como forma original, o cinema retoma e radicaliza agora o conflito entre a câmera e a cena diante dela. Passa do instante em que se pensava o filme por inteiro antes de começar a filmá-lo a este outro em que se pensa um filme em detalhes, em que se anota um filme no papel como se ele já existisse, mas não para reproduzi-lo depois tal e qual em imagens cinematográficas. O filme antes do filme propriamente dito estimula a realização de um outro, ou pelo menos a realização de um filme não necessariamente igual ao que foi pensado e realizado em palavras. O que parece mais um delírio do que possibilidade real, escrever um filme para realizar outro, é um processo real e concreto. Está presente em filmes que a rigor não partem de um roteiro, pelo menos não de um roteiro formalmente organizado (Juízo, por exemplo, Jogo de cena, qualquer documentário, por exemplo: uma filmagem sem um filme previamente escrito?). Está presente também em filmes que, para a invenção de uma forma cinematográfica, partem não de um texto escrito para que dele se faça um filme, mas sim de um texto por excelência, da expressão

147

literária (Mutum, por exemplo: uma filmagem não-conforme do filme escrito por Guimarães Rosa?). No processo criativo do cinema, tal como a imagem na tela, tem um certo quê de palavra; a palavra no roteiro tem um certo quê de imagem para que o filme na projeção não apenas descreva, mas escreva (o teorema de Pasolini: ser cineasta é ao mesmo tempo ser um escritor?), para que o cinema não se reduza a uma simples máquina de registrar o que se encontra diante da câmera, mas, ao contrário, que o cinema diante da realidade atue como uma câmera lúcida.

148

149

Na contramão do confessional: O ensaísmo em Santiago, de João Moreira Salles, Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, e Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader Ilana Feldman

Metodicamente sem método: ensaísmo e mediação Ensaísmo, práticas confessionais e “autoficção” são escolhas e procedimentos estéticos empregados em um número crescente de filmes brasileiros, sobretudo aqueles tomados por documentais. Tais escolhas dialogam, criticamente ou não, com uma cultura audiovisual colonizada por estratégias que visam a intensificação dos efeitos de verdade, seja por meio da apropriação e captura das velhas marcas da reflexividade (tomada agora como indicialidade testemunhal), seja por meio do investimento na exposição de uma suposta intimidade como lócus privilegiado (ou mesmo garantia) da verdade do sujeito. No bojo dessa cultura audiovisual sintomática, alguns filmes brasileiros contemporâneos, sobretudo aqueles de caráter ensaístico, escovam a contrapelo a busca pelo efeito de verdade pautado tanto por estratégias outrora reflexivas quanto por práticas confessionais. Para tanto, investem na opacidade, na explicitação das mediações, na tensão entre as subjetividades e seus horizontes ficcionais e na problematização das próprias prerrogativas, destilando dúvidas a respeito da imagem documental, colocando sob suspeita seus procedimentos ou produzindo suas próprias falsificações e esquivas. Filiando-se a uma espécie de ensaísmo documental, os filmes Santiago (João Moreira Salles, 2007) e Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007), a despeito de suas evidentes diferenças, fazem da explicitação e problematização do próprio método, não sem a sedução emocional do espectador, o tema e a estrutura desse reflexivo e, simultaneamente, afetivo jogo-cinema. Longe então da imediatez de certo regime de visibilidade pautado por um

150

ideal de “transparência”, que pleitearia o apagamento da distância entre a experiência dita direta e sua mediação1, o ensaio audiovisual atuaria na ativação da experiência sensível, estética e, evidentemente, mediada, mobilizando as passagens e as indiscernibilidades entre o singular e o coletivo, o privado e o político, a subjetividade e a não-pessoalidade, a pessoa e o personagem, a verdade e a fabulação, a memória e a presentificação. Como veremos, o ensaísmo presente em Santiago e aquele presente em Jogo de cena são de ordens distintas, ainda que ambos sejam caracterizados pela mobilidade e pela explicitação da mediação, pelo rigor da composição e pelo olhar reflexivo, parcial e subjetivo do cineasta – mesmo quando este não se exprime em primeira pessoa. Tal qual um gênero híbrido e moderno, entre a arte e a filosofia, entre a precisão conceitual e a busca por um estilo livre e pessoal, o ensaio se volta contra o imediato para estabelecer mediações, preferindo sempre o parcial, o inconcluso e o fragmentário. Isto é, preferindo aquilo que escapa ao pensamento sistemático, totalizante e dogmático – aquilo que escapa, portanto, às definições conceituais e às deduções definitivas. Arte do transitório, do contingente e do “despropósito” (Adorno), o ensaio nos coloca a impossibilidade de exaurirmos uma relação com o objeto, não admitindo conciliação ou consenso. Nesse embate marcado pela fratura, o gesto ensaístico parte da admissão de que o sujeito moderno é, desde a origem, atravessado, trabalhado e fracionado pela ficção: sua auto-elaboração é uma autoficção, a qual, no caso do cinema, será mobilizada pela função produtiva e mediadora da câmera. Se o método de abordagem do ensaio é a negação sistemática de todo método, isso não exclui, porém, a possibilidade de um discurso sobre o método, considerando se tratar de uma metodologia lacunar, hesitante, não-sistemática e não-disciplinar. No caso dos dois filmes em questão, o método é tomado como um experimento, a partir do princípio de incerteza que organiza a narrativa, da suspeita que recai sobre 1 A esse respeito, ver FELDMAN, Ilana. “O apelo realista”, in: Revista FAMECOS, Dossiê “Menções de Destaque” - Compós 2008”, Porto Alegre, n.36, 2008.

151

a imagem documental e da oscilação entre a crença e a descrença que é tornada condição espectatorial2. Só há método, portanto, a partir da dúvida fundadora e “hiperbólica”, assim como postulava, ao menos em sua gênese, o método cartesiano, a despeito de todas as incompreensões retroativas que o reduziram a um cartesianismo científico mais banal. “Metodicamente sem método”, como diria Adorno, o ensaio, o mais inadequado dos gêneros, apenas coordena seus objetos, sem querer subordiná-los a uma lógica prévia e prescrita. Se o discurso sobre o método só é então possível pela explicitação da mediação – seja uma mediação enunciada por uma voz em off, no caso de Santiago, ou estruturada pela montagem, no caso de Jogo de cena –, o caráter mediador e perspectivo do ensaio fílmico se evidencia por meio de sua forma. A um só tempo aberta ao mundo, à subjetividade e à heterogeneidade, a forma ensaística também se apresenta fechada, preocupada que é com seu criterioso modo de composição, que, tal como em um mosaico ou em um jogo, coloca suas peças em movimento e em relação. É por este motivo que o ensaio pressupõe uma instabilidade e uma indeterminação narrativas em que não há unidade nem controle possível, pois a relação entre a palavra, a imagem e o referente deixa de ser imediata, havendo sempre uma hesitação entre a busca de certezas e a impossibilidade de fixá-las, entre a vontade de verdade e todas as impossibilidades da linguagem. Entre os ditos e os não-ditos, o ensaio parece valorizar o que sempre escapa e o que está calado, aquilo que não se é sendo e não se diz dizendo. Tal como está em nossa moderna tradição literária: o narrador de Dom Casmurro, ao estabelecer seu projeto memorialístico, nos diz: “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” O ensaísmo documental, atravessado então por uma perspectiva, cética ou trágica, de que seria impossível alcançar o referente, a verdade 2 “Para ser espectador é preciso aceitar crer no que vemos; e para sê-lo ainda mais seria preciso começar a duvidar – sem deixar de crer”, escreve Jean-Louis Comolli em Ver e poder.

152

“por trás do pano”, pois tudo o que há, no âmbito do filme, é a verdade do cinema, a realidade do pôr-em-cena e a autenticidade-em-encenação, vem dialogar com uma tradição em cujo centro se encontrava o problema da verdade e da palavra. Tal como a máscara da tragédia grega, que oculta ao mesmo tempo em que revela, ou revela justamente porque oculta, as renovadas práticas interativas, reflexivas e ensaísticas, filiadas à tradição do cinéma verité francês, têm semeado a ultrapassagem – não desprovida de tensão e de problematização – das dicotomias tão caras à nossa tradição de pensamento socrático-platônica, como os pares essência-aparência, profundidade-superfície, autenticidade-encenação e realidade-ficção. Antes de prosseguirmos, cabe salientar que, ao afirmar tal ultrapassagem, não se trata de dizer que a verdade e a autenticidade não existam, ou que elas sejam uma farsa, uma dissimulação. Esta perspectiva seria um tanto ingênua, se não fosse também cínica, pois parte do pressuposto – novamente remetido a nossa herança metafísica – de que toda encenação é negativamente falsificante. Ao contrário dessa visada, ainda hoje hegemonicamente compartilhada, deve-se compreender a verdade e a autenticidade, no âmbito da linguagem audiovisual, como um efeito de uma construção que se dá em relação e em reação à câmera. Desse modo, a câmera deixa de ser somente um instrumento de captação ou registro para tornar-se, simultaneamente, um instrumento de catalisação e de produção das verdades dos personagens. Como já dissera o “mestre dos mestres” Jean Rouch, para quem a ficção era o único caminho para se penetrar a realidade, “a câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas uma testemunha indispensável que motivará sua expressão”3. Aí está, portanto, a função produtiva da interação reflexiva proposta por João Salles e Eduardo Coutinho, intervenção como condição 3 Citado por Felipe em “Mestres dos mestres”, Contracampo, 2004. Disponível em: http://www. contracampo.com.br/58/jeanrouch.htm. Decerto, trata-se aqui, diferentemente do ideal de “testemunha ocular” do cinema-direto norte-americano, movimento aliás bem mais complexo do que as leituras posteriores nos fazem acreditar, de um outro tipo de testemunha, espécie de “estimulante psicanalítico”, segundo Rouch, com o qual é possível interagir.

153

de possibilidade do pôr em cena, pelo gesto e pela palavra, aquilo que estaria latente, oculto, esquecido ou a ser ainda inventado. Por caminhos ensaísticos distintos – o “teatro da entrevista” em Jogo de cena, ou o “discurso autobiográfico mediado pela entrevista” em Santiago –, Coutinho e Salles não só criam o filme e seus personagens como criam uma dimensão de “si mesmos” (e “deles mesmos”) que não poderia existir sem o filme, dimensão a um só tempo real e imaginária, autêntica e encenada, presente e passada. Dimensão que, para além do “despropósito” e das “inutilezas” do gesto ensaístico, torna cada um dos filmes necessário e intransferível, na medida em que as próprias obras operam como um singular modo de subjetivação. Como veremos, os recursos à “expressão de si” por meio de práticas e gestos confessionais, tradicionalmente empregados para a inscrição dos sujeitos em um discurso verídico, serão torcidos e revirados em Santiago e Jogo de cena. Entre a vontade de saber e a recusa aos sentidos estabilizados, entre a vontade de controle e as contingências do acaso – figura, aliás, cada vez mais desejada, investida e capitalizada pelo documentário brasileiro contemporâneo –, Santiago e Jogo de cena demonstram a excessiva autoconsciência de que “a posição de controle é insustentável, tanto no cinema quanto na vida”, como enfatiza o crítico Jean-Louis Comolli. Nesse sentido, enquanto a experiência de Jogo de cena busca a irrupção ou a encenação daquilo que chamamos de acaso, em Santiago acompanhamos a tentativa, por vezes desesperada, de sufocá-lo, tentativa que constituirá o cerne da reflexão do filme sobre si próprio. O “acaso”, no entanto, na qualidade de efeito construído pelas experimentações modernas e convertido em arena de disputa contemporânea (pois implica, como moeda de troca, certo coeficiente de “autenticidade” das obras), estando presente ou ausente, seria inacessível, inominável, irrupção do impensado: aquilo que tornaria as imagens sempre instáveis, fugidias e insuficientes para nomear o real. No entanto, se as imagens, assim como as palavras, são sempre precárias, “é justamente por todas as precariedades, a partir de todas as

154

lacunas, apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas” (para emprestar a expressão de Consuelo Lins e Cláudia Mesquita). Ao privilegiar, portanto, determinadas aproximações e recortes em detrimento de tantos outros, que, por força do caráter sintético de um texto e da complexidade dos objetos, ficam obscurecidos, opta-se por uma entrada também parcial, contingente e lacunar nos universos fílmicos. Após a negatividade fundamental de que parte Dom Casmurro, em que o fundamento do sujeito não se encontra no cogito, mas justamente naquilo que lhe escapa ou que lhe falta (tal como o “sou onde não penso” lacaniano), há que se crer que, assim como acontece com as imagens, aquilo que se oculta de um texto – seu contracampo, seu negativo – é tão revelador quanto aquilo que se diz. Por dentro dos filmes e de suas metodologias: profundamente as superfícies Em Santiago, trata-se do filme dentro do filme, de uma reflexão sobre o material bruto, isto é, de um procedimento explicitamente autorreflexivo. O método, ou as opções estéticas e estilísticas do cineasta, com seus recortes e perspectivas, torna-se assim o próprio tema: tanto na camada sonora, por meio da narração em off em uma primeira pessoa “terceirizada”, a qual suspeita dos procedimentos empregados no filme fracassado (o filme que fora feito pelo mesmo João Salles 13 anos antes), como pelo manejo e incorporação das imagens desse antigo filme que agora dá forma a um outro. Em Jogo de cena, a explicitação não passa unicamente pela tematização, mas, sobretudo, pela estrutura narrativa que, no caso, prescinde de um discurso explicativo, transcendente em relação à estrutura. O método ou o dispositivo, isto é, as linhas de força que, a partir de parâmetros formais, organizam e controlam a cena, abrindo-a para situações e conexões imprevistas, está lá na primeira sequência: o anúncio de jornal convocando mulheres a narrarem suas histórias pessoais. A partir daí, o pensamento “do” filme “sobre” si próprio estará em relação de imanência com a estrutura e a montagem.

155

Santiago é narrativamente mais organizado e os sentidos por ele produzidos são precisos, enquanto Jogo de cena é estruturalmente mais esquivo e os sentidos por ele produzidos são erráticos. No caso de Santiago, o ensaísmo desenvolve-se no sentido do debruçar sobre si, sobre suas escolhas, mas essa construção metalinguística é articulada por uma narração em off organizadora, serena e carregada de certezas sobre aquilo que narra. Em Santiago não há propriamente o jogo de revelação e ocultamento com o espectador, mas há a problematização, por meio de um monólogo interior do narrador, das regras que compõem e constroem a cena, sejam elas regras estéticas (assentadas na seletividade do olhar e na influência dos códigos recatados e decorosos do cinema de um Ozu), sejam elas regras sociais (como a distância que se instala entre documentarista e personagem na reprodução da assumida relação empregatícia). Contudo, nessa reflexão sobre o material bruto, Santiago, o filme, não chega a interrogar, de fato, o mundo de que trata, ele apenas lamenta o seu desaparecimento, como se o trabalho sobre si, fundamentalmente um trabalho de luto, fosse também ele interrompido pelos comandos de “corta!” e de “não!”. Tanto o narrador de Santiago quanto Santiago, o personagem, atormentados pela implacabilidade do tempo, nos lembram, parafraseando Shakespeare em Macbeth, do drama daqueles homens que, enquanto atores, gaguejam em suas únicas falas, desaparecem e nunca mais são ouvidos. Já em Jogo de cena, filme que, ao depurar seus procedimentos, leva ao limite4 o método de Eduardo Coutinho – marcado pela valorização da capacidade expressiva de seus personagens-narradores, em uma espécie de auto-mise-en-scène, como diria Jean-Louis Comolli, ou “autoficção”, como prefere Jean-Claude Bernardet –, o ensaísmo se faz presente, sobretudo, 4 Em seu mais recente filme, Moscou (2009), sobre o acompanhamento dos ensaios da peça “As três irmãs”, de Tchekov, pelo grupo teatral Galpão, Eduardo Coutinho aprofunda a investigação da linguagem. Subvertendo seus métodos e procedimentos usuais (o emprego da entrevista e a presença de homens e mulheres “comuns”) e debruçando-se radicalmente sobre si, Coutinho rompe qualquer ligação com o referente, a ponto de a “documentação” do processo de ensaio “real” ser completamente enredada pelo texto ficcional. Ver Ilana Feldman, “Moscou: do inacabamento ao filme que não acabou”. Revista Cinética, abril de 2009. Disponível em: http:// www.revistacinetica.com.br/moscouilana

156

na forma como a estrutura se organiza. Uma estrutura lacunar, errante, que, ao desdobrar e duplicar as falas femininas, não aponta para nenhum sentido fora do filme, para nenhuma verdade que lhe seja exterior, mas para a verdade do cinema e da cena, ultrapassando as dicotomias entre pessoa e personagem, singular e coletivo, verdade e fabulação, memória e presentificação. Em Jogo de cena, a interrogação do filme sobre si (sobre a cena e em cena) é radicalizada, gesto que remete ao “Paradoxo do comediante” de Diderot, como já havia deixado claro a fala da personagem Alessandra, de Edifício Master (Coutinho, 2003): “Sou uma mentirosa verdadeira.” A Coutinho, portanto, interessa não a simples evocação de experiências pessoais, mas o modo como essas experiências são evocadas; interessa a expressividade, não o conteúdo da expressão. “Eu não separo ela do que ela diz”, nos fala a atriz e personagem Fernanda Torres, comentando sua tentativa de interpretar a personagem, e aparentemente não-atriz, Aletha, cujo próprio nome remete à aletheia5 grega, “a verdade no sentido da revelação” – como explica a personagem sobre o significado de seu nome. Nessa espécie particular de estética performativa da existência o cinema de Coutinho, como escreve Ismail Xavier, “tem como horizonte a apresentação de um sujeito como foco de um estilo”, valendo aí o princípio de que as pessoas são “interessantes”, “carismáticas” ou “extraordinárias” (termos, embora muito rentabilizados pelos espetáculos televisivos e pelo mundo corporativo, bastante empregados pelo próprio Coutinho) quando “recuperam na conversa um sentido de autoconstrução que tem sua dimensão estética”. Se a metodologia é, portanto, parte dos processos de ambos os filmes, em Santiago assistimos ao resultado de um processo, enquanto em Jogo de cena acompanhamos o processo de um resultado. De fato, do mesmo modo que em ambos os filmes suas construções formais se 5 Etimologicamente, a aletheia grega é formada por a+lethé, isto é, a negação (o prefixo “a”) daquilo que estaria oculto, obscurecido ou esquecido (“lethé”). A verdade, portanto, em grego, está etimologicamente relacionada à memória.

157

dão em uma relação de tensão entre o ilusionismo e a reflexividade, o controle e o acaso, e o rigor do dispositivo e a liberdade do ensaísmo, no que diz respeito às suas temáticas, ambas giram em torno do eixo perda e superação da perda. Seja mais explicitamente a perda de um tempo, de pessoas e de uma promessa modernista de país que já se foram, como em Santiago, seja a perda ou o abandono de filhos, pais e maridos, como em Jogo de cena. Mas, neste caso, por que mesmo um filme apenas com mulheres? Modernamente e psicanaliticamente vinculadas ao signo da falta, as mulheres, segundo a psicanálise e de acordo com a admissão de que nada existiria por trás do muro da linguagem, seriam impelidas (para não sucumbirem) a inventar novas perspectivas narrativas,6 a criar uma estilística ou uma escritura no âmago do próprio presente, abandonando uma vida organizada pela promessa e pela esperança.7 Talvez seja desse abandono e dessa necessidade de atualidade de que falam as personagens de Coutinho. Em Jogo de cena, assim como em Santiago, a atualidade advém de uma radical impossibilidade: impossibilidade de dizer, de nomear, de se adequar. Sejam as proliferações discursivas em Jogo de cena (por meio da escuta de Coutinho e das duplicações de alguns depoimentos), sejam as repetições repressivas em Santiago (em função do autoritarismo de seu realizador), essas diversas formas de fazer falar e fazer calar não estão a serviço de nenhuma capacidade revelatória da linguagem. Capacidade esta comumente atribuída ao cinema de Eduardo Coutinho, ao menos até Jogo de cena, como se linguagem pudesse repor a singularidade dos sujeitos da enunciação.8 Distantes de 6 Ver Maria Rita Kehl, Deslocamentos de feminino (Imago, 2008). Segundo Kehl, a personagem Madame Bovary, centro de seu estudo, teria posto fim à sua vida porque não conseguira escrever, não conseguira tornar-se autora – de textos, cartas, poemas – e, afinal, da própria vida. No entanto, se Emma Bovary sucumbiu, algumas personagens de nossa moderna literatura conseguiram criar outras perspectivas narrativas, tal como a pintora do romance Água viva, de Clarice Lispector, para quem, aliás, ao fundo de cada cor nada haveria por trás: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.” 7 A temática da promessa e da esperança é também colocada pela personagem GH, de Clarice Lispector: “Prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida (...) [Mas] eu preferia continuar pedindo, sem a coragem de já ter.” 8 Temos a impressão de que a não-adesão, por parte de alguns críticos, a Moscou (2009), de

158

qualquer relação de transparência entre sujeito e linguagem, tanto as mulheres de Jogo de cena quanto Santiago, o personagem, estariam mais próximos da opacidade postulada pela personagem “filósofa” GH, de Clarice Lispector, quando ela belamente formula: “Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas tenho muito mais à medida que não consigo designar.” Tratando da própria narrativa e da narração fabuladora, da linguagem como meio de criação e simultânea cicatrização, do processo de construção de uma verdade a partir da rememoração, as temáticas de Santiago e Jogo de cena nos remetem àquilo que um dia dissera Benjamin a respeito de Proust: “Um acontecimento vivido é finito (...) ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites.” Seja por meio do bovarismo e do apreço ritualístico de Santiago, o personagem (uma dança com as mãos, uma reza em latim, a contrição diante do passado), seja por meio das performances da memória das personagens de Jogo de cena (em que atrizes profissionais vivem o que interpretam enquanto não-atrizes interpretam o que vivem), em ambos os filmes trata-se de narra-dores, cujas imaginações, por vezes melodramáticas,9 carregam consigo um potencial de auto-construção estética, de libertação, mas também de paradoxal prisão. Afinal, como bem sabem o ex-mordomo Santiago e as mulheres de Coutinho – esses habitantes do mundo da linguagem nunca perfeitamente contidos nele –, a imaginação é o que nos salva, mas também o que nos condena. Cabe lembrar que, tensionando a atualidade da vida às suas possibilidades imaginativas e narrativas, a reflexividade presente em Santiago Eduardo Coutinho, advém desse impasse da linguagem que o filme coloca. Para além de sua estrutura dispersiva (e não mais concentrada, como em seu cinema pautado pela entrevista), em Moscou a linguagem deixa de ser revelatória, deixa de repor a singularidade dos sujeitos falantes (nos termos em que a crítica valorizava até aqui o trabalho de Coutinho) para alcançar, por meio da ficção, sua autonomia – que, no limite, dissolveria a ideia de sujeito singular, já que as biografias dos personagens (ficcionais ou não) são partilhadas e os enunciados coletivizados. 9 Ver Mariana Baltar, “Pacto de intimidade – ou possibilidades de diálogo entre o documentário de Eduardo Coutinho e a imaginação melodramática”. (Compós, 2005).

159

e Jogo cena, isto é, o pensamento em ato do filme sobre si próprio, não se vincularia ao “distanciamento crítico” que marcara as modernas estratégias anti-ilusionistas, mas, diferentemente, a uma espécie de “engajamento crítico”. É a partir desse engajamento que a dimensão afetiva da reflexão sobre o método soma-se à sedução emocional do espectador, o qual se engaja na situação implicada tanto pelo efeito-câmera quanto pelas performances – da retórica, dos gestos e da memória – diante da câmera. Sendo assim, no lugar de nossos velhos conhecidos efeitos de verdade, talvez esteja em jogo aqui a produção de “afetos de verdade”, pois não se trata de julgar os personagens em nome de uma instância superior (que seria o bem, a verdade), mas de avaliá-los em relação à vida e à intensidade que suas presenças e suas performances implicam. O afeto como avaliação imanente, em vez do julgamento como valor transcendente. Sendo, portanto, as distintas metodologias dimensões integrantes dos processos de ambos os filmes, e não somente suas instâncias a priorísticas, como em um documentário mais tradicional, devemos compreender aquilo que chamamos de método como um conjunto de regras diegéticas e procedimentos estéticos sobre o qual trabalhará, afetiva, reflexiva e experimentalmente, o documentarista. Espécie de método que contempla um tipo de busca que sempre encontra algo distinto do que procura, na medida em que encontrar não significa chegar a um ponto estável e estático, cujos sentidos estariam estabilizados, mas voltear, rodeando um centro móvel e apenas intuído, o ensaio, como queria Blanchot, é, de fato, um dis-cursus, curso interrompido ou aberto à mudança. “Mais do que uma certeza acerca do mundo, o pensamento ensaístico nos levaria a errar sobre o mundo e, sobretudo, a suspeitar do mundo”, escreve André Brasil em “Ensaio de uma imagem só”. Assim, verbalizando sua suspeita, nos diz o narrador de Santiago: “Hoje, treze anos depois, é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita. O que fica claro é que tudo deve ser visto com uma certa desconfiança”.10 10 Ver Ilana Feldman, “Santiago sob suspeita” (Trópico, 2007).

160

Nesse sentido, ainda que em Santiago a “errância” e o caráter “inacabado” próprios ao gesto ensaístico sejam, diferentemente de Jogo de cena, bastante controlados e autoconscientes, tanto uma obra quanto outra, cada qual a seu modo e na sua intensidade, cultivam incertezas e desconfianças por todo o filme: destilam dúvidas a respeito da imagem documental, perturbam a crença do espectador naquilo a que se está assistindo e estilhaçam as noções de autêntico, verdadeiro e espontâneo, tão comumente remetidas ao campo do documentário – como nos lembra Consuelo Lins e Claudia Mesquita, ao analisarem, além de Santiago e Jogo de cena, outros dois filmes brasileiros contemporâneos que lidam com a questão da suspeita, tais como Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007) e Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006). Longe, portanto, da ilusão do lugar do controle, tão cara à posição do espectador de televisão – que acredita poder sempre saber, julgar e decidir –, o ensaio se moveria, como já o “definiu” a ensaísta portuguesa Silvina Rodrigues Lopes, “segundo um impulso de aventura”: aquele impulso que, contaminado pelo mundo e aberto à instabilidade do devir, tornaria o verdadeiro indecidível. Ancorados na experiência subjetiva e sensível, seja a de seu autor-narrador, caso explícito de Santiago, seja a de seus outramentos, caso implícito de Jogo de cena, o qual não se utiliza de uma escritura em primeira pessoa, tanto o pensamento que se ensaia quanto o cinemaensaio seriam então marcados pela aventura da transitividade e por uma “erótica das imagens”, em que os sentidos se dão mais por contaminação epitelial do que por relação causal. É a contagiosa instabilidade inerente ao ensaio o que proporcionará, portanto, os trânsitos e as passagens entre o singular e o coletivo, a pessoa e o personagem, a memória e a atualidade, a verdade e a fabulação, o documentário e a ficção, a vida privada e sua historicidade – que não se desvincula do lugar e da função do cinema.

161

Na contramão do confessional: a impossibilidade de acesso à “verdade” e ao “real” Em um momento histórico marcado por uma “indústria da primeira pessoa”, quando a exposição da intimidade e a declaração de uma unívoca “verdade sobre si” são tiranicamente requeridas e demandadas, Santiago e Jogo de cena, por meio da opção pelo ensaísmo documental, em que, como vimos, está em jogo o privilégio da opacidade e a tensão entre as subjetividades e seus horizontes ficcionais, livram-se da estabilidade e da unidade de “eus já acabados”, escovando a contrapelo “a eloquência do confessional midiático”.11 Essa forma de astúcia parece dialogar criticamente, conscientemente ou não, com a histórica concepção do interior do sujeito como lugar privilegiado da autenticidade e da verdade, uma perspectiva que se tornaria fundamental na cultura moderna e que hoje estaria em mutação, em função de tendências confessionais exibicionistas e performáticas, em um mundo saturado de estímulos visuais, de acordo com o argumento do livro O show do eu – a intimidade como espetáculo, de Paula Sibilia. Das confissões nos séculos IV e V de Agostinho, o inventor das primeiras metáforas cristãs da introspecção e da autoexploração, passando pela secularização da ideia de interioridade por meio das virtudes autorreflexivas da escrita ensaística de Michel de Montaigne no século XVI, ao regime da autenticidade na criação de si e na interação com os outros, pleiteado pelas confissões de Jean-Jacques Rousseau em meados do século XVIII, poderíamos afirmar que aquilo que modernamente foi se consolidando como a intimidade burguesa, espaço privado onde residiria a verdade mais recôndita de cada um de nós, é colocado em xeque, e no centro da cena, por Santiago e Jogo de cena. Assim, enquanto Eduardo Coutinho coloca, em Jogo de cena, a cena na sede por excelência do espetáculo, o teatro – pela primeira vez, aliás, em sua obra, descontextualizando os espaços sociais e geográficos em que habitam seus per11 Ver Fernanda Bruno, “Jogo de cena” ( 2007).

162

sonagens –, em Santiago, João Salles se recusa a ouvir a mais importante e íntima “confissão” de seu ex-criado Santiago – “E no fim, quando Santiago tentou falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmara”, nos diz o narrador –, esquivando-se estrategicamente, ainda que também autoritariamente, da revelação de um segredo que, possivelmente, conferiria ao ex-mordomo uma verdade e uma identidade inescapáveis. Como tão bem diagnosticara Michel Foucault, em fins dos anos 70, no primeiro volume de A história da sexualidade – a vontade de saber, nascida no âmbito medieval e eclesiástico e, posteriormente, apropriada pelos saberes e poderes jurídicos e médicos, a confissão foi tornada no século XIX e XX a prática nuclear em torno da qual gravitavam as ciências humanas, especialmente a psicanálise. Dessa forma, “a confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder”; poder que, ao incitar a proliferação discursa sobre o desejo, alçou a verdade e o sexo, ou a verdade do sexo, à expressão obrigatória de um segredo individual. No entanto, é sempre saudável relativizar os poderes totalitários e tirânicos da confissão. Ainda que a leitura tão audaz e cirúrgica de Foucault seja ainda hoje extremamente pertinente, justamente em um momento histórico em que, segundo Paula Sibilia, a confissão teria se tornado midiática,12 seria bom suspeitar das capacidades revelatórias da confissão para produzir e extrair verdades inquestionáveis. O próprio Foucault, aliás, admite discretamente: “(...) o essencial sempre nos escapa e ainda é preciso, mais uma vez, partir à sua procura”. Escapando às “tiranias da intimidade” tão caras a nossa época de que fala Sennett, enquanto Santiago, o filme, recusa a intimidade de Santiago, o personagem, Jogo de cena ultrapassa o próprio sentido do que seria a esfera do íntimo, do singular e do intransferível. Pois, duplicando-se, desdobrando-se e transferindo-se de um corpo para o outro, como se 12 “Hoje essa técnica [a confissão] tão eficaz brilha com novas roupagens nas telas eletrônicas da internet e da televisão, bem como nas páginas coloridas das revistas e dos jornais. Assim, no século XXI, a confissão se torna midiática.”

163

os corpos fossem veículos de uma comunicação contagiosa, as múltiplas vozes femininas de Jogo de cena passam a habitar singularmente cada gesto, cada entonação, cada rosto, tal como espécies da grega Helena, “uma e toda mulher”, para Barbara Cassin. Dessa forma, as memórias das personagens de Coutinho, assim como as memórias de Santiago, o personagem-outramento de Salles, através do qual o cineasta traça uma espécie particular de “alterbiografia”, aparecem como aquilo que acessa, por meio de depoimentos confessionais, potências não-individuais, nãopsicológicas. Na esteira do que tanto pleiteava Gilles Deleuze, Jogo de cena levaria a vida “a uma potência não pessoal”, como quem se lança à aventura de perder seu rosto (o rosto do filme, os rostos das personagens). Longe de estarem comprometidas com os regimes de verdade estabelecidos pelas modernas e disciplinares técnicas hermenêuticas de produção subjetiva, as práticas confessionais presentes em Santiago e Jogo de cena estariam, sobretudo, vinculadas à invenção e atualização de memórias, em uma espécie de resgate do sentido etimológico e inaugural da aletheia grega: verdade como desocultamento, verdade como negação do esquecimento. A memória, em Santiago e em Jogo de cena, é desmesurada, aquém e além do indivíduo: em Santiago é a potência que se abre para o mundo; em Jogo de cena é maneira de multiplicar, e contaminar pela indiscernibilidade, os sujeitos da enunciação. Contudo, se a recusa é o modo pelo qual a “confissão” de Santiago, o personagem, é inviabilizada por Santiago, o filme (por meio não apenas do “não!” proferido por João Salles, mas também do preto que encobre sua imagem, já que o diretor não ligou a câmera), cabe salientar que não se trata de, simplesmente, valorizar a interdição da confissão, como se dá no caso de Santiago. A recusa à confissão, compreendendo a confissão como prática de inscrição dos sujeitos em um dispositivo de poder comprometido com a produção de discursos verídicos, pode se dar, justamente, a partir da estratégia oposta àquela da interdição. Em Jogo de cena, como vimos, tal recusa é um efeito da proliferação discursiva e do compartilhar biográfico

164

entre as personagens de Coutinho, em uma explicitação do caráter coletivo e social de toda enunciação proclamado por Deleuze. Nesse caminho, não seria um despropósito estabelecermos um breve diálogo como a obra de Carlos Nader, especialmente o filme Pan-cinema permanente (2008), sobre e com o exuberante personagem e poeta Waly Salomão. Investindo nas performances mediadas e nas “autoficções” de Waly Salomão, Pan-cinema permanente explora a radical opacidade que se instala entre o poeta, a câmera e o mundo, ao mesmo tempo em que parte de uma busca, quase romântica, pela verdade da imagem, uma imagem que teria de ser não-performática – busca que, desde o início, se revelará fracassada. Nessa “exitosa busca sem sucesso” (na expressão de leber Eduardo), reflexiva e afetiva, todo o filme é estruturado por uma espécie de fagocitação libinal entre as imagens: telas dentro de telas, campainhas de teatro, telas pretas, inscrições de palavras nas imagens, performances para a câmera. Assim, a partir de um “antidiscurso da transparência”, como proclama o próprio Waly Salomão, tanto o filme quanto seu personagem retomam o regime do artifício, caro ao paradigma do homem como ator do século XVII, e, por meio da teatralização barroca, dão início à desnaturalização – e ao estranhamento – do mundo. Se Pan-cinema permanente dá conta de Waly Salomão na medida em que não o alcança, é porque, segundo um poema declamado pelo próprio Waly, “entre o meu ser e o ser alheio / a linha de fronteira se rompeu”. Nesse processo abissal de simultânea indeterminação e ruptura, não há confissão possível, pois os olhos de Waly, ao contrário da crença cristã que os remeteriam à “janela da alma”, são, como diria João Guimarães Rosa, “a porta do abismo”. Na contramão, portanto, da secularização e, mais recentemente, da midiatização das práticas confessionais, é notável como em Santiago, em Jogo de cena e em Pan-cinema permanente as dimensões confessionais e biográficas escapam, com intensidade, dos limites privados, pessoais e individuais da existência humana para ganharem o mundo, para se torna-

165

rem, por meio da linguagem e de sua potência fabuladora, “enunciações sem propriedade”, como escrevera Cezar Migliorin em seu blog, à época do lançamento do filme de Eduardo Coutinho, em 2007. Nos três filmes em questão, a linguagem verbal performativa e fabular é justamente aquilo que singulariza o sujeito ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, ultrapassa a dimensão pessoal e privada de sua singularidade. Se, como dizia Foucault, “confessa-se em público e em particular; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; fazemse a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de se confiar a outrem, com o que se produzem livros” (e tantos filmes, poderíamos acrescentar), essa dimensão confessional presente em Santiago, em Jogo de cena e, em alguma medida, em Pan-cinema permanente é, portanto, de outra ordem. No entanto, cabe esclarecer que o personagem Waly Salomão em Pan-cinema permanente, ao adotar o regime das máscaras e do artifício, caro ao barroco, se esquiva, desde o princípio, desse lugar de uma intimidade burguesa a ser revelada. Ou seja, Pan-cinema permanente nem chegaria a ser propriamente confessional, pois nem mesmo se inscreveria nessa cultura modernamente confessanda. A recusa de Pan-cinema permanente não passa, portanto, por uma contraposição no seio das usuais práticas confessionais – como se dá no vídeo Carlos Nader (1998), em que o próprio Nader promete confessar para a câmera um segredo cujo som será abafado no momento mesmo da confissão –, mas pela tomada de um caminho adjacente e, por isso mesmo, não menos interessante. Fazendo assim essa passagem do singular ao coletivo, do privado ao político, da realidade à fabulação e da memória à atualização, por meio de gestos e métodos reflexivos, Santiago, Jogo de cena e Pan-cinema permanente estão a serviço do colocar em cena corpos que não se reduzem a invólucros de identidades, mas à intensidade de conexões, diferenças e relações. Se, como diria Comolli ao tratar da “ficção documentária”, “filmar é filmar relações, inclusive as que faltam”, é porque a diferença, a separação e o corte no cinema são a condição mesma de todo enlace.

166

Nessa experiência fílmica partilhada, os gestos de Santiago, o solitário e povoado personagem de Salles, os rostos das narradoras de Coutinho, essas “hospedeiras da fala” na análise de Jean-Claude Bernardet, e a eloquência mascarada de Waly Salomão parecem não suportar mais a desmesura de um mundo que os atravessam pelo excesso e os destituem pela ausência. Daí a necessidade do cinema; daí a condição excessiva, mas simultaneamente incompleta e esquiva, do documentário. Na busca pelas imagens, pelas palavras e pela composição precisa, que não deixa, porém, de dar atenção aos resíduos, aos restos, às hesitações e aos gestos abandonados, aqueles que normalmente são relegados ao esquecimento de um copião ou de um rascunho rasurado, o ensaio fílmico, bem como o texto ensaístico, “termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta dizer” (Adorno). Incompleto, inadequado e, no limite, impossível, o ensaio não pode acessar “a verdade” e o “real” das coisas, das gentes e do mundo. Ao ensaio, sempre errático e errante, entre a melancolia e a ironia, só é dada a possibilidade de começar pelo “erro”,13 pois sempre parte e sempre chega a uma negatividade fundadora. Em Santiago, a primeira palavra que ouvimos do documentarista João Salles, e não do narrador do filme, é um inequívoco “não!”: uma recusa a um primeiro pedido do ex-mordomo Santiago. Em Jogo de cena, a última imagem a que assistimos é a de uma cadeira vazia, sobre um palco igualmente vazio: lá onde somos apenas bons ou maus narradores. Já em Pan-cinema permanente, entre uma camada e outra, acompanhamos uma profusão de telas pretas, como espasmos de uma vida na iminência de abandonar o espetáculo. Tanto a recusa de Salles quanto a cadeira vazia de Coutinho e as telas pretas de Pan-cinema permanente sintetizam a negatividade inaugural de que parte o sujeito e a linguagem. Como está 13 Tal como ensina a “ensaísta” GH, de Clarice Lispector, para quem o erro é um de seus fatais modos de trabalho: “E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar (...), pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo.”

167

lá em Barthes, em seu belo ensaio sobre a fotografia de sua adorada mãe: morte, ausência ou não-ser como ser da imagem. * Seria confortável encerrar este texto de forma bonita. Aliás, a própria Clarice Lispector, tantas vezes citada e cuja obra contempla uma envergadura a um só tempo literária e filosófica, costumava dizer que achar bonito é um indireto modo de compreensão. No entanto, há que se desconfiar quando o conforto e o pensamento crítico se dão as mãos. Por isso, cabe uma suspeita final: talvez as pessoas que mais franqueiam e exponham publicamente suas intimidades, a verdade de seus corpos e de seus sexos (seja em reality shows, sites de relacionamento na internet, vídeos caseiros no Youtube ou outras “plataformas de sociabilidade”), talvez as pessoas que, portanto, mais se confessam, sejam as mais cientes – conscientes ou não – de que suas intimidades residem em outro lugar. Lá onde somos ainda irredutíveis, irredutivelmente opacos. Lá onde somos mais aquilo que em nós não-é.

168

169

Ensaios de uma imagem só1 André Brasil2

“Conhecimento, seja. Mas sempre tão recente que apenas se desprende do não-conhecimento.” (Duda Machado)

“Um barco é a bifurcação que o mar inventa.”3 Nascido do encontro entre o mar e a embarcação, o ensaio é um texto que desliza. Os vários movimentos que o atravessam não nos permitem defini-lo enquanto gênero, sequer intergênero. Como nos sugere Adorno, o ensaio “não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito” e, por isso, ocupa um lugar entre os despropósitos. Mas podemos, sim, nos arriscar em uma cartografia precária, menos acerca de um gênero literário-filosófico e mais em torno de um modo ou uma modulação do pensamento. Em primeiro lugar, a deriva, movimento próprio de um pensamento que nos arremessa para longe de toda certeza: “Cuidávamos estar perto do porto e encontramo-nos lançados em pleno mar alto”, escreve Deleuze. A deriva – ou a errância, como diria Blanchot – implica uma procura de espécie particular, paradoxal, na medida em que sempre se encontrará algo distinto daquilo que se busca. O encontro, nesse sentido, não se esgota no objetivo que se cumpre, na meta que se atinge 1 Esta é uma versão atualizada de um artigo de mesmo título publicado na revista Devires, Belo Horizonte, v.3, nº 1, jan-dez., 2006. 2 Doutor pela UFRJ, André Brasil é professor da Graduação e Pós-Graduação em Comunicação na PUC-Minas. Coordena, nesta instituição, o Centro de Experimentação em Imagem e Som (Ceis). Colabora na Revista Cinética – Cinema e Crítica. 3 A frase de Luiza Neto Jorge abre, como epígrafe, o texto Do ensaio como pensamento experimental, de Silvina Rodrigues Lopes (2003).

170

ou no objeto que se esclarece. Encontrar significa, antes, voltear, circundar, rodear um centro móvel e apenas intuído. “Encontrar um canto é tornear o movimento melódico, fazê-lo girar” (Blanchot). Mais do que uma certeza acerca do mundo, o pensamento ensaístico nos leva a errar sobre o mundo. O ensaio se move “segundo um impulso de aventura, não sistemático: não apenas o conceito mas também a imagem, não apenas as diferenças mas as diferenciações, não o fixo, mas o que está em devir”, escreve Silvina Rodrigues Lopes. Da deriva e da errância é preciso extrair um segundo movimento: aquele que, no encontro entre o mar alto e a embarcação, produz aberturas, bifurcações e desvios, por onde se move o pensamento. Este não existe antes e só pode nascer do encontro entre o sujeito e o mundo, encontro imprevisível em suas derivações no texto. Se o barco é uma invenção do mar, o mar é uma reinvenção do barco e as bifurcações – o pensamento – são resultado dessa mútua determinação. Não há, assim, um pensamento que possa, de fora, em sua transcendência, explicar o mundo. Isso porque se, por um lado, não há um mundo que, em sua positividade, permita ser explicado, por outro lado, não há pensamento que, exterior ao mundo, possa vir explicá-lo, antes de ser por ele provocado. Esses movimentos de derivação e errância fazem do pensamento ensaístico algo arriscado: “pensamento que se ensaia” (Silvana Rodrigues), que se pensa no momento mesmo em que o discurso vai-se criando. Imerso na desmesura e na desproporção da experiência, “ele precisa se estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido”. Como discurso, o ensaio só pode ser dis-cursus, curso interrompido, sugerindo a ideia de “fragmento como coerência” (Blanchot). Se concordamos que o ensaio é uma escritura, uma tessitura de conceitos, reafirmamos também que, entre os textos conceituais, ele é o que com maior intensidade abriga, em seu interior, a experiência mundana. Ao carregar as palavras com o que para Silvana Rodrigues é “o peso do aqui-agora das sensações”, o ensaio é um daqueles discursos “através do

171

qual se abre a possibilidade de reconciliação do mundo consigo mesmo, com o seu infinito, com a natureza, que não é o outro da aparência, mas a força da aparição”. Trata-se, assim, de uma escritura heterogênea, que se compõe de conceitos, mas também de imagens, metáforas, vozes, sensações, impressões. Isso nos permite situar o ensaio entre o conceito e a experiência sensível e defini-lo então como um discurso intensamente estético. Em seu texto célebre, Adorno já notara como se insinua ali uma lógica musical, que devolve à linguagem falada algo que ela perdera sob o predomínio da lógica discursiva (Adorno). Pensamento que ainda não pensa4 Estes são ensaios de uma imagem só. E toda a dificuldade reside aí. Como perceber, nessa única imagem que dura na tela, o esboço de um pensamento? Que conceito pode uma só imagem engendrar? Se não é nosso intuito enquadrar as obras em uma pretensa categoria – o ensaio –, resta-nos apenas apreender, através delas, aqueles movimentos incertos que compõem este modo do pensamento: derivar, girar, ensaiar, errar, encontrar (o que já não se esperava). Filme de horror (2003), de Wagner Morales; Man.Road.River (2004), de Marcellvs L.; Herança (2007), de Tiago Rocha Pitta, e Flatland (2003), de Rafael Lain e Ângela Detanico, estas são experiências audiovisuais que não participam, imediata e confortavelmente, do domínio que costumamos chamar de ensaio fílmico. Cada qual à sua maneira, elas se situam em uma zona de indiscernibilidade entre o documentário e o vídeo experimental, entre o cinema, as artes plásticas e a produção midiática, entre a matéria sensível e o gesto conceitual. E, ao se abrigarem neste intervalo, trata-se de ensaiar um espaço discursivo próprio, problemático. Vejamos, inicialmente, Filme de horror, de Wagner Morales: a câmera fixa nos oferece uma imagem banal, de aspecto caseiro: ao fundo, um lago. Em primeiro plano, uma mangueira sobre o chão de folhas secas. 4 A expressão é de Blanchot em O livro por vir.

172

No canto superior, a ponta de um galho de árvore que, vez ou outra, é movimentada pelo vento. Uma música, típica dos filmes de horror, pontua os movimentos mínimos, quase imperceptíveis, que raramente abalam a estabilidade da cena: o tremular da água, uma folha que cai, o ramo, entre se mover e permanecer. O vídeo faz parte de uma série inspirada em gêneros tradicionais do cinema. Participam também desta série Ficção científica (2003), Cassino, filme de estrada (2003), Filme de guerra (2005) e Filme de foda (2007). Pequenos ensaios videográficos que, como sugere Phillippe Dubois, se propõem a pensar o que o cinema criou, em uma pesquisa sistemática em torno das relações entre som e imagem (com especial atenção ao primeiro elemento), que resulta em diferentes formas narrativas. “Cada vídeo”, escreve Carla Zaccagnini em seu estudo sobre o autor, “se encarrega de pôr à prova uma possibilidade, uma de cada vez, de testar uma combinação de poucos elementos, enfocando um ou outro modo de fazer um filme, sempre usando o mínimo necessário para que esteja completo.” Em Filme de horror, o mesmo gesto minimalista: por meio da música, típica dos filmes desse gênero, Morales nos permite identificar ali, em uma imagem quase displicente, a configuração de um gênero. Ao citar, sob uma imagem qualquer, a trilha característica desse gênero, esta se torna, rapidamente, uma imagem em suspense. Mas se a estratégia da paráfrase – a tradução pela via do reconhecimento parcial – logo salta aos olhos, um outro tipo de pensamento, menos explícito e mais oblíquo, se esboça. Ele deriva da duração do plano (5’30”). Nesse tempo distendido, nada, ou quase nada, acontece. E se quase nada acontece à imagem, é no pensamento que tudo se passa. Antes, porém, nos atentemos para este quase, que já se tornou muito. Quando estamos na duração do plano, o mínimo acontecimento, que pontua a serenidade da cena, ganha a dimensão de um evento, ao mesmo tempo sutil e intenso. Verdadeiro acidente que, em sua imprevisibilidade, atravessa a paisagem. Pontuada de pequenos estremecimentos, desloca-

173

mentos mínimos mas intensos, a imagem se abre a um pensamento leve, que se deixa apenas entrever: pensamento prestes a se formar e logo já desfeito. Aqui, repetimos, a duração é fundamental, na medida em que é ela que nos permite uma experiência não apenas visual, mas mental: derivado desta experiência, um conceito se descola, sem, no entanto, dela se desprender totalmente; uma abstração leve, mescla entre o visível, o sonoro, o sensível e o conceitual. Se, por meio da trilha sonora característica, o vídeo nos leva ao suspense, à expectativa de que algo está por acontecer, o que acontece – como no encontro próprio do texto ensaístico – não é o que se espera. Ou melhor, o que se espera não vem. Para além destes acidentes mínimos – uma folha que cai, um galho que é movido pelo vento, uma mangueira que estoura, nada acontece. E se este quase nada já nos parece muito é porque o que os eventos revelam é aquilo que há de inesperado em toda esperança (Blanchot). O pensamento se confunde com essa paisagem aparentemente calma e, vez ou outra, estremece, despenca, estoura, vaza. Em Man.Road.River, de Marcellvs L., um homem caminha. Passo firme, ao longe. Aproxima-se, enquanto a câmera, fixa, o acompanha. Um alagamento forma uma espécie de rio, que cruza a rua por onde ele anda. O zoom digital da câmera torna a cena rarefeita, dissolvendo a profundidade de campo. Naturalmente, sem qualquer hesitação, o homem começa a atravessar o rio, afundando devagar, até cobrir quase todo o corpo. Ele sai da água, continua a caminhar pela rua e passa pela câmera, sem tomar conhecimento dela. O vídeo termina quando ele sai de cena. Sem trilha sonora, sem créditos, a não ser o título. Entre uma e outra tela preta, algo atravessa o quadro, passa e continua para além dele. Esse “algo” – a vida (alheia, ordinária, indeterminada) – escapa por todos os lados da imagem. Assim são os videorizomas, como Marcellvs chama sua série de obras em vídeo: segmentos de imagem, mundos interrompidos, dis-cursos.

174

Nenhuma imagem nos parece, agora, tão exemplar deste movimento de que nos fala Blanchot em A conversa infinita: - Ver também é um movimento. - Ver supõe apenas uma separação compassada e mensurável; ver é sempre ver à distância, mas deixando a distância devolver-nos aquilo que ela nos tira. (...) - Ver é perceber imediatamente longe. O jogo entre imediaticidade e distância impõe ao espectador um lugar difícil: se ver é perceber imediatamente longe, a imagem nos separa daquilo que vemos, para, em um mesmo movimento, nos devolver o que havia nos tirado. Por meio de um zoom lento, a duração vai-nos trazendo a figura esboçada de um homem. Eis que, logo depois, ela nos rouba novamente sua presença: já bastante próximo da câmera, de nós – quando estamos prestes a perceber o seu rosto – ele passa. Alheio, se perde fora do quadro e se distancia novamente para além de nossa capacidade de reconhecimento. A relação entre distância e presença se faz ainda mais ambígua em man.road.river, na medida em que, dissociados som e imagem, a localização da câmera torna-se difícil. Como observa Cezar Migliorin, enquanto ouvimos o som direto captado pela câmera, a cena do homem se aproximando ao longe permanece silenciosa, o que provoca uma experiência oscilante: não temos clareza sobre onde está a câmera e onde nos situamos frente à imagem. Para produzir suas imagens, Marcellvs parece se situar ali, em uma zona ambígua, misto de atenção, crença e desprendimento. A contingência da captura destes eventos é fundamental na produção dos vídeos. Essa espécie de “atenção desatenta” é o que permite o encontro – o afeto – entre o olho e o mundo: encontro distendido pelo tempo, mediado pela câmera, transfigurado pela edição digital (parcimoniosa aqui).

175

Não há, contudo, a ilusão de que basta olhar o mundo para que ele se revele aos nossos olhos: objetivo e transparente. Nada é puro, natural. Apesar de seu aparente naturalismo, estas são paisagens eletrônicas, acontecimentos mediados, mundos que só podem emergir entre: o evento e sua dissolução em pixels. A paisagem eletrônica, que se produz entre o artifício e a natureza, é ainda uma paisagem temporal. Nela, a duração possui uma dimensão estética, mas também política. No caso da obra de Marcellvs, é a duração que nos permite entrever no mundano, no banal, no ordinário, sua potência inaudita. E se o acontecimento é raro – ao contrário do que nos querem fazer crer os telejornais – é porque ele precisa da duração, em sua multiplicidade de tempos desordenados, para acontecer. Em sua estranha banalidade, esses eventos só ganham visibilidade porque a imagem dura, daí o seu caráter excessivo. Há, em man.road.river, uma intrigante confluência entre a espera do artista, a precisão na captura das imagens e a aleatoriedade do que acontece. O evento é justamente o que transborda o cálculo do artista, a expectativa do espectador. Ele é tão excessivo quanto raro, sua apreensão é tão fortuita quanto difícil. O tempo no qual está imerso é, em certo sentido, um tempo suspenso, tempo extraído do fluxo do tempo. Mas ele é também um segmento que dura e que, em sua duração, preserva o excessivo do evento, sua heterogênea singularidade. O pensamento que deriva dessa imagem, que dura em sua eventualidade, é um pensamento precário, indissociável do acontecimento: se desenvolve enquanto acontece, enquanto dura. A imagem será cortada, mas, antes e depois do corte, o pensamento vinha e agora continua, atravessa. Há também um transbordamento em Herança, filme de Thiago Rocha Pitta: um barco está abandonado em alto mar com duas pequenas árvores plantadas em seu interior. A câmera acompanha sua deriva em um instável plano-sequência de 11 minutos. Na verdade, o que deriva

176

não é um barco, mas uma obra: alguém esteve ali, plantou as árvores na embarcação e saiu de cena, deixando apenas os vestígios (as forças e os desdobramentos) de sua intervenção. A duração da imagem nos permite testemunhar lentamente este estranho abandono. À medida que o vídeo se desenvolve, pouco a pouco, a câmera se afasta, e, com isso, vai-se distanciando também o gesto do artista em embate com a natureza. Até que, a partir de certo momento, vez ou outra, o barco some, tomado pelo movimento das ondas, e, brevemente, vemos apenas as árvores plantadas em alto mar. Como se, por meio do artifício do artista, acabássemos por reencontrar uma natureza inaudita. Em alguns aspectos, os filmes de Rocha Pitta – podemos citar ainda Homenagem a JMW Turner (2002) e Fonte dupla ou Paisagem cozida (2005) – guardam semelhanças com os videorizomas de Marcellvs L. Em todos estes trabalhos, a duração é o que permite a experiência do tempo (e da paisagem) em sua heterogeneidade. Neles, também se percebe o embate entre filme e natureza, entre o enquadramento e o que o excede. Percebe-se ainda o caráter contingencial das imagens, em uma economia que privilegia o momento da captação, em detrimento da pós-produção. Por fim, diríamos que há em comum entre eles a recusa à explicação, em imagens que se apresentam em sua “força de aparição”. Mas se nos videorizomas o embate entre imagem e natureza se dá por meio de uma espera, ou melhor, de uma atenção desatenta, nos filmes de Rocha Pitta os eventos são provocados pelo artista. O que a imagem capta será então o naufrágio do artifício no ambiente natural, o gesto irônico do artista que intervém para depois, novamente, ser tomado pela passiva grandiosidade do mar. Apesar de seu caráter explícito de artifício, essa intervenção física, material, no domínio da natureza, não resulta em imagens calculadas, mas em descontrole, transbordamento, excesso. Bem diferente é a estratégia de Rafael Lain e Ângela Detanico em Flatland. Nesse vídeo digital, o embate com a natureza também é pre-

177

sente. O trabalho foi realizado em uma viagem da dupla ao delta do Rio Mekong, no Vietnã, região chamada pelos habitantes como Terra Plana. Depois de realizarem um travelling pelo rio, ao longo de um dia, os artistas selecionaram oito frames extraídos de diferentes horários. As colunas de pixels de cada um desses quadros foram distendidas e reeditadas, o que torna a experiência de descida calma pelo rio algo aparentemente veloz. A paisagem horizontal parece ter-se rarefeito, achatada pela velocidade. O fluxo de linhas que varrem a tela em Flatland torna essa uma experiência aparentemente oposta àquela dos filmes de Marcellvs L. e de Rocha Pitta: de um lado, estaria o plano que dura em seu tempo lento, aberto às nuances, aos detalhes, enfim, à espessura da experiência. De outro, o fluxo, em que nada acontece, tudo passa: a experiência impossibilitada pela velocidade. Mas, paradoxalmente, não é bem disso que se trata e a oposição torna-se logo enganosa. O que nos parece uma experiência de velocidade é, na verdade, pura desaceleração: travelling imobilizado, tornado sucessão de quadros fixos – frames tratados no programa de computador. O que se tem, nesse caso, é a invenção, a simulação de um tempo paradoxal, tempo distendido, suspenso, entre a mobilidade e a imobilidade. Em Flatland, o áudio garante certa indicialidade às imagens. Apesar de toda abstração, a trilha sonora preserva densidade à experiência: sons ambientes, trechos de músicas e falas captadas de uma rádio local. Indícios, ainda que dispersos e fragmentários, de uma experiência. Essa indicialidade do áudio se articula a outros recursos de linguagem, como, por exemplo, a variação da luminosidade das linhas que compõem a imagem. Elas mostram o sol se pondo nas linhas de varredura. Ora, nos diriam os artistas, a experiência de percorrer o delta ao longo de um dia, por mais lenta que seja, acaba por se assemelhar à experiência da velocidade. Não sem certa monotonia, a paisagem desliza plana, vai perdendo suas nuances e particularidades, diante de um olhar que se abstrai. Resta a luminosidade, que transforma a paisagem ao longo

178

do dia e que se traduz, indicialmente no vídeo, por linhas de diferentes tonalidades. Imagem-fluxo, dados que deslizam pela tela e que encarnam emblematicamente aquilo que, para Deleuze, caracteriza um novo regime do visível. “A tela não é mais uma porta-janela (por trás da qual...), nem um quadro-plano (no qual...), mas uma mesa de informação sobre a qual deslizam as imagens como ‘dados’”. Por meio de suas linhas luminosas, Flatland aponta para a possibilidade de se reencontrar a paisagem no universo liso do cálculo. Trata-se de uma experiência abstrata, mas atravessada de indicialidades, o que nos permitiria, não sem problemas, situar o vídeo de Lain e Angela no domínio do documentário (para Giselle Beiguelman, um “documentário líquido”).5 Situado entre mobilidade e imobilidade, entre duração e velocidade, entre a rarefação da paisagem e a indicialidade das tonalidades e dos ruídos, Flatland aproxima a experiência conceitual da experiência sensível, fazendo da lisura da imagem digital, novamente, quem sabe, um espaço estriado. Se estes são “ensaios”, não é porque propõem um argumento, por mais oblíquo que esse argumento possa ser. Quase imperceptível, o acontecimento atravessa a imagem e, sutilmente transfigurado pelos artistas, provoca o movimento do pensamento. Precário, instável, quase por se fazer e logo já desfeito, este é um pensamento estético, “um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional”, nos termos de Ranciére. Pensamento branco A imagem branca, estourada, torna essa uma paisagem indecisa. Em primeiro plano, se esboça a figura de um homem que, muito lentamente, entra no quadro e ali permanece por um longo tempo. Aos 5 Uma abordagem nesse sentido se encontra em Chantal Pontbriand, “Éclats du documentaire”.

179

poucos, percebemos que ele pesca. Entre uma e outra tentativa, contudo, apenas os movimentos do corpo, que se repetem. Se em Man.Road.River a câmera é fixa, precisa, neste outro vídeo de Marcellvs – Man.Canoe. Ocean (2005) – a precisão não se sustenta, desequilibrada pelo balanço da embarcação ao longe. Um homem insiste em pescar, mas o que consegue é pouco, quase nada. Se há uma urgência para o pensamento ensaístico é a de nos levar para o mar alto, nos retirando, momentaneamente, o chão de nossas certezas. Mas, em via inversa, é ele que nos permite criar, inventar novamente os caminhos que nos trazem de volta à terra (nunca a mesma, sempre outra terra). As imagens são parte dessa experiência que nos leva do acontecimento à sua rarefação e, de novo, à possibilidade do acontecimento. Em O Amante da China do Norte, de Marguerite Duras, o barco deixa o Rio Mekong em direção ao mar. A criança observa um rapaz com sua câmera fotográfica a tiracolo: “Fotografava as pontes. Pendurava-se para fora da amurada e fotografava também a proa do navio. Depois fotografava apenas o mar. Depois mais nada”.

180

181

Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo César Guimarães

1 No final da década de 1970, Raul Garcez dedica um ensaio fotográfico ao Conjunto Habitacional Várzea do Carmo, em São Paulo, projeto de moradia popular de traçado funcional e moderno, construído pelo IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários) e destinado à baixa classe média. De outubro de 1979 a abril de 1980, o fotógrafo visita semanalmente o conjunto, e a cada vez as imagens trazem um microcosmo silencioso, no qual nada (ou pouco) se passa: nada de extraordinário ou típico. Com seu tempo espesso, os espaços habitados revelam os traços da presença humana que lhes concede uma história miúda e compartilhada, irrigada por práticas e gestos que se perderiam no deslizar anônimo nos dias, se não fosse esta outra presença: a do fotógrafo com sua máquina. Cioso de que não se trata nem de capturar algo nem de invadir um espaço (ambas operações guerreiras), ora ele se posta na soleira dos cômodos, ora adentra suavemente um recinto onde uma mulher descansa, ou a sala na qual uma criança faz o dever de casa. A serenidade e, mais do que isso, certa suspensão de sentido, habitam as imagens e lhes conferem aquele “movimento imóvel” que constitui o cotidiano, no dizer de Maurice Blanchot: o ordinário de cada dia não o é por contraste com algum extraordinário; não é o “momento nulo” que esperaria o “momento maravilhoso” para que este lhe dê um sentido

182

ou o suprima ou o suspenda. O próprio do cotidiano é designar-nos uma região, ou um nível de fala, em que a determinação do verdadeiro e do falso, como a oposição do sim e do não, não se aplica, estando sempre aquém daquilo que o afirma e não obstante reconstituindo-se sem cessar para além de tudo aquilo que nega.1

Essas imagens de quase trinta anos atrás, que mostram, com discrição e reserva, momentos da vida cotidiana de um conjunto habitacional popular, contrastam surpreendentemente com as imagens atuais que temos de outros conjuntos habitacionais similares a este fotografado por Garcez. Para lembrar de uma região marcada pela pobreza e pela violência, poderíamos mencionar aquele conjunto habitacional que esteve na origem da favela Cidade de Deus. No filme homônimo dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o conjunto aparece em cores que evocam um passado ameno, na década de 1960, quando os futuros e bárbaros traficantes formavam apenas um grupo de pequenos delinqüentes, ainda unidos pela camaradagem. Podemos montar – para fins heurísticos – essas imagens e os distintos tempos e lugares sociais aí inscritos. Tal como surgem representados, seja pelos jornais (impressos e televisivos), seja pelos filmes de ficção e documentários, os espaços que hoje abrigam as formas de vida populares têm dado a ver, predominantemente, a violência espetacularizada e as condições dificílimas nas quais os moradores desenvolvem suas táticas de sobrevivência, sem falar dos acontecimentos trágicos a que sucumbem tantas vezes. Muito distante daquele ambiente fotografado por Garcez, um número significativo de filmes produzidos nas duas últimas décadas figurou esse outro de classe sob o duplo selo da criminalização e do miserabilismo (segundo a denominação de Fernão Pessoa Ramos).2  1 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2. São Paulo: Escuta, 2007, p. 240-241. 2 O autor destaca, dentre outros, filmes como Notícias de uma guerra particular (1999), de João

183

Os espaços privados, que na distribuição de seus objetos, até então guardavam experiências e práticas compartilhadas (uma história, uma relação com o lugar e com o tempo ali vivido), tal como apanhados pelo olhar contemplativo do fotógrafo, são agora substituídos pela superexposição do tecido social em frangalhos, como se as marcas do viver em comum só atestassem o limite da sua dissolução. Todo abrigo da vida cotidiana surge ameaçado, de um lado, pelo crime e pela violência, e de outro, pela miséria (tão pronunciada que parece roubar dos sujeitos qualquer relação de afeto e de temporalidade com o lugar habitado). Ali onde os sujeitos existem e resistem, os lugares parecem testemunhar somente o dano que recai sobre suas vidas, causado pelas desigualdades duradouras da vida social. Para Fernão Ramos, em documentários como Notícias de uma guerra particular, Ônibus 174 e Falcão: meninos do tráfico, as imagens e falas que traduzem o universo popular, exibidas sob a forma do choque (inscrito materialmente na intensidade da tomada), são oferecidas a um público de classe média que “teme, treme e se apieda com o horror”3  ao qual é exposto. Sem deixar de reconhecer o predomínio desta face terrível do popular em tantos filmes recentes, parece-nos, no entanto, que uma abordagem como esta concebe a representação do outro de classe como um jogo excessivamente polarizado, no qual o realizador exerce quase sempre uma força desigual e preponderante sobre o sujeito filmado (ainda que este não apareça como vítima). Essa desmedida na intervenção do cineasta revela a disparidade da relação com aquele a quem filma, e acabará por acarretar a má-consciência que se traduzirá – à maneira de um recalque – sob a forma do horror. Podemos, entretanto, conceber a representação como um campo de forças cuja gênese é anterior à circunstância da tomada, e na qual se inscreve, irreparavelmente, aquele dano infligido à “parcela dos Moreira Salles e Kátia Lund; O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna; Ônibus 174 (2002), de José Padilha; O prisioneiro da grade de ferro: auto-retratos (2003), de Paulo Sacramento; À margem da imagem (2003) e À margem do concreto (2006), ambos de Evaldo Mocarzel; Falcão: meninos do tráfico (2006), de MV Bill e Celso Athayde. 3 RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008, p. 211.

184

que não tem parcela” (segundo a expressão de Jacques Rancière). Por mais “inclusiva” que essa representação queira ser, sempre sobrará, fora dessa conta, a parcela não-incluída. A conta das partes do todo da comunidade restará sempre mal-feita. É por um outro viés, portanto, que gostaríamos de abordar a questão da representação do “popular” (que não é senão – como explicaremos mais adiante – apenas uma das diversas figurações que tomou o homem ordinário no documentário brasileiro recente). 2 Reduzido à situação de objeto, o outro de classe pode receber várias designações, mas todas recobrem uma identidade forjada em um processo conflituoso, que pode ter lugar tanto em uma arena, feita para o confronto aberto, quanto em uma negociação mais ou menos desarmada. Relembremos a cena fundamental que constitui a política. Seja qual for o termo utilizado para designar o outro de classe (“população de baixa renda”, “favelado”, “pobre”, “marginalizado”, “excluído”), ele indicará sempre o pertencimento desse sujeito à “parcela dos sem parcela” – os que só tem a qualidade de nada terem de próprio (enquanto a oligarquia detém a riqueza e os aristocratas a virtude), e que um dia recebeu o nome de demos na Grécia antiga.4  O povo, essa massa de homens sem qualidade, sem título algum, que só tem a liberdade como coisa própria, ao ser reconhecido como portador da mesma liberdade desfrutada pelos que possuem títulos, passa a ostentar uma “propriedade imprópria”. É por isso que a existência desses não-contados na “conta malfeita nas partes do todo” da pólis é motivo de um litígio fundamental, como afirma Rancière: A massa dos homens sem propriedades identifica-se à comunidade em nome do dano que não cessam de lhe causar aqueles cuja qualidade ou propriedade têm por efeito natural relança-la na inexistência daqueles 4 Para Rancière, a política se institui no momento em que a “a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem parcela”. O desentendimento, p. 26.

185

não tomam “parte em nada”. É em nome do dano que lhes é causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade. Quem não tem parcela – os pobres da Antigüidade, o terceiro estado ou o proletariado moderno – não pode mesmo ter outra parcela a não ser nada ou tudo.5 Trazendo a perspectiva de Rancière para a discussão do que está em jogo nas imagens documentais, enfatizemos o quanto as questões envolvidas na representação do outro de classe não podem se desvencilhar deste dano irreparável, instituidor da comunidade política. Se para Fernão Ramos um dos problemas mais incômodos no âmbito do documentário brasileiro recente é a “má consciência” do realizador (pertencente à classe dos que têm títulos) ao filmar os que pertencem à classe dos não-contados, julgamos que tal dificuldade só pode ser enfrentada se a relação entre quem filma e quem é filmado alcançar, simultaneamente, um processo de subjetivação e um ato de individuação. Como afirma Rancière, um processo de subjetivação só pode ocorrer se surge uma tomada de palavra na qual o sujeito se arranca do lugar dos não-contados, de todos aqueles que só tem a phoné, e passa a participar do sensível sob uma outra modalidade: a do logos.6   Resta identificar, contudo, os recursos expressivos de que o documentário dispõe para dar conta de um processo que tanto o atravessa quanto o ultrapassa. No campo dos estudos sobre o documentário brasileiro, JeanClaude Bernadet traçou, admiravelmente, o percurso da evolução da representação do outro de classe, no período que vai de 1960 a 1980. Nesse arco de vinte anos, o outro filmado deslocou-se da condição de objeto de um saber exterior à sua experiência, encarregado de ditar-lhe 5 RANCIÈRE. O desentendimento, p. 24. 6 Como indica Rancière, é no Livro I da Política de Aristóteles que se encontra a divisão entre duas espécies de animais e duas modalidades de participação no sensível: a voz (phoné), compartilhada pelos animais, indica a dor e o prazer. Mas o homem é o único animal que detém a palavra (logos), que permite manifestar o útil e o nocivo e, conseqüentemente, o justo e o injusto. Cf. RANCIÈRE. p. 17.

186

a sua verdade, para assumir-se como sujeito do discurso, dono de uma auto-mis en scène que lhe permite dramatizar a singularidade da sua relação com o mundo, agora irredutível às explicações generalizantes. No entanto, essa mudança de foco que põe o acento no ponto de vista singular do sujeito filmado – cuidadosa em não fazer do discurso do filme o agente de uma segunda expropriação – não eliminou as tensões constitutivas da relação entre o cineasta e aqueles a quem ele filma, modulada por graus diversos de alteridade e sustentada por uma gama de diferenças (de classe, de gênero, étnicas, culturais). Mencionemos, a esse respeito, uma obra ficcional que traduz, com rara agudeza, essa disparidade irredutível e constitutiva que atravessa o processo de representação do outro de classe. Em 1977, Clarice Lispector publica A hora da estrela, texto cujo narrador, o escritor Rodrigo S.M., se debate no processo de criação de uma personagem, Macabéa, uma nordestina semelhante às “milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa”.7  Toda a dificuldade enfrentada pelo narrador reside no fato de que essa personagem não se presta a uma descrição realista, pois “vive num limbo impessoal”, ausente de si mesma, invisível para todos que a cercam, subterrânea, destituída de todo encanto. Com seu “corpo cariado”, ela “nunca tinha tido floração”, era como capim. Para o narrador – que toma para si o papel de válvula de escape da vida massacrante da média burguesia – a escrita que se defronta com essa alteridade irredutível é uma possibilidade de sair de si.8  Sabemos bem o quanto essa narrativa vai muito além da tematização do confronto de classes, e se sublinhamos esse aspecto é para estabelecer um contraponto entre o mundo de Macabéa, alagoana, datilógrafa, habitante do “pardo pedaço de vida imunda” (segundo a expressão do narrador) e o horror que um outro mundo, similar ao da nordestina, despertará, 7 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 14. 8 LISPECTOR. A hora da estrela, p. 30.

187

três décadas depois, nos cineastas e nos espectadores que se deparam com o “popular criminalizado” ou sufocado pela miséria (para retomar os termos empregados por Fernão Ramos). Sem menosprezar o quanto a violência e a pobreza impregnam a representação dos homens ordinários no documentário brasileiro recente, gostaríamos de esboçar um outro traçado teórico e analítico para nos avizinharmos das inúmeras e diversas “vidas sem qualidade”, mergulhadas nesse limbo impessoal para o qual são empurradas. E por isso mesmo, ainda que frágil, a visibilidade que alcançam não é destituída de interesse político e estético. Dito isso, tentemos identificar outras figuras da alteridade que não se reduzem a esta face exasperada da violência ou da miséria, sem desconhecer o quanto ela se infiltra nos modos de vida e na subjetividade dos que são filmados. Para tanto, será preciso percorrer o “pardo pedaço” da vida cotidiana, à procura de um outro rosto para as mulheres e os homens ordinários.9  3 Segundo Giorgio Agamben, todos os seres vivem no aberto, e é nele que resplende sua aparência. No entanto, diferentemente dos animais, o homem se apropria desta abertura e procura capturar a manifestação da sua aparência, dando-lhe um nome, uma face, uma semelhança. Se para o homem a aparência constitui um problema político e estético é porque ela torna-se a arena de uma luta pela verdade. Para o filósofo italiano, o rosto é o “estado da exposição irremediável do homem e, ao mesmo tempo, sua dissimulação justamente nessa abertura”.10  Destituído de algo próprio e de substância, o rosto é um fundo amorfo e passivo do qual emergem os traços de expressão que contrai. Sem esconder um 9 Permitimo-nos resumir aqui a argumentação apresentada no artigo publicado no v.7, n. 13 (jul./dez. 2006) da revista Alceu., escrito em parceria com Cristiane Lima. 10 AGAMBEN, Giorgio. Le visage. In:___. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Payot & Rivages, 2002, p.106

188

segredo nem ocultar a verdade, e longe de se reduzir a um simulacro, o rosto está mais próximo da simultaneidade das várias faces que o constituem – sem que nenhuma seja mais verdadeira do que as outras – do que da similitude adquirida em condições particulares. Comumente, quando é encarregado de suportar a identidade no campo das imagens, o rosto perde a oscilação que o constitui – a simultaneidade do aparecer e do dissimular – e ganha a rigidez de um caráter próprio, fixado pelos predicados que o delimitam. Ao personalizar e particularizar um sujeito, a imagem corre o risco de expropriá-lo do que ele tem de especial, que é o oposto exato de uma marca absolutamente particular. Ao contrário: especial é exatamente o ser que não tem substância, cuja essência coincide com seu dar-se a ver (seu aparecer), com sua espécie, enfim. Agamben nota que o termo species – aparência, aspecto, visão – liga-se a uma raiz da qual derivam outros termos, tais como espelho, espectro, espécie e espetáculo. Se a espécie de cada coisa é a sua visibilidade, o ser especial é aquele “que coincide com seu fazer-se visível”, mas de tal modo que esse seu aparecer em imagem deve ser entendido tal como os filósofos medievais faziam quando se perguntavam pelo ser e o não-ser das imagens especulares. Para eles, a imagem, destituída de essência, sem existir por si mesma, é um acidente que surge em um sujeito, e não algo que lhe pertence. Desprovida de realidade contínua, ela é engendrada pela presença e pelo movimento de quem a contempla. Não determinável sob a categoria de quantidade, ela é uma espécie de coisa. Eis então a dualidade fundamental que define o termo espécie quando aplicado à imagem: “Ela é o que se oferece e se comunica pelo olhar, o que faz visível, e ao mesmo tempo – o que pode – e deve a todo custo – ser fixado em uma substância e em uma diferença específica para constituir uma identidade”.11  Se o aparecer da identidade configura-se atualmente como um problema simultaneamente político e estético é porque está em jogo, 11 AGAMBEN, Giorgio.El ser especial. In:___. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005, p. 75.

189

tanto do lado dos discursos midiáticos quanto do filme documentário, uma incessante redução do especial ao pessoal e deste ao substancial. A espécie é transformada em princípio de identidade e de classificação, fazendo-se com que as linhas de significação e de subjetivação que desenham o rosto – para os lembrar os termos de Deleuze e Guattari – ganhem um traçado por demais marcado e linear.12  Uma manifestação particular desta operação redutora é hoje compartilhada – não sem ambigüidade – pela mídia e pelos filmes documentários: talvez, como nunca antes, os homens ordinários alcançaram tamanha exposição e visibilidade, a ponto de acreditarmos que adentramos, de vez, na “era dos homens sem qualidades”. Contudo, é preciso não confundi-los com a figura do qualquer um, homem comum ou genérico, mediano, mergulhado no cotidiano – anódino ou atroz – ou ainda, sob a figura um tanto vaga dos representantes das “classes populares”, embora destas seja sempre pinçado, por seu caráter exemplar, um ou outro rosto tingido de cores particulares, ou então um depoimento, queixa, denúncia ou protesto. Como bem sublinhou Jean-Louis Comolli, estamos diante de uma questão que é tanto política quanto estética: “Como passar do indivíduo à massa? Questão política. Como passar da coletividade ao sujeito? Questão cinematográfica. Os dois movimentos – para o único, para o múltiplo – se cruzam e descruzam, oscilação sem fim”.13 4 A visibilidade que o documentário pode proporcionar ao homem ordinário deve ser avaliada, portanto, em função da maneira com que seus recursos expressivos traduzem, no domínio das formas, um proble12 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Ano zero: rostidade. In:___Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, vol. 3, Ed. 43, 1996, p. 31-62. 13 COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: SEDLMAYER, Sabrina; GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org). O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 128.

190

ma político e estético, entrelaçado à nervura dos filmes: o da exposição do rosto. Essa exposição é hoje transformada em um objeto de disputa entre os midiacratas (os novos gestores da imagem) e todos aqueles que lutam para tornar visível a identidade – individual ou coletiva – de sujeitos marcados por processos sociais e econômicos de exclusão e de marginalização. Sabemos bem da importância que essa disputa por visibilidade adquire em um espaço público ampliado pela disseminação dos discursos midiáticos, mas gostaríamos de voltar nossa atenção para um outro espaço, menos iluminado e mais discreto: o cotidiano. As práticas cotidianas – afirma Michel de Certeau – produzem sem capitalizar, sem dominar o tempo, pois sua economia é a da dádiva.14 É preciso tão somente acolher essa indiferença da vida cotidiana, que não guarda segredo algum, que nada pode revelar, pois nada esconde. Ao percorrer aquelas imagens de Garcez mencionadas no início deste texto podemos perscrutar e índices de um modo de vida que alude ao universo “popular” – para utilizar o termo com que os especialistas (engenheiros, arquitetos, técnicos) designam esse seu outro. Trata-se, certamente, de um outro de classe, mas ele guarda uma reserva de alteridade que não se reduz meramente às marcas sociais. Seria preciso incluir aí um regime de afetos e de crenças, de condutas e de práticas, de universos imaginados, de falas criadas e esquecidas diariamente, sem registro; enfim, a expressão de um mundo possível, para retomar os termos de Deleuze em sua leitura de Michel Tournier. Em vez de falar da representação do outro, é melhor então falar de algo que a antecede e a condiciona: outrem como estrutura do campo perceptivo, e não apenas como objeto ou como um outro sujeito. Para Deleuze, outrem, tomado “a priori como estrutura absoluta” funda a relatividade dos outrem em diferentes campos perceptivos.15 A aparição de um outro, com traços particulares e individualizados, emerge, portanto, da estrutura outrem: ele é o desenvolvimento ou a 14 CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, p. 48. 15 DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o Mundo sem Outrem. p. 317.

191

realização do mundo possível correspondente. Esta maneira de conceber a teoria do conhecimento pode deslocar a maneira usual com que tratamos a representação do outro no domínio das imagens, comumente aprisionada no dualismo sujeito-objeto. Outrem (como estrutura) não é nem um objeto particular percebido em um campo perceptivo nem um sujeito que ocupa esse campo. De todo modo, ressalta Deleuze, “não é o eu, é outrem como estrutura que torna a percepção possível”.16 No que concerne às imagens de Garcez, ambientadas no conjunto habitacional Várzea do Carmo, seria pouco recolher os traços indicadores de uma classe social e remetê-los a uma época ou a uma situação; identificar os objetos e seu design, fazer da imagem um atestado do que desapareceu. Se os inúmeros detalhes contidos nessas imagens – nos móveis, nos utensílios, na decoração, na disposição dos espaços, nas roupas – podem, de algum modo, servir a uma datação (tudo aquilo que pertence ao que Barthes chamou de studium), a forma de vida cotidiana que ocupa esses espaços, entretanto, “dissolve as estruturas e desfaz as formas”, como escreve Blanchot.17  Sem ignorar os problemas implicados nessa representação do outro de classe, a começar pelas diferenças que se interpõem entre quem realiza a imagem e quem é nela é figurado, interessa-nos menos a aparição de um “sujeito popular” do que a presença de uma forma-de-vida, a vida humana, “na qual todos os modos, os atos e os processos do viver não são nunca simplesmente fatos, mas sempre e antes de tudo, possibilidades de vida ou potências, como escreve Giorgio Agamben.18  Sob esse prisma, a denominação “popular” pode muito bem funcionar como uma identidade concedida de fora, outorgada por quem não consegue perceber o que concerne à potência no mundo do outro, e nele identifica somente o que recai sob a rubrica 16 DELEUZE. Lógica do sentido, p. 318. 17 BLANCHOT, Maurice. A fala cotidiana, p. 241. 18 AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. p.14.

192

do representado, o resultado da operação da representação, o fato, o condicionado, o estado cristalizado e acabado. Não é assim, por exemplo, que o termo funciona na denominação “moradia popular”, quando empregado pelos peritos? Em contraposição a essa identidade concedida de fora (dada justamente por aqueles que só reconhecem o horror no mundo do outro de classe), gostaríamos de destacar outras figuras da alteridade que surgem nos movimentos de subjetivação e nas práticas cotidianas figuradas nos filmes de Eduardo Coutinho, e em especial, em Boca de lixo (1992). 5 Não temos condições sequer de esboçar uma explicação aqui, mas não podemos deixar de indagar o que aconteceu nesse arco de trinta anos para que a fala popular – um dia depositária daquele “povo por porvir” de que nos fala Deleuze – tenha se metamorfoseado nessa figuração crispada do horror em nossos dias.19  Seria possível, contudo, interrogar os interstícios dessa mutação que afetou aquela “glória do qualquer um”, inventada ainda no século XIX pela literatura e que prosseguiu ao longo do século XX com as artes da imagem técnica (a fotografia e o cinema), quando ambas passaram “dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos”, na tentativa de “explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios”.20  A obra de Eduardo Coutinho já recebeu leituras esmeradas (como a de Consuelo Lins, por exemplo), e o que gostaríamos de destacar aqui são alguns aspectos suplementares da convivência entre a violência, a 19 Pensamos aqui nas passagens em que Gilles Deleuze, ao falar das diferenças ente o cinema político clássico e moderno, dedica aos filmes de Resnais, Straub, Glauber Rocha, Pierre Perrault e Jean Rouch, dentre outros. Cf. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo.São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 257-266. Entre nós, talvez a última aparição dessa figura do “povo que falta” tenha sido em Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho (1984). 20 RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 49.

193

miséria e os gestos de subjetivação que emergem das práticas cotidianas. Se a etnografia realizada por Coutinho pode ser reputada de “discreta” (como o fez Ismail Xavier), é porque seus filmes, pouco a pouco, tornam mais e mais complexa a conexão indicial entre as falas e os espaços sociais habitados pelos sujeitos filmados, endereçando-a também a espaços imateriais, nos quais imperam as potências e os afetos que constituem transversalmente a subjetividade. De maneira muito precisa, Consuelo Lins identificou na obra de Eduardo Coutinho o gradativo aperfeiçoamento – filme após filme – de um dispositivo variável que se (auto) impõe coerções procedimentais na realização do filme, como, por exemplo, concentrar-se num único espaço geográfico e adotar o plano fixo como principal recurso expressivo, como é o caso de Santo Forte, por exemplo.21  Trata-se, com certeza, do aprimoramento de um método, e o que gostaríamos de destacar é que há outra propriedade suplementar que o cineasta extrai do seu princípio criativo: em sintonia com o gesto de filmar a fala, os filmes de Coutinho concedem ao rosto – e apesar dos cortes – uma inquietante potência. Em Boca de lixo (1992), tudo começa e termina pelo rosto. Para aproximar-se dos catadores de lixo da região do vazadouro de Itaoca, município de São Gonçalo, a 40 Km da cidade do Rio de Janeiro, o cineasta, munido inicialmente de uma cópia xerox das imagens das pessoas que trabalham no lixão, pergunta a um pequeno grupo de catadores quem são os sujeitos ali retratados. Na massa quase indistinta de pessoas e detritos, misturados ao lixo e à sua decomposição na terra revolvida, algo deve se destacar: um nome próprio, um traço (mínimo que seja) com algum sentido, um índice qualquer que faça diferença, que exiba a individuação onde os rostos desapareceram sob a sujeira e o anonimato. Possuir um rosto não tem nada de gratuito ou de aleatório: um rosto não é apenas imposto pelas formações sociais e seus agenciamentos de 21 Sobre o dispositivo em Coutinho, cf. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 100-102.

194

poder. É preciso conquistá-lo: passar do trabalho à casa, desfazer um rosto e entrar em outro, alcançar o único e no entanto nunca o mesmo rosto. Rosto de mãe, mulher, trabalhador, menina, criança, homem, menino, moça... Um rosto traz sempre os vestígios das passagens e das velocidades que o percorrem. Em Boca de lixo, se nos momentos iniciais do contato com o cineasta os moradores do lixão encobrem o rosto, envergonhados ou temerosos de que sua imagem seja expropriada pela televisão (ao tomarem o cineasta por um repórter), aos poucos o filme desenvolve uma série de operações em torno do rosto e dos espaços (o do lixão e o das moradias), construindo uma proximidade onde reinava a desconfiança ou o protesto (ainda que dito em tom brincalhão). Pouco depois da primeira aparição dos catadores, que disputam os restos despejados pelo caminhão que acabara de chegar, surge um garoto que interpela o cineasta frontalmente, e pergunta o quê ele ganha “pra ficar botando esse negócio” [a câmera] “na cara deles”. Coutinho responde que é para mostrar às pessoas como é a vida real deles. Ao que o garoto retruca: “Sabe pra quem o senhor podia mostrar? Podia mostrar pro Collor”[então Presidente da República]. Pouco depois, ouvimos uma voz de criança que grita: “Collor tá matando o pobre de fome”. Vencida essa resistência inicial à presença da câmera, os catadores passam a afirmar, em meio a risos e brincadeiras, que o lixão é um lugar de trabalho, e que dali também se retira comida (quando apanham o lixo proveniente do supermercado Sendas). A defesa do lixão como lugar de trabalho é um dos pontos de ancoragem da individuação (contra a representação genérica que reduz os sujeitos a um bando de miseráveis famintos ou preguiçosos). No espaço doméstico, depois de rompidos o anonimato de cada um e a desconfiança contra o cineasta, se admite, ainda com certa reserva, mas sem conflito, que o lixão também propicia alimentos aproveitáveis. A co-presença do rosto, da fala, da escuta e da máquina que registra faz do filme um espaço de partilha no qual os sujeitos ganham

195

tempo e autonomia para desenvolverem uma auto-mis-en-scène que comporta fragmentos biográficos, valorações subjetivas, táticas cotidianas para enfrentar a precariedade dos recursos materiais e a instabilidade da relação com o lixão, e também – por que não – pequenas aspirações. Às vezes, os desejos mais descabidos são os que possuem maior grandeza, porque permitem o equilíbrio no mais improvável, sustentados não com a força da fantasia (facilmente aproximada do engano ou da falsidade), mas de um gérmen de fabulação, tal como o faz a filha de Cícera, uma das muitas mulheres que trabalham no lixão, pernambucana, há 18 anos no Rio de Janeiro. A certa altura, instada por Coutinho a falar mais, Cícera afirma: “Eu só quero que um dia (....) a mim não, que não tenho mais o que ganhar (...) mas eu quero que Deus, o que eu peço a Deus (...) liberte ela, dê uma chance a ela mais tarde pra seguir o que ela bem quer”. O diretor logo pergunta à moça o que ela queria ser na vida – um pouco como perguntamos às crianças – e ela responde, sem titubear: “Cantora”. “Quer ser cantora?”, Coutinho insiste. “Quero”, ela confirma. “O que você gosta de cantar?”, ele indaga. “Música sertaneja”, ela diz. Nos dois planos que se seguem (o primeiro, aberto, o segundo, fechado no rosto), a adolescente canta uma canção romântica típica da difusão massiva das rádios (“Sonho por sonho”), pés descalços na terra, em frente à casa feita de barro, rosto exibindo seus trejeitos para a câmera. Ela desenvolve sua auto-mis-en-scène, enfim. A figura da adolescente que canta está longe de ser reduzida a mero exemplo da relação entre a cultura popular e as formas simbólicas midiáticas. O que aparece aí é outra coisa. Trata-se da moça-cantora sem palco, estrelato ou público; a moça-dentro-da-imagem, movendo-se no seu próprio imaginário, sem espetáculo ou afetação. Uma anti-estrela tentando fabular seu desejo disparatado. Pouco antes da seqüência final do filme ela reaparecerá “arrumada”, rádio de pilha na mão, escutando a canção preferida, na voz de José Augusto. Os três planos finais da seqüência que traz a primeira aparição de Cícera e sua filha exibem

196

justamente as duas se arrumando: primeiro, a mãe lavando os pés, no quintal: depois, a filha se penteando ao espelho, no quarto, e em seguida, também a mãe. Em sua segunda aparição, mais à frente, a mãe, a filha e o padrasto (Antônio, um pescador) são apanhados à maneira de um retrato de família, mas sem a rigidez da pose. Nas mãos a garota traz o rádio que toca sua canção predileta. O cineasta pergunta de quem é a música. “Zé Augusto”, ela responde, sorrindo. Coutinho pede, amigavelmente: “Canta, canta junto!”. A voz, um pouco trêmula, começa a acompanhar a música que vem do rádio. Enquanto a cena dura, sem cortes, a câmera se aproxima mais, enquadra a moça em plano médio, desce e focaliza o rádio, depois sobe e alcança o rosto dela, move-se em seguida para a esquerda e apanha os rostos da mãe e do padrasto; retorna para a direita e fixa-se novamente no rosto da moça. Com suavidade, ela tenta assimilar – tal como se diz de um golpe – a frontalidade com que é apanhada; seus olhos buscam um pequeno desvio para o lado. Em comparação com sua primeira performance, agora a moça aparece com a voz levemente embargada, os olhos mais baixos (prestes a lacrimejar), como se dividida entre duas imagens: aquela primeira, que lhe foi oferecida para realizar vicariamente seu desejo de ser cantora, e esta outra, mais incerta, na qual não se encaixa de todo, na qual ainda procura se situar. Descolando-se do seu próprio imaginário, os seus olhos procuram o interlocutor, que se afastou um pouco para nos mostrá-la inteira, endereçando-nos sua alteridade irremovível. Aqui a fabulação criadora – que nos filmes de Perrault e Rouch remetem a uma lenda ou a um animal mítico – só pode se desenvolver no ambiente da vida cotidiana, com seus pequenos enfrentamentos, sua cota diária de invenção, às vezes mínima, mas capaz de fazer frente à dureza do trabalho e a reificação que ele produz. Enquanto a moça canta, acompanhando a música tocada no rádio, um corte introduz outro cenário (mas mantendo as vozes da moça e do cantor em off): os trabalhadores do lixão, alguns com o rosto encoberto, se vêem nas imagens exibidas no monitor de tv colocado no alto da

197

carroceria de uma Kombi. Agora nós os vemos um a um, e eles também vêem a si mesmos um a um, singularizados, únicos, e em seus rostos resplende a simultaneidade dos seus múltiplos modos de aparecer. O filme alcançou, afinal, a individuação dos sujeitos filmados, mas isso não vem pacificar o espectador. Se os filmes de Coutinho são exemplares é porque neles as formas de vida surgem diante das condições mais adversas, quando os sujeitos não dispõem mais de nenhuma reserva utópica (nem política nem religiosa), mas apenas a “pequena área da vida” (para retomar o verso de Drummond), e é nela mesma, com suas coerções e seu espaço diminuto (numa barraca de lona ou plástico, numa casa de paredes de barro e chão batido), que os sujeitos criam um espaço diferente, que coexiste com aquele de uma experiência sem ilusões”.22 Aquele espaço fotografado por Garcez (o conjunto habitacional como abrigo de um modo de vida popular) e o instante que nele aguardava o futuro, se distanciaram de nós, irreparavelmente. Sabemos bem o que barrou esse futuro e o sonho modesto que animava aquele presente que escoou quase sem vestígios: o real, em sua face mais bruta. Desde então, são outros os espaços que abrigam os corpos e a fala populares, tal como exibem diversos documentários; espaços como este que surge no plano-seqüência final de Boca de lixo. Perto dos urubus e de um cavalo que procura algo para comer, um garoto seleciona e recolhe materiais do lixão. Na sua camiseta há uma inscrição: “Casa & Vídeo”. A ironia vem do próprio real filmado: aqueles que vivem sob o signo da precariedade, exilados do mundo do consumo, catam o que dele restou, e com isso, paradoxalmente, afirmam sua própria imagem.23

22 DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 62 23 Não é inútil lembrar aqui a etimologia do termo precário, conforme indica o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: “lat. precarìus,a,um ‘obtido por meio de prece; concedido por mercê revogável; tomado como empréstimo; alheio, estranho; passageiro’”.

198

199

A superfície do cotidiano Uma aproximação a Acidente e Uma encruzilhada aprazível 1

Cláudia Mesquita

Este ensaio parte de uma suspeita: a de que alguns traços antes inusuais têm se tornado mais e mais frequentes (ou, talvez, mais marcantes para mim) na produção de filmes e vídeos documentais brasileiros. São características que envolvem a escolha e a abordagem dos objetos, e a composição de imagens e sons na montagem. Como resultado vejo, de um lado, a resistência à abordagem verbal de temas e assuntos prévios, e uma espécie de investimento na presença bruta e na superfície imediata do cotidiano; de outro, certa ênfase na temporalidade da experiência de pessoas e localidades, mesmo quando tratadas de modo fragmentário pela enunciação. Equacionados de modo singular por cada filme, tais traços – sintetizados acima – parecem-me dignos de atenção. Proponho acercar-me deles através da análise de dois documentários brasileiros recentes. Refirome à versão longa de Acidente (Cao Guimarães e Pablo Lobato, 2006) e ao média Uma encruzilhada aprazível (Ruy Vasconcelos, 2007), lançado no contexto do programa DOCTV, no Ceará, em sua terceira edição. Vida e nada mais Começo emprestando expressão de Ismail Xavier para dizer que os dois documentários têm na “prosa ordinária do mundo” (“a vida, a 1 Versão reduzida da comunicação apresentada ao II Simpósio Comunicação e Experiência Estética (UFMG, outubro de 2007). Em sua versão integral, este ensaio corresponderá a um capítulo do livro produzido a partir das comunicações do Simpósio, a ser publicado pela editora Autêntica. Na adaptação do texto, foram de grande valia a leitura, os comentários críticos e as sugestões de André Brasil, César Guimarães (um dos organizadores do Simpósio) e Cezar Migliorin. Sou grata ainda a Consuelo Lins e Leandro Saraiva, com quem tive a oportunidade de compartilhar reflexões sobre o documental brasileiro recente.

200

matéria, as cores, os sons, como presença pura”) seu principal motivo.2 Apesar de significativas diferenças (que trataremos à frente), ambos elegem localidades como demarcação inicial para uma investigação visual e sonora de ambientes físicos e do cotidiano. Desinvestidos da pretensão prévia de explicação totalizante, informação convencional ou elaboração verbal de significações sobre essas localidades (ou sobre a experiência das pessoas que nelas habitam), estes filmes investem na superfície do mundo que se dá à vista e aos ouvidos, recortando informações visuais e sonoras em séries cujos fragmentos – planos muitas vezes estáticos – não montam didaticamente, para o espectador, uma totalidade orgânica, uma imagem de conjunto. O que parece importar é sobretudo propor atenção a ambientes banais, incidentes corriqueiros e aparências imediatas que às vezes adquirem, pelo olhar da câmera, inesperado valor estético, lúdico ou afetivo.3 Numa aproximação inicial, eu destacaria, portanto, uma sorte de investimento no insignificante, ordinário e cotidiano. Ao invés de um senso de atualidade e urgência em relação a temáticas e problemas prementes (mais próprio à tradição do cinema documentário), estes filmes propõem dispor de uma nova forma “os objetos e as imagens que formam nosso mundo comum já dado”, para emprestar expressão de Jacques Rancière – que a utiliza para caracterizar uma das duas atitudes artísticas que, em sua concepção, marcariam a contemporaneidade; atitude caracterizada pela “modéstia”.4 Menos do que a narrativa de uma história real marcante; 2 Ele a utiliza para caracterizar o “regime estético da arte” proposto por Jacques Rancière, em oposição ao “regime mimético”. Segundo Xavier, o regime estético diria respeito a uma “operação típica à arte moderna (....), pela qual se deposita o valor na forma que, descartando o mythos e a arte figurativa, é capaz de fazer emergir o esplendor puro do ser, a potência expressiva inscrita nas coisas mesmas, no insignificante”. A meta do artista, neste regime, seria “uma absorção ‘passiva’ da poesia já inscrita no insignificante”. Também seriam próprios ao “regime estético”, conforme Rancière, a “assunção do qualquer-um” e “passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época (...) nos detalhes ínfimos da vida ordinária, (...) reconstituir mundos a partir de seus vestígios”. 3 Consuelo Lins e eu abordamos, de modo introdutório, alguns destes traços no artigo “Aspectos do documentário brasileiro contemporâneo (1999-2007)” e no livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Retomo e desenvolvo aqui algumas das considerações lá introduzidas. 4 A outra atitude, adotada notadamente por filósofos e historiadores da arte, estaria marcada

201

do que a atenção à experiência de um ou alguns poucos indivíduos, ou do que a abordagem de um problema ou questão temática de relevo, estes filmes parecem interessados em captar segmentos do curso da vida sem conflito nem tensão – dotando-os de um interesse estético que só secundariamente inclui tema, drama ou narrativa. Em ambos, busca-se a imagem distintiva e valorosa possibilitada pela observação paciente e pela mediação do dispositivo audiovisual, salvando do acaso e do fluxo ininterrupto do tempo pequenos acontecimentos estéticos. Mais do que o assunto interessam os objetos, e mais do que eles, poderíamos dizer, interessa o olhar que mira, ou a maneira de mirá-los. Longe, portanto, das imagens quaisquer produzidas, por exemplo, por uma câmera esquecida ligada, ou por uma câmera de vigilância, as imagens desses filmes investem o banal de um deliberado potencial estético. Para tanto, podem se valer (como veremos bem em Acidente) de parâmetros de abordagem auto-restritivos que lhes autorizam a se aproximar do mundo despidos de qualquer pretensão de acesso a verdades e sentidos – ao contrário, numa calculada “cegueira” para tudo que não é imediato, superfície, dado visível e audível, enquadrado segundo interesses plásticos, pictóricos e de composição. Se traços significativos e sentidos emergirem, eles serão fruto da observação de incidentes banais, fragmentários, e não de uma aposta anterior (a conformar a escolha de temas, assuntos, personagens), atualizada na montagem. No caso de Encruzilhada, a escolha das locações abordadas se relaciona com temáticas precedentes – embora sua abordagem opte por tomadas mais empíricas e por recusar a fala, o que permite ao filme abrir-se para o aleatório, o contingente, e preservar certa opacidade e enigma em relação aos temas que nortearam seu projeto.5 por uma defesa da radicalidade da arte concebida como “potência singular de presença, de aparição e de inscrição”, que rompe com a experiência ordinária. (Ver Rancière, Malaise dans l’esthétique). Apoio-me aqui na leitura e sistematização realizadas por César Guimarães no dossiê do II Simpósio Comunicação e Experiência Estética. 5 Refiro-me ao projeto “Uma encruzilhada aprazível”, bastante preciso em sua proposta de objetos e abordagem, apresentado por Vasconcelos ao concurso público DOCTV III, no

202

Circunscritos, paramétricos, contemplativos... O investimento numa espécie de “realismo de presença”6 e a recusa à totalização parecem marcar parte da produção recente de documentários no Brasil – embora Acidente e Uma encruzilhada aprazível, contemplativos e avessos mesmo à elaboração verbal de asserções e significações, talvez se localizem num extremo, radicalizando essa aposta. Mas certamente eles partilham com outros filmes uma tendência, há muito disseminada, à particularização do enfoque: ao invés de estruturarem seus discursos na forma de diagnósticos, mobilizando dados, personagens e informações heterogêneos, os documentários recentes tendem a buscar seus temas no recorte mínimo, abordando experiências e expressões localizadas ou individuais, roçando singularidades.7 As experiências individuais são, de um modo geral, tratadas como irredutíveis – entre a singularidade extrema, excepcional (tal como vemos em Estamira, de Marcos Prado) e o potencial “exemplar” do personagem (cuja experiência, ainda que incomum, parece esboçar os limites possíveis da consciência de um grupo em uma época, tal como vemos em O tempo e o lugar, de Eduardo Escorel), a abordagem tende a se basear no registro imediato, no diálogo e no trato respeitoso com as experiências dos indivíduos; e não no olho que vê mais longe, relacionando, na montagem, estas experiências à Ceará, em 2006. Sou grata à equipe do DOCTV nacional pelo acesso à cópia do filme, e a Ruy Vasconcelos por disponibilizar gentilmente o projeto escrito. 6 Refiro-me à noção exposta no capítulo IV (“O realismo revelatório e a crítica à montagem”) de O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier. Segundo esta concepção, a experiência imediata e a realidade palpável do cotidiano devem ser “núcleo e limite da verdade humana a ser revelada pelo testemunho do cinema”. Para Kracauer, por exemplo, o filme “realista” se caracterizaria pela recusa de um princípio organizador que imprimisse “um sentido definido ao desenvolvimento dos fatos” na montagem. Impossível representar o mundo como totalidade organizada porque ele é fragmentado, assim como a consciência que temos dele – melhor investir na “experiência do momento singular e do ‘pequeno fato’”. A “ginástica” conceitual que efetuo nesta sugestão de analogia é de minha inteira responsabilidade, já que me valho de conceitos engendrados em outros contextos e propostos, de modo geral, para a produção ficcional. 7 Tentei uma caracterização geral e panorâmica do “documentário da retomada” no texo “Outros retratos: ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil”. Consuelo Lins e eu retomamos a discussão no artigo citado, sobre aspectos do documentário brasileiro contemporâneo, e no livro Filmar o real.

203

conjuntura ou à estrutura social, com suas potencialidades e problemas (como era mais frequente no documentário brasileiro dos anos 1960 e 1970, certamente mais próximo da idéia de “realismo crítico”).8 Neste sentido, os filmes que proponho analisar são representativos. Evitam o discurso totalizante e não se interessam diretamente pela problemática social. Não investem, o que os diferencia da média, na investigação de experiências individuais e na composição de personagens, embora em alguns segmentos eles estejam presentes. “Um único mistério pessoas e objetos”, poderíamos dizer sobre eles, tomando de empréstimo expressão do cineasta francês Robert Bresson. A presença humana interessa, mas imersa em cenários cotidianos onde os objetos desempenham papel de semelhante importância. Tudo que se dá à vista e aos ouvidos, que é aparência imediata e superfície do mundo visível e audível, interessa: pessoas, objetos, paisagens, sons, fragmentos de falas, ruídos.9 Esta é uma das singularidades desses documentais. Dada a proeminência do “verbal” e do “verbalizável” no documentário brasileiro recente, estes filmes aqui destacados não deixam de trazer em seu bojo uma espécie de reação. Penso, por exemplo, na presença marcante – já notada muitas vezes – da entrevista e do depoimento no documentário brasileiro recente. No capítulo “A entrevista”, presente na segunda edição de Cineastas e imagens do povo (2003), Jean-Claude Bernardet constatava o crescimento da produção independente de documentários no Brasil 8 Concepção oposta àquela de “realismo de presença” (ver cap. III do livro O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier, o ensaio “Do naturalismo ao realismo crítico”). A pretensão dos filmes realistas, segundo esta visão, seria identificar as forças sociais e históricas que regem os acontecimentos, os eventos, as experiências; não apenas descrever, mas narrar, pôr em evidência as determinantes sócio-históricas da experiência imediata. Segundo esta concepção, “a imagem e o som não se combinam com o objetivo de mostrar algo, mas com o objetivo de significar algo; o que implica na apresentação do fato, não como um ato de testemunho (...) mas em nome de uma compreensão de seu significado histórico”. 9 Neste aspecto, poderiam ser associados à definição de “documentário poético” de Bill Nichols. Neste “tipo” de documentário, segundo o autor, “os atores sociais raramente assumem a forma vigorosa dos personagens com complexidade psicológica e uma visão definida do mundo. As pessoas funcionam, mais caracteristicamente, em igualdade de condições com outros objetos, como a matéria-prima que os cineastas selecionam e organizam em associações e padrões escolhidos por eles”.

204

desde fins dos anos 1990, mas alertava que tal boom não correspondia a um “enriquecimento da dramaturgia e das estratégias narrativas”; ao contrário, evidenciava a repetição de um mesmo procedimento, banalizado pelo jornalismo televisivo: “Não se pensa mais em documentário sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado é como ligar o piloto automático”. Um pouco mais tarde, relacionando-se com os escritos de Bernardet, Stella Senra publicava na revista Sinopse o texto “Interrogando o documentário brasileiro” (2004). Nele, questionava o rebaixamento da “contundência política” e a “complacência estética” do documentário contemporâneo no Brasil (expressões de Bernardet, que a autora endossava), usando como contraponto (e exemplo desejável de “novas maneiras de negociar com o real”) as obras que integraram duas exposições de artes plásticas. Stella relacionava tal “complacência” à utilização de uma “metodologia surrada” e de procedimentos recorrentes (como a prática das entrevistas), sem muita reflexão, por parte dos realizadores, em relação a qual a melhor “relação” (sempre construída) a se estabelecer com seus assuntos, objetos e personagens reais. E propunha uma abertura do campo cinematográfico a outras manifestações artísticas – movimento análogo ao das obras analisadas por ela, que se valiam de elementos mais próprios a um “terreno habitualmente dominado pelo documentário”. Como exemplo, portanto, focalizava o trabalho de artistas que criaram métodos rigorosos de relacionamento com situações reais complexas – “verdadeiros protocolos de aproximação”, segundo a ensaísta – capazes de evidenciar que o “acesso” a tais situações não é “direto nem espontâneo”. Em resumo, Stella Senra elogiava nestas obras a produção prévia de parâmetros que pautavam o relacionamento com as situações reais focalizadas – ou, para usar o termo em voga, de dispositivos adequados, produtivos.10 10 Stella Senra analisa em seu texto trabalhos reunidos em duas exposições de 2003: “A respeito de situações reais” (Paço das Artes, São Paulo) e “Movimentos improváveis – o efeito

205

Parece remontar a fins dos anos 1990, portanto, a utilização e a discussão da noção de dispositivo, aplicada ao cinema documentário brasileiro – tanto na crítica quanto na realização.11 Refiro-me a dispositivo como lugar da criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas – o que nega a ideia de que um filme pode apreender a essência de uma temática ou representar em sua totalidade uma realidade preexistente. Teríamos, nos filmes “de dispositivo”, como escreveu Consuelo Lins, a criação de uma “‘maquinação’, de uma lógica, de um pensamento, que institui condições, regras, limites para que o filme aconteça; e de uma ‘maquinaria’ que produz concretamente a obra”.12 Os filmes recentes que vou analisar trazem, de um lado, este gesto de redução do enfoque (muitas vezes através de demarcações prévias ou parâmetros auto-restritivos). De outro, e aí aparece seu traço singular, apresentam o desejo de tematizar o cotidiano ou o lugar sem palavras, sem falas, numa recusa do “verbalizável” como principal forma de relacionamento com locais, temáticas, questões e personagens. O investimento é na superfície do mundo que se dá à vista. De um lado, por assim dizer, paramétricos; de outro, contemplativos, interessados em incidentes banais e ordinários, imprevistos, que oferecem – para observador paciente – o curso ordinário do tempo. cinema na arte contemporânea” (Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro). Sua escolha é estratégica e envolve obras de cineastas-artistas como Pedro Costa, Chantal Akerman e Efrat Schvily, responsáveis, segundo sua análise, pela criação de dispositivos muito consistentes. Evidentemente, Stella não defende o “dispositivo pelo dispositivo”. A simples adoção de um dispositivo não garante, digamos assim, a produção de um protocolo consistente e o “sucesso” de um filme (em termos de representação e potencial de revelação da experiência real). Tudo depende da adequação à temática eleita e do trabalho concreto de filmagem, da relação travada entre realizadores e sujeitos filmados, que a maquinação anterior não dispensa. 11 Neste sentido, a obra de Eduardo Coutinho é exemplar. Como se sabe, a partir de Santo forte (1999) Coutinho trabalhou em uma série de filmes com rígidas demarcações espaciais e procedimentos recorrentes, sobretudo a prática da entrevista (pondo ênfase sobre a expressão verbal dos sujeitos filmados). 12 “O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo” No texto, Lins aborda o conceito e a presença do dispositivo no documentário brasileiro, analisando alguns filmes, dentre os quais Acidente. Ela retoma a análise do filme no texto “Tempo e dispositivo no documentário de Cao Guimarães”.

206

Acidente Acidente (2006), de Cao Guimarães e Pablo Lobato, resultou da proposição de um dispositivo inusual. O filme não parte de um tema, assunto ou situação preexistentes, mas da criação de um poema composto com nomes de 20 cidades mineiras – nomes selecionados na internet, sem qualquer conhecimento prévio, segundo revelam os cineastas, a respeito das cidades (o que mostra, de saída, uma recusa aos preconceitos, imagens prévias, assuntos típicos, e um investimento na “cegueira”, na ignorância, no desconhecimento). As estrofes do poema forneceram o mapa inicial para a viagem de realização. Na ausência de temática anterior ou questão norteadora, o dispositivo coloca uma espécie de aleatoriedade desejada (ou acidente programado, que reduz o excesso de intencionalidade) na escolha e aproximação das cidades visitadas. No filme, cada cidade corresponde a uma sequência, a uma peça independente (separadas por tela preta e letreiros, como capítulos, cada um nomeado pelo nome da cidade em questão e pelo desenho de uma forma equivalente a seu mapa); as sequências estão organizadas em séries, formando três blocos, cada um deles correspondendo a uma estrofe do poema – estrofe esta que só se revela depois de apresentadas todas as sequências/cidades que compõem um bloco. Em cada sequência, diferentes objetos, situações e durações, distintas formas de abordagem e de composição. Em todos os casos, não há dados, falas sobre o lugar, informações, comparações entre dinâmicas sociais, políticas, econômicas ou populacionais. O que parece importar é propor atenção a pequenos acontecimentos, às vezes dotando-os de interesse estético – uma rua molhada pela chuva e iluminada por trovões e faróis de carros; microeventos em um bar/mercearia onde se passa um dia e quase nada acontece; uma divertida procissão e encenação infantil da Paixão na Semana Santa... A par das diferenças, a tônica de cada sequência em Acidente poderia ser descrita como o investimento incondicional na superfície do cotidiano, com o que ele carrega de aleatório

207

e banal, e o desejo de atribuir valor ao que é insignificante, pequeno, irrelevante e corriqueiro. Ao final de cada bloco, formada a estrofe do poema, podemos atribuir às sequências já vistas significações sutis antes improváveis (e finalmente possíveis por sua relação, ainda que indireta e enviesada, com os versos do poema). É importante notar que o dispositivo, neste caso, pouco obriga para além da visita a cada cidade do poema – em cada lugar, os realizadores estão livres para eleger assuntos, motivos, abordagens, movimentos. Talvez por isso, em função da imensa liberdade produzida pela ausência de temática norteadora, o filme parece buscar em cada cidade parâmetros segundo os quais apoiar o olhar. É como se os realizadores partissem do reconhecimento de sua exterioridade e da arbitrariedade na escolha de qualquer temática ou objeto para se tratar num filme documental. O dispositivo funciona então como um sorteio de cartas, e parte-se para as cidades elencadas no poema inicial pouco sabendo sobre elas. O primeiro (e vasto) recorte auto-delimitador (a cidade) sofre na abordagem, em cada lugar, efeito semelhante àquele que veremos em Uma encruzilhada aprazível: a busca por outras molduras, recortes, prisões ou micro-dispositivos (já que a pretensão de significar experiências verbalmente ou produzir uma imagem de conjunto sobre a cidade em questão é de saída colocada em crise, recusada). Com maior ou menor rigor, caso a caso, a partir de que parâmetros olhar para o mundo e filmá-lo? Penso que cada segmento poderia ser pensado a partir desta questão. Antes de colocar-se o problema “o que é relevante retratar nesta cidade?”, o filme recua e parece se perguntar: “Como olhar para o mundo?”, “De onde enquadrá-lo?”, “Segundo quais parâmetros?”. O privilégio claro aos longos planos fixos, a algumas séries de recortes fotográficos,13 reforça, para mim, essas impressões: primeiro, 13 Interessante notar, além do gosto pelos planos-sequência estáticos, o interesse por superfícies de vidro, espelhos, mediações óticas presentes nos ambientes e que por si só refratam, criam efeitos óticos, investem cenas banais e cotidianas de um potencial plástico inusitado, como que metaforizando as operações do próprio filme, como se nota em alguns trechos de Encruzilhada.

208

a exterioridade em relação às situações filmadas, assumida de saída no dispositivo e reafirmada na postura da câmera, recuada e estática; por outro lado, a busca de enquadres, de pontos de visão. Os parâmetros para a moldura variam caso a caso, e não são tão rigorosamente espaciais como no caso de Uma encruzilhada aprazível. De um modo geral, parecem produto do acaso, da sorte, do aleatório. Na cidade de Heliodora choveu; a noite de chuva provocou a queda de energia que pauta (a falta de luz) toda a sequência dedicada à cidade, abordada, portanto, segundo um parâmetro fotográfico, embora envolva um personagem forte, cujo retrato se limita à contingência de um encontro numa noite escura. Já em Entre folhas investese numa moldura espaço-temporal, numa cena, rigorosamente: o filme passa o dia num pequeno boteco/mercearia, da manhã até o cair da noite, recortando micro-ações e detalhes a partir desta moldura que, embora arbitrária, lhe assegura proteção contra um virtual caos de possibilidades. Em alguns casos, os pequenos ensaios sugerem relação com o nome da cidade em questão – como se o nome criasse ele mesmo uma “cunha” a partir da qual os realizadores pudessem produzir imagens e sons em cada lugar. É o caso de Espera Feliz, por exemplo, cidade que gerou um ensaio composto de uma série de primeiros planos fixos em que a potência da espera se revela no desenlace, através de uma pequena ação final que transforma a estabilidade e a imobilidade das situações ordinárias filmadas: uma janela que se fecha; um cano do qual subitamente escorre água; um poste em que subitamente a luz se acende, e assim por diante. Nesses casos, como disseram os realizadores em entrevista, o poema funciona como “armadilha para o acaso”, o nome da cidade pautando a busca por pequenos incidentes estéticos no cotidiano. Em outros casos, a relação com o nome é mais enigmática ou mesmo inexistente, e a busca por parâmetros se revela aleatória, produto do acaso, da sorte: a falta de luz em Heliodora, uma rua de paralelepípedos em Palma (o ensaio sendo composto exclusivamente de uma série de cenas filmadas em Super 8 colorido, focalizando a rua e os passantes) etc.

209

Nesses ensaios sobre eventos banais e insignificantes, que variam de cidade para cidade, segundo diferentes parâmetros, Acidente comporta uma espécie de gradiente que vai do apenas plástico ao significativo: temos desde segmentos compostos quase exclusivamente de planos que exploram detalhes plásticos ou pictóricos urdidos pela câmera no encontro com as localidades (como a série de planos fechados de ruas de paralelepípedo em Abre Campo; ou as sombras projetadas na rua pelos veículos que passam, formando desenhos abstratos em movimento, na introdução de Entre Folhas); até ensaios que acabam por engendrar significações sutis sobre a experiência de ali viver (como em Entre Folhas, cujo segmento, a meu ver, tematiza a estagnação, o tempo que, ali, numa pequena cidade do interior de Minas, escorre lentamente, aportando mudanças ínfimas). Uma encruzilhada aprazível O documentário de Ruy Vasconcelos também parte da proposição de uma “prisão” espacial autorrestritiva: um movimentado – mas nada extraordinário – entroncamento rodoviário no sertão norte do Ceará e seu entorno. Diferente de Acidente, contudo, trata-se de localidade que o realizador conhecia de antemão, e cujo projeto tencionava a abordagem de algumas temáticas a ela relacionadas. Aprazível é o nome do distrito onde se situa a encruzilhada. Lugar de passagem, não de chegada, como aponta bem o letreiro final: “Tomar como destino um ponto de passagem. Encruzilhada. Um pequeno destino. Mas qual não o é?”. Nele, duas experiências, grosso modo, se sobrepõem: a de moradores que trabalham na roça, sobretudo criando cabras; e a daqueles cujas ocupações se relacionam hoje com uma feira itinerante (que movimenta o pequeno núcleo urbano aos sábados), voltada sobretudo ao comércio atacadista de roupas, e com um posto de gasolina, com seu fluxo intenso de passantes, dirigindo-se ao litoral ou à região serrana do Ceará.

210

Parte dessas informações eu reproduzo do projeto escrito. Isso porque, de uma maneira geral, a localidade é abordada, no filme, através de imagens do ambiente e ruídos: planos longos, muitas vezes estáticos, que recortam as locações, decompondo-as em fragmentos, em enquadres fotográficos. Se podemos falar em personagem, convencionalmente, é apenas em relação à perspectiva de Benedito Gomes, “colecionador de paisagem” (ele possui, como se lê no projeto, o “estranho hábito de colecionar pedras, lascas, cacos, seixos, gravetos”). O cotidiano miúdo do morador, velho criador de cabras, é abordado (sobretudo no terceiro bloco do documentário) em imagens tomadas em seu pedaço de chão, associadas a falas do senhor Benedito, trabalhadas quase sempre como narração over, fragmentariamente. No mais das vezes, o filme explora perspectivas de um posto de gasolina e cenas no entorno. Cada segmento ou sequência elege um recorte espacial: o posto, o cemitério, a feira, a caieira, o terreno onde vive o velho Benedito. Essa escolha reduz a apreensão do lugar aquilo que se dá à vista, a uma superfície visível que a câmera capta com paciência, retratando pequenos acontecimentos sem explícita intenção informativa ou retórica. Mas, entre fragmentos do espaço físico e micro-cenas, de viés, aparece um sertão misturado, em que convivem velhas tradições rurais e o irresistível fluxo das mercadorias (como nas imagens em que cabras e caminhões dividem a estrada); um sertão que não é mais grotão isolado, mas extensão do país, precariamente urbanizado, e cada vez mais parecido com as periferias das grandes cidades. Nem didatismo informativo na apresentação do local, nem evidência temática, nem ênfase sobre a experiência individual: o que a mim parece estar em jogo nesta exploração audiovisual de localidades ordinárias é a temporalidade; não falo em narrativa, no sentido de acompanhamento passo a passo de eventos que se desenvolvem no tempo (com exceção, sobretudo, do trabalho na caieira); mas numa espécie de abordagem do tempo em si, construindo-se a percepção da permanência e da passagem.

211

Critérios como duração dos planos e repetição de enquadramentos são relevantes em sequências que exploram uma série de pontos de vista sobre espaços ordinários – mais descrevendo locais do que narrando ações, mas sobretudo repetindo, retornando, sugerindo o tempo que sobra e que pouca variação produz neste canto de mundo (como escrevi a respeito de Entre Folhas, segmento de Acidente). Em contraste com os segmentos mais longos das locações abordadas, há sequências de pontuação ou passagem compostas de planos em movimento, tomados do interior de caminhões que atravessam a estrada. Bem mais curtos e sintéticos (às vezes compostos de um único plano), esses segmentos sugerem o olhar de quem passa, de quem atravessa a localidade da estrada, sem experimentar o seu tempo. Já a temporalidade do lugar, dos que vivem e trabalham em Aprazível, é geralmente trabalhada em segmentos compostos a partir de um parâmetro (uma locação), decompostos numa série de planos, às vezes com enquadramentos recorrentes. A partir, portanto, de um primeiro parâmetro autorrestritivo (a encruzilhada), a abordagem se pauta por uma espécie de imersão e de busca, neste espaço restrito, de pontos de vista a partir dos quais olhar. Estes pontos são quase sempre demarcações espaciais, cujos limites fornecem molduras para o olhar, perspectivas, ângulos de visão. Para exemplo, vou descrever o primeiro segmento, que apresenta o posto de gasolina, com cerca de dois minutos e meio de duração. Ele é composto de uma série de enquadres fotográficos que decupam uma tarde qualquer no posto em um número limitado de pontos de vista e motivos (mais precisamente, três). Há baixo teor informativo, dramático ou narrativo. Pequenos acontecimentos duram e se desenvolvem a partir de diferentes angulações, enquadres e escalas. O que em outro documentário seria ambientação para “algo mais” (a introdução de um personagem, por exemplo) é “em si mesmo”. Os gestos banais e cotidianos são o foco do olhar, enquadrados em composições recorrentes, repetidas de modo a denotar, segundo me parece, estagnação ou mudança muito lenta.

212

Depois de apresentar a primeira sequência de passagem (com uma série de takes curtos no interior de um caminhão em movimento ), Uma encruzilhada aprazível retoma o posto de gasolina, uma das locações mais importantes do filme (por sua presença e pela evidente simbologia do posto, lugar de passagem por excelência). A sequência é construída como uma série com variações em torno de três motivos recorrentes: um conjunto de cadeiras brancas de ferro, de onde se avista o movimento nas bombas de combustível; urubus que voam em plano geral no céu (e que, a partir da quarta aparição, atacam uma presa morta no chão da estrada); e uma escultura pintada de amarelo, figurando um leão de pé, mostrando os dentes. A série intercala os três motivos, com variações de enquadramento, angulação, e pequenas mudanças no “conteúdo” das situações focalizadas. Vemos o leão progressivamente em quadro mais aberto, tendo a parede de um bar ao fundo; os urubus passam da espreita e do voo em círculos ao voo rasante e ao ataque; o homem sentado numa das cadeiras se levanta e, após uma inversão de eixo e alguns reenquadres, o filme continua exercitando, obstinadamente, seu olhar sobre o espaço do posto de gasolina, tendo como objeto privilegiado o conjunto de cadeiras brancas. Os eventos apresentados são rotineiros (urubus se alimentam, um homem se levanta da cadeira, um caminhão encosta para abastecer). Antes de narrar ou descrever (embora envolva também estas operações), o documentário propõe aqui um modo de ver e sugere, nas repetições de enquadres e nas pequenas variações sobre o mesmo tema, o gosto pelo que é cotidiano, abordado através da adoção de pequenos motivos, trabalhados como séries. A repetição de motivos sugere estagnação – ou melhor, indica uma lenta temporalidade, apontando as mudanças ínfimas que pontuam o curso do tempo, só notadas por quem está disposto a se deter e olhar para espaços quaisquer, onde “nada” acontece.

213

A superfície do cotidiano Para concluir, retomo algumas sugestões elaboradas a partir das análises. Tendo como evidência a exterioridade do olhar e uma recusa (ou desistência prévia) em explicitar informações contextuais e temáticas, ou elaborações verbais sobre a experiência dos moradores, passantes, viventes, estes filmes se apoiam em molduras ou limites dados sobretudo pelas locações espaciais, para a partir delas criar alguma imagem possível. Esses limites espaciais liberam os realizadores do caos da banalidade cotidiana e passam a pautar a produção de cada plano, cujos conteúdos envolvem microacontecimentos e incidentes rotineiros, segundo parâmetros plásticos e de composição. Contrários à objetividade e à relevância temáticas, Acidente e Uma encruzilhada aprazível apostam no aleatório, no incidente ordinário e banal. É posta em crise, de saída, toda pretensão de explicação totalizante sobre a experiência local. As localidades fornecem matéria para ensaios pautados por uma espécie de poética da insignificância, que poderia ter outras cidades ou outros lugares como mote. Em cada lugar, a pergunta de fundo não é tanto “o que seria mais importante filmar aqui e agora?”, mas sim “segundo que parâmetros apoiar o meu olhar?”. É preciso se impor limites ou molduras (que variam de lugar para lugar e muitas vezes dependem do acaso e da sorte, em Acidente) para, a partir daí, exercitar um olhar contemplativo que investe de potencial estético a superfície do mundo visível. A falta de luz; uma rua em ladeira; o quadrado de um posto de gasolina; sugestões pautadas pelo nome da cidade. Eleitos os parâmetros, os filmes se liberam de um excesso de possibilidades para exercitar modos de olhar. Nesta aposta ousada, o que se produz de modo mais consistente – mesmo assim, como significação sutil – sobre a experiência dos viventes refere-se, a meu ver, à temporalidade. A vivência do tempo nessas localidades é sugerida pela duração e repetição de planos ou enquadres, numa convergência entre a aposta estética dos dois filmes e um suposto conteúdo de estagnação – tempo que escorre ou mudança lenta – que

214

marcaria o cotidiano destes lugarejos. Outros conteúdos relacionados a processos sociais e políticos aparecem de modo fragmentário e indireto. Consoante com este “não-acúmulo” (temático, narrativo), a estrutura dos dois documentários é marcada pela fragmentação – as sequências correspondem a trechos bastante autônomos, independentes uns dos outros. Acidente, em particular, não realiza uma construção narrativa ou retórica que crie uma relação de interdependência entre as partes (apesar da moldura do poema). Embora apresente interesse, esse tipo de composição não deixa de ser sintomática: tal forma fragmentária, não totalizante, se adequa bem ao recalque do que é “relevante” (do ponto de vista temático), atual, urgente, que se observa neste filme. Fragmentos de cidades, fragmentos de temas, fragmentos de eventos, montados numa estrutura fragmentária. Talvez pudéssemos falar em poética da insignificância, mas também em estética do fragmento, para caracterizar notadamente o documentário Acidente.14 Mesmo que as escolhas de “o que filmar” envolvam uma pauta evidente de representação (como se nota no privilégio ao posto de gasolina, em Uma encruzilhada aprazível, ou ao bar/mercearia, na cidade de Entre Folhas, em Acidente), a recusa temática e a quase inexistência de personagens dificultam a evidência de temas, problemas e processos sociais. Domina a exterioridade na observação de cenas cotidianas, que muitas vezes limitam-se ao registro contingente. Quando há um privilégio especial aos valores plásticos imanentes à imagem – enquadramentos, texturas, regimes de luz, composição –, mais notável em Acidente, aumenta o risco de abstração dos componentes sociais e históricos que 14 Fernão Ramos, em Mas afinal...(p. 38-39) fala em um regime de “ética modesta”, para caracterizar parte significativa da produção documental recente. Ele refletiria o “fim das ilusões das grandes ideologias, conforme apregoa o pós-modernismo. O sujeito pós-moderno, não podendo mais adquirir altura para emitir saber, se restringe a voos modestos, que, em geral, se esgotam no criticismo dos enunciados de saber”. Neste regime, o sujeito que enuncia “vai diminuindo o campo de abrangência de seu discurso sobre o mundo até restringi-lo a si mesmo”. Quando abandona a narração em primeira pessoa, bastante frequente, a “ética modesta” se utilizaria de “procedimentos de rarefação do discurso para sustentar a enunciação. Vozes múltiplas se sobrepõem em uma narrativa extremamente fragmentada, centrada em impressões fugazes do mundo”.

215

atravessam o mundo filmado. A ênfase nesses traços parece travar ou dificultar a representação da experiência social – o risco é que o privilégio dado à composição se sobreponha àquele interessado na representação de temáticas e situações reais. E de que o tempo dos documentários não esteja atravessado pelo tempo cotidiano de viventes, pela experiência dos lentos processos vividos, mas se resuma à sugestão abstrata de duração e repetição. Cotidiano sim, mas como superfície e instantâneo. Estes riscos não marcam os dois filmes igualmente, tampouco impedem que, em seus melhores momentos, as escolhas estéticas das obras convirjam, como já dito, com a sugestão potente de uma temporalidade relacionada à experiência concreta dos moradores.15

15 Como é o caso da sequência no bar em Entre Folhas, já mencionada. Agradeço a César Guimarães pelos comentários pertinentes e lúcidos incorporados a esta síntese final.

216

217

Cotidianos em performance: Estamira encontra as mulheres de Jogo de Cena Mariana Baltar1

“Her subject was the eye, the drama of watching and being watched” Paul Auster, Leviathan

Estamira profere suas teorias cosmogônicas, se declara um trovão, e enquanto fala e gesticula a narrativa do filme de Marcos Prado (2004) reitera tal imagem, complementando o poder da personagem com uma montagem que equipara, em um mesmo nível, a força dos seus gestos e o som e imagens da tempestade. Em Jogo de cena, dirigido por Eduardo Coutinho (2007), Sarita pede para voltar e acrescentar algo a seu depoimento. Ela canta “Se essa rua fosse minha”. Coutinho pergunta: por que quis refazer sua fala? “Achei que esse negócio ficou muito barra pesada (...) e aí eu achei que ia ficar uma coisa muito triste e eu não queria ficar muito triste, entendeu?”, responde a personagem. Conseguindo o intento ou não (na verdade, ao contrário, sua cantoria final deixa ainda mais presente a melancolia me1 Mariana Baltar é professora da UFF, doutora em Análise da Imagem e do Som pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação/UFF, com passagem pela New York University, onde desenvolveu parte das pesquisas para a tese “Realidade lacrimosa – diálogos entre o universo do documentário e a imaginação melodramática”, em que analisou uma parcela da produção de documentários brasileiros contemporâneos sob o ponto de vista da constituição de seus personagens no diálogo crítico com a tradição inspirada no universo melodramático. Sua dissertação de mestrado, também desenvolvida na Universidade Federal Fluminense, dedicou-se a analisar documentários cujos temas se centravam no imaginário sobre o Nordeste e o nordestino. Em 2007, integrou a equipe de pesquisa de texto e imagem no Projeto Memória Globo, vinculado à Rede Globo de Televisão, para a organização e editoração do livro Entre tramas, rendas e fuxicos, sobre a história do figurino na teledramaturgia da emissora. Sua pesquisa mais recente envolve o universo dos gêneros que compartilham a mesma matriz cultural do excesso, tais como o melodrama, a pornografia e o horror.

218

lodramática), a narrativa de Coutinho corrobora o jogo da performance de Sarita, e nesse momento, é ela quem tem o domínio da gerência de sua própria imagem. A princípio, um grande fosso separa essas duas personagens, por classe social, por trajetória de vida, por filme e, pode-se afirmar, inclusive por sanidade. Por que, então, elas se vão se encontrar aqui, neste ensaio? O que as une para além de serem personagens, mulheres, de dois documentários que se estruturam – cada qual a seu jeito – a partir do encontro e de um pacto de intimidade entre diretor, personagem e espectadores? Certamente não porque o filme deu voz a seus personagens, um poder sempre ilusório que o documentário moderno e contemporâneo parece ainda querer sustentar. Nem apenas pela temática compartilhada de se inserir no filme uma certa dimensão do cotidiano de personagens ordinários, as mulheres comuns que se elencam ao extraordinário pela narrativa fílmica (pois há quem diga que Estamira não tem nada de comum). O ponto de inflexão de ambas são as performances. O gerenciamento das próprias imagens que coloca em cena a negociação de duas instâncias de poder diante da câmera, de sujeitos socialmente localizados em seus lugares de fala. Nesse sentido, não apenas Estamira ou Sarita constituem bons exemplos, mas os filmes das quais elas saíram para o olhar público. Estamira e Jogo de cena nos fazem problematizar, em diferentes graus, a instância da performance e sua correlação com o universo do documentário. Um de modo mais óbvio, sendo exatamente o tema do filme, o dispositivo que lhe dá forma. O outro, de modo mais enviesado, querendo entender a performance da personagem e de certa maneira nos fazendo entendê-la como tal, para assim não a aprisionar em um imaginário marginalizante. Argumento que refletir sobre o que se passa entre diretor e personagem (chamado a se constituir como tal pelo dispositivo fílmico) em termos de performance seja extremamente pertinente, pois problematiza,

219

menos ingenuamente, as negociações nem sempre pacíficas entre uma instância e outra, bem como as implicações da representação da alteridade. Permite pensar o encontro como uma gradação de disputas de lugares de poder e, como coloca Jean-Louis Comolli em Ver e poder: “Toda a questão está nessa gradação – desse outro que vem à câmera tanto quanto ela vem a ele”. O conceito de performance, embora ocasionalmente utilizado no campo do documentário, ainda é pouco teorizado,2 sobretudo no tocante às suas implicações para o processo de constituição do personagem. O vocabulário corrente na revisão teórica do campo dos últimos dez anos já inclui, sem embaraços, termos como “atores sociais” para designar os sujeitos que são alvo do interesse do documentário, ou como “narrativa”, para dar conta dos procedimentos estéticos articulados no âmbito do discurso fílmico. No entanto, com menos recorrência, utiliza-se o termo performance, que parece ainda estar atavicamente vinculado à noção de ficção e de atuação, portanto, aparentemente contrário ao que compõe a expectativa social, historicamente construída, do domínio do documentário. Aceita-se, com mais frequência, a noção de performatividade, tomando esta de empréstimo da pragmática a partir da reflexão sobre os atos de fala, encampada por J. Austin, buscando, com isso, dar conta de uma certa estrutura de documentário que constrói o mundo a partir de seu discurso fílmico (assumindo, no plano narrativo, que a realidade do mundo histórico se instaura a partir do filme). Nesse sentido, são documentários com menor compromisso explicativo, descritivo, informacional ou argumentativo, sendo mais densamente um discurso que “sublinha a complexidade de nosso conhecimento do mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas”, como escreve Bill Nichols na sua Introdução ao documentário. 2 Algumas exceções merecem destaque, sobretudo o trabalho de Thomas Waugh (1990), Acting to play oneself: notes on performance in documentary, a tese de Vinicius do Valle Navarro (2005), minha própria tese (Baltar, 2007), bem como de alguns artigos do professor Fernando Salis

220

A problemática na qual quero me centrar aqui, e que me salta a partir desse forçoso encontro entre Estamira e as mulheres de Jogo de cena (todas as personagens, inclusive as atrizes profissionais), diz respeito à pertinência da noção de performance como um dado constitutivo das relações entre diretor, filme e personagem em qualquer documentário. O termo, sugere Erving Goffman em A Representação do eu na vida cotidiana (1959), parte da percepção da vida social como um palco. A performance para o sociólogo seria constitutiva das relações intersubjetivas, não se vinculando, como a concepção usual leva a crer, a noções de mentira ou verdade. Para ele, pode ser considerada performance “toda atividade de um dado participante numa dada ocasião que serve para, de alguma maneira, influenciar o outro participante”. O projeto de Goffman é formar um modelo analítico-metodológico que possa dar conta das projeções do eu (self) no interior das relações intersubjetivas. As projeções que se formulam entre o que “eu penso de mim” e aquilo que “eu quero que os outros também pensem”, constituindo, assim, uma visão de si, aquilo que o autor chama de um caráter moral. O que interessa para o autor são justamente as técnicas e táticas empregadas pelos participantes para convencer o outro de sua projeção moral, afirmando, diante do outro, seu direito em assumir determinado papel social. Segundo o argumento de Goffman, o sujeito vai, portanto, agir a partir de tal preceito, realizando sua performance para garantir e salvaguardar seu direito. Assim, todo um jogo de projeções se articula na interação intersubjetiva (ou face a face, como nomeia Goffman), um jogo que é articulado por uma série de táticas e estratégias para controlar, o máximo possível, a impressão uns dos outros, para, assim, reafirmar a auto-imagem. Em outro ensaio, On Facework – an analysis of ritual elements in social interaction, escrito em 1955, portanto quatro anos antes de A representação do eu na vida cotidiana, Goffman especifica os significados e os procedimentos rituais do trabalho de “manutenção” (gestão/gerenciamento)

221

dessa face, ou autoimagem, pelos sujeitos na interação intersubjetiva: “Face é uma imagem do eu delineada em termos de aprovação dos atributos sociais – podendo ser uma imagem que outros possam compartilhar quando, por exemplo, o sujeito mostra-se de uma boa maneira.”3 O autor chama de facework todo um conjunto de mecanismos empreendidos pelo sujeito para salvaguardar, perante si mesmo e perante os outros, sua autoimagem, sua face, em que, entre esses mecanismos, a pose, ou posar, figura como um dos mais importantes. O facework influencia sobremaneira o jogo de projeções que atravessa a performance de cada um em uma dada interação. Como se as performances fossem pautadas por uma conformidade à face/autoimagem, bem como pela necessidade de manter tal face – no que acarreta todo um esforço de agir ou não de acordo com expectativas estabelecidas e projetadas em relação ao outro. Goffman chama a atenção para o impacto emocional que está em jogo no facework, pois que, atravessando o jogo de projeções (o que eu espero do outro e o que eu projeto que o outro espere de mim, digamos assim) está, ao cabo, um grande fluxo de sensações e intuições. O facework, ressalta Goffman, aplica-se tanto a interações interpessoais imediatas quanto a interações mediadas por outras esferas, tais como escritos ou gravações. Porém, é nas situações imediatas que se vê, de maneira mais bem acabada, o trabalho em ação, pois que o gerenciamento da face/autoimagem dá-se por um particular sistema simbólico de informações que inclui elementos como a entonação de voz, o gestual, as expressões, a pose, entre outros aspectos. Acredito ser possível afirmar, desdobrando um pouco as reflexões de Goffman, que há no tipo de interação face-a-face entre personagem e diretor/equipe do documentário um duplo movimento peculiar ao facework, pois nela se aplicam as mesmas variáveis analisadas pelo autor para as interações interpessoais, com o acréscimo de que essa mesma 3 Todas as traduções de textos em língua estrangeira são traduções livres.

222

interação será trazida a público numa esfera de mediação com o espectador através do dispositivo cinematográfico (e da experiência do cinema). Esse segundo olhar público, aparentemente “despresentificado”, também influencia no processo de performance de si do personagem (sua auto-fabulação), ou melhor, no processo de manutenção/gerenciamento de sua face. Uma performance que deve manter a face para uma dupla instância: o outro imediato – personificado no diretor/equipe – e um outro mediatizado – “personificado”, ainda que implicitamente, porém muito poderosamente, na audiência. Este jogo está claramente encenado no documentário de Coutinho. Esta é, afinal, sua temática de fundo; para além das histórias de mulheres que nos tocam de maneira emocionante pelo panorama de questões ainda pujantes da condição feminina (violência, submissão, maternidade, esperança, encontros e desencontros). O jogo proposto pelo diretor é o jogo que permite problematizar a performance, toda ela: a empreendida pelo sujeito comum – quando é pedido a ele para recontar seu cotidiano diante desse duplo olhar encarnado (o diretor e o dispositivo estão visivelmente presentes e, estrategicamente, vemos as mulheres subindo as escadas e adentrando o palco) – assim como a empreendida pelas atrizes profissionais, conhecidas do espectador. Ao público, o jogo proposto é o da incerteza, uma incerteza que nos faz, então, questionar sobre diversos aspectos da performance, da autofabulação e dos limites da representação da emoção.4 Do jogo de projeções e de estratégias de gestão (management) das impressões (o facework, tal como analisado pelo autor no ensaio de 1955) decorre um processo, socialmente compartilhado, de consolidação dos papéis sociais, o que, por sua vez, acaba por moldar a maneira com que 4 Em diversos artigos, bem como na tese “Realidade lacrimosa – diálogos entre o universo do documentário e a imaginação melodramática” (Baltar, 2007), desenvolvi uma reflexão que correlacionava o documentário, inclusive e sobretudo o de Eduardo Coutinho, com um certo tipo de apropriação reflexiva e crítica da imaginação melodramática. Não retomarei esse diálogo mais extensamente aqui, mas reitero a pertinência de tal argumentação ao se tratar de Jogo de cena.

223

determinado papel deve ser representado; ou performado, como diz Goffman. Quando pede para voltar ao palco e acrescentar algo em sua entrevista, em Jogo de cena, Sarita certamente está exercitando seu facework. É preciso reiterar que não se trata de pensar a performance como verdadeira ou falsa. Goffman argumenta a partir das noções de valor de sinceridade ou de cinismo para cada performance (e para determinado performer). Um valor que varia de acordo com a crença do sujeito em sua própria atuação e no jogo de forças colocado em ação no gerenciamento das autoimagens. Performance condensa, a um só tempo, a dimensão da atuação (constitutiva do jogo de projeções nas relações “face a face”) e uma afirmação da “realidade” dessa atuação. Acaba-se, assim, dissociando a performance de uma oposição entre verdadeiro e falso, colocando em evidência um jogo de avaliações e correlações de projeções de uma autoimagem (face), a um só tempo, de caráter moral e social. A dimensão da performance no campo da não-ficção desloca a abordagem do tipo de relação entre os atores sociais e a narrativa documentária de uma tradicional oposição entre verdade e mentira, entre realidade e atuação.5 Ela faz incorporar, no encontro instaurado pela experiência documental, a noção de que há uma ordem de atuação presente em qualquer interação social. 5 Em outro trabalho, Goffman (1974) analisa especificamente a dimensão da performance que se pretende assumida como tal – ou seja, a atuação propriamente dita. Para o autor, a diferença se dá por uma ordem ritual que emprega uma moldura (frame) distinta e que acaba por conformar a resposta à interação. A moldura funcionaria como uma “dica” para que os participantes da interação diferenciem entre a performance como atuação teatral (Goffman a nomeia theatrical frame) e a performance como dado das relações intersubjetivas. Com tal reflexão como base, James Naremore (1988) empreende uma abordagem específica das implicações estéticas e ideológicas da atuação/performance no cinema ficcional. É interessante notar como, no início do livro, Naremore vai apresentar seus argumentos estabelecendo níveis de diferenciação de performances no filme de Charles Chaplin, Auto Kid’s Race (1914), justamente entre a performance no dia-a-dia, que ele chama de “acidental”, e a performance do ator. As considerações de Naremore sugerem que o cômico, nesse filme, é estabelecido justamente através do reconhecimento, por parte do espectador, da diferença dessas duas performances; portanto de um protocolo de leitura distinto: “This suggests that people in a film can be regarded in at least three different senses: as actors playing theatrical personages, as public figures playing theatrical versions of themselves, and as documentary evidence.” (p. 15) Se pensarmos o termo performance num sentido amplo, afirma o autor, ele cobrirá os três aspectos.

224

Acredito que, ao cabo, o estatuto e o dilema do personagem do documentário – sujeito socialmente localizado, em interação com outro sujeito socialmente localizado (atravessados pelas relações de poder que isto implica) – está no constitutivo processo de formulação e negociação de uma narrativa de si que fica expressa por intermédio de uma performance que lhe é solicitada pela experiência do encontro proporcionada pelo documentário; esteja tal encontro explícito ou não no interior do discurso fílmico. Jogo de cena trata de explicitar essa dimensão recolocando para nós, espectadores, as agruras dessa questão. Ele nos faz duvidar da noção de performance como atuação/falsidade e acreditar, diria mesmo abraçar, a noção de performance tal como teorizada aqui a partir de Goffman. E assim o faz quando estrutura seu dispositivo apresentando, ao longo da narrativa, entrevistas de mulheres com o diretor no palco de um teatro vazio. Entre as entrevistadas estão atrizes, algumas delas famosas por sua exposição na mídia, que representam para a câmera, a pedido do diretor, os depoimentos de mulheres comuns colhidos previamente. Costurando lado a lado todas as falas, o filme coloca em cena seu instigante jogo em que as performances de atrizes e mulheres “reais” problematizam a vida feminina e os regimes de legitimação das falas e fabulações de si. Num dado momento do filme, Fernanda Torres repete incessantemente “que loucura, Coutinho, que loucura!”, surpresa por não conseguir completar sua atuação. O que a paralisa: a emoção do depoimento? Seu lastro no real? Ou a “falha” na gestão da autoimagem da atriz que ali, naquele momento, não completou sua performance? Todo esse debate que toca em questões de fabulação do discurso e estatuto de realidade, embora explicitado em Jogo de cena, não é novo na obra de Coutinho. Em todos os seus filmes, a problemática da constituição da performance do personagem, do processo de autofabulação frente à experiência de encontro proposta pelo documentário, interpela a narrativa. Muitos pesquisadores e teóricos se dedicaram a analisar tais

225

questões definindo a obra do diretor a partir de uma filosofia de encontro.6 O conceito de performance, contudo, não consta nessas reflexões. Embora não oblitere as considerações desses autores (cf. Lins, 2004, e Xavier, 2003b), argumento que a dimensão da performance é não apenas presente, mas central na obra de Coutinho. É ela que pode dar conta dos processos pelos quais os personagens se apresentam ao diretor, em um intenso diálogo com a imaginação melodramática, por exemplo, mas, também, dá conta do processo pelo qual o próprio diretor se fabula como um personagem de seus filmes, constituindo-se como o grande elemento de continuidade da narrativa, baseando em tal fato a autoridade (testemunhal) sobre a qual se estruturam seus filmes. Mais ainda, é a ideia de performance, colocada como ferramenta teórica, que torna produtivo pensar nos mecanismos de fabulação do personagem, e mais especialmente no contexto contemporâneo atravessado pela cultura midiática do espetáculo. Em Jogo de cena, a atriz Marília Pêra (atuando a partir do depoimento de Sarita) tece comentários sobre o verdadeiro estatuto da representação da emoção, distinguindo entre a lágrima vertida livremente, da ordem da falsidade, e a lágrima contida, da ordem da sinceridade. Esta fala, na verdade, condensa um dos eixos de questionamento do filme como um todo – problematizando assim o excesso espetacular e melodramático das representações da emoção na cultura midiática. A atuação da atriz é contida em relação à performance de Sarita. É no mínimo irônico que o filme termine com um cruzamento das duas colocando em cena as estratégias do repertório melodramático: a música que emociona e simboliza, exacerbada e obviamente, a um só tempo pai e a filha. A imagem é de Sarita; o som ecoa as vozes das duas personagens, a atriz célebre e a mulher “comum”. Na sequência final, apresentam-se as performances de ambas. 6 A dimensão da fala a que me refiro está desenvolvida em Lins (2004), e a da filosofia do encontro, em Xavier (2003).

226

As performances das mulheres de Jogo de cena dão conta de um cotidiano, ou melhor, da narração de um cotidiano que constrói, ali, naquele palco (célebre lugar justamente do não-cotidiano, do extraordinário) um mosaico da condição feminina. Como, então, seria possível para Estamira entrar no palco de Jogo de cena? Sua performance, exacerbada, excessiva na auto-fabulação (e que é reiterada pelo excesso das estratégias narrativas do próprio filme), parece extraordinária em si. Associar o que se passa com a protagonista do documentário de Marcos Prado como performance do cotidiano, da mulher ordinária, pareceria, a primeira vista, uma heresia com a personagem. Contudo, o projeto do filme é justamente esse. Retirar Estamira do estigma da loucura, trazendo suas performances para um certo sentido de cotidiano, explicando-as a partir do trauma social. Sendo assim, o que poderia parecer explosão de loucura acaba sendo quase uma expressão de poder de superação. Somos levados a encarar Estamira – sua intimidade, seu dia-a-dia – a partir de suas performances, claramente direcionadas à câmera e a quem está com ela, embora o diretor não esteja explicitamente visível (como no caso dos filmes de Coutinho). É possível perceber no filme todo um movimento de aproximação com a personagem que acaba por compor um discurso de entendimento e admiração a despeito dos elementos grotescos, de loucura e de perturbação que transbordam das falas de Estamira. Já argumentei em outras análises que um diálogo com a imaginação melodramática – sobretudo colocando estrategicamente em uso as três categorias estéticas centrais a este universo – convida o espectador a estabelecer uma espécie de aproximação com a personagem marginalizada, subvertendo, em decorrência de um efeito afetivo de intimidade, o estigma. Quero reiterar aqui, contudo, que este diálogo incide sobre a performance de Estamira, convidando-nos a ultrapassar o tradicional efeito de piedade, em favor de uma associação entre poder

227

e eloquência, consolidando o engajamento com a personagem que a autoriza como narradora. Se a piedade não deve ser a força motriz de Estamira, é necessário, contudo, articular um sentimento de compaixão mobilizado, especialmente na segunda metade do documentário, por pequenas “circularidades” internas à narrativa, que consolidam uma relação causal entre os diversos traumas sociais sofridos pela personagem e as explosões de sua performance, como que oferecendo uma explicação à sua declarada perturbação mental. Nesse sentido, é importante notar como o filme investe em mostrar Estamira como “poder”, igualando seus rompantes, simbolicamente, às forças da natureza, para, depois, explicar a raiz de suas falas com base na rememoração dos diversos traumas e violências sofridos pela personagem, mostrando-a, muito particularmente, no papel de mãe e de filha. A performance de Estamira transparece sua perturbação: ela grita, fala palavrões, arrota, aparece nua, tira as calças numa briga com seu neto e professa seu ódio por Deus. O dispositivo do filme retrabalha essas performances de maneira a legitimá-la como narradora e personagem passível de engajamento afetivo. Assim, o documentário corrobora a missão que Estamira se imputa – a de revelar a verdade –, sem a confinar no papel estigmatizado da loucura. Dessa maneira, são colocadas em cena nesse documentário as tensões que dizem respeito à lógica de privatização da vida pública, às encenações da memória e da intimidade, mas, sobretudo, que dizem respeito à autoridade do sujeito em encarnar o público e o social, em si. Questões concentradas na performance de Estamira para a câmera e no pacto que se estabelece entre elas. O dilema do filme de Marcos Prado é, portanto, incutir um sentimento de aproximação a despeito do incômodo, e a arma para tanto será um diálogo muito palpável com a imaginação melodramática no nível das performances da personagem. Fazer com que nos engajemos com ela. Os mecanismos de circularidade interna na narrativa (dados

228

pelas estratégias de obviedade e antecipação) e os usos dos constantes símbolos de aproximação física para com a personagem, além dos que circunscrevem uma esfera de definição para ela associada à força de sua performance, são constantemente articulados para gestar tal efeito de proximidade e, correlatamente, engajamento. É notável que Marcos Prado não apareça nem uma única vez ao longo do filme, mas sua presença como instância mediadora, como um olhar para o qual a performance de Estamira é dirigida, se faz visível constantemente através de uma coreografia de troca de olhares entre o plano ponto-de-vista do diretor e a personagem. O que é reforçado pelos vários momentos em que Estamira dirige-se diretamente à câmera, ao diretor e correlatamente aos espectadores. Além disso, Estamira toma o poder da condução da narrativa, sendo a “protagonista” e narradora deste filme. A primeira sequência, imagem em preto e branco, extremamente granulada, mostra-nos planos de detalhes de garrafas ao chão, um cachorro que descansa, e, então, lentamente, imagens de partes do corpo de Estamira, o tronco, os olhos, as mãos. Uma música que trabalha mais intensamente em cima dos instrumentos de cordas e de sons de palavras incompreensíveis (um tema musical que vai percorrer o filme e que se vincula diretamente aos tons da performance de Estamira) pontua constantemente os cinco minutos da sequência desta abertura. Nela, vemos Estamira a esperar o ônibus, os planos se abrem e vamos acompanhando o trajeto da personagem até o Gramacho, que fica a 1 km, como indica uma placa enquadrada pela câmera. Uma constante alternância entre o plano geral e o plano médio marca a sequência em que a personagem vai se aproximando do aterro para mais um dia de trabalho. Aos poucos, vemos Estamira se despir e vestir roupas de trabalho. Nesse momento, a música sobe o tom e ela, agora vestida para trabalhar, levanta a cabeça e encara a câmera. Um primeiro plano de seu rosto mostra um leve balançar de cabeça, gesto

229

que, finalizando a sequência, tem um sentido, ao mesmo tempo, de apresentação, aquiescência e de desafio. Faz-se, então, um fade para a imagem do céu muito azul e a voz off de Estamira, que diz: “A minha missão, além de eu ser a Estamira, é revelar, é, a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem.” A sequência seguinte é um desnudamento quase literal da personagem, que em meio ao lixão vai se banhando enquanto a voz off segue declamando sua missão, usando, em mais de uma vez a palavra vocês: “Vocês é comum, eu não sou comum (...) vou explicar pra vocês tudinho agora, pro mundo inteiro. Eles cegaram o cérebro, o gravador sanguino de vocês e o meu eles não conseguiram...” Dessa maneira, a personagem se apresenta em sua missão, em sua performance, em seu poder de narração, não de maneira acidental, apresentando também o próprio filme; mas expondo a consciência de que toda essa apresentação (de si e do filme) é dirigida a um alguém externo/público circunscrito na presença constante do “vocês”. “Vocês” somos nós, espectadores, que a partir daí entramos no universo da personagem através do filme. Esse é um dos primeiros momentos em que percebemos a instância da negociação entre performances transparentes no filme, a despeito da não-presença física do diretor ou da equipe. Percebe-se a negociação pela interação destemida de Estamira com o aparato fílmico, o qual se dirige claramente à câmera e a uma instância por trás dela, instância que, ao mesmo tempo, é o diretor e os espectadores. A voz de Estamira conduz a montagem por um certo momento, pequeno, mas importante. Sua voz off, depois de proferir sua missão de revelar a verdade, diz: “Ó lá, os morro, a serra, as montanhas. Paisagem e Estamira.” As imagens são exatamente a ilustração de sua fala – primeiro um plano geral do pôr do sol avermelhado que transforma em silueta a serra; depois, Estamira em meio à paisagem do lixão. Nesse momento,

230

assim, Estamira é o poder, é a voz da autoridade do filme, a legítima narração em voz off que tem, seguindo os preceitos estabelecidos pelo documentário clássico, o estatuto de voz da autoridade. Essa pequena inserção autoriza a fala da personagem e vai reverberar ao longo do filme, declarando, desde já, que, não obstante a aparente perturbação dos delírios cosmogônicos, Estamira é a autoridade no filme. Ela se autoriza, sua missão é “revelar a verdade a vocês”, disse a personagem cenas antes, e então o discurso fílmico corrobora. A maneira como a câmera invade a geografia do corpo e da vida de Estamira, com quadros que quase penetram na pele de tão próximos, reitera, a um só tempo, a sensação de proximidade e a presença do diretor e do aparato fílmico como instâncias mediadoras do olhar público sobre a personagem. O que se afirma com tal necessidade de contato direto, visceral, é um pacto de intimidade que é proposto ao longo do filme e que reforça o efeito de proximidade e engajamento. Tal pacto mostra, de um lado, a instância da negociação, e, assim, a colaboração de Estamira, sua aceitação em relação à presença do aparato fílmico diante de sua performance; de outro, incute-nos uma relação com a personagem, que afasta sensações de estranhamento. Outra grande estratégia que revela e valoriza a performance de Estamira é a constante economia de simbolizações, que opera uma relação sinonímica entre o poder e a personagem. Estamira no filme é dotada de força e de autoridade que corroboram a força explosiva de sua fala. Assim é que, ao longo dos primeiros 45 minutos de filme, ela é constantemente igualada à imagem do raio e sua fala é associada ao som da tempestade, sobretudo montando, coreograficamente, o gestual de Estamira e os ruídos do trovão e vento. Tais imagens e, sobretudo, tais sons marcam um efeito simbolicamente exacerbado de presentificação da força explosiva da personalidade de Estamira. Lugar onde reside ao mesmo tempo sua perturbação mental e seu apelo enquanto personagem; o que, tal como as tempestades, faz

231

presente o fascínio e a apreensão, sumarizando assim o que parece ser a própria visão do filme sobre Estamira. É interessante notar que é justamente a partir do momento em Estamira se iguala à tempestade que o filme passa a recontar um pouco mais linearmente a história de sua vida, incorporando depoimentos dos seus filhos, a rememorar os traumas pelos quais ela passou. Essas passagens, entrecortadas pelo discurso da personagem, são organizadas seguindo o preceito do que Bill Nichols (1991) chama de continuidade retórica, estabelecendo, assim, discursos de explicação para as perturbações da personagem. A partir desse momento, o filme abandona um pouco o uso da rede simbólica que vincula Estamira à tempestade em prol de um discurso mais explicativo, sedimentando, com isso, a ideia de que aqueles rompantes de força têm uma razão de ser. A despeito disso, as performances da personagem seguem pontuando o filme, revestidas, mais ainda pela narrativa de explicação, por uma aura de força explosiva. Tal associação será retomada na sequência final, em que se vê Estamira a enfrentar as ondas do mar. Estas performances de Estamira são seu cotidiano, e é por serem assim que ela não é mero estigma, mas transita entre o lugar da loucura e o lugar do poder. Considerações finais para se desdobrarem no futuro É porque se trata de uma noção de performance constitutiva das relações intersubjetivas que se pode tratá-las como da ordem do cotidiano, do mais absolutamente ordinário, ainda que pareça elencada ao extraordinário pelo discurso fílmico. O encontro entre Estamira e as mulheres de Jogo de cena nos conduz a pensar sobre isso. E, mais ainda, a desdobrar a reflexão (apenas lançada por hora) para questionar os trânsitos entre o comum e o espetacular. Afinal, se o conceito de performance é pertinente para o campo do documentário de maneira geral, ele é ainda mais fecundo para colo-

232

car em questão os problemas levantados pelo documentário contemporâneo. Não apenas porque este se funde na dimensão performativa, mas porque ele parece lidar mais amplamente com as implicações de cenário de hipertrofia da vida privada e do adensamento da sociedade do espetáculo, que condensou a disseminação de uma cultura midiática. Os personagens do documentário contemporâneo acabam por colocar em cena um outro tipo de performance, que se soma à performance do papel social: eles performam a intimidade e a imagem de si. Fabulam-se como personagens em seus cotidianos. Assim o faz Estamira, assim o faz cada uma das entrevistadas em Jogo de cena. O encontro proposto pelo documentário – a “convocação” ao sujeito se constituir como personagem de uma narrativa – compele os atores sociais a realizarem performances de si, de sua interioridade, de seu “eu”, recontando, para isso, histórias de sua vida privada, donde se depreendem seus múltiplos papéis sociais. O que me parece ser, cada vez mais, um dado do contemporâneo é que tal performance acaba atravessada por um saber disseminado no senso comum a partir da intensificação da cultura midiática. Tal performance é tornada explícita e problematizada em um conjunto cada vez maior de filmes brasileiros, o que nos possibilita antever a constituição e as implicações de um saber midiático, o qual parece ser colocado em ação justamente através das autofabulações dos personagens. Ao cabo, este parece ser o elemento constitutivo do personagem do documentário contemporâneo. Sendo transpassados pelo saber midiático – que se consolida a partir da uma certa pedagogia das representações dos sujeitos nas narrativas construídas pelos códigos de representação midiáticos – os personagens acabam se fabulando a partir desses códigos. Aos discursos fílmicos, cabe o lugar de enfrentar os desafios de lidar com tal contexto, aceitando-o, e com isso reiterando sua lógica espetacular, ou problematizando-o (mesmo que para tanto empreendam, intertextualmente, estratégias fundantes deste mesmo saber midiático).

233

É inegável que o universo do documentário contemporâneo esteja amplamente afetado por um cenário já densamente analisado em diversos autores, como Richard Sennett (1988 e 1998), Zygmunt Bauman (2004 e 1999), Anthony Giddens (1993 e 1991) e Frederic Jameson (2004 e 1995), entre outros. Uma paisagem que parece reestruturar o estatuto do personagem nas narrativas, fazendo com que a exposição de sua vida e história privadas seja, cada vez mais, o fio condutor das histórias contadas. As performances são sempre, e cada vez mais, pautadas por um jogo de olhar, ser olhado e saber se portar diante disso. Tal saber (que proponho, inicialmente, chamar de midiático), compartilhado e disseminado no senso comum, seria acarretado pela cristalização do imaginário midiático. Tal consciência do sujeito histórico em se performar como personagem para uma narrativa midiática atravessa tanto o Big Brother e outros Reality Shows, quanto os depoimentos ao final da novela Páginas da Vida (de autoria de Manoel Carlos, exibida no horário das 8, na TV Globo, entre 2006 e o início de 2007), passando pela atuação no Twitter e outras redes sociais em que o estilo de cada um é constantemente gerido narrativamente (através das suas performances de si). “O lugar do espectador é – ele também – uma construção histórica, relativa, dependente de forças econômicas e dos desafios ideológicos tanto quanto das performances tecnológicas. No momento atual, o cinema não é mais o laboratório onde se inventa o novo espectador. Essa tarefa é das televisões”, escreve Comolli em Ver e poder. Ao cabo, o que Comolli está apontando é como somos atravessados por uma subjetividade que se molda a partir da língua do espetáculo, uma língua amplamente falada na cultura midiática. O personagem dos documentários contemporâneos, invariavelmente espectadores versados nessa língua, conformam sua performance, ou a negociam, a partir deste lugar, inventado e reinventado no interior da lógica espetacular. É com ela que o documentário contemporâneo parece lidar. É a partir dela que se reinventa também, como crítica possível, como encontro político possível.

234

O jogo proposto pelas mulheres de Jogo de cena, bem como pela performance de seu diretor, assim como pelo encontro com Estamira em seu documentário, nos dá a ver tais questões. Que ordem de performances são essas? Quais seus limites e de que forma as apreendemos?

235

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1962. ADORNO, Theodor. “O ensaio como forma”, in: Adorno, T. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34 e Duas Cidades, 2003. Adorno, Theodor. Nota de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins: notes sur la politique. Paris: Payot et Rivages, 2002. Anderson, Perry. The Origins of Postmodernitiy. NY: Verso, 2002. ARDENNE, Paul. Un Art contextuel: création artistique en milieu urbain, en situation, d’intervention, de participation. Paris: Flammarion, 2002. Avellar, José Carlos. “Eu sou trezentos”. Cinemais, nº 36, outubro/ dezembro, 2003. Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. (Primeira Edição: 1929). 11ª Edição. BALTAR, Mariana. “Pacto de Intimidade – ou possibilidades de diálogo entre o documentário de Eduardo Coutinho e a imaginação melodramática”. Artigo apresentado no XIV Encontro da Compós – GT Fotografia, Cinema e Vídeo, Niterói, RJ, 2005. Baltar, Mariana. “Realidade lacrimosa: diálogos entre o universo do documentário e a imaginação melodramática.” Orientador: João Luiz Vieira. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Curso de Pós-Graduação em Comunicação, 2007. Barthes, Roland. “The Reality Effect”, in: The Rustle of Language. NY: Hill and Wang, 1986. BARTHES, Roland. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

236

Bauman, Zygmunt. Amor Líquido: sobre fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Bauman, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. BEIGUELMAN, Giselle. “Assim é se não lhe parece”. Endereço eletrônico: http://www.videobrasil.org.br/ffdossier/ffdossier001/ ensaio.pdf (acesso em 29 de novembro de 2005) BENJAMIN, Walter. “A imagem de Proust”, in: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BENTES, Ivana. “Arthur Omar: o êxtase da imagem”, in: Antropologia da face gloriosa. São Paulo: Cosac e Naify, 1997. BENTES, Ivana. “Redes colaborativas e precariado produtivo”. Caminhos para uma Comunicação Democrática, in: Le Monde Diplomatique e Instituto Paulo Freire. São Paulo, 2007. BENTES. Ivana. Favelas Globais (pesquisa em andamento). 2009. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Bernardet, Jean Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte húngaro, in: Maria Dora Mourão e Amir Labaki (orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. Bernardet, Jean Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo, Cia das Letras, 2003. BERNARDET, Jean-Claude. “Jogo de cena”, 14/01/2008. Disponível no “Blog do Jean-Claude”, em: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/ BERNARDET, Jean-Claude. “Novos rumos do documentário brasileiro?”. Catálogo do forumdoc.bh.2003 – VII Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2003, p. 24-27. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’água, 1984.

237

BOLTANSKI, Luc ; CHIAPELLO, Ève. Le Nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999. BRAGANÇA, Felipe. “Mestres dos mestres”. Revista eletrônica Contracampo, 2004. Disponível em: http://www.contracampo.com. br/58/jeanrouch.htm BRASIL, André. “Ensaios de uma imagem só”, in: Devires, Belo Horizonte, v.3, n.1, jan-dez., 2006. BRASIL, André. “A tela em branco: da origem do ensaio ao ensaio como origem”. Trabalho de apresentação ao GT Fotografia, Cinema e Vídeo, XVIII Encontro Anual da Compós, Puc-BH, Belo Horizonte, MG, 2009. BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004. Brooks, Peter. The Melodramatic Imagination Balzac, Henry James, Melodrama and the Mode of Excess. Yale University Press, 1995. (edição original: 1976). BRUNO, Fernanda. “Jogo de cena”, 2007. Disponível no blog “Dispositivos de visibilidade e subjetividade contemporânea”, em: http://dispositivodevisibilidade.blogspot.com/2007/11/jogo-de-cena.html CANCLINI, Néstor García. “Prefácio” a Culturas Híbridas. Barcelona: Paidós, 2001. Canetti, E. Massa e poder. Tradução de Sergio Rellaroli. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. “Surrealismo”, in: História do cinema mundial (org. Fernando Mascarello). Campinas: ed. Papirus, 2006. CASSIN, Bárbara. Voir Helène em toute femme. Paris: Institut SanofiSynthélabo, 2000. CASTRO, Edgardo. El vocabulário de Michel Foucault. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2004. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

238

COMOLLI, Jean-Louis. Voir et Pouvoir – L’innocence perdue: cinema, télévision, fiction, documentaire. Paris: Éditions Verdier, 2004. COMOLLI, Jean-Louis.“Os homens ordinários. A ficção documentária”, in: C. Guimarães, G. Otte e S. Sedlmayer (org), O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: UFMG, 2007. DANEY, Serge. Cine, Arte del Presente. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2004. DA-RIN, Silvio. “Verdade e imaginação”, in: Espelho partido – tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. Debord, Guy . A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988 DELEUZE, Gilles e Claire Parnet. “Da superioridade da literatura anglo-americana”, in: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Crítica e clínica. São Paulo: ed. 34, 1997. DELEUZE, Gilles. “Lettre à Serge Daney: optimisme, pessimisme et voyage”, in: Deleuze, G. Pourparlers (1972-1990). Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. DELEUZE, Gilles. “Postulados da linguística”, in: Mil platôs – volume II. São Paulo: Ed. 34, 1995. DELEUZE, Gilles. “Sobre o capitalismo e o desejo”. In: A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2005. DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa, Vega, 1996. DELEUZE, Gilles.“As potências do falso”, in: A imagem-tempo. SP: Editora Brasiliense, 2005. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, critique, 1980. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

239

DETIÈNNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. DURAS, Marguerite. O amante da China do Norte. São Paulo: Nova Fronteira, 1992. EDUARDO, Cléber. “Pan-Cinema Permanente: tudo é efeito”. Revista Cinética, abril de 2008. Disponível em: http://www.revistacinetica. com.br/pancinema.htm EDUARDO, Cléber. “Subjetividade mediada: entre a classe social e a família universal”. Revista Cinética, março de 2007. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/santiagocleber.htm FELDMAN, Ilana. “Santiago sob suspeita”, in: Trópico. agosto-setembro de 2007. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/ textos/2907,1.shl FELDMAN, Ilana.“Moscou: do inacabamento ao filme que não acabou”, in: revista Cinética, 2009. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/moscouilana FELDMAN, Ilana.“O apelo realista”, in: Revista FAMECOS, dossiê “Menções de Destaque – Compós 2008”, Porto Alegre, nº 36, 2008. Disponível em: http://revcom2.portcom.intercom.org.br/ index.php/famecos/article/viewFile/5472/4970 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – vol.1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. FRANÇA, Andréa. “Viagens nas fronteiras do Brasil e do cinema”. Devires: Cinema e Humanidades, v. 4, nº2. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007. Frisby, David. Fragments of Modernity: Theories of Modernity in the Work of Simmel, Kracauer, and Benjamin. Cambridge: MIT Press, 1988.

240

Giddens, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. Giddens, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1993. Giddens, Anthony. Modernity and Self Identity: Self and Society in the Late Modern Age. Stanford: Stanford University Press, 1991. GIL, Fernando. Representar. In Enciclopédia Enaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000. Goffman, Erving. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience. Cambridge/Massachusetts, Harvard University Press, 1974. Goffman, Erving. Interaction Ritual: Essays on Face-to-face Behavior. NY: Doubleday/Anchor, 1967. Goffman, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. Doubleday, 1959. GUIMARÃES, César. Dossiê do II Simpósio Comunicação e Experiência Estética (mimeo). GUIMARÃES, César. Imagens da memória. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997. GUTIÉRREZ ALEA, Tomás. Dialética do espectador. São Paulo: Summus, 1984. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. http://www.intercom.org.br/papers/congresso2003/pdf/2003_ NP07_machado.pdf (acesso em 29 novembro de 2005) http://www.videobrasil.org.br/ffdossier/ffdossier002/Wagner%20 Morales.pdf (acesso em 29 de novembro 2005) ISHAGHPOUR, Youssef. “O real, cara e coroa”, in: Abbas Kiarostami (São Paulo: Cosac & Naify, 2004).

241

Jameson, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995. Jameson, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Jourdheuil,J. “Préambule” in Manuscrits de Hamlet-Machine – Transcriptions-traductions, de Heiner Müller. Les Éditions de Minuit, Paris, 2003 Kahana, Jonathan R. “Intelligence work: documentary in the American political imagination.” Tese. New Jersey: The State University of New Jersey, 2001. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos de feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008. LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. Lins, C. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão Cinema e Vídeo. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2004. LINS, Consuelo & MESQUITA, Cláudia. Aspectos do documentário contemporâneo brasileiro (1999-2007). Campinas: Papirus, 2008. LINS, Consuelo & MESQUITA, Cláudia. Filmar o real - sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. LINS, Consuelo. “O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo”, in: Sobre Fazer Documentários. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. LINS, Consuelo. “Tempo e dispositivo no documentário de Cao Guimarães”, in: Devires – Cinema e Humanidades. Belo Horizonte: UFMG, V.4, nº 2, jul/dez 2007. LINS, Consuelo. Eduardo Coutinho – televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. “Crer, não crer, crer apesar de tudo - a questão da crença nas imagens na recente produção documental brasileira”. Trabalho apresentado ao XVII Encontro

242

Anual da Compós – GT Fotografia, Cinema e Vídeo. UNIP, São Paulo, SP, 2008. LOPES, Silvina Rodrigues. “Do ensaio como pensamento experimental”, in: Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval: 2003. LUZ, Rogerio. Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002. MACHADO, Arlindo. “As linhas de força do vídeo brasileiro”, in: Três décadas do vídeo brasileiro (org. Arlindo Machado). São Paulo: Itaú Cultural, 2003. MACHADO, Arlindo. “O filme-ensaio”. Endereço eletrônico: MÉNIL, Alain. “Entre utopie et héresie: quelque remarques à propos de la notion d’essai”, in: S. Liandrat-Guignes et M. Gagnebin (org) L’essai e le cinéma. Paris: Champ Vallon, 2004. MESQUITA, Cláudia e SARAIVA, Leandro (orgs). Catálogo da Retrospectiva Diretores Brasileiros – Eduardo Coutinho (Cinema do Encontro). São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003. MESQUITA, Cláudia. “Histórias de luta”, in: Retrato do Brasil nº 6 (Os limites do cinema brasileiro). São Paulo: Revista Reportagem, edição 75 [ano 5], janeiro-fevereiro de 2006. MESQUITA, Cláudia. “Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil”. In: Sobre Fazer Documentários. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. MÉSZáROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004. Migliorin, C. “O dispositivo como estratégia narrativa” in Cinegrama – Revista Acadêmica de Cinema n. 3, 1º semestre de 2005. Rio de Janeiro. MIGLIORIN, Cezar. “Jogo de cena de Eduardo Coutinho (2)”. Disponível em: http://a8000.blogspot.com/2007/10/jogo-de-cena-deeduardo-coutinho-2.html MIGLIORIN, Cezar. “Man.road.river e Da janela do meu quarto: experiência estética e medição maquínica”, in: revista Contracampo. Endereço

243

eletrônico: http://www.contracampo.com.br/67/manroadriverjanela.htm (acesso em 29 nov. 2005) MOSCOVICI, Serge. Representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2003. Mota, R. A épica eletrônica de Glauber Rocha – Um estudo sobre cinema e TV, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2001. Naremore, James. Acting in the Cinema. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1988. Navarro, Vinicius. Ordinary Acts: Performance in Non Fiction Film – 1960-1967. Tese de doutorado. NY: New York University, 2005. NEGRI, Antonio. Fabrique de porcelaine: pour une nouvelle grammaire du politique. Paris: Stock, 2006. Nichols, Bill. Blurred Boundaries. Questions of Meaning in Contemporary Culture. Indianapolis: Indiana University Press, 1994. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. NICHOLS, Bill. La representación de la realidad. Barcelona: Paidós, 1997. Nichols, Bill. Representing Reality. Bloomington, Indianapolis: Indiana University Press, 1991. NOVAES, Adauto (Org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Senac, 2005. OMAR, Arthur. “O anti-documentário provisoriamente”. Cinemais, n. 8., p. 179-203, 1990. PONTBRIAND, Chantal. “Éclats du documentaire”, in: Mouvement. Endereço eletrônico: http://www.mouvement.net/html/fiche. php?doc_to_load=9708 (acesso em 29 de novembro 2005) PRADO Jr., Plinio Walder. “Confessions (III) – Structure du Double”. Texto de apresentação do curso de mesmo nome, no âmbito da Faculdade de Filosofia da Universidade Paris 8, ocorrido em 2008/2009. QUINTANA, Àngel. Fábulas de lo visible. Barcelona: Acantilado, 2003. Ramos, Fernão (org). Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade ficcional – volume II. São Paulo: Senac São Paulo, 2005. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo um documentário? São Paulo: Senac, 2008.

244

RANCIÈRE, Jacques. “Política da Arte”, transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A.: práticas estéticas, sociais e políticas em debate”. (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005). RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível - estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. RANCIÈRE, Jacques. La Mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée, 1995. RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004 RANCIÈRE, Jaques. Le spectateur emancipe. Paris: La Fabrique Éditions. 2008 Renov, Michael. The Subject of Documentary. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004. Collection Visible Evidence – volume 16. RODRIGUES, Silvina. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval: 2003. ROSA, Guimarães. “O espelho”, in: Primeiras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. ROYOUX, Jean-Christophe, “The Time of Re-departure: after cinema, the cinema of the subject”, in: Art and the Moving Image – a Critical Reader (org. Tanya Leighton). Londres: Tate Publishing, 2008. SADOUL, Georges. El cine de Dziga Vertov. México: Ediciones Era, 1973. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. Saraiva, Leandro. “Big Brother Brasil e Edifício Master: espetáculo e anti-espetáculo. Sinopse Revista de Cinema, número 11, ano VIII, setembro, 2006. Sarlo, B. Tiempo Passado: Cultura de La Memoria y Giro Subjetivo. Uma discusion. Siglo XXI Editores, Argentina, 2005. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Unesp, 2005. SENNETT, Richard. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

245

Sennett, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia das Letras, 1988. (edição original: 1974/1976). SENRA, Stella. “Como animais que morrem”. In: Devires, Belo Horizonte, v.4, n.1, p.104-121, jan.-jun. 2007. SENRA, Stella. “Interrogando o documentário brasileiro”, in: Sinopse – Revista de Cinema, nº 10, ano IV, dez. 2004. SEVERINO, Antonio Marcos Vieira. “Pequenas notas sobre o ensaio”. In: revista História Unisinos, vol. 08, n.10, julh./dez., p. 97-106, 2004. SIBILIA, Paula. O show do eu – a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. SIQUEIRA, Marília Rocha de. “O ensaio e as travessias no cinema documentário”. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, junho de 2006. Smith, Murray. Engaging Characters: Fiction, Emotion and the Cinema. Oxford: Carendon Press, 1995. STAROBINSKI. Jean. “Peut-on définir l’Essai?”, in: Jacques Bonnet (org). Jean Starobinski. Collection Cahiers pour un Temps. Paris: Centre Pompidou, 1985. Vieira, João Luiz. “Cinema e performance”, in: Ismail Xavier (org.) O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Waugh, Thomas. “Acting to play oneself: notes on performance in documentary”, in: Carole Zucker (org). Making Visible the Invisible: an Anthology of Original Essays on Film Acting. Metuchen, N.J, Scarecrow Press, 1990. Winston, Brian. Claiming the real: The Griersonian Documentary and its Legitimations. London: BFI Publishing, 1995. Xavier, Ismail. “Anotações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna”. Cinemais n. 36, out-dez. 2003. Rio de Janeiro.

246

Xavier, Ismail. “Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna”, in: Cinemais , nº 36, outubro/ dezembro, 2003. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005. XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. ZACCAGNINI, Carla. “Wagner Morales”. Endereço eletrônico: Filmografia DETANICO, Ângela e LAIN, Rafael. 2003. Flatland. Brasil, vídeo, cor, som, 7’. L, Marcellvs. 2004. Man.road.river. Brasil, mini DV, cor, som, 9’27’’. L, Marcellvs. 2005. Man.canoe.ocean. Brasil, mini DV, cor, som, 12’21’’. MORALES, Wagner. 2003. Filme de guerra. Brasil, vídeo, cor, som. MORALES, Wagner. 2003. Filme de horror. Brasil, vídeo, cor, som, 5’30’’. MORALES, Wagner. 2003. Ficção científica. Brasil, vídeo, cor, som, 6’25’’. MORALES, Wagner. 2003. Cassino, filme de estrada. Brasil, vídeo, cor, som, 14’. ROCHA PITTA, Tiago. 2007. Herança. Brasil, cor, 16mm digitalizado, 11’. ROCHA PITTA, Tiago. 2005. Fonte dupla ou Paisagem cozida. Brasil, cor, 16mm digitalizado, 14’. ROCHA PITTA, Tiago. 2002. Homenagem a JMW Turner. Brasil, cor, 16mm digitalizado, 17’.

247

Sobre os autores

André Brasil - Pesquisador, ensaísta e curador. Com doutorado pela UFRJ, André Brasil é professor do Departamento de Comunicação da UFMG. Organizou o livro “Cultura em fluxo” (com Geane Alzamora e Carlos Falci) e o dossiê “Estéticas da Biopolítica” (com Cézar Migliorin, Ilana Feldman e Leonardo Mecchi), publicado pela Revista Cinética. Participou da curadoria e do juri de festivais e editais públicos, tendo sido responsável pela MostraVídeo do Itaú Cultural, ao longo de 2006. Atualmente, desenvolve o projeto “Ensaio sobre o inacabado”, que prevê a produção de filme, site e livro. Andréa França é pesquisadora do CNPq. Professora da graduação e do Programa de Pós-graduação no Departamento de Comunicação Social da PUC/RJ. Autora de Cinema em Azul, Branco e Vermelho – a trilogia de Kieslowski (Sette Letras, 1996), de Terras e fronteiras no Cinema político contemporâneo (Faperj, 2003),  e organizadora, junto com Denilson Lopes (UFRJ), da coletânea Cinema, globalização e interculturalidade (ed. Argos, no prelo). César Guimarães é doutor em Literatura Comparada pela UFMG, com pós-doutorado em Cinema e e Filosofia pela Universidade Paris VIII. Pesquisador do CNPq e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG. Autor de Imagens da memória: entre o visível e o legível (Ed. da UFMG) e co-autor de O comum e a experiência da linguagem, e Comunicação e Experiência estética (ambos pela editora da UFMG). É editor da revista Devires: Cinema e Humanidades.

248

Cezar Migliorin é professor, pesquisador e realizador. Nos últimos anos teve seus trabalhos em vídeo apresentados em mostras na Tate Modern (Londres), Centre George Pompidou (Paris) e Museu Patio Herreriano (Espanha). Possui diversos artigos publicados em livros e revistas e é colaborador da Revista Cinética. Membro do Conselho Executivo da SOCINE. Professor do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e do departamento de Cinema e Vídeo. Doutor em Comunicação e Cinema (Eco-UFRJ / Sorbonne Nouvelle, Paris III). Cláudia Mesquita é professora no Curso de Graduação em Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora de cinema, com mestrado e doutorado pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Atua como pesquisadora e realizadora de documentários, tendo integrado as equipes de Saudade do Futuro (César & Marie-Clemence Paes, 2000), Peões (Eduardo Coutinho, 2004), Em Trânsito (Henri Gervaiseau, 2005), e co-dirigido, com Junia Torres, Nos olhos de Mariquinha (2008). Tem ministrado com regularidade cursos e oficinas de cinema, assim como publicado artigos em livros e revistas especializadas. Em 2008, publicou, em co-autoria com Consuelo Lins, o livro Filmar o Real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Jorge Zahar Editor). Ilana Feldman é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo e mestre em Comunicação e Imagem pela Universidade Federal Fluminense, universidade pela qual se graduou em Cinema. É colaboradora das revistas eletrônicas Cinética e Trópico, tendo realizado alguns filmes como roteirista e diretora.

249

Ivana Bentes é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ, pesquisadora do campo de Comunicação com ênfase em estética, comunicação, audiovisual, imaginário social, pensamento contemporâneo e cultura digital. Atualmente se dedica a dois campos de pesquisa: Estéticas da Comunicação, Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo (CNPq) e Periferias Globais: produção de imagens no capitalismo periférico. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ, conselheira do Programa Cultura Viva do MinC e participa da Rede Universidade Nômade. É curadora na área de arte, mídia, audiovisual. Ismail Xavier é professor de Cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP; foi Professor Visitante da New York University (1995), da University of Iowa (1998), da Université Paris III-Sorbonne Nouvelle (1999), da University of Leeds (2007) e da University of Chicago (2008); publicou, entre outros livros, O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência (Paz e Terra, 1977, 3ª. Edição 2005), Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome (CosacNaify 2007, 2ª. edição), Griffith: o nascimento de um cinema (Brasiliense, 1984), Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal (Brasiliense, 1993), O cinema brasileiro moderno (Paz e Terra, 2001), O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues (Cosac Naify, 2003), Ismail Xavier – encontros, Adilson Mendes - org. (Azougue, 2009). José Carlos Avellar Crítico de cinema, autor, entre outros, dos livros O Cinema Dilacerado, editora Alhambra, Rio de Janeiro, 1986; Deus e o Diabo na Terra do Sol, editora Rocco, Rio de Janeiro, 1995; A Ponte Clandestina, editora 34 e Edusp, São Paulo, 1996; Glauber Rocha, editorial Cátedra, Madrid, 2002 e O chão da palavra, editora

250

Rocco, Rio de Janeiro, 2007. Uma seleção de textos encontra-se em www.escrevercinema.com.br Mariana Baltar é professora da UFF, doutora em Análise da Imagem e do Som pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação/ UFF, com passagem pela New York University onde desenvolveu parte das pesquisas para a tese “Realidade Lacrimosa – diálogos entre o universo do documentário e a imaginação melodramática”. Em 2007, integrou a equipe de pesquisa de texto e imagem do Projeto Memória Globo, vinculado à Rede Globo de Televisão, para a organização e editoração do livro Entre tramas, rendas e fuxicos, sobre a história do figurino na teledramaturgia da emissora. Sua pesquisa mais recente envolve o universo dos gêneros que compartilham a mesma matriz cultural do excesso, tais como o melodrama, a pornografia e o horror. Miguel Pereira Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor em Cinema pela USP. Diretor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio de 1978 a 1986 e de 1999 a 2003. Professor de disciplinas da área de cinema desde 1975, na PUC-Rio. Crítico de cinema do jornal O Globo de 1966 a 1983. Co-organizador do livro “Comunicação, Representação e Práticas Sociais” (2004), co-autor do livro “O Desafio do Cinema”. Autor de inúmeros artigos nas revistas Alceu, Cinemais, Semear e Contracampo, entre outras.   Stella Senra é Doutora em Ciências da Informação pela Universidade de Paris II. Foi professora da PUC-SP e é pesquisadora  nas áreas de Cinema, Vídeo e Fotografia. Autora de “O último jornalista Imagens de cinema, Editora Estação Liberdade, 2000, tem ainda

251

algumas dezenas de artigos publicados em livros, revistas acadêmicas e catálogos. Dentre seus ensaios mais recentes está o pós-facio de “Marcados”, Cláudia Andujar, Cosac-Naify, edições em português e inglês, São  Paulo, 2009.

Agradecimentos Cezar Migliorin

Gostaria de agradecer aos meus alunos e colegas do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense pelos ricos debates que temos mantido em torno do documentário. Da mesma maneira, agradeço pelos encontros acadêmicos e afetivos ocorridos nos últimos anos em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará e na Vila das Artes, no Festival de Cinema Etnográfico do Rio de Janeiro, no Cine Esquema Novo de Porto Alegre e no Festival de Curtas de Goiás. Agradeço ainda ao pessoal da Teia, de Belo Horizonte, aos colegas da revista Cinética pela acolhida e estímulo e aos colegas da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine); sem nossos encontros, decisivos em minha formação como pesquisador, este livro não teria sido possível. Individualmente, gostaria de agradecer a algumas pessoas de importância maior na elaboração deste projeto: Beatriz Furtado, Tadeu Capistrano, Tunico Amâncio, Ivana Bentes, Arthur Omar, Paula Sibília, César Guimarães, André Brasil, Ilana Feldman, Joel Pizzini, Alexandre Veras, Max Eluard, Patrícia Guimarães, Philippe Dubois, Ernest Dias, Cao Guimarães, Éder Santos, Ivo Lopes, Leandro Saraiva, Eduardo Coutinho, Jean-Claude Bernardet. Muitíssimo obrigado a todos os autores – José Carlos Avellar, Mariana Baltar, André Brasil, Ilana Feldman, Andréa França, César Guimarães, Cláudia Mesquita, Miguel Pereira, Stella Senra e Ismail Xavier –, simplesmente brilhantes! Dedico este livro a minha mulher, Flavia Oliveira.

Fotos Página 8 - Acidente ( Pablo Lobato e Cao Guimarães, 2006) e Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006) Página 26 - Entreatos (João Salles, 2004) e Vocação do poder (Eduardo Escorel e José Joffily, 2005) Página 44 - Morrinho (Fabio Gavião e Markão Oliveira, 2009) Página 64 - Edifício Master (Coutinho, 2003) Página 80 - Preto e branco (Carlos Nader, 2004) e Do outro lado do rio (Lucas Bambozzi, 2004) Página 96 - Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2003) Página 122 - Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007) e Mutum (Sandra Kogut, 2007) Página 148 - Santiago (João Moreira Salles, 2007) Página 168 - Man.Road.River (Marcellvs L., 2004) Página 180 - Boca de lixo (Eduardo Coutinho, 1992) Página 200 - Uma encruzilhada aprazível ( Ruy Vasconcelos, 2007) e Acidente ( Pablo Lobato e Cao Guimarães, 2006) Página 218 - Estamira (Marcos Prado, 2004) e Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007)

256

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.