ENSAIOS Teoria história & Ciências sociais. Lonfrina: Eduel, 2011

Share Embed


Descrição do Produto

ensaios

teoria, história e ciências sciais

Reitora

Nádina Aparecida Moreno

Vice-Reitora

Berenice Quinzani Jordão

Editora da Universidade Estadual de Londrina

Diretora

Maria Helena de Moura Arias

Conselho Editorial

Ângela Pereira Teixira Victoria Palma Edna Maria Vissoci Reiche Gilmar Arruda José Fernando Mangili Junior Maria Helena de Moura Arias (Presidente) Maria Rita Zoega Soares Marta Dantas da Silva Nilva Aparecida Nicolao Fonseca Pedro Paulo da Silva Ayrosa Rossana Lott Rodrigues

A Eduel é afiliada à

Jurandir Malerba

ensaios

teoria, história e ciências sciais

Londrina 2011

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

Direitos reservados à Editora da Universidade Estadual de Londrina Campus Universitário Caixa Postal 6001 86051-990 Londrina PR Fone/Fax: (43) 3371-4674 e-mail: [email protected] www.uel.br/editora Impresso no Brasil / Printed in Brazil Depósito Legal na Biblioteca Nacional 2011

Para o ICHS e os ichsanos. Still crazy after all these years. E para meus irmãos Júlio, João e Claudia, com carinho

Agradecimentos Meu reconhecimento aos dois consultores ad hoc da EDUEL, cuja leitura crítica e profissional muito proveito teve para a revisão final deste livro, que começou a ser escrito há quinze anos e tanto se beneficiou da generosidade alheia. Certamente estarei cometendo omissões imperdoáveis, mas não poderia deixar de expressar minha gratidão àqueles que, de diversas maneiras, ajudaram a pavimentar minha construção no campo da teoria: Ciro Flamarion Cardoso, Francisco Falcon, Vânia Fróes, Ismênia Martins, Leandro Konder, José Carlos Reis, Ronald Polito, Carlos Fico, Ronaldo Pereira, Paulo Parucker, Claudia Pas, Plínio Freire Gomes, Alcir Pécora, Silvia Zanirato, Sidnei Munhoz, Raimundo Cordeiro, Hélio Rebello, Helenice Rodrigues, Luiz Geraldo Silva, Astor Diehl, Lilia Schwarcz, o pessoal do Seminário Nacional de História da Historiogerafia (UFOP), Georg Iggers, Jörn Rüsen, Masayuki Sato, Lerina Repina, Massimo Mastrogregori, François Dosse, Allan Megill et al...

Sumário

Prefácio, José Carlos Reis, 11

Nota introdutória, 15

I Ficções : ensaio de imaginação histórica, 19

II Memória : entre a história e a historiografia, 35

III Acontecimentos : definições e propriedades, 51

IV Estruturas : Estruturalismo e história estrutural, 85

V Narrativa : história e discurso, 115

VI Historiografia: conceito e prática, 149 VII Processos : Elias, 171

VIII Símbolos: Elias e Bourdieu, 189

9

Prefácio

Qual seria o valor e o alcance científico do debate epistemológico? A discussão teórico-metodológica é relevante? Para Weber, ela só se torna incontornável quando uma ciência entra em crise. Ora, se for assim, a epistemologia da história deve ser a oração matinal de todo historiador, pois, há cerca de 2500 anos, a história existe em constante e saudável crise. Surgiu nos séculos V/IV aC como “obra escrita em prosa e assinada”, opondo-se ao mito, à lenda, ao poeta. Era um olhar novo, que buscava a verdade das mudanças humanas no tempo. Heródoto acreditava ser possível falar das coisas humanas, temporais, com verdade. Depois, a história se confundiu com a mitologia política, o historiador "investigava e pesquisava" para legitimar o poder romano. Depois, a história fundiu-se com a fé cristã, tornando-se o levantamento dos casos em que a Vontade de Deus se expressou. No século XVIII, apesar da busca da “história perfeita” dos séculos XVI/XVII, deixouse dominar pela especulação filosófica e tornou-se uma metanarrativa especulativa, teleológica, utópica. No século XIX, quis outra vez romper com a intuição poética, com a retórica política, com a inspiração artística, com a fé, com a especulação filosófica, e inventou uma nova identidade, "ciência", rendendo-se ao sucesso das ciências naturais, buscando fatos concretos, documentos, e procurando estabelecer impossíveis leis de desenvolvimento histórico. Nos séculos XIX e XX, a história deixouse fascinar por Marx, Weber, Durkheim, e pretendeu tornar-se uma ciência social. No início do século XXI, essa identidade não a satisfaz plenamente e ela volta a se relacionar mais intimamente com a literatura, com a poesia, a psicanálise, o cinema, a publicidade, enfim, retorna a Homero. E tudo indica que, em futuro breve, ela vai se envolver com

prefácio

11

problemas genéticos, físico-químicos, neurocientíficos, ambientais e da eletrônica virtual. Portanto, sempre em crise, a historiografia exige do historiador uma “reflexividade radical”. Para Bourdieu, não há oposição entre teoria e metodologia, pois as opções técnicas mais empíricas são inseparáveis das opções teóricas de construção do objeto. É em função de uma certa construção do objeto que tal método, tal técnica, se impõe; é em função de uma teoria/hipótese que um dado pode funcionar como evidência. As fontes primárias não são provas em si mesmas, são construídas teoricamente por uma história-problema. Por um lado, a historiografia é feita de modo prático, não explícito, inspirada nos clássicos: “faça como eu”. O risco desta “historiografia prática” é tornar-se instrumento da sociedade para se legitimar, uma historiografia oficial, que faz o que todos fazem. Por outro lado, a historiografia é crítica, desafia os critérios correntes do rigor científico, desvencilha-se de encomendas burocráticas, dos problemas oficiais, o historiador torna-se sujeito dos seus problemas, o construtor da sua teoria. Ele pratica a dúvida radical e, de certa forma, põe-se fora da lei. O pré-construído está em toda parte, mas a construção do objeto exige a ruptura epistemológica com as representações compartilhadas. Para Bourdieu, o historiador deve praticar a dúvida radical, por em suspensão tudo que interiorizou como membro da sociedade e como historiador, para manter uma “reflexividade obsessiva”, porque uma prática científica que se esquece de se por a si mesma em causa não sabe o que faz. Um dos historiadores que mais se destaca nessa importante área da pesquisa teórica e historiográfica, que mais pratica essa “reflexividade radical”, que mais problematiza a operação historiográfica, no Brasil, é Jurandir Malerba. Neste livro, Ensaios: Teoria, História & Ciências Sociais, aborda os problemas do conhecimento histórico no século XX, analisa os temas cruciais do pensamento histórico contemporâneo: “história e ficção”, “história e memória”, os conceitos de “acontecimento”, “estrutura”, “narrativa”, “processo”, “símbolo” e “historiografia”. A crise

12

Malerba, Ensaios

atual da história a colocou entre a ciência social e a ficção, entre os Annales e Hayden White, obrigando-a a rever e a ressignificar os seus conceitos e valores. Jurandir Malebra, depois de organizar Lições de História (FGV/2010), que cobre a historiografia do longo século XIX, pré-Annales, agora, oferece estudos sobre a historiografia dos Annales e pós-Annales, indo da história estrutural às querelas pós-estruturalistas. As duas obras oferecem ao profissional e estudante de história um panorama riquíssimo, com análises múltiplas e aprofundadas de quase toda a historiografia contemporânea. José Carlos Reis Departamento de História/UFMG

prefácio

13

Nota introdutória

Para além de seu propósito acadêmico precípuo, este livro cumpre para mim a função existencial de um acerto de contas, um balanço de trajetória. O conjunto de ensaios aqui reunidos reflete os territórios por onde tenho caminhado nos últimos três lustros, pouco mais. A docência de disciplinas teóricas, desde meu ingresso no magistério, superior em 1993, acabou induzindo a um deslizamento natural de minhas atividades de pesquisa da área, de Brasil para o estudo sistemático no campo da mesma teoria, que até muito recentemente caminharam paralelamente. Revolvendo pastas e arquivos, físicos e digitais, percebi que havia acumulado significativo montante de material sobre esses temas com os quais venho ocupando meu tempo de trabalho desde meu ingresso na carreira docente. O conjunto ora reunido constitui-se, em sua maior parte, de artigos publicados em revistas acadêmicas brasileiras, eventualmente de difícil acesso. Para harmonizar o conjunto na obra, alterei-lhes os títulos originais, depurando-se seu sentido ou problema mais central numa única palavra, que agora nomeia cada ensaio, acrescida de um subtítulo. A articulação do conjunto também se evidenciou com maior clareza mercê dessa operação. O título da obra dá exatamente o tom do que consiste o trabalho da reflexão teórica, essa atividade permanente de construção e reconstrução, esse talhar dos conceitos, a moldagem das ideias, enfim, o livre exercício do pensamento; “tentativa” (como, a propósito, Carlo Ginzburg nomeou um belo livro de ensaios1), mas também, como definem alguns dicionários: “exame”, “análise” , “experiência para ver se uma coisa convém ao fim a que se destina”, Ginzburg, Carlo. Tentativas. Morelia, Mx: Universidad Michoacana San Nicolas Hidalgo, 2003.

1

nota introdutória

15

ou ainda, “apre­sentação de um assunto filosófico, científico, histórico ou de teoria literária, que se caracteriza pela visão de síntese e tratamento crítico”. Reunir este conjunto significa também pô-lo à prova, testá-lo, para ir além na reflexão sobre os temas abordados. Abre-se o volume com um texto de juventude, escrito em 2 1994. Tomando de empréstimo o conceitual de Heyden White, talvez não soe exagerado dizer que esse texto foi construído numa modulação irônica. Trata-se, sem dúvida, de um texto juvenil, mas que, com liberdade, apresenta uma série de questões teóricas que estarão presentes em meus estudos posteriores, como o atestará a sequência dos ensaios ora compilados. Seu ponto de partida é a questão que divide historiadores narrativistas e científicos no cenário contemporâneo, a partir do postulado dos primeiros de que nenhuma diferença essencial há entre a narrativa ficcional e a histórica (científica): qual o limite – ético – do uso da imaginação no trabalho de investigação histórica? As relações amiúde tensas entre história e memória, e em particular a reflexão sobre a historiografia como forma de expressão da memória, constituem a matéria do segundo capítulo, inédito até esta oportunidade. Pensar o “acontecimento” foi sempre um imperativo, determinado pelas exigências de minhas pesquisas em história do Brasil. Se entendermos a vinda da corte joanina para o Brasil em 1808 e sua permanência aqui como um fato histórico;3 se me defronto com a Originalmente intitulado “Mortes nas gerais pós-mineração: Escolástica, Hermenêutica, Interdisciplinaridade e Acaso num ensaio de imaginação histórica”, publicado com o mesmo título na Revista do Ifac. Ouro Preto (MG), v.4, p.44-50, 1997. 3 Como foi objeto de minha pesquisa de doutorado que resultou no livro A corte no exílio; civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; e também de outros trabalhos: MALERBA, J. Dramaturgia do poder: o teatro da política do Brasil as vésperas da independência. In: Veronica Salles Reese (ed). Repensando el pasado, recuperando el futuro: Nuevos aportes interdisciplinarios para el estudio de la América colonial. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2005; MALERBA, J. Une “société de cour” sous les tropiques. In: Sophie Chevalier, Jean-Marie Privat (ed). Norbert Elias et l’anthropologie. Paris: CNRS Editions, 2004. 2

16

Malerba, Ensaios

necessidade de pensar a independência brasileira,4 então não há como deixar de encarar o desafio de pensar esse conceito fatídico de “fato” ou “acontecimento” histórico, objeto do segundo capítulo desta obra.5 Na grande impugnação que se fez ao conceito de acontecimento, associado à concepção metódica (dita “positivista”) de história, a historiografia renovadora do século XX, inaugurada por Febvre e Bloch na França dos anos 1920, opunha a essa história episódica, “factual”, événementielle, uma história diversa, não narrativa, mas explicativa, científica e, a partir da geração de Braudel, estrutural. O impacto do estruturalismo fundido por Levis-Strauss primeiramente na antropologia, metastasiado logo por todas as ciências sociais, ainda hoje é fortemente sentido.6 Procuro recuperar, até didaticamente, o contexto de surgimento do fenômeno estruturalista e seu primeiro impacto na história, na desaceleração do tempo histórico e no descentramento do homem em favor das estruturas, quando da afirmação da história estrutural, particularmente no seio da segunda geração dos Annales. Essa matéria do quarto capítulo é preparatória para a discussão desenvolvida no capítulo seguinte, sobre narrativa histórica, o qual, de alguma maneira, alinhava os outros dois anteriores e constitui um conjunto à parte dentro deste volume. O ensaio sobre narrativa começou a ser pensado para um colóquio sobre história da historiografia e teoria da história, realizado em agosto de 2006 na Universidade Federal de Juiz MALERBA, J. Independence-Brazil. In: Encyclopedia of Iberian American Relations. Santa Barbara (CA): ABC-CLIO, J. Michael Francis editor, 2005, p. 564-568; A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006; As independências do Brasil; ponderações teóricas em perspectiva historiográfica, História, São Paulo, v. 24, n. 1, 2005, p. 99-126; Para uma História da Independência – apontamentos iniciais de pesquisa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 165, n. 422, p.59-86, 2004. 5 Originalmente publicado como “Pensar o Acontecimento”, História Revista - Revista do Departamento de História e do Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias/ Universidade Federal de Goiás - Goiânia: Ed. do Mestrado em História, v.7, n. 1/2, p. 117-149, jan/dez. 2002. 6 Principalmente naqueles autores egressos do campo da teoria e da crítica literária. Cf. Lima, 1973; Lima, 2006. 4

nota introdutória

17

de Fora.7 A riqueza dos debates impeliu-me a ampliar as discussões e assumir uma posição mais clara em relação aos desdobramentos radicais da epistemologia pós-estruturalista, convertidos numa historiografia pós-modernista (será que existe uma? Ou será ela não mais que um efeito falaz de linguagem?), eminentemente antirrealista e narrativista. Ao esforço no aprimoramento da construção e do uso prático do conceito de historiografia, venho procurando me dedicar já há algum tempo.8 As reflexões anteriores sobre o estatuto teórico de acontecimento, estrutura, narrativa, sobre o diálogo da história com as ciências sociais, culminam naturalmente, obedecidos os cânones da metodização histórica, na produção de textos de história. Assim, como ensina Rüsen, ao cumprir a função de racionalizadora da pragmática textual, a teoria regula a atividade historiográfica. A historiografia passa a ser parte integrante da pesquisa histórica, cujos resultados se enunciam na forma de um “saber redigido”. (RÜSEN, 2001, p. 45). Os dois últimos capítulos revelam investimentos de estudo em duas matrizes das ciências sociais em que tive que mergulhar, em diferentes momentos, por várias razões, a diversas profundidades. Os capítulos sobre Norbert Elias, tanto quanto o seguinte, que busca pensar possíveis conexões entre Elias e Bourdieu em prol de uma teoria simbólica diversa da estruturalista, foram os únicos já publicados em livros que, porém, encontram-se esgotados e sem sinal de reedição.9 Se os livros esgotaram-se, seus assuntos estão longe disso. No primeiro, faço uma aproximação à obra de Norbert Elias, criticando sua apropriação instrumental pela comunidade acadêmica brasileira, que descartou sua concepção totalizante de evolução social, sua ênfase Este ensaio foi recentemente publicado no Brasil e no México. Cf. Malerba (2007, p. 41-78); Malerba (2007, p. 63-80). 8 Este ensaio foi originalmente publicado como “Em busca de um conceito de historiografia: elementos para uma discussão”, Revista Vária História, Belo Horizonte, v. 17, p. 23-56, 2003. Avancei nessa discussão em Malerba (2006). 9 Sobre Norbert Elias In: Malerba, J. (ed.) A velha História. Campinas: Papirus, 1996. Para uma teoria simbólica: conexões entre Elias e Bourdieu. Cardoso, Ciro F.; Malerba, J. (org). Representações; contribuição a um debate transdiciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 7

18

Malerba, Ensaios

na ideia de processo, para recuperá-lo apenas como precursor de uma história de minudências. A comparação dessa matriz com Bourdieu, reflexão que estofou teoricamente minha pesquisa sobre a corte no exílio, inseriu-se num momento de reflexão sobre a reverência “panaceica” da historiografia brasileira face ao conceito de “representação”, quando da sangria da “nova história cultural” por aqui na década de 1990. Acredito que ambos ainda não perderam sua pertinência vis-à-vis o debate atual. Este volume é a expressão do resultado de um trabalho permanente de reflexão que venho desenvolvendo há anos e que, espero, contribua para animar o debate em nossa área de atividade profissional.

nota introdutória

19

I ficções:

ensaio de imaginação histórica

Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não fosse capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. Borges. Funes, o memorioso. Ficções.

1. Esforço-me por recordar; porém, para além de lembranças e esquecimento, há inúmeros registros. O desafio fora lançado no final da década de 1960 pelos pós-estruturalistas franceses. Desde as impugnações às versões “tradicionais” e realistas da história feitas por autores como Roland Barthes e, radicalmente, Michel Foucault, o grande nó conceitual da teoria da história passara a ser a construção do discurso histórico.1 Hayden White, nos Estados Unidos, assenhoreara-se do pansemiotismo francês para elaborar sua sofisticada tese narrativista. Desde então, um número imenso de teóricos, sobretudo na França e nos Estados Unidos, a maior parte advindos da crítica literária, frequentemente identificados como pós-modernos, passaram a questionar ferozmente a possível existência de uma indistinção entre fato e ficção, história e poesia (literatura). De acordo com essa visão, a história não teria qualquer realidade subjacente como substrato para as afirmações dos historiadores, ou seja, a história não teria qualquer ligação com uma suposta realidade extratextual. Mas não me satisfaz ter-me como um personagem de um texto e admitir que minha vida estivesse já prefigurada antes mesmo de eu ser no mundo. Soa-me demasiado metafísico, senão teológico. Insisto em manter os pés fincados no chão. A tese narrativista, que discutiremos em outro capítulo, afirma aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu Cf. Barthes, 1997 (originalmente publicado em francês em 1967); Foucault, 1992 (a primeira edição francesa é de 1966); White, 1992a (primeira edição em inglês de 1972). 1

ficções

21

uso linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas. De acordo com essa tese, as estórias ficcionais inventadas por Borges e as narrações históricas de Sérgio Buarque de Holanda não diferem uma da outra em nenhum aspecto essencial porque ambas são constituídas pela linguagem e igualmente submetidas às suas regras na prática da retórica e da construção das narrativas. Deste ponto de vista, as narrativas históricas possuem o mesmo status epistemológico que discursos ficcionais produzidos por escritores ficcionistas, como os autores de romance, de modo tal que seria impossível distinguir entre história e ficção. A prudência recomendaria não pender para os extremos. Conforme procurarei argumentar nos capítulos deste livro, não é possível prescindir do realismo histórico. Porém, num momento como este em que vivemos, quando, em função de uma pulverização dos temas de investigação histórica, decorrente de um novo conceito de totalidade traçado a rés do chão de cada objeto, o debate teórico volatiliza-se, enfrentar a discussão teórica da relação entre ficção e história torna-se um imperativo.2 Meu objetivo, neste ensaio, é o de, enquanto ilumino alguns topoi fundamentais da teoria da história – que serão retomados nos capítulos subsequentes –, pensar as possibilidades ilimitadas do uso da imaginação na prática historiográfica, sem, contudo, sentir-me coagido a prescindir do metier de historiador para ter inexoravelmente que me tornar um ficcionista. O ritual acadêmico prescreve, em nome se não de uma objetividade científica, ao menos da delimitação de códigos mínimos para a eficiência intersubjetiva, a clara demarcação de um campo investigativo. De modo que a linha de raciocínio que pretendo desenvolver se limitará a algumas interfaces da história com as outras ciências sociais, excluindo-se dessa forma, o inesgotável debate sobre “interdisciplinaridade” no âmbito epistemológico geral. Nem mesmo as interseções entre história e demais ciências da natureza, como a física ou a biologia – se bem que já exploradas desde há algum tempo – serão aqui contempladas. Pode-se partir da afirmação de que, pelo menos desde os historiadores cientificistas, da virada para o século XX, o problema da interdisciplinaridade já estava posto, se bem que de um modo bastante “imperialista”: certas 2 Esta discussão elevou-se para um patamar muito superior com a obra de Luiz Costa Lima (2006). O presente ensaio fora escrito dez anos antes da publicação da obra de Lima e joga com conceitos que o crítico literário tratou com grande profundidade.

22

Malerba, Ensaios

“ciências auxiliares”, como entre outras epigrafia, paleografia, diplomática, heráldica, numismática e arqueologia deveriam servir à investigação histórica no momento da crítica das fontes. Alguns, com o descrédito até de Langlois e Seignobos (1946, p. 32), reduziam outros campos do conhecimento a bases propedêuticas para a escrita da história, como a “filosofia, direito, finanças, etnografia, geografia, antropologia, ciências naturais etc”. A obsessão por se eliminar qualquer resíduo “subjetivo”, qualquer marca do sujeito cognoscente do produto de seu trabalho intelectual fundava-se num entendimento muito peculiar de ciência histórica, segundo o qual seus objetos seriam fatos únicos, singulares, sendo irredutíveis, portanto, à formulação de leis. Deveria então a história contentar-se, em nome de uma insuspeita objetividade do conhecimento, com a compilação de suas unidades causais, os fatos residentes nos arquivos, para que ciências mais inteligentes, como a sociologia - e depois a antropologia - providenciassem a síntese. Mas, desde já o problema da interdisciplinaridade estava posto. Se esta página do pensamento contemporâneo pode ser mapeada historicamente (DOSSE, 1992), fazê-lo não implica automaticamente equacionar com êxito determinadas pendências teóricas inerentes à questão da interdisciplinaridade dentro das ciências sociais. A “crise de paradigmas das ciências”, de que nos informa Arno Wehling (1992, p. 147-169), com a superação da epistemologia newtoniana desde a relatividade, incidiu diretamente e com gradações diversas nas humanidades. Afirmaríamos que essa seria apenas “uma causa” dentre outras que explicam o “desenvolvimento” das ciências do homem tal como transcorreu no século XX; mas que esse movimento deve inserir-se nas transformações mais latas da humanidade - sobretudo após a Segunda Grande Guerra. Cairíamos então, inevitavelmente, no novo éter redentor que a tudo esclarece: a condição pós-moderna. Não seguirei por essa trilha labiríntica, que parece sempre conduzir a si mesma. Disse “afirmaríamos” inculcando propositalmente na assertiva uma das posições em que ainda, por mais que se insista no contrário, polariza-se o pensamento ocidental, ancestralmente maniqueísta. Falei em “causa” que “explica” o “desenvolvimento”... como poderia ter aludido a “dados” por meio dos quais se “interpreta” uma “manifestação do espírito humano” ou “experiência vivida” - e aí tornar-se-ia patente o polo cognitivo oposto, restando apenas

ficções

23

ponderar que todas as demais posturas teóricas quanto à epistemologia em geral, e da história em particular, oscila em grau dentro desses extremos. Assim, toda uma geração aprendeu em História e verdade, de Adam Schaff (1983). Todo o problema do conhecimento é ainda esse: se existe uma materialidade, ordenada ou não, e em qualquer caso exterior a um “eu” que busco compreendêla em sua lógica interna -, real ou criada por meus instrumentos cognitivos. Conforme a crença e a miopia de cada um, essa lógica material é mais ou menos apreensível, mais ou menos redutível a conceitos, ou meramente um arbítrio da criação mental. Voltarei a este ponto. 2. Concordo com Roger Chartier (1991, p. 175) para quem “toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico”. A especulação teórica não deve ser jamais abandonada, nem constituída como um fim em si mesmo. Assim, foi providencial ter caído em minhas mãos uma documentação curiosíssima, em torno da qual testarei umas poucas possibilidades, dentro das múltiplas práticas interdisciplinares operadas pela historiografia atual. O “acaso” remete, por um lado, a uma concepção de história a que Isaiah Berlin (1959) convencionou chamar “naturalista”: aquela que remonta ao racionalismo cartesiano, passando pelo jusnaturalismo, pelo iluminismo do XVIII, pelas teorias evolucionistas do século XIX (Marx, Comte, Mills) e XX (Toynbee e Spengler), ainda que ressalvadas todas as discrepâncias entre essas matrizes. Mas o que as aproximaria é justamente a crença numa linearidade evolucional, segundo cada qual a humanidade partiu de um ponto zero e caminha inexoravelmente para outro (do estado de natureza para o estado civil nos jusnaturalistas; para a superação da sociedade de classes em Marx; para o estágio positivo em Comte, ou para o cataclismo nas versões niilistas de Spengler ou Toynbee). Nessa marcha, situa-se outra aporia ainda não superada: a do voluntarismo versus determinismo. Também aqui, as diferentes posições definem-se por gradações sobre uma mesma matéria: o homem tem maior ou menor capacidade de fazer seu destino. As posições extremistas deterministas, que se encontram tanto em idealistas (Hegel) como em materialistas (ortodoxia marxista), postulam a impotência dos homens diante de “forças subliminares”, sejam elas “divinas providências”, “astúcias da razão”, “mãos invisíveis” ou dialéticas entre bases e superestruturas. Em qualquer caso, o acaso consiste na

24

Malerba, Ensaios

explicação lógica para o não previsto, ainda que esse imprevisto retire o curso preestabelecido da história de seu curso. Não é desse acaso que trato aqui. 3. A prática de historiador vem me ensinando que o acaso existe antes da busca da explicação, ou mesmo antes da feitura de um recorte temático, muitas vezes presidindo a essa operação. Mesmo os historiadores “racionalistas” mais sérios já mostraram como o nosso trabalho implica seleção, preferência, recorte, manipulação. (CARDOSO, 1989). Não é outra a problemática de Engagement et distanciation, na qual Norbert Elias demonstra como não há possibilidade de “distanciation” nas Ciências Sociais, uma vez que os recortes e interesses de uns e outros organizam não somente o peso das posições ideológicas declaradas, mas ainda as práticas científicas as mais neutras e as decisões as mais técnicas, as quais buscam creditar aos enunciados do saber um caráter de absoluta objetividade. Assim, a escolha e a definição dos objetos, seu modo de tratamento, as formas de demonstração nunca estão completamente isentos do engagement, seja ele de ordem institucional, social ou nacional. (ELIAS, 1993a, p. 7-67). Mas, antes mesmo dessa ordem de intervenção, considere-se o fortuito que, muitas vezes, aproxima temas e objetos a pesquisadores. Por exemplo, seria demasiado reducionista, porque óbvio, dizer que a descoberta dos Arquivos da Société Typographique de Neuchâtel foi decisiva na importante produção histórica de Robert Darnton? Esse tipo de acaso mais comezinho no quotidiano do historiador trouxeme o processo-crime - que se encontrava perdido dentro do Arquivo Público Mineiro - instaurado na Vila de Nossa Senhora d’Assunção do Carmo, uma dentre as dezenas de pequenas localidades brotadas nas Minas Gerais em meados do século XVIII, que desapareceram com o declínio da extração aurífera em bases coloniais. O caso é assim descrito no processo n. 1.432, fls. 6 v. a 73, pelo “escrivam” José Peixoto: que no ano da graça do nascimento de

N. S. Jesus Cristo de 1815, havia o creoulo Manoel Botocudo, negro do gentio da

terra do cabelo corredio, assassinado seu Senhor Leonço Carvalho d’Almeida, com 66

punhaladas no coração, que, dilacerado, causou-lhe morte natural, por motivo desse seu Senhor Leonço ter mantido cópula carnal com sua filha Manuela Creoula, de 13 anos, como o fizera com sua amásia, a preta Maria do Congo, morta pelas bexigas que lhe passara seu senhor.

ficções

25

O interessante é a referência, nesse longo processo de mais de 150 folhas, incomum para época, aos rituais que Manoel Botocudo, por indução um indígena escravizado, descreveu minuciosamente ao escrivão; além disso, e talvez mais importante, as recorrentes alusões a outros tipos de assassinatos semelhantes que se observaram nas adjacências da Vila da Assunção, que hoje compreende a região do vale do mesmo Rio, entre Mariana e Ponte Nova. Dezenas de outros casos de homicídio de senhores por escravos são mencionados. A memória dessas chacinas está registrada no romanceiro mineiro, na obra O leito vermelho do rio, de 1912, do imortal da Academia Marianense de Letras Romério Cândido Guimarães, talvez aparentado do grande Alphonsus. Outro dado fundamental é a referência constante de Manoel Botocudo às longas jornadas “na enxada de lua a lua” que lhe sangrava mãos e pés. Sobre os rituais com que concretizou a extinção de seu senhor, o relato é generoso: o índio conta em pormenores como sequestrou a vítima, levando-a consciente para a roça, onde havia sido preparada uma espécie de mesa de sacrifício. Embriagada primeiro com certa cachaça de ervas - a umburana3 -, cortada depois sua jugular, a vítima esvaiu-se crucificada de cabeça para baixo. Morta, recebeu as facadas. Depois de tudo, o algoz ainda amassou o crânio de seu exsenhor, revestindo-o com uma cabeça de porco oca, como se fosse um elmo. Dirigiu-se então às autoridades, para reclamar a alforria que o Senhor havia lhe prometido para após sua morte. 4. Como estudar esse fenômeno histórico? Quais entradas possíveis e que teorias a ampará-las? As respostas devem começar a ser construídas pelo levantamento de um problema, que informará sobre o recorte a ser feito, a historiografia existente e as teorias apropriadas às soluções. A contribuição da primeira geração dos Annales não foi ainda descartada. A fundação de uma pesquisa histórica é função dos interesses do investigador, guiado este pelos mais diversos critérios intelectuais, institucionais e, quase sempre, pessoais. Mas o contato da história com suas disciplinas vizinhas já não se pauta por aquela postura arrogante de quem apenas precisava de alguns serviços técnicos. O diálogo é de igual Devo creditar minha iniciação ao estudo da cultura etílica mineira ao Prof. José Arnaldo C. De Aguiar.

3

26

Malerba, Ensaios

para igual, uma vez que não basta o fenômeno em foco estar situado num tempo pretérito para ser considerado imediatamente território do historiador: todos sociólogos, economistas, psicólogos, linguístas e antropólogos têm feito sondagens e investigações prospectivas, com resultados ótimos.4 5. Alguém que pretendesse desenvolver uma pesquisa sobre a economia da região mineradora acharia no mínimo curiosas duas constatações no relato resumido acima: a raça do protagonista da história, um índio, e seus reclamos sobre os excessos de trabalho na lavoura. Isso se opõe, num primeiro pensar, a toda uma historiografia que vem desde Roberto Simonsem, passando por Celso Furtado, os cepalinos até as escola econômica paulista, a qual sustentava a estagnação e mesmo o declínio da região das Minas após o surto da atividade mineradora de meados do século XVIII. Já na década de 1980, uma historiografia mineira, iniciada pelas teses dos irmãos Amilcar e Roberto Borges Martins, questionava a teoria vigente, considerando improvável que o exército de escravos que abasteceu a atividade cafeeira em São Paulo no século XIX tivesse migrado da atividade estagnada. A exploração dos silvícolas em plena aurora do século XIX indica atividade econômica intensa, que talvez se possa explicar a mercê da necessidade de abastecimento da Corte no Rio de Janeiro. A pesquisa desenvolvida por Carla Carvalho sobre a persistência e mesmo crescimento de capitais na região mineradora, por meio do levantamento das fortunas arroladas em testamentos e inventários entre meados do século XVIII até meados do século XIX, parece caminhar para a elucidação desse problema.5 O que se não poderia inferir, por um outro caminho, de um casamento entre um “botocudo” e uma negra do Congo, que era amásia do Senhor do índio, a quem por sua vez deflorou-lhe a filha de treze anos? Toda uma historiografia voltada ao desmonte da ideia da família rígida dos brancos proprietários em contraposição a uma periferia de negros errantes e solitários, desprovidos de relações de parentesco e laços de família devido à tirania do cativeiro, tem sido Basta lembrar alguns exemplos significativos como as obras de Norbert Elias sobre o processo civilizador (ELIAS, 1990; 1993), Natalie Zemon Davis sobre a cultura na França prérevolucionária (DAVIS, 1990), Georges Balandier e as investigações sobre as representações do poder em diversas sociedades (BALANDIER, 1980), os estudos sobre a gênese do capitalismo por economistas das mais variadas tendências, de Weber a Dobb; Mikhail Baktin e sua clássica análise da obra de Rabealais (1993). 5 Simonsem, 1978; Furtado, 1986; Prado Jr., 1962; Martins; Martins, 1983; Fragoso, 1992; Almeida 1993. 4

ficções

27

questionada desde os trabalhos pioneiros de Iraci del Nero da Costa, Robert Slenes, Stuart Schwartz até Eni Mesquita, João Fragoso, entre outros.6 Os recortes econômicos e demográficos não esgotam as possibilidades de nosso achado. A menção a outros assassinatos mais ou menos semelhantes, na mesma região e à mesma época, incitaria o mais amador dos historiadores a uma correlação entre condições de vida dos trabalhadores diretos, questões como abastecimento e movimentos sociais. Afinal, não foi isso que ensinou fazer Labrousse? Aqui as correntes historiográficas contemporâneas encontram seu mais caro filão. Estudos recentes (FICO; POLITO, 1992, 1994) mostram como no Brasil, pelo menos desde a década de 1980, sob inspiração sobretudo do escol dos marxistas ingleses, a história dos movimentos sociais particularmente a do movimento operário - instalou-se com vigor. Porém, no Brasil, essa historiografia destoa um pouco do modelo da history from bellow que, por princípios teóricos, jamais deveria ser usada como “modelo”: em vez de uma história feita e vista da perspectiva dos vencidos, aqui ainda predominam os estudos, no caso do movimento operário de feitio tradicional, como uma “história oficial do operariado”, com seus líderes e gloriosos sindicatos etc. Não obstante, essa tendência parece querer renovar-se ( JESUS, 1994), quando finalmente os historiadores perceberam que não basta importar o rótulo para se beber uísque escocês. Não serão devidamente exploradas, por restrições óbvias de espaço, as possibilidades do livro do memorialista Romério Guimarães. Esse romance regionalista, espécie de prosa poética em alexandrinos imperfeitos, ficou olvidado da rica tradição literária mineira, não recebendo outra edição. O epíteto que aqui recebeu certamente não seria bem aceito por vertentes representativas da história da literatura e da crítica literária. Mas deixo esse mérito aos especialistas. Importa agora não perder o eixo da discussão, a interdisciplinaridade, com o fim de apenas propor mais esse veio, suscitado pela existência dessa narrativa ficcional. Nela, há alusão aos demais itens que compõem a intriga do assassinato do fazendeiro Leonço Almeida por Manuel Botocudo, a cópula com a filha do índio, detalhes sobre o sacrifício, referências aos casos similares coevos. Mas há outras informações que não constam no próprio processo, como o fato de o proprietário assassinado pertencer a Ordem de Nossa Senhora do 6

28

Costa et al. 1983; Mesquita, 1989; Fragoso; Florentino, 1987.

Malerba, Ensaios

Rosário, que todos sabem ser a ordem dos pretos; como a menção ao assassínio ter-se dado no meio do “mar de mandioca” que era sua fazenda. Antes de entrar na análise do que desses dados se pode inferir em termos hipotéticos, coloca-se o problema da fidedignidade ou não da informação veiculada por esse tipo de suporte documental. De qualquer maneira, a erudição obrigaria ao investigador, independentemente de seu recorte temático, a passar pela obra. Mesmo quem simplesmente dispensasse o acontecimento para estudar a obra memorialística defrontar-se-ia com toda a problemática desenvolvida por uma corrente a que poderíamos chamar, correndo o risco do reducionismo, de “história sociológica da produção e recepção literárias”. Corrente essa que tem em Lucien Febvre um grande divulgador, e que hoje se desdobra numa produção diversificada por todo o mundo, inclusive no Brasil.7 O problema mais relevante que acresce à teoria da história é o que propôs Hyden White, não propriamente para textos literários, mas para o estudo de textos históricos, como fez com a historiografia romântica. White, dentro de um movimento em que despontariam nomes como os de Frederick Jameson e Domenique Lacapra (KRAMER, 1992, p. 131-176), fixou-se na estrutura da linguagem para fazer uma abordagem formal da escrita histórica, considerando “[...] o labor histórico como o que ele manifestamente é, a saber: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-o”. (WHITE, 1992a, p. 18). O fado casual de que o conhecimento histórico - não mais que outros quaisquer - ter que ser expresso em forma narrativa joga mais lenha na fogueira quanto ao possível “estatuto científico” da história. Na vertente que se opõe a esse anseio, basta lembrar a proposição de Veyne de que a história deve abdicar dessas pretensões científicas para ser aquilo que realmente é: apenas o enredo de uma intriga, no qual o historiador deve buscar elevar sua capacidade narrativa, tornando o acontecimento inteligível, e reduzindo a pretensão explicativa, já que estaria munido, no máximo, de uma crítica e de uma tópica, mas não de um método.8 Febvre; Martin, 1958; White, 1992a; Darnton, 1987; 1986; Chartier, 1990; Schapochnik, 1993, A melhor teorização da história enquanto intriga construída em enredo narrativo é a de Veyne, 1982; a melhor análise de Veyne é a de Ricour Ricoeur (1983, p.239-46). Ver Cardoso Jr. (1992).

7 8

ficções

29

6. Quando então alguém se proponha abordar, para além do que seja “materialmente constatável”: os rituais índios de sacrifício, os laços de parentesco, os costumes que sedimentam as relações dos grupos em seu cotidiano e dão alguma estabilidade em sua vida - em uma palavra fatídica: a cultura, a coisa então perde o controle. Imagine-se a gama de significados latentes no ato do sacrifício - que moveram a Manoel Botocudo embriagar com cachaça de ervas sua vítima, deixá-la esvair-se pela jugular mutilada de cabeça para baixo, revestir seu crânio macerado com uma cabeça de porco... A palavra cultura é uma daquelas peças “coringa” disputada por gregos e troianos, todos a usando para fins e com meios diversos e reclamando-a como a um troféu furtado de seu legítimo dono. Reconhecer sua polissemia não garantiria êxito na tentativa de atribuir-lhe um mínimo miolo semântico. E vai assim reproduzindo-se a palavra a custo da perda de sua eficiência conceitual, se é que lhe resta ainda alguma. Para não alongar a discussão, por definição inesgotável, afirmaria apenas, e com intenção de levantar polêmica que, para o tratamento referente às coisa do mundo da cultura, das representações humanas, individuais ou coletivas, dos gestos, maneiras de expressão de sentimentos, rituais, crenças, de tudo aquilo que, numa palavra, estaria definido dentro do conceito alemão geist, as teorias que se pautam no entendimento da existência de um mundo material objetivo, cognoscível e de alguma maneira ordenado, passível de ser codificado científicamente, são ineficazes para encarar aqueles domínios. É o que mais ou menos diagnosticou Chartier ao afirmar que “a importação de novos princípios de legitimação no domínio das disciplinas ditas ‘literárias’ desqualificava o empirismo histórico”, mas com ele não concordo que a solução para o problema se restrinja a “aplicar aos novos objetos os princípios de inteligibilidade previamente provados na história das economias e das sociedades”. (CHARTIER, 1991, p. 174-5). Aqui, pareceme, as expressões do espírito humano devem ser traduzidas pela atividade dos próprios espíritos humanos. A explicação deve ceder lugar à interpretação. É o caminho oferecido pela hermenêutica. (DIAS, 1992). 7. A hegemonia de uma visão de mundo materialista desde meados dos século XIX até hoje sublimou as possibilidades cognitivas já lançadas desde o século XVIII, em oposição às premissas racionalistas da crença numa perfectibilidade humana e numa razão universal. Os historiadores românticos

30

Malerba, Ensaios

como Burckhardt e Michelet utilizaram-se, em maior ou menor medida, dos princípios desse entendimento do que seja o mundo e o conhecimento, posteriormente alcunhado pejorativamente de historicismo. Como o marxismo, o historismo9 é daquele tipo de concepção que seus detratores colocam em permanente crise, senão decretam, às vezes, sua morte sumária. Numa época, como a nossa, em que se pretende matar a história mesma, não será inoportuno lembrar aos variados homicidas intelectuais que o historicismo não morreu e, ainda no século XX, muitos tentaram sumarizar sua história e seus princípios, como o fizeram, com maiores ou menores ênfases, Dilthey, Croce e Meinecke. Também como no caso do materialismo, o historicismo manifesta-se em cada representante em gradações diferentes. Os mais radicais, aqueles sempre tomados pela crítica para serem destruídos, são Croce e Collingwood que, com razão de seus comentadores, muitas vezes resvalam num relativismo indomável. Mas, como houve e há marxistas e marxistas, weberianos e weberianos, há historicistas e historicistas, e não se pode, a bem do conhecimento histórico, dispensar numa palavra a produção de um Reinhardt Koselleck ou de um Sérgio Buarque de Holanda. O instrumento cognitivo fundante do historicismo é a hermenêutica, que abdica dos processos hipotético-dedutivos do método científico. Há plausibilidade nisso. Os homens, em seu cotidiano e em sua maioria absoluta - até mesmo entre os cientistas - não usam de meios científicos para compreender o mundo ou a pessoa com quem dormem; não precisam se pautar em observações/teorias/experimentações/ comprovações para entrar n’O aleph, de Borges; não se precisa de quadros teóricos para se contemplar os nus de Rodin, nem de hipóteses para viajar nas asas dos anjos de Win Wanders; o afinador de pianos não precisa de mais nada que seu ouvido para exercer sua função, assim como o historiador não pode viver sem o faro, como disse Bloch, para detectar a carne humana - ali onde se encontra a história. 8. Um obstáculo, prestes a ser removido das pesquisas históricas, pode ser considerado aquele que se implantou a partir do momento em que a historiografia - particularmente a francesa e a italiana - elegeu como de interesse Expressão cunhada com finalidade de distinguir entre uma importante matriz téorica e historiográfica e um termo carregado de pejo - historicismo -, que indica, na acepção de Popper, aquelas filosofias da história que a valoram com um sentido ou fim. Ou, para E. H. Carr, tudo aquilo que desgosta a Sir Karl Popper.

9

ficções

31

os objetos encontrados na escala microscópica. Depois de décadas buscandose a construção de grandes sínteses explicativas de movimentos amplos e estruturais das sociedades, as práticas e representações sociais operadas por indivíduos ou pequenas comunidades em seu cotidiano alçaram o status de objetos legítimos em várias frentes historiográficas. Mais uma vez, voluntaristas e deterministas atacaram-se mutuamente, aqueles afirmando a ineficácia de teorias sociais amplas para a explicação, por exemplo, de ações de indivíduos ou grupos classificadas como “extemporâneas” ou “excêntricas” em relação a seu meio. Os últimos não se cansaram ainda de opor problemas como os da prova e da representatividade de objetos microscópicos dentro de contextos históricos mais amplos. O que se verifica, na prática, são soluções que tendem mais ou menos à independência de sínteses amplas em relação a análises na escala micro. Apenas em níveis de inferência bastante restritos poderiam cruzar-se, por exemplo, fenômenos como a cosmologia de um herege preso nas malhas do Santo Ofício na Bahia da virada do século XVII para o XVIII com o sistema econômico baseado na monocultura canavieira implantada na colonização do Brasil. E vice-versa: pouco valeria a visão do paraíso terrial, que se situava para Pedro Rates Henequim no Brasil, para o conhecimento das estruturas de poder público ou privado no escravismo colonial. Esses níveis de análise parecem irredutíveis uns aos outros.10 9. Parece haver já elementos suficientes para a fixação e problematização de algumas ideias. Em primeiro lugar, a eleição do problema histórico preside metade das possibilidades de interdisciplinaridade, como busquei demonstrar com o exemplo do caso registrado no processo n. 1.432 da vara criminal de Vila de N. Sra. d’Assunção do Carmo, nas Minas Gerais. Necessariamente, o historiador deve manter um diálogo permanente com todas as ciências humanas, particularmente com aquelas que virtualmente podem contribuir para a inteligibilidade do problema que se propõe - e isso é válido no nível das técnicas igualmente. Em segundo lugar, uma prática interdisciplinar não se resume a uma seleção de citações de autores de outras áreas, num capítulo introdutório ou mesmo dispersas pelo texto, mas compreende uma intimidade que só se consegue no diálogo permanente entre, pelo menos, as disciplinas Sobre o problema da escala, ver Burke (LEVI, 1992, p. 133-62), e sobretudo Guinzburg, 1991. O estudo magistral do “Menócchio brasileiro” pertence a Gomes, 1994. 10

32

Malerba, Ensaios

mais afins. Mais uma vez, faça-se a devida apologia a um saber que não deve buscar jamais ser técnico, posto que não o é; mas humanístico, o que implica uma formação específica e a valorização da erudição. O significado político desse entendimento é claro. Uma última observação pode - ou não - ter alguma relevância, dependendo do gosto e da disposição da audiência: nem todos os nomes, lugares, fatos e obras citados são verossímeis - o que parece não afetar as equações teóricas montadas. Importaria de fato, para as discussões apresentadas, ter existido ou não uma Vila de N. Sra. d’Assunção do Carmo nas Minas Gerais da passagem do século XVIII para o XIX? Ou uma sequência de assassinatos com características comuns, dos quais um chegou-nos relatado em pormenorizado processo-crime? Haveria muito anacronismo no casar-se um índio com uma negra na região pós-mineradora? Não seria a história por vezes anacrônica ela mesma? Poderia algum escritor da casta dos mineiros ter construído alexandrinos imperfeitos? De qualquer modo, essas ideias não parecem bastante plausíveis? Digamos que o enredo apresentado define-se no âmbito do que Popper (1982) chamou de “uma assertiva não empírica, presumivelmente falsa, porém de elevada probabilidade formal”. De qualquer maneira, aparentemente com muito maior teor de plausibilidade que o exemplo de teoria puramente existencial enunciado por Sir Popper em suas Conjeturas e refutações: Há uma seqüência finita de estrofes elegíacas latinas, compostas de dois versos, que, se pronunciadas de forma apropriada, num certo local e num dado momento, fará com que apareça imediatamente o diabo – isto é, uma criatura semelhante ao homem, com dois pequenos chifres e um casco fendido no pé.

Nosso exemplo, embora quase logicamente verdadeiro, é empiricamente falso; o que não é melhor nem pior que o inverso que operam certos trabalhos, fundados em bases empíricas irrefutáveis mas com níveis de teorização, ou tendentes a zero, ou com inferências lógicas de confirmação probabilística igualmente nula. (POPPER, 1982, p. 275-6). Em termos do conhecimento, aquelas questões relativas às nossas “assertivas não empíricas de elevada probabilidade formal”, propostas em relação à verossimilhança dos dados fornecidos, como acabamos de

ficções

33

demonstrar, são absolutamente irrelevantes. Lembrando a subversão que Vico faz do racionalismo cartesiano, essencialmente escolástico nesse sentido, segundo o qual só se pode compreender aquilo que se cria, só a Deus seria dado conhecer(-se). Vico, assim, concorda que as matemáticas e álgebras são matéria para o entendimento humano, por serem de seu puro arbítrio criador, não guardando nenhuma relação com o “mundo exterior”. Do mesmo modo, estaria fora do alcance da compreensão humana o mundo da natureza, que só podemos observar e descrever, nunca entender. E, rompendo com o cartesianismo, proclama Vico a história e as coisas do homem (como o direito, a linguagem, os rituais, crenças, folclores, costumes) as únicas ao alcance do conhecimento humano, por serem do homem invenção. Assim foi aberta a porta para o campo das humanidades. Propositalmente, conclama-se o “eterno retorno” do problema da verdade e da ficção na história, que, antes de interdisciplinar, é intradisciplinar. Mesmo porque os historiadores sequer se dão conta de que, na busca da verdade, está subentendido um valor - aquilo contra o Nietzsche se levanta, a verdade, aquela mulher a quem os homens tem entendido tão pouco... E nos seduz a perguntar: porque não a não verdade, a incerteza, a ignorância? (NIETZSCHE, 1985). Não estou incitando ninguém às posições extremas de Nietzsche. O caso limite é apenas para chamar a atenção sobre um problema de altíssima relevância. A validade do conhecimento histórico, como alguns têm percebido ultimamente, não é uma questão unicamente, ou exclusivamente, de método. A quantificação não é garantia de cientificidade: as amostragens e dados são sempre manipuláveis; as evidências, resíduos contingentes e arbitrários enquanto amostras; a comparação de duas configurações quaisquer implica sempre o recorte e a manipulação de varíáveis recorrentes. A reincidência da palavra amor vinte vezes num texto nada diz a respeito do sentimento “amor”. As análises textuais, estruturais, semióticas são ferramentas, meios, por vezes muito limitados, embora os melhores de que se possa dispor para um certo tipo de entrada. Para além dos benefícios metodológicos efetivamente conquistados com o contato interdisciplinar, o campo do conhecimento com o qual a

34

Malerba, Ensaios

história está definitivamente impedida de afastar-se é a filosofia, em seu ramo epistemológico, pelo menos. Ironicamente, o mais desprezado desde que começaram a renová-la - a história - demais. A filosofia continua sendo, afinal, um bom parâmetro não só para a validação interna ao conhecimento histórico, mas para se pensar o próprio o conceito do “novo” (PETERSEN, 1992, p. 110), sempre evocado quando se trata de legitimar procedimentos interdisciplinares.

ficções

35

II memória:

entre história e a historiografia

Introdução O grande interesse no tema da relação entre memória e história surgiu na cena historiográfica via história das mentalidades coletivas, que atraiu número imenso de historiadores nas décadas de 1960 e 1970, hoje se constitui num campo importante tanto de pesquisa empírica, quanto de reflexão teórica no campo do conhecimento histórico. A memória no contexto das mentalidades é apenas um tópico entre muitos, fizeram dela um campo impositivo na investigação acadêmica nas últimas duas ou três décadas. Desde os anos 1980, os historiadores têmse focado mais detidamente na relação entre memória e história como um problema historiográfico. Neste breve ensaio, depois de esmiuçarmos um pouco mais em detalhe as concepções sobre a relação entre história e memória dos principais formuladores da questão, como Le Goff, Halbwachs e Nora, procuraremos trazer a discussão para o campo historiográfico a partir de três eixos exemplares, que produziram linhagens importantes de pesquisa: primeiro, a relação entre memória coletiva e identidade nacional; segundo, a memória das atrocidades da Segunda Guerra, particularmente o holocausto; terceiro, a relação da memória com a questão do “fim da história”. Esses tópicos congregam questões candentes da história do (nosso) tempo presente. Muitos autores apontam para a crise das identidades nacionais nesta época de consolidação da globalização econômica. 1 Os A questão da globalização em sua relação com a história vem gerando farta bibliografia. Para duas abordagens críticas, ver Wallerstein, 2007, 1999, 1996 e Aguirre Rojas, 2004a.

1

memória

37

desdobramentos da Segunda Guerra, por outro lado, ainda mantêm enormes feridas abertas (vide o barril de pólvora do antissemitismo no mundo e a questão palestina).2 O ano de 1989 é, para nós, uma data simbólica.3 Ele evoca o bicentenário da revolução francesa, marco zero da era moderna. Alguns dizem que a data marca também seu desfecho, o fim da Guerra Fria concebido como uma luta ideológica sobre a melhor maneira de completar os ideais da revolução. A história intelectual dos últimos duzentos anos pode ser desenhada como um verdadeiro campo de batalha entre aqueles defensores dos ideais da revolução (um espectro muito diverso) e seus opositores: desde os que reclamaram o retorno ao status quo ante durante todo o século XIX até o limiar do século XX (MAYER, 1987) até os propositores de projetos alternativos à sociedade liberal burguesa que emergiu da revolução. (REIS; ROLLAND, 2009). Os embates políticos do século XX foram, em grande parte, travados em torno da construção ou da destruição da memória desses projetos. Mas memorável também é 1945, particularmente devido a questões não resolvidas de responsabilidade moral em relação às atrocidades cometidas durante a II Guerra. A relação entre história e memória, assim, tornou-se um problema para a historiografia de um modo que jamais o tinha sido anteriormente. Isso não quer dizer que os historiadores nunca tivessem considerado a relação entre história e memória antes. Mas uma rápida olhada na bibliografia deixa perceber a existência de uns poucos títulos, ainda que importantes, anteriormente a 1980. O entendimento desse tópico antes do final do século XX era, no máximo, naïve. A primeira menção à dobradinha história/memória como um problema historiográfico pode ser uma entrada de Pierre Nora sobre “memória coletiva” na clássica coletânea A nova história, organizada por Le Goff em 1978. (LE GOFF, 1989). Consideremos, por exemplo, a historiografia do século XIX. De Michelet, na primeira metade do século XIX a Collingwood, no começo do século XX, a memória coletiva, entendida como uma imaginação viva dos atores históricos do passado, era tida como a própria matéria-prima do conhecimento histórico. Para uma boa introdução à “questão palestina”, ver Fronkim, 2008. Sobre a significação simbólica de 1989, ver Bolívar Echeverría, 1990; Arrighi, Hopkins, Wallerstein, 1992; Aguirre Rojas, 1989 en perspectiva histórica. In: Aguirre Rojas, 2005.

2 3

38

Malerba, Ensaios

Simpáticos para com as tradições políticas que estudavam, particularmente a construção da nação-estado como um instrumento de progresso, aqueles eruditos consideravam a história como uma evocação da memória.4 Eles estudavam a história para, por assim dizer, recriar no presente o passado tal como ela fora originalmente imaginado. Ao evocar imagens do mundo tal qual uma vez concebido, pensavam esses historiadores de meados do XIX, poder-se-ia (re)adentrar aquele universo mental e, assim, restaurar-se a experiência mesma daqueles tempos idos. Essa concepção pode ser encontrada em concepções tão díspares de história como o diálogo que Michelet pretendia entabular com os mortos,5 quanto com a metodologia da transposição proposta por Dilthey na sua formulação para uma metodologia das ciências do espírito6 já na virada para o século XX. De modo que a relação entre memória e história era fluida, direta, transparente, não complicada. Os historiadores da memória de hoje, ao contrário, estão envolvidos num tipo diferente de diálogo para com o passado. São mais desconfiados das distorções da memória e precavidos quanto à transferência de sua própria memória para as histórias que escrevem. Ou seja, querem fugir do pecado do anacronismo: no qual seus colegas do século XIX encontravam o heroísmo espontâneo, eles hoje encontram poder calculado. O que se perdeu na passagem da moderna reconstrução historicista da relação memória/história para sua desconstrução pós-moderna, é importante assinalar, foi a ingênua crença em sua transparência – concebida como um círculo hermenêutico de coleção e reconstrução histórica. A inserção da questão da memória, em detrimento da prática histórica, na pauta de preocupações dos historiadores nas três últimas décadas, pode ser entendida como mais um desdobramento do linguistic turn operado nos anos 1960. Este irrompeu no final dos anos 1960 e irradiou-se nos anos 1970 como um reflexo filosófico das estratégias retóricas que os historiadores empregam para conceptualizar o passado – não seu conteúdo, mas as formas retóricas 4 A bibliografia sobre o assunto é generosa: a título de exemplo, ver: Gossman, 1976; Gruner, 1969; Jacob, 1988; Berger, 1995. Sobre as relações entre construção da nação, memória e história, Ver Hunt, 1995 e Olick, 1998. 5 Ver o brilhante capítulo “metodológico” “Do método e do espírito deste livro”, do livro 3 de Michelet (1989, p. 281-305). Os mais belos ensaios sobre Michelet, para mim, foram aqueles escritos por Wilson, 2006. 6 Sobre Dilthey e sua metodologia ver, por todos, Reis, 2003.

Memória

39

que são instrumentais para sua interpretação. Hayden White, em seu clássico, Metahistory (1973), não trabalha propriamente com questões da memória, mas sua exploração do trabalho de base da narrativa histórica foi um passo preliminar decisivo para toda consideração posterior. White expôs as peças da construção linguística da composição histórica e ponderou a favor do papel essencial da retórica na reconstrução histórica. (WHITE, 1992a).7 Mas o fato é que a memória tornou-se importante como campo de pesquisa para os historiadores, particularmente desde o final da década de 1970, tendo como ponto de irradiação a França. De canteiro para escavações, as relações entre história e memória foram aos poucos se tornando elementos de reflexão teórica. As questões de fundo que se apresentaram foram em torno das relações entre memória e história e das fronteiras entre ambas. Quais as relações entre, por um lado, o armazenamento da memória e produção do esquecimento e, por outro, as sociedades? Quais as relações entre a memória armazenada e a escrita da história? Por certo que não pretendemos resolver estas questões aqui, senão apenas tentar bem equacioná-las.

Le Goff e a história/memória A primeira tentativa de sistematização desse assunto, ou pelo menos, a mais conhecida entre nós, foi aquela feita por Jaques Le Goff (1990). O eminente annaliste esclarece desde o início que seu ensaio (um verbete da Enciclopédia Einaudi publicado nos anos 1970) é voltado para todo o campo das Ciências Humanas – e por isso privilegia a memória coletiva; mas não descura de que essa problemática espraia-se para um campo científico mais geral, que abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e as perturbações da memória, cuja principal é a amnésia. Lembrando um pouco a teoria simbólica de Norbert Elias, Le Goff, apoiado em outros autores, apresenta um dos fundamentos da A literatura sobre o fenômeno “pós-modernismo” em história é extensa. Nela se há de incluir Rüsen, 1993; Ankersmit, 1994; Topolsky, 1994; Bailyn, 1982; Stone; Spiegel, 1992; Pieters, 2000. Para uma apreciação crítica do impacto do linguistic turn na historiografia contemporânea, cf. Iggers (1997, p. 118); Cardoso, 1998 e 1999; Malerba, 2007 e 2009.

7

40

Malerba, Ensaios

questão da memória, que é sua relação orgânica com a questão da linguagem. O ato mnemônico fundamental é o “comportamento narrativo” que se caracteriza antes de mais nada por sua função social, pois que é a comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo. Aqui intervém a linguagem, ela própria produto da sociedade. A utilização da linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para ser interposta quer nos outros corpos quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória. (LE GOFF, 1990, p. 424, grifo nosso).

Ou seja, os seres humanos, no curso da longuíssima duração, criaram a capacidade de armazenar informação e de evocar simbolicamente um objeto (pessoa, processo, estrutura, acontecimento) na ausência física deste. Isso é válido para indivíduos isolados, assim como para sociedades. Nesse sentido, o registro escrito sobre o passado, em sua pretensão científica como sistematizada no século XIX, ou seja, a historiografia, não deixa de ser também uma forma social da memória coletiva. Claro que existem outras formas tão complexas de armazenamento da memória, como as religiões históricas, a literatura e a oralidade. A coisa se complica, para os historiadores profissionais, quando estes se veem obrigados a tratar das chamadas perturbações da memória: a amnésia, que não é só individual, mas que pode ser coletiva e gerar perturbações graves de identidade coletiva; e os usos e abusos, como o esquecimento, que é tão intencionalmente produzido como a lembrança (Mastrogregori, 2006) ou as manipulações da memória; e aqui, ela se aproxima da esfera do exercício do poder: manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual e que, eu diria, é extensivo à coletividade. Le Goff começa a evocar sua tradição francesa do tratamento da memória ao referir-se aos “lugares da memória”, conceito forjado por seu colega analista Pierre Nora:

Memória

41

Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações: estes memoriais têm a sua história. Mas não podemos esquecer os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou de gerações, levadas a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória. (LE GOFF, 1990, p. 176).

Outro ponto fundamental que Le Goff (1990, p. 476) apenas menciona, e que podemos trabalhar mais detidamente, refere-se ao fato de que “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.” Contudo, se a memória é um elemento de coesão social, pelo que proporciona de fundamento para a construção de uma identidade coletiva (local, grupal, nacional), ela também pode ser usada como instrumento de poder: Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória. (LE GOFF, 1980, p. 476).

A falsa dicotomia história/memória François Dosse, em um livro recente (2003), propõe a construção de uma “história social da memória”. Suas principais referências são os franceses Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Paul Ricouer. Uma grande contribuição desse texto é o cotejamento entre a proposta do sociólogo durkheimiano da década de 1920 e o historiador da terceira geração dos Annales, este tendo acatado e desenvolvido as propostas daquele. Minha análise segue agora colada à de Dosse. Quem primeiro buscou definir o campo de investigação da memória coletiva dentro das ciências sociais foi o sociólogo durkheimiano Maurice 42

Malerba, Ensaios

Halbwachs, que procurou formular uma teoria compreensiva da memória coletiva. Até a década de 1970 uma figura menos conhecida da sociologia durkheimiana da década de 1920, Halbwachs foi redescoberto pelos historiadores na década de 1980 devido ao trabalho de Pierre Nora. Halbwachs sustentava que a memória coletiva evoca a presença do passado. Como uma imaginação viva, a memória coletiva é continuamente refeita pelos contextos sociais nos quais é resgatada. Quanto mais poderoso o contexto, mais impositivas serão as memórias. A teoria de Halbwachs antecipava nossa necessidade cultural corrente de entender o modo como imagens mnemônicas são manipuladas pela autoridade pública. A comemoração é uma estratégia calculada para estabilizar as memórias coletivas. (HUTTON, 1993, p. 537). A teoria de Halbwachs erige-se com base na oposição frontal dos conceitos de memória e história, colocando do lado da memória “tudo o que flutua, o concreto, o vivido, o múltiplo, o sagrado, a imagem, o afeto, o mágico [...]”. A história, em oposição, se definiria por seu caráter crítico, conceitual, problemático e laicizante. (DOSSE, 2003, p. 280). Tal radical separação poderia levar ao falso entendimento de que a história só começa quando acaba a memória. Essa distinção foi o ponto de partida de uma reflexão inovadora sobre a maneira pela qual opera a memória coletiva em comunidades sociais concretas. (HALBWACHS, 1994). Mas Halbwachs parte de um conceito de história (conhecimento) já então superado, mesmo para sua época: aquela herdeira do cientificismo do século XIX, próxima a algo como uma física social fora da experiência vivida, que era a base da própria proposta da sociologia de Durkheim. Halbwachs distingue história e memória ao estabelecer um quadro antitético entre ambas. Em sua concepção, a memória está inteiramente do lado do vivido, enquanto os “acontecimentos históricos desempenham o mesmo papel que as divisões do tempo marcadas sobre um relógio ou determinadas pelo calendário”. (HALBWACHS, 1997 Apud DOSSE, 2003, p. 280). O tempo da história, nessa perspectiva, é algo exterior à experiência, não mais que um enunciado formal. Para Halbwachs, portanto, existira um corte instransponível entre essas duas categorias. A memória coletiva apresenta-se como fluxo ou uma linha existencial contínua, enquanto a história opera mecanicamente, recorta períodos e privilegia as diferenças, mudanças e descontinuidades: “No Memória

43

desenvolvimento contínuo da memória coletiva não há linhas de separação nitidamente traçadas, como na história”. A memória constitui-se com base na fragmentação, na pluralidade dos grupos e indivíduos; já a história constróise sobre a unicidade, a totalidade: “A história é uma e só se pode dizer que só existe uma história”. (HALBWACHS Apud DOSSE, 2003, p. 281). Essa concepção de história de Halbwachs é quase caricata, como se a história se pretendesse insípida, neutra, positiva, como de fato efetivamente fora, até pela época em que escreveu Halbwachs, quando, porém, concepções diversas, arrojadas e críticas de história já circulavam. Contra aquela concepção que ataca, Halbwachs proporá a alternativa da memória como o diferencial oferecido pelos sociólogos em sua postura ecumênica e nada inocente de capitanear todo o conjunto das ciências sociais.8 Ele apresenta a história como o lugar da objetividade absoluta, da neutralidade axiológica do sujeito cognoscente, do mero registro factual, livre de todo e qualquer juízo de valor. Como a reconstrução da totalidade dos fatos históricos seria inatingível, restaria apenas o trabalho de corte que caracteriza a obra histórica, marcada pela pretensão de infalibilidade de seu método científico de abstração. Enfim, Halbwachs acreditava que memória e história são antitéticas: a memória confirma semelhanças para com o passado; a história busca diferenças. A memória evoca a presença do passado; a história mantém-se distante dele. Mais importante: a memória distorce o passado, enquanto que a obrigação do historiador é corrigir as incorreções da memória! Do ponto de vista da narrativa pensada entre memória e história, o mais pretensioso dos estudos sobre comemoração foi editado por Pierre Nora (19841992). Trata-se de um projeto levado a cabo durante os anos 1970, no sentido de reconsiderar a própria natureza da identidade nacional francesa. Cerca de 60 dos mais destacados historiadores da França participaram dele. Note-se que ele apareceu por vota dos anos do bicentenário da revolução francesa, e pode mesmo ter deslocado aquele evento comemorativo em importância. Essa disposição ecumênica e imperialista dentro das Ciências Sociais ocorrerá depois, com o surgimento do Estruturalismo, com a antropologia estrutural proposta por Levi-Strauss, que pleiteava a posição de liderança de sua nova disciplina pois esta seria a única capaz de trabalhar no nível das estruturas da sociedade – único lugar onde seria possível fazer ciência. A resposta a Levi-Strauss foi dada por Braudel em seu clássico ensaio de 1958 sobre a “longa duração”. Cf. Malerba, 2008.

8

44

Malerba, Ensaios

Nora propôs uma abordagem inovadora à narrativa histórica. Ao organizar seu projeto, ele procedeu do presente retroagindo ao passado, como no desenho de uma árvore genealógica. O efeito foi fazer do presente a referência primeira, abrindo o campo de investigação para uma miríade de modos pelos quais a herança nacional francesa fora desde sempre pensada. No seu plano de obra, Nora estruturou os “lugares da memória” em três níveis de representação que remetiam a um passado de complexidade diversificada: 1. A “república”: por volta do final do século XIX, época de seu último triunfo como um regime político e seu poder crescente como uma nação-estado; 2. a “nação”: por volta da Revolução Francesa; 3. “les France”, um círculo mais amplo de imagens culturais que moldaram a identidade da França, algo remontando à Idade Média. No esquema de Nora, a relação entre história e memória é reversa. A grande narrativa da história da França moderna é fragmentada em narrativas particulares, cada uma delas (re)alocadas num diferente lugar da memória. Esses lugares da memória são apenas vagamente conectados, quando o são. As memórias são desatadas de seus lugares fixos numa grande narrativa para tornarem-se pontos de referência simultânea para os historiadores reconstruírem sua herança cultural. A estrutura da história, assim, parte do elenco espacial da memória coletiva, tal como Halbwachs a descrevia. Ao abordar o passado a partir do lugar privilegiado do presente, o historiador contempla os domínios da memória, cada um dos quais podendo ser resgatados ao presente. (NORA, 1992, v.3, p. 11-32). A história torna-se a arte de situar essas memórias. Esse método de situar a narrativa histórica nos lugares da memória foi empregado por muitos historiadores desde então.9 Pierre Nora, portanto, parte justamente dessa oposição entre história e memória quando propõe o objeto dos Lugares de memória: Memória, história: longe de ser sinônimos, tomamos consciência de que tudo as opõe. A memória é a vida, sempre levada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em evolução permanente, aberta a dialética da lembrança e da amnésia, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulneráveis a todas as utilizações e manipulações, suscetíveis de longas latências e súbitas revitalizações. A história é a reconstrução problemática e incompleta do que não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um vínculo vivido no presente eterno; a história, uma 9

Entre outros, Schama, 1995

Memória

45

representação do passado. Por ser efetiva e mágica, a memória só se contenta com detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças opacas, globais, ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, censuras, telas ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, chama análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a desaloja, ela sempre torna prosaico. (NORA, 1992, v 1 Apud DOSSE, 2003, p. 282).

A multiplicação dos estudos sobre a memória coletiva dá a perceber a complexidade de seu modo de funcionamento e torna possível a abordagem crítica do falso dilema, inicialmente proposto por Halbwachs e retificado depois por Nora, da inelutável escolha entre o polo de uma história fundada sobre seu contrato de verdade e o de uma memória fruto da experiência vivida imediatamente abordável. O aprimoramento do campo memória/história deve apontar para a superação desse falso dilema, ou seja, há que pensá-las não mais em termos de oposição, mas sim de convergência.

Eixos historiográficos como exemplos para reflexão Conforme nossa proposta inicial, vamos então tomar como pretexto para refletir a conjunção de história e memória três campos possíveis de pesquisa: primeiro, a relação entre memória coletiva e identidade nacional; segundo, a memória das atrocidades da Segunda Guerra, particularmente o holocausto; terceiro, a relação da memória com a questão do “fim da história”.10

Identidade nacional e comemoração O tópico memória coletiva/identidade nacional suscitou grande interesse em vários países. (GILLES, 1994). Provavelmente, o estudo mais influente nesse sentido foi o livro de Eric Hobsbawn e Terence Ranger, The invention of tradition, de 1983. Os autores depositaram uma grande ênfase nas estratégias de comemoração, por meio das quais os homens de Estado da Europa do final do século XIX “fabricaram” tradições artificiais para fazer 10

46

As reflexões seguintes se inspiram muito em Hutton, 2000.

Malerba, Ensaios

reverberar o prestígio e a autoridade do Estado-nação. Eles analisaram o modo como o mito e o ritual foram usados para criar uma memória pública na qual os cidadãos deveriam acreditar. Tradições inventadas moldaram as imagens do passado às necessidades do presente. O livro de Hobsbawn e Ranger tornouse um verdadeiro paradigma para estudos congêneres.11 De vários modos, essa historiografia “derivada” acabou por endossar a tese de Hobsbawn e Ranger de que a memória coletiva é construída e que a chave para sua influência é o poder de Estado.12 Parece-me escusado ter que pontilhar esta análise com mais exemplos historiográficos, abundantes tanto na literatura internacional como na brasileira.13

A memória do Holocausto e o problema da narrativa Outro eixo de produção historiográfica privilegiado para a observação das relações tensas entre história e memória emerge na questão dos “usos” da memória: além do reforço do poder, como nas comemorações, o apagamento da memória – ou seja, a produção do esquecimento – e suas manipulações. Este tópico foi magistralmente trabalhado por Francisco Falcon, que usarei como guia para esta rápida discussão.14 Um primeiro exemplo emblemático a evocar é a questão da memória do holocausto, ou a assim chamada “solução final” nazista, que se tornou um verdadeiro ponto de inflexão na discussão teórica sobre o estatuto da narrativa histórica desde há uns 15 anos. A questão que se levantou de maneira calorosa nos inícios dos anos 1990, e que ainda hoje repercute de maneira retumbante,15 foi batizada de “negacionismo”: haveria ou não uma “realidade histórica” chamada Holocausto? Hobsbawm; Ranger, 1997. Cf. o balanço feito por Ranger, 1993. Cf. Bodnar, 1992; Zerubavel, 1995. 13 Para uns poucos, porém representativos exemplos dessa historiografia no Brasil, ver: Sandes, 2000; Abreu, 1996; Bittencourt, 1992; Motta, 1992; Oliveira, 1989; Santos, 1985; Fico, 1997. 14 Falcon, F. “História e representação”. In: Cardoso; Malerba, 2000. 15 Conforme o caso recentíssimo do bispo inglês radicado na Argentina Richard Williamson, que negou a existência do Holocausto, a ponto de o Vaticano exigir sua retratação, devido a pressões internacionais. Cf. CARMO, Márcia. Bispo que negou Holocausto é retirado de cargo. Folha de São Paulo, 09/02/2009. Em amtéria disponível on line: http://www1.folha.uol. com.br/folha/bbc/ult272u500903.shtml, consulta em 01/06/2009. 11 12

Memória

47

A questão teórica subjacente era de fundo, sobre a possibilidade ou não de os relatos dos historiadores se referirem a uma realidade externa a ele; portanto, diante de narrativas mutuamente excludentes, se haveria possibilidade ou não de se chegar a uma narrativa verdadeira, com base numa referência extralinguística. A resposta a essa questão definiria o próprio estatuto do conhecimento produzido pelos historiadores: se um texto realista ou uma ficção. Os debates acerca do Holocausto formularam-se em torno de duas questões – a das falsificações da história e a das relações entre narrativas que, em princípio, não negam a “realidade” do Holocausto e sua “realidade”. Algumas obras de Pierre Vidal-Naquet exemplificam a primeira questão; para ilustrar a segunda, bastará a coletânea organizada por Saul Friedlander. Em Os Assassinos da Memória – O revisionismo na história, VidalNaquet (1998) reuniu artigos publicados de 1980 a 1987, levantando-se contra as chamadas teses “negacionistas” de autores como Paul Rassinier e Robert Faurisson. Essas teses procuravam negar, em linhas gerais, a existência histórica do Holocausto; ou, de outro modo, afirmavam que o Holocausto seria uma “invenção” essencialmente judaica e antigermânica. “Invenção” que não se apoiaria em documentos “fidedignos”, pois que todos os testemunhos existentes seriam ou “suspeitos”, isto é, produzidos pelos próprios judeus sobreviventes, ou decorrentes de leituras equivocadas da documentação oficial produzida pelo Nacional Socialismo alemão. Assim, segundo os “negacionistas”, as câmaras de gás jamais existiram, Hitler nunca ordenou um “extermínio”, não houve 6 milhões de mortos, mas, no máximo, umas 200 mil vítimas de doenças “normais” para a reclusão em campos de concentração, ou mesmo por rusgas de judeu contra judeu. No início dos anos 1990, o historiador de origem semita Saul Friedlander organizou um congresso em Berkeley, onde especialistas convidados abordaram aspectos os mais variados da “representação” do Holocausto, em termos historiográficos, artísticos, literários, psicológicos e políticos. Os textos apresentados nesse evento foram publicados, em inglês, com o título de Investigando os Limites da Representação. O Nazismo e a “Solução Final”. (FRIEDLANDER, 1992). Na introdução à coletânea, Friedlander expressa sua intenção de utilizar-se do caso de um evento “no limite” para fazer pensar sobre as

48

Malerba, Ensaios

diversas concepções da verdade histórica: “O extermínio dos judeus [...] deve desafiar os teóricos do relativismo a encararem os corolários de posições que, de outra maneira, podem ser tratadas com facilidade em nível abstrato”. Um acontecimento como o Holocausto, porém, carrega em si tamanha “exigência de verdade” que traz para a mesa a incontornável necessidade de posicionamento dos historiadores quanto aos limites à “representação” (narrativa).16

O fim da história e a memória como problema historiográfico Esse tópico do “fim da história” está imbricado na questão da memória, segundo Patrick Hutton, porque lida com tempo e narrativa de modo a desaguar na relação entre memória e história. O estudo fundador desse debate no início dos anos 1990 é, bem sabido, do cientista político Francis Fukuyama, que revigorou o aforismo memorável cunhado pela primeira vez por Kant (depois reiterado por Hegel). Por “fim” da história, ele queria remeter não a qualquer catástrofe iminente, mas à culminação de um modo particular de ordenar o tempo histórico. Fukuyama firma seu argumento no idealismo kantiano; Kant projetara o fim da história num futuro, por assim dizer, utópico, mas para o qual nós devemos direcionar nossas energias morais. Essa é a própria essência da noção de progresso embutida na concepção de história da Ilustração. Com Fukuyama, o fim da história não seria mais um futuro distante, mas antes a culminação da luta ideológica pela criação da boa sociedade, luta da qual nós vimos participando desde a revolução francesa. Nós aprendemos por essa experiência, sustenta Fukuyama, que a democracia liberal é um ideal para além do qual não se pode avançar. Publicado em 1989, o livro de Fukuyama parecia um epitáfio perfeito para a Guerra Fria.17 Para equacionar melhor essa questão, vale a pena evocar o historiador francês François Hartog, que trata mais diretamente da questão da narrativa. Hartog descarta a noção de épocas históricas em favor do conceito de “regimes 16 Dois dos textos, que apresentam concepções opostas sobre os limites da representação (narrativa) em história, apresentados em Berkeley e publicados por Friedlander, são de Haydn White (Historical Emplotment and the Problem of Truth) e Carlos Ginzburg (Just One Witness). Esses ensaios foram traduzidos e publicados em Malerba, 2006. 17 Cf. Niethammer, 1989, que reviu os profetas da mudança de uma era histórica para outra póshistórica, do século XIX e XX; também Callinicos, 1995; Fontana, 1998.

Memória

49

de historicidade”. Por esse termo, ele quer referir os modos mutantes nos quais os historiadores perceberam e registraram o tempo histórico. Em outras palavras, ele redireciona nossa atenção da definição de uma época histórica para o significado de tempo na narrativa histórica. Hartog é um historiador da antiguidade e consegue ter uma visão ampla das perspectivas históricas em transformação na história, como uma narrativa com começo, meio e fim. Ele chama a atenção para a historia magistra vitae, que vigorou desde a Antiguidade até o Renascimento. Os historiadores, naquele “velho regime de historicidade”, viam os eventos do passado como arquetípicos. Os eventos subsequentes reiteravam suas lições. Tal narrativa privilegiava o passado, ao preservar o entendimento de uma cultura ancorada na tradição. O “moderno regime de historicidade”, ao contrário, privilegia o futuro, como se poderia esperar de uma cultura que atribui importância à inovação e à iniciativa. No regime moderno, os historiadores tendiam a identificar eventos singulares que marcavam pontos de inflexão na progressão indefinida do tempo. Eles olhavam o passado para preencher suas expectativas sobre as promessas contidas no futuro. Porque o futuro era previsível em tal ordenamento do tempo histórico, também o era o passado. A característica mais significativa de nosso tempo, de acordo com Hartog, é nossa perda de fé naquele regime moderno de historicidade. Ele fora deslocado por outro que privilegia o presente. Tal formulação prescinde de uma grand narrative. Como o futuro é representado problemático, também o passado torna-se imprevisível. Tal abordagem ao passado nos convida a viajar no tempo pelos “lugares da memória”. E aqui reencontramos Nora. Olha-se para trás, para um mundo diferente do nosso, mas com a esperança de que ele possa nos inspirar a dar um novo curso ao futuro. A questão da memória/história é sintomática desse moribundo regime de historicidade no qual o presente, não o futuro, é nossa referência primeira de temporalidade.18

18 Cf. Hartog, 2006 (original de 1996). Também Hartog, 1998, 2003.

50

Malerba, Ensaios

Considerações finais Mais esclarecedor do que toda essa discussão sobre as relações entre história e memória, é perceber este quadrante memorial avassalador no qual estamos vivendo. Foi assim no bicentenário da revolução francesa (que coincidiu com nossa inconfidência mineira); foi assim no quinto centenário do descobrimento da América; é assim hoje centenário de nascimento ou morte de autores consagrados, como o é no barulhento evento das efemérides do bicentenário da vinda da família real portuguesa para o Brasil. Será assim daqui poucos anos, quando se começar a comemorar as independências na América Latina ou a revolução russa. Numa época como a nossa em que tudo, até mesmo a história e a identidade coletiva de um povo transformam-se em mercadoria, não é de se estranhar o estardalhaço mercadológico em torno das efemérides, como assistimos recentemente com o advento do bicentenário da chegada da corte ao Brasil. Da noite para o dia, vimos ilustres desconhecidos tornarem-se celebridades e posarem de sábios eruditos; leitores de meia dúzia de livros se acotovelando para “entrar no debate”; publicações de qualidade suspeitíssima ganhando espaço na mídia. Uns se apropriam do fato como guardiões da história; outros vaticinam contra ela, acusando os abusos e manipulações da memória; esse turbilhão rememorativo contribuirá para construir a consciência histórica de nossa geração; o próprio tempo, porém, fará a triagem do que disso tudo se aproveita e o que deverá cair no esquecimento. Mas, afinal, o que hoje se comemora? O que significa, no caso, comemorar 1808 em 2008? “Comemorar”, memorar junto, exercício que aponta para as fronteiras movediças entre história e memória e, num movimento frenético, funde passado e futuro no tempo presente. Quando nos dispomos a memorar juntos, vemos eclodir a história viva, na pulsão dos debates apaixonados que reverberam a partir da historiografia e se espraiam por todo o espectro social. O acontecimento passado revigora a história, na medida em que afeta o presente, fazendo do distanciamento temporal um instrumento meticuloso para a revisão das diversas estratificações de sentido que se lhe foram atribuindo ao longo de gerações, tornando esse acontecimento em evento “supersignificado”, como denomina Paul Ricouer. Aqui, ele alcança toda sua importância de força política e cultural no tempo presente: a retomada reflexiva do acontecimento Memória

51

supersignificado torna-se o alicerce para a construção narrativa (histórica) de identidades fundadoras. Mas, junto com esse aspecto “construtivo” da memória, há que se ressaltar os graves problemas a ela associados, que se relacionam ao exercício do poder. Estou me referindo às patologias coletivas da memória, que podem se manifestar por situações de pleno resgate da memória, de repetição cuja “comemoração” e tendência à patrimonialização do passado, como no caso do Brasil joanino, são um belo exemplo; ou por situações contrárias, como o “chega de memória”, como é o caso em todos os paises totalitários dominados pela memória manipulada. Como ensina Paul Ricouer (2000), é assim que a memória se torna inseparável do trabalho do esquecimento. Como lembra também Tzvetan Todorov (1995, p. 14): “A memória não se opõe ao esquecimento. Os dois termos que contrastam são o apagar (o esquecimento) e o conservar; a memória é sempre e necessariamente uma interação dos dois”. Nós esquecemos de maneira tão ativa quanto nos lembramos. Isso é uma característica íntima da memória: sua seletividade. O esforço de memória que inclui é também aquele que ativamente exclui. A memória que produz esquecimento. De modo que, em relação a história, a memória é um modo de seleção no passado, uma construção intelectual e não um fluxo exterior ao pensamento. Quanto à dívida que guia o “dever de memória”, ela está no cruzamento da tríade passado-presente-futuro e tem a ver com os desejos de ação do presente em relação a um projeto de futuro. (KOSELLECK, 1993; RÜSEN, 2001). Essa dialética dos tempos não afeta somente nossas possibilidades e limites de ação; incide diretamente no modo como nos apropriamos do passado e como o apresentamos em forma narrativa.

52

Malerba, Ensaios

III acontecimentos:

definições e propriedades

Apresentação

Nos três capítulos que seguem ousarei abordar questões que se constituem nos maiores desafios que assolam o pensamento de historiadores e cientistas sociais há décadas. Desnecessário dizer que não tenho a pretensão ingênua de oferecer respostas cabais a questões “esfíngicas” como são “acontecimento”, “estrutura”, “narrativa”, e de outras que lhes estão intimamente aderidas: tempo, sujeito, causalidade. Portanto, guarde-se desde já que: primeiro, minha intenção não é a de buscar respostas definitivas (o próprio estudo desses conceitos mostra que eles possuem sua historicidade, que foram pensados e aplicados de modos diferentes a cada geração); e, em segundo lugar, que se trata de faces de um mesmo grande problema: o conhecimento da história e das sociedades. Se as esfinges nos lançam o desafio, não vale a pena nem correr: estamos devorados. Mas poderemos ter um bom porto seguro, para nossa partida, se compreendermos desde já que se tratam de conceitos organicamente conectados, quando não se resumem à mesma coisa observada de ângulos diferentes, com ênfases diferentes. Já seja por hábito de nosso pensamento, que tem a tendência de construir conceitos a partir de polarizações binárias,1 Muitos estudos em Psicologia Social têm se dedicado ao fenômeno da tendência dos seres humanos em dicotomizar o mundo em polaridades, hábito tão antigo como a própria humanidade e que parece ter a ver com alguma característica fisiológica do córtex cerebral. Talvez venha daí a grande polaridade epistemológica que produziu realistas e antirrealistas epistemológicos desde o problema fundador do Cogito ergo sun, de Descartes: aqueles que propuseram uma equação gnosiológica fundada na existência de um sujeito cognoscente que se depara com um mundo real, exterior a ele, o qual este sujeito pretende conhecer; e aqueles que sustentaram proposição diferente, baseada na dúvida insuperável quanto à existência de um “mundo exterior”. Voltaremos a este assunto no capítulo relativo à narrativa e ao realismo histórico. O fenômeno parece estar ligado à dificuldade que os pensadores tiveram até hoje em conceptualizar os processos gnosiológicos em termos processuais. A crítica mais consequente a esse vício que domina todo o conhecimento moderno foi finamente elaborada por Norbert Elias,

1

acontecimentos

53

sempre tendemos a pensar, por exemplo, o acontecimento em oposição à estrutura, ao processo, ao sujeito, assim também com cada um deles. Aqui, vamos tentar pensar não em oposições, mas em relações: como estes conceitos podem estar conectados e como efetivamente foram aproximados ou apartados em alguns teóricos e/ou correntes de reflexão histórica específicas. Por outro lado, fique evidenciado desde já que não tenho a pretensão de apresentar uma história desses conceitos, como exigiria Koselleck (1993), por exemplo: sua evolução semântica através dos tempos. Os autores que eventualmente evocarei terão o papel de ilustrar posições, tendências, concepções. Portanto, poderíamos ter partido de qualquer ponto, para chegar a qualquer outro. Estamos lidando com conceitos estreitamente articulados. O percurso escolhido, partindo do conceito de acontecimento, passando pelo de estrutura, depois pela sua narrativa, para desaguar numa discussão sobre o conceito de historiografia, tem sua justificativa. Vamos tentar captá-lo no “andar da procissão”. Comecemos aqui pela discussão daquilo que os historiadores científicos do século XIX entendiam como a “unidade” de conhecimento da história: o acontecimento. Partiremos de algumas diferenciações e definições de fato, acontecimento, evento; passaremos pela questão da suposta objetividade do fato; pelo questionamento dos atributos que o elevam à condição de “histórico” e por sua relação com a memória. E procuraremos iniciar a discussão a respeito de suas relações insidiosas com as famigeradas estruturas, objeto do capítulo seguinte. Para começar o raciocínio, lanço ao papel algumas frases soltas e deliberadamente provocadoras, acerca das relações entre acontecimento(s) e estrutura(s): 1. A estrutura é um acontecimento na longa duração. 2. As estruturas são ordens de acontecimentos de natureza e duração diversa. 3. O acontecimento é uma trama constituída de ordens de estruturas de natureza diversa. que procurei sintetizar num dos capítulos anteriores. Uma tentativa bem realizada de elaborar os fundamentos de uma epistemologia das representações sociais, que discute o problema das polaridades, encontra-se em Markowá, 1996.

54

Malerba, Ensaios

4. Portanto, acontecimentos e estruturas não se constituem em entidades ontológicas, já que o mundo real, que existe, é um caos. 5. Acontecimentos e estruturas pertencem ambos ao mesmo plano existencial conceitual. Mas conceitos não são arbitrários; antes, é o “mundo real” que desenha os instrumentos gnosiológicos por meio dos quais os homens põem-se a conhecer esse mesmo mundo, expressando-o em formas narrativas chamadas historiografia.

Definições A concepção événementielle de acontecimento As polêmicas em torno do estatuto do texto histórico, da narrativa histórica, que eclodiram nas últimas duas ou três décadas, tiveram como um dos pontos de partida as formas tradicionais de narrativa histórica. Refiro-me particularmente àquelas quatro maneiras de escrita histórica do século XIX, cujo realismo Hayden White (1992a) contestou em seu clássico Meta-história: o da Estória Romanesca a la Michelet; o da comédia a la Ranke; o da Tragédia, a la Tocqueville; o da Sátira, a la Burckhardt. Mas as concepções fundamentais de acontecimento costumam ser particularmente atreladas a uma dessas tradições, a rankeana, que atravessa o século XIX e entra no século XX como um modelo hegemônico de escrita histórica que tinha no “fato histórico” seu ponto de chegada. Mais à frente, veremos que essas distinções entre fato e acontecimento são mais sutis do que aparentam à primeira vista. Porém, de modo geral, é mais ou menos assentado que foi contra uma história dos acontecimentos, événementielle, como sistematicamente se referia de maneira pejorativa Lucien Febvre em seus “combates pela história”, que se insurgiram os historiadores fundadores dos Annales2 e todos aqueles que, dentro das ciências humanas da época, posicionavam-se ostensivamente em oposição à historiografia oficial, dita “positivista”. Foi contra ela que se construiu, como veremos, ao longo do século XX, uma história estrutural. Cf. Aguirre Rojas, 2004; Bourde e Martin, 1997; Burguière, 1979; Casanova, 1991; Mann, 1971; Mozaré, 1957;

2

acontecimentos

55

A narrativa dos acontecimentos Vamos partir de um ponto consensual, espero: que toda história escrita, toda história narrada em prosa dentro de cânones mais ou menos difundidos entre os historiadores, enfim, toda historiografia é sempre uma forma de representação da história. Até aí, não há problema. Eles surgem, como veremos em momento apropriado, quando se discute a existência (ou não) de um substrato, de um referente à narrativa histórica que seja exterior ao texto, para ficarmos no ambiente semiológico dos termos da questão. Quanto a esse ponto, damos as mãos a R. Koselleck (1993). Em um texto seminal, o qual evocaremos inúmeras vezes, o historiador dos conceitos ensina que as questões acerca da representação, acerca de até que ponto a históriaconhecimento narra quando descreve, apontam para diferentes tramas temporais do movimento histórico. A descoberta de que uma “história” está desde sempre já pré-formada – como diria H. White, “prefigurada” – extralinguisticamente não apenas limita o potencial da representação, como também põe em questão o papel do uso sistemático, pelo historiador, das fontes históricas. Isso aponta para indicadores muito diferenciados dos decursos temporais. Ou, do ponto de vista do historiador, é possível enunciar o problema de modo inverso: trata-se de diferentes extratos de tempo que exigem respectivamente distintas formas de intervenção e apresentação. Portanto, desde já, tanto estruturas quanto acontecimentos podem ser entendidos como modalidades temporais, as quais exigem estratégias narrativas diferenciadas: Antecipando minha tese: na praxis não se pode sustentar um limite entre narração e descrição, mas na teoria dos tempos históricos, os planos de uma trama temporal diferente não se podem relacionar de forma mútua e completa. Para esclarecer essa tesa, partirei, em princípio, de que “os acontecimentos” só podem ser narrados e a “estruturas” descritas. (KOSELLECK, 1993, p. 141).

Mas algo que é claro em Koselleck é que, quando narramos um acontecimento, nosso discurso se remete a algo cuja existência num plano ontológico é incontestável. Koselleck reconhece e parte do princípio da realidade do acontecimento:

56

Malerba, Ensaios

Os acontecimentos, que se delimitam ex post na infinitude do suceder, podem ser experimentados pelos contemporâneos afetados como um contexto de acontecimentos, como uma unidade de sentido que se pode narrar. Em princípio, o marco dentro do qual uma soma de incidentes se reúnem em um acontecimento é a cronologia natural. No sentido do curso histórico do tempo, existe um limite para a divisão (Simmel) por sob o qual se decompõe o acontecimento. Só com um mínimo de anterioridade e de posterioridade se consegue a unidade de sentido que forma um acontecimento a partir dos incidentes. No contexto de um acontecimento, o que é anterior e posterior, pode ampliar-se; mas sua consistência acaba aderida, de qualquer maneira, ao curso do tempo. A própria intersubjetividade do contexto de um acontecimento, já que o realizam sujeitos ativos, tem que estar fixada no retículo de uma série temporal. (KOSELLECK, 1993, p. 142).

Portanto, o acontecimento exige a sucessão e está ao alcance dos sujeitos conscientes que o experimentam.

O realismo epistemológico dos acontecimentos naturais e acontecimentos humanos Podermos avançar na tentativa de análise3 do conceito de acontecimento se nos recuarmos a concepções assentadas. Não cabe uma longa digressão para recuperar que a Sociologia, que nascia no final do século XIX, como a queria Durkheim, quis fugir da especulação metafísica para construir-se como uma ciência do social. Para tanto, para aproximar-se do paradigma de ciência então vigente, proclamou como seu objeto o “fato social”, o fato como unidade do conhecimento sociológico, dado bruto, empírico, contábil, mensurável. Também os historiadores, nessa época heroica das ciências humanas, seguiram a mesma trilha. Quiseram o acontecimento como unidade do conhecimento histórico, concepção que vigorou até adiantado o século XX. Charles Mozaré, emérito annaliste, tem um ensaio emblemático sobre o assunto, com o revelador título de “O Acontecimento como dado”. Esse texto, brilhante como outros de seu autor, tem muitos méritos e pode ser muito elucidativo para nosso trabalho de entendimento do conceito de No sentido científico da palavra análise: “exame de cada parte de um todo, tendo em vista conhecer sua natureza, suas proporções, sua funções, suas relações etc”.

3

acontecimentos

57

acontecimento. Em primeiro lugar, ao diferenciar acontecimentos humanos e naturais. Essa questão será detidamente discutida quando tratarmos da história estrutural de longa duração braudeliana, no capítulo seguinte. Por ora, interessa-nos em particular a questão da relação entre os fatos, ou, como se pode chamar, a questão da causalidade histórica. Além daqueles acontecimentos denominados por Mozaré de “fatos brutos da natureza”, há os acontecimentos propriamente “históricos”, que o historiador francês entende serem mais “cerebrais’, porquanto são reconstruídos na mente do historiador, que pode ser definido como um pensador à procura de causas. Mozaré está preocupado com o modo pelo qual o historiador estabelece a relação entre os fatos. A ciência, nesse sentido, seria nada mais que a capacidade intelectual a que chegou o ser humano de simbolização da reprodução infinita de acontecimentos idênticos. Nos primórdios da existência humana histórica, o homem já tinha separado da reprodução infinita de acontecimentos idênticos, sinais banalizados e laicizados que usava maquinalmente no cotidiano e que davam a seus gestos operários, como à suas negociações e, evidentemente, à sua linguagem, a eficacidade (sic) prática. Antes mesmo de começar o que chamamos de história, estava já constituído um conjunto de conhecimentos aprovados, testemunha de obscuras correlações geradoras de lógicas como de significações simbolizadas. A humanidade, a seguir, continua a depender dos acontecimentos e os espreita, mas não cessa de aumentar o nó das significações auto-criadoras, operatórias. A mistura de acontecimentos e significações deixa à emoção do mistério uma animação essencial, mas torna, também, a ação mais eficaz, graças ao pensamento conceitual. (MOZARÉ, 1970, p. 53, grifo nosso).

Existem, pois, duas categorias de acontecimentos: aqueles que Mozaré chama de brutos, uma coação da natureza exercida sobre os homens de modo a constrangêlo, impor-lhe limites; na segunda categoria, o homem já descobriu as expressões latentes, as sintaxes pertinentes entre os acontecimentos. Ambas concorrem para educar o homem: “a primeira, de preferência adequada às emoções, elabora-as, a segunda implica um universo de leis certas que a razão desconhece”. Ora, o que Mozaré está a nos ensinar? Que existe uma grande desordem dos fatos concretos e que a história, para tornar-se científica, deve buscar nesse caos os encadeamentos de causa e efeito. O objetivo maior do historiador seria, então, a busca da causalidade que se estabelece entre os acontecimentos. 58

Malerba, Ensaios

Em cada acontecimento, o tempo se faz presente quer como ciclo – o dos instantes, dos dias, ou estações – quer como uma linha que não retrocede. Leva a distinguir tudo quanto se repete absolutamente: pedra que cai, colheitas que se renovam, casais que criam descendência, gerações que se revezam, daquilo que muda irreversivelmente: envelhecimento dos seres, dos povos, dos sistemas de governo ou de representação [...]. (MOZARÉ, 1970, p. 53).

Os historiadores devem usar essas marcas do tempo, que são as datas, como balizas do entendimento histórico. As cronologias são o instrumento para tanto: para localizar os acontecimentos no tempo; em seguida, o historiador deverá buscar suas conexões causais. Mas as datas não se referem a qualquer substância, pois o acontecimento não é jamais algo indivisível: “Presta-se, passado o momento de surpresa, ao relacionamento, comparação, estabelecimento de cadeias causais que explicam como se tornou inelutável o que havia sido imprevisível [...]”. São as causas, as relações entre os acontecimentos, o que interessa ao historiador. Neles, assume desmedida importância o acaso, a contingência. Como se pode explicar o acaso? O acaso não se explica: ele serve para explicar, ele é a própria substância da história. Diz Mozaré: As lições adquiridas não foram sem conseqüências na interpretação de acontecimentos desde então sentidos diferentemente. [...] Assim se faz no dia seguinte ao acidente, o choque de duas trajetórias antes independentes; ou então uma doença, irrupção de uma colônia infecciosa em um órgão vivo; é também depois de um acaso feliz, ajustamento de prazeres ou agradável combinação de circunstâncias, mais ou menos esperadas. E, no entanto, doenças e acidentes devidamente categorizados propiciam médias estatísticas, apresentadas para previsões globais [...]. (MOZARÉ, 1970, p. 57).

Em outro artigo contíguo a esse assunto, Mozaré define de outra maneira os acontecimentos: se eles nos parecem, à primeira vista, afetados de desordem, são, na verdade, conflitos de ordens.4 Assim como podemos entender que não existe o acaso; este é, antes de qualquer coisa, a interseção, o encontro de duas séries causais independentes.

4

Mozaré, Os fatos memoráveis. In: Mozaré (1970, p. 71).

acontecimentos

59

O diferencial teórico braudeliano: acontecimentos e duração social Podemos atribuir a Fernand Braudel o mérito de ter sido um dos primeiros, senão o primeiro historiador a buscar estabelecer o estatuto teórico do tempo na prática historiográfica. Ao proceder à “filtragem” do tempo,5 que deixou de ser único para pulverizar-se em múltiplas temporalidades, Braudel estabeleceu sua própria hierarquia entre os tempos, a qual guardava em si a chave da dinâmica histórica: o tempo breve, tempo do acontecimento; o tempo médio, das conjunturas e a longa duração das estruturas, determinante de todos os demais. (BRAUDEL, 1986). Sua reflexão longe estava de fortuita, exercício de livre pensar. Em 1958, Braudel pugnava contra adversários muito claros: por um lado, os positivistas, senhores do tempo breve, prisioneiros dos acontecimentos; por outro, nomeadamente contra Levi-Strauss e sua Antropologia Estrutural, que ameaçava a história, expulsando-a para fora das estruturas imóveis, único lugar onde poderia entrar a ciência. Tomemos algumas definições braudelianas, conforme sistematizadas em seu texto clássico de 1958. Para Braudel, a história tradicional restringiu-se à narrativa do tempo breve, que seria o tempo do indivíduo e do acontecimento, produtora de narrativas espetaculares e dramáticas, porém de pouco fôlego. A “nova história” de Bloch e Febvre teria operado um deslocamento do observatório para outros tempos, particularmente para o tempo dos ciclos, das conjunturas econômicas e sociais, inaugurando uma nova modalidade narrativa, a das conjunturas, que descreve o passado em função dos aumentos e quedas cíclicas de preços ou movimentos populacionais, dividindo o passado em períodos mais amplos que os dos acontecimentos.6 Porém, mais importante que essas duas temporalidades, que seriam ilusórias, enganadoras, será o tempo da longa duração, de amplitude secular, determinante dos demais. Uma verdadeira mudança paradigmática, como ensinaram K. Pomian, R. Koselleck e José Carlos Reis. Para algumas análises iluminadoras da questão do tempo em Braudel, ver Lopes, 2003; Aguirre Rojas, 2000; e a magistral análise de O mediterrâneo, feita por Paul Ricœr em Ricœr, 1994-96. 3. t. 6 Os historiadores das conjunturas se fizeram presentes em todas as fases do movimento dos Annales, mas em particular na primeira e segunda gerações. Bloch, 1954; Idem (1978). Porém, o grande nome de investigador dos tempos médios ou cíclicos entre os annalistes foi Labrousse, 1962. Da terceira geração, Duby, 1973; sobre as relações conceituais entre acontecimento, conjuntura e estrutura, Halperin Donghi, 1962; Kula, 1977; Casanova, 1991. 5

60

Malerba, Ensaios

Porém, o próprio Braudel indica a fluidez própria desses conceitos, como o de acontecimento. O desejo de Braudel era de circunscrevê-lo no tempo breve, na curta duração: “o acontecimento é explosivo, ruidoso. Faz tanto fumo que enche a consciência dos contemporâneos; mas dura um momento apenas, apenas se vê sua chama”. O perigo mora em que o “acontecimento” pode desenrolar-se na longa duração. Por exemplo, no feixe de suas relações e desdobramentos, indício de movimentos mais profundos: “Extensível até ao infinito, une-se, livremente ou não, a toda uma cadeia de acontecimentos, de realidades subjacentes, inseparáveis aparentemente, a partir de então, uns dos outros”. Para fugir desse perigo conceitual, Braudel propõe a distinção. Em vez de usar “dos acontecimentos”, devemos usar “tempo breve”, que seria este sim “a medida dos indivíduos, da vida quotidiana, das nossas ilusões, das nossas rápidas tomadas de consciência; o tempo, por excelência, do cronista, do jornalista”. (BRAUDEL, 1986, p. 17). Adverte, porém, que a crônica e o jornal oferecem, ao lado dos grandes acontecimentos – “históricos” –, os acontecimentos comezinhos da vida cotidiana, justamente aqueles a que se consagrou a nouvelle histoire da terceira geração dos Annales: Um incêndio, uma catástrofe rodoviária, o preço do trigo, um crime, uma representação teatral, uma inundação. É, pois, evidente que existe um tempo breve de todas as formas de vida: tanto econômico, social, literário, institucional, religioso e inclusivamente geográfico (um vendaval, uma tempestade), como político. (BRAUDEL, 1986, p. 11).

O passado é constituído por essa infinidade de pequenos acontecimentos, de pequenos fatos, ora mais ora menos resplandecentes; aqueles microfatos com que a sociologia e a sociometria de sua época, às quais ele vai criticar veementemente na seção sobre as “matemáticas sociais”, fazem a massa do seu pão. A questão é que essa massa obscurece a reflexão histórica, que deve convergir para o tempo longo, à essa longa duração subjacente ao cotidiano. Perceba-se aqui a fluidez conceitual de Braudel. Ele vinha chamando a atenção para o fato de que não se pode identificar os acontecimentos ao tempo breve, pois aqueles podem acontecer na longa duração. Mas, acima, ele define um pelo outro: “A ciência social tem horror do acontecimento. Não sem

acontecimentos

61

razão: o tempo breve é a mais caprichosa, a mais esmagadora das durações”. (BRAUDEL, 1986, p. 18). Ao fim e ao cabo, ele acaba cedendo ao conceito vulgar de acontecimento como fato efêmero que pulula na esfera do político, praticado pela historiografia tradicional e do qual os historiadores devem desconfiar. Ainda que advirta, sem muita convicção, que “a história política não é necessariamente episódica nem está condenada a sê-lo”. (BRAUDEL, 1986, p. 19). De fato, a emergência dos Estados nacionais, tal como estudada por Elias ou Weber, é um fato político processual, que se verifica na longa duração.7 No entanto, é fato que a historiografia positivista trabalhou o fato político, o “grande acontecimento”, sempre no tempo breve.

Pomian: o acontecimento na rede das estruturas Um outro autor que procurou escrutinar tanto o conceito de acontecimento como o de estrutura é Krzysztof Pomian.8 Seu ensaio sobre os acontecimentos é interessante porque historia as diversas concepções de acontecimento desde o século XVI, a rigor, desde o manifesto desdém de Voltaire aos acontecimentos, identificados com os fatos políticos comezinhos. (LOPES, 2000). Revê vários pensadores, desde o século XVII até o XX, mostrando concepções críticas ao acontecimento, como a do próprio Voltaire. É como se o autor fosse buscar na história do pensamento legitimidade para renegar o acontecimento, que é o que fará ao longo de sua argumentação. A coisa se coloca, ao fim e ao cabo, na dualidade de concepção do fato como coisa em si, único e singular, ou como fenômeno, parte de uma série, indicativo de uma tendência geral que permite à ciência a formulação de leis. Será em outro artigo, voltado à história das estruturas, que Pomian vai lançar sua concepção de acontecimento. (POMIAN, 1993, p. 112). Nela, é flagrante a desvalorização do acontecimento na operação histórica, assim como a concepção do acontecimento como dado. De acordo com o autor, seria pertinente a crítica endereçada a Braudel de que a última parte de O Cf. Weber 1987; Bendix 1986; Elias 1993c, v. 2; Malerba, 1996. Pomian, 1990. Este livro consiste numa série de ensaios publicados na Enciclopédia Einaudi, escritos entre 1976 e 1981.

7 8

62

Malerba, Ensaios

mediterrâneo, dedicada aos acontecimentos, não se encaixa bem às anteriores, pois as primeiras têm objetos que engendram explicações, enquanto os acontecimentos não têm essa propriedade. Trabalha ainda com a ideia braudeliana de que o tempo breve é determinado por e submetido a tempos mais distendidos. Na medida em que é abordado em toda a sua unicidade, um acontecimento não dá ensejo a nenhuma explicação: ele sucedeu, e só se pode constatá-lo [...] Os acontecimentos são engendrados, portanto, pelas estruturas e pelas conjunturas. Eles são as rupturas de equilíbrio ou restabelecimentos deste [...]. Estruturas, conjunturas, o factual: a tripartição braudeliana do tempo da história não coincide, como se vê, com a de Labrousse. As variações sazonais pertencem à estrutura, porque sua repetição de ano a ano constitui uma das características duradouras das antigas economias, sociedades e civilizações. Os movimentos seculares e oscilações cíclicas se situam, em contrapartida, do lado da conjuntura. Quanto ao factual, uma harmonização dos ensinamentos de Braudel e Labrousse leva a repeli-lo para a margem, ou até mesmo a não se interessar em absoluto por ele. De fato, o novo questionário dos historiadores, que indica as direções da pesquisa a partir dos anos 40, é organizado em torno da oposição entre estrutura e conjuntura. (POMIAN, 1993, p. 114, grifo do autor).

Aqui se manifesta uma concepção preconceituosa de acontecimento, construída contra aquela acepção que vinha desde os “positivistas” do século XIX, a qual identificava acontecimento a fato único e singular. Faltava levar mais adiante a operação de desconstrução operada por Braudel no tempo histórico, e decompor os acontecimentos, para poder-se enxergá-los como tramas complexas onde entrecruzam série diversas de estruturas e temporalidades. Voltaremos depois a ambos autores, na discussão sobre as estruturas.

O singular e o repetitivo: a história arte ou ciência Antes de chegarmos às tramas de Paul Veyne, meu foco primordial de análise, vou lembrar um autor bastante citado pelas gerações do pósguerra: Joseph Hours.9 Ao levantar a velha questão de se a história é ou não 9

Hours, 1978. (Original: Valeur de l’Histoire. Paris: PUF, 1954).

acontecimentos

63

ciência, Hours volta-se ao entendimento comum de que a ciência procura nos acontecimentos as analogias que nele se apresentam, o que se repete, para fazer daquele acontecimento a manifestação de um fenômeno regular, do qual se pode deduzir leis que o encaixem num sistema, enquanto que a história lidaria com o que é único e singular... Nesse sentido, a história deveria constituir-se em contrapeso da ciência, pois quem busca a história não é o cientista, mas o homem de ação, concepção que não deixa de ser um resquício da historia magistra vitae. Partindo dessa oposição entre ciência e história, fundada em diferentes concepções de acontecimento científico, que busca a repetição para formular leis; e histórico, que lida com o singular para preparar o homem para a ação, Hours chega a uma definição borgeana do que seria o “fim” último da história: Ela [a história] nunca atingirá o seu fim, sem dúvida, porque o fim ideal da história, temos que dizer com Gabriel Monod, seria reconstituir na série dos tempos a vida integral da humanidade... e para isso teria que retraçar o conjunto das manifestações da atividade e do pensamento humano, considerados na sua sucessão, no seu desenvolvimento e nas suas relações de conexão ou de dependência. (HOURS, 1978, p. 100, grifo nosso).

Isso lembra um pouco aquele conto de Borges, na História Universal da Infâmia, em que um sujeito pretendia fazer um mapa do mundo em escala 1 x 1, onde tudo estivesse precisamente em seu lugar. É importante mencionar essa concepção, pois muitos historiadores, até hoje, patinam nela. Muitos, como Paul Veyne, que veremos a seguir, afirmam a impossibilidade de uma história global, ou de uma teoria totalizante da história, por entenderem que total significaria reproduzir todos os “acontecimentos”, “grandes e pequenos”, “históricos” e cotidianos, numa única narrativa. Seria como a concepção de uma biografia em cuja narrativa se pretendesse reproduzir cada minuto da vida do biografado. A total falta de compreensão do papel da teoria está na base de tais concepções.

64

Malerba, Ensaios

Veyne: o acontecimento na narrativa ou a falácia da trama Com Paul Veyne, aproximamos acontecimento e narrativa.10 Para este autor, meio franco atirador dentro da terceira geração dos Annales, a história não passa de uma narrativa verídica, na qual se encontram dois tipos de eventos. Quanto aos eventos históricos, Veyne refere-se àqueles “eventos humanos que têm o homem como ator”. Veyne caracteriza os eventos como humanos, mas não é propriamente a presença humana que define a essência ou os fins da história, e sim o seu modo de conhecimento. Há duas possibilidades de fatos humanos, portanto, Veyne parece equivaler o conceito de evento com o de fato: “Ou bem os fatos são considerados como individualidades, ou bem como fenômenos por detrás dos quais procurar-se uma constante escondida”. (VEYNE, 1982, p. 31). Permanece, em Veyne, o conflito sobre o caráter e o alcance da “ciência histórica”, se ideográfica ou nomotética. O imã atrai o ferro, os vulcões entram em erupções: fatos físicos onde alguma coisa se repete; a erupção do Vesúvio em 79: fato histórico tratado como evento. O governo Kerenski em 1917: evento humano; o fenômeno do duplo poder no período revolucionário: fenômeno que pode repetir-se. Se consideramos o fato como evento é porque julgamos que o próprio fato é interessante; se nos interessamos por seu caráter repetitivo, ele é, apenas, o pretexto para a descoberta de uma lei. (VEYNE, 1982, p. 35, grifo nosso).

Em Veyne, a história é uma síntese narrativa de eventos, os quais o historiador não faz jamais reviver: o vivido não é o dos atores, mas uma narração. A história não é uma síntese explicativa, mas uma síntese narrativa, que faz com que “um século caiba numa página”. Outro ponto fundamental da sua concepção de acontecimento é que os conhecemos sempre indiretamente, por meio dos documentos. Os eventos não são jamais apreendidos de maneira direta e completa, mas incompleta e literalmente, por meio de indícios ou testemunhos. Enfim, o historiador lida mesmo é com fatos singulares.

10

Veyne, 1982. O mais rigoroso estudo sobre Veyne que conheço é o de Cardoso Jr, 2003.

acontecimentos

65

A história – é fato – presta-se mal a uma tipologia e não se podem descrever tipos bem caracterizados de revoluções ou de culturas como fazemos com uma variedade de insetos; porém, mesmo que não fosse assim e que existisse uma variedade de guerras da qual pudéssemos dar uma longa descrição de várias páginas, o historiador continuaria contando os casos individuais pertencentes a essa variedade. (VEYNE, 1982, p. 14, grifo nosso).

Portanto, para Veyne, “a história é anedótica”. Ela é interessante porque, como o romance, narra uma estória. Só se diferencia dele num ponto: aqui, na história, trata-se de um “romance verdadeiro”. Ao afirmar seu mais conhecido adágio, segundo o qual “tudo é histórico, logo, a história não existe”, embora nuançando-a, Veyne reitera a visão equivocada da história como “mosaico” e do historiador como “colecionador”, a quem incumbe preencher as lacunas do mosaico. Parte da noção de descontinuidade de Levi-Strauss: a história seria constituída por um conjunto descontínuo, formado por diferentes domínios, cada qual com sua própria frequência, aos quais corresponderia uma espécie de hierarquia. Prova dessa visão equivocada da história-mosaico é a definição de “natureza lacunar da história” que oferece Veyne. O historiador não conhece seu objeto (o Império Romano, seu exemplo), mas aquilo que ainda se pode saber sobre ele. Por baixo da superfície tranqüilizadora da narrativa, o leitor, a partir do que diz o historiador, da importância que parece dar a este ou àquele tipo de fatos (a religião, as instituições), saber inferir a natureza das fontes utilizadas, assim como as suas lacunas, e essa reconstituição acaba por tornar-se um verdadeiro reflexo; ele advinha o lugar de lacunas mal preenchidas, (...) Sabe, sobretudo, que, de uma página para outra, o historiador muda de tempo, sem prevenir, conforme o “tempo” das fontes, que todo livro de história é, nesse sentido, um tecido de incoerência, e que não pode ser de outro modo. (VEYNE, 1982, p. 18, grifo nosso).

O historiador torna-se, com Veyne, um colecionador, que caça seus fatos com uma pinça ou uma espingarda, não importa o instrumento. Os fatos, pequenos ou grandes, visíveis ou não aos que os experimentaram, existem em si mesmos, ocultos na floresta densa do cotidiano ou nas profundezas obscuras da longa duração. Veyne mantém a ideia de fato como migalha e o historiador

66

Malerba, Ensaios

como colecionador; o problema residiria na dificuldade de se estabelecer critérios de significância, de importância entre a miríade de fatos entre os quais o historiador irá “pescar” ou “caçar” os que lhe interessam para compor sua narrativa. Mesmo que, para além do factual ordinário da esfera política, encontremos, como hoje, o não factual: economia, sociedade, civilização. A questão é, então, o que e quanto cabe no factual? A postura de Veyne se explicita nessa resposta: Ora, quanto mais se alarga, a nossos olhos, o horizonte factual, mais ele parece indefinido: tudo o que compõe a vida quotidiana de todos os homens, inclusive o que só um virtuose do diário íntimo discerniria nela, tudo isso constitui, de direito, caça para o historiador, pois, em que outra região do ser que não na vida quotidiana, dia após dia, poderia refletir-se a historicidade? [Isso significa que] um acontecimento só é conhecido mediante indícios e que qualquer fato da vida de todos os dias é indício de algum evento (que esteja catalogado, quer durma, ainda, na floresta do não factual). (VEYNE, 1982, p. 122, grifo nosso).

Aqui se registra o conservadorismo epistemológico de Veyne, segundo o qual “a história é uma idéia-limite”. Mais uma vez, o autor reafirma sua concepção do acontecimento como unidade da história, e a história como exposição narrativa de séries causais de acontecimentos. Um acontecimento só tem sentido dentre de uma série, o número de séries é indefinido, elas não se ordenam hierarquicamente e veremos que também não convergem para um geometral de todas as perspectivas. A idéia de história é um limite inacessível, ou antes, uma idéia transcendental. (VEYNE, 1982, p. 18).

Ora, porque tudo é história, cabe ao historiador promover a seleção do que deve ou não caber em sua trama. Isso explicita a concepção de acontecimento de Veyne, como de outros autores que veremos a seguir, que permanece a mesma desde o século XIX: aquela segundo a qual o acontecimento é um dado que cabe ao historiador caçar. A contribuição do historiador, segundo Veyne, estará na articulação entre os fatos, no estabelecimento das tramas narrativas que os ligarão.

acontecimentos

67

Propriedades Como vimos observando, é mais ou menos consensual o entendimento de que os acontecimentos existem objetivamente, como dados, e que os historiadores fazem deles diferentes usos conforme sua visão de que os fatos são únicos e singulares ou manifestações de fenômenos que se repetem; segundo a predileção, ao historiador cabe caçar esses fatos, ou peças do mosaico, para narrá-los e/ou estabelecer as tramas causais que os ligam. Nesta seção, vamos aprofundar essa questão da “realidade” ou “objetividade” do fato; tentar também vermos se há nuances conceituais sérias para se distinguir entre “fato” e “acontecimento”; vermos como se costuma justificar o caráter histórico do fato; e como, deste ponto, perpassam questões ligadas à construção da memória e do exercício do poder.

A objetividade do Acontecimento Em um clássico ensaio sobre “O historiador e seus fatos”, o eminente historiador inglês E. H. Carr (1989, p. 11-30) faz, de início, a proposição de que haveria duas possíveis respostas à questão do que é a história: aquelas simpáticas aos entendimentos de Lord Acton (historiador inglês do final do XIX), como o registro do maior número possível de acontecimentos, em busca de uma “história defintiva”; ou aquelas concordantes com os pressupostos de outro renomado historiador inglês de meados do século XX, George Clarck, que enfatizava a impossibilidade daquela utopia, em função da inevitável reescrita da história a cada geração Nessa contradição estaria o caminho para a reflexão: um, positivo, reflete o espírito vitorioso da Europa do final do século XIX; o outro, o ceticismo da geração beat pós-Segunda Guerra Mundial. Portanto, estamos de frente ao confronto de duas visões de mundo, o reflexo de uma mudança global da própria sociedade. O século XIX foi o século dos fatos, quando se assistiu ao fetiche do acontecimento, muito estimulado pela postura dos positivistas. Na Inglaterra, isso fora catalisado pela tradição empirista dominante na filosofia britânica.

68

Malerba, Ensaios

De acordo com Edward H. Carr (1989), a teoria empírica do conhecimento pressupõe uma separação completa entre sujeito e objeto. Fatos, como impressões sensoriais, impõem-se, de fora, ao observador e são independentes de sua consciência. Assim entendido, o processo de recepção seria passivo: recebidos os “dados”, então se trabalha sobre eles. Tal concepção era presente no Oxford Shorter English Dictionary, no qual fato é definido como “dados da experiência distintos das conclusões”. Isso é o que se pode chamar de “senso comum” da história, entendida como um “corpo de fatos verificados”. No limite, temos a perspectiva de Acton, o segundo a qual “nosso Waterloo deve ser tal, que satisfaça franceses e ingleses, alemães e holandeses da mesma maneira”. De qualquer modo, nessa já antiga formulação de Carr fica patente o entendimento da história como um “caroço de fatos envolvido por uma polpa discutível de interpretação”. De qualquer modo, fica clara a concepção da aderência do fato a uma realidade histórica, seja lá isso o que for.

Definições do acontecimento: o fato como dado da realidade Tal concepção, pode-se afirmar sem hesitação, foi hegemônica nos séculos XIX e XX, embora as posições em contrário datem também ao longo do período. Para notar sua presença forte, basta percorrer importantes manuais de pesquisa histórica, como de Pierre Salmon, Jean Glénisson, ou mesmo os famosos Os métodos da história, de Cardoso e Brignoli, que formaram gerações de historiadores.11 Como bem lembra Glénisson: “É um fato”; “apoiamo-nos na autoridade dos fatos”; “os fatos falam por si”; eis aí expressões consagradas, que encerram discussões e tranqüilizam historiadores. Realidade evidente, acontecimento cuja autenticidade é indiscutível, o “fato” parece corresponder a uma noção tão clara, a ponto de dispensar, geralmente, reflexões mais profundas concernentes ao sentido da palavra. (GLÉNISSON, 1983, p. 123).

De fato, quando a história pretendeu equivaler-se às ciências naturais, como a física ou a química, achou que o caminho fosse apoiar-se na segurança 11

Cf. Glénisson, 1983; Cardoso, 1976; Salmon, 1979 (edição original, Bruxelas, 1976).

acontecimentos

69

da realidade do fato histórico, assim como aquelas ciências se apoiam também em dados reais da experiência — os fatos sociais de Durkheim. A segurança esbarraria, a princípio, na diferença essencial entre fato científico, suscetível de repetição, e o fato histórico, único e singular. A repetição, no caso dos fatos da natureza, permitiria ao cientista formular leis, estabelecer constantes, tendências, enquanto o historiador trata com fenômenos irreversíveis. Esse entendimento de Glénisson – reiteração de clássica formulação de François Simiand (1966), que identifica o fato histórico ao acontecimento, o fato considerado como dado, coisa, localizado no tempo e no espaço, é o senso comum entre os historiadores até hoje.

A redenção positivista ou a paternidade contestada Costuma-se atribuir tal concepção aos chamados historiadores “positivistas”, ou metódicos, ou cientificistas, como se preferir. Acho que não há problema em reconhecer um certo realismo do fato em suas formulações. Mas quero abrir parênteses aqui para relativizar um pouco essa suposta paternidade teórica. Vamos, então, ao bom manual de Introdução aos Estudos Históricos, de Langlois e Seignobos, que se tornou, um pouco preconceituosamente, uma espécie de antibíblia dos historiadores, que a eles se reportam, muitas vezes, com críticas para mim nem sempre justas ou impertinentes.12 Vou fazer o papel de advogado do diabo, para tentar mostrar que as coisas não são bem assim e os famigerados “positivistas” merecem uma leitura menos obliterada. Também vou mostrar como neles se constata uma diferença conceitual básica, muito mais rigorosa que em outros autores, como Braudel, por exemplo, entre “fato” e “acontecimento”. Langlois e Seignobos (1946), de fato, podem ser tomados como protagonistas do maior esforço já envidado no sentido de se tornar a história uma ciência. E o que fazia a ciência no século XIX? Ela analisava, dividia em partes para conhecer melhor e depois reordenava os fragmentos segundo um padrão lógico. Por isso, a ciência da história, para os metódicos, fundava-se em Como é o caso caricatural, por exemplo, do expressivo Antimanual Del mal historiador o como hacer uma buena historia critica, do meu amigo Carlos Aguirre Rojas. (AGUIRRE ROJAS, 2002).

12

70

Malerba, Ensaios

dois conjuntos de procedimentos: as operações analíticas (as críticas internas e externas) e as operações sintéticas (basicamente o grupamento de fatos, a construção das fórmulas gerais e a exposição). O conhecimento histórico, também para eles, é algo específico, possui suas condições próprias de inteligibilidade. A primeira é que se trata de um conhecimento indireto, mediado pelos documentos, que são os traços deixados pelos homens no tempo. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 44). Não nos importam muito, aqui, as rigorosas construções de exegese documental. Para que se interrogam os documentos? Para saber sobre os fatos históricos. A crítica, sozinha, não nos permite conhecê-los. Essa atividade inscreve-se nas “operações sintéticas”, que pressupõem determinadas “condições gerais da construção histórica”.13 Porém, a crítica dos documentos nos dá, apenas, fatos isolados. Para organizá-los em um corpo de ciência, devemos proceder a uma série de operações sintéticas. É importante destacar, de início, que “fato” não se confunde com “acontecimento” histórico, na escola metódica. Ainda que os fatos, ali, provenham dos documentos, eles possuem natureza diversa: “Num único documento encontramos fatos de linguagem, de estilo, de doutrina, de costumes, de acontecimentos”. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 149). A ciência deve proceder à triagem dessas espécies de fatos por meio de uma classificação. Também os fatos se apresentam em graus muito diversos de generalidade, localizados no tempo e no espaço. Enfim, os fatos, tais como “sacados” aos documentos, configuram uma “massa de matéria muito heterogenia”. Cabe ao historiador classificar e ordenar os fatos a partir de um questionário inicial. Essa orientação nos leva a questionar o quadro quase caricatural que a crítica sempre pintou dos historiadores metódicos, no sentido de que eles apregoavam a anulação do historiador do ato do conhecimento. Não, a ingerência do historiador acontece logo de início: “Pela própria natureza de seus materiais, a história é imperiosamente subjetiva. Seria ilegítimo estendermos a esta análise intelectual de impressões subjetivas as regras da análise real de objetos reais”. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 44).

Respectivamente, o título do Livro III: “Operações sintéticas” e no primeiro capítulo deste mesmo livro: “Condições gerais da construção histórica”. 13

acontecimentos

71

Em função desse pressuposto, aqui os metódicos compartilham a tese básica do historicismo diltheyano, que procurou construir um nicho epistemológico próprio para as Geiteswissenchaften, a partir de uma “crítica da razão histórica”.14 “A história deve fugir à tentação de imitar o método das ciências biológicas. Os fatos históricos são tão diferentes dos das outras ciências que, para estudá-los, é indispensável um método diferente de todos os outros”. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 37). Assim, os documentos nos informariam sobre três categorias de fatos, numa das quais finalmente encontramos o “acontecimento”: 1) seres vivos e objetos materiais; 2) os atos dos homens (individuais e coletivos); 3) Os motivos e concepções (o que moveria os homens a agir; causalidade). Fatos materiais, atos humanos individuais e coletivos, fatos psíquicos, eis todos os objetos do conhecimento histórico; não se observam diretamente; são, todos, imaginados. Os historiadores – quase todos sem disso terem consciência e acreditando que observam realidades – operam sempre e apenas sobre imagens. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 38).

Portanto, rompendo com a visão assentada da suposta “positividade” dos historiadores positivistas, para estes os acontecimentos históricos inserem-se na segunda categoria dos fatos, a dos atos humanos. Mas não basta classificar os homens e seus atos, isoladamente: a sociedade está em permanente evolução e cabe aos historiadores pensarem os fatos em seu devir, enquanto processos. Em suma, o plano geral da construção histórica obedeceria à seguinte ordem, para os metódicos: a seleção dos materiais; a construção imaginativa dos fatos; seu agrupamento num quadro referencial; o preenchimento das lacunas, por raciocínio; o (re)agrupamento dos fatos em fórmula gerais, que conduziria às conclusões últimas da história e a coroaria de um ponto de vista científico. Faltaria apenas a exposição. Pressupõe-se nessa rotina o entendimento de que o historiador aspira à reconstrução da história wie es eigentlich gewesen, tal como ela aconteceu, conforme o famoso adágio rankeano. Mas a função metódica do historiador é coletar os fatos, encontrados in natura num completo caos, e ordená-los numa lógica, a partir de um princípio que oriente a triagem, o enquadramento 14

72

Para uma excelente exegese da obra de Dilthey, ver Reis, 2003.

Malerba, Ensaios

e a ordenação dos fatos. Estamos falando da construção de um fichário. Ao discutir o “grupamento dos fatos”, a melhor maneira de fazê-lo, os autores propõem um quadro geral de classificação dos fatos históricos, fundado na natureza das condições e manifestações humanas. Seriam os fatos ligados a: condições materiais; hábitos intelectuais; costumes materiais; costumes econômicos; instituições sociais; instituições públicas. Esses grupos devem, depois, ser reordenados de modo a permitir, em cada ramo, a criação de seções cronológicas, geográficas e nacionais. Mas, então, onde está a famosa identificação de fato e acontecimento histórico que a crítica dos positivistas lhes imputou? Esboroou-se. Uma pista para esclarecer a identificação reducionista feita pela crítica posterior entre fato e acontecimento pode ser buscada na discussão feita pelos metódicos de se a história é ou não uma ciência, considerando-se que ela trata de fatos únicos e singulares. Ora, nesse ponto a história aproximar-se-ia da cosmografia e da geologia, não visando “ao conhecimento abstrato das relações gerais entre os fatos, mas ao estudo explicativo da realidade; ora a realidade só existe uma vez”. (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 172). Como só há uma evolução da terra, da vida animal e humana, que sucederam não a partir de leis abstratas, mas do concurso do acaso, a história também tem como objeto uma sucessão de acidentes. O acaso move a história. Dentro dela, ganha relevo um tipo especial de móvel das transformações, que assenta na vontade e na ação dos grandes homens. “Devemos, portanto, no quadro da história, atribuir um lugar aos personagens e outro aos acontecimentos”. Essa concepção deitou profundas raízes na historiografia posterior.

Instituição do acontecimento, construção da memória e relações de poder Antes de entrarmos no cerne da nossa questão, que é a concepção de “fato” definido por seu atributo especificamente “histórico”, é oportuno destacar um ponto importante: a instituição do fato como elemento da memória coletiva e instrumento das relações de poder. Neste ponto, a reflexão abrange um campo vastíssimo, que passa pela criação de instrumentos de marcar o tempo, como meio de fixar os registros de memória por parte das diversas configurações sociais, no passo de um acontecimentos

73

processo civilizador. Aqui eu remeto diretamente ao ensaio seminal de Elias, Sobre o tempo, ao qual não pretendo voltar. Baste a lembrança da superação do vício gnosiológico original, que dá vida a duas concepções supostamente antagônicas do tempo: uma objetivista, de acordo com a qual o tempo existe independentemente de qualquer sujeito do conhecimento; e outra subjetivista, de acordo com a qual o tempo consiste numa síntese a priori do pensamento humano. O vício, apontado por Elias, reside em que ambas firmam-se numa relação cognitiva obsoleta, que separa sujeito e objeto, homem e natureza, cultura e natureza, a qual dá origem a um tempo humano (subjetivo) e a um tempo natural (objetivo). (ELIAS, 1989; 1994). Será mais objetivo agora remeter a discussão diretamente a Koselleck, que também questiona, por outras vias, a singularidade de um único tempo histórico, diferenciado do tempo natural mensurável. O tempo histórico, se é que o conceito tem um sentido próprio, está vinculado a unidades políticas e sociais de ação, a homens concretos que atuam e sofrem, a suas instituições e organizações. Todos têm determinados modos de realização que lhes são inerentes, com um ritmo temporal próprio. Pense-se apenas, para ficar, num exemplo da vida cotidiana, nos diferentes calendários de festas que articulam a vida social, na mudança da jornada de trabalho e sua duração, que determinaram e determinam diariamente o transcurso da vida.15 Essa demarcação “social” do tempo é propicia ao surgimento do que Mozaré chamou dos “fatos memoráveis”. Mas o que é, como se constrói, qual a função social do “fato memorável”? (MOZARÉ, 1970, p. 64). O acontecimento memorável situa-se na encruzilhada de duas perspectivas: a de seu desenvolvimento aberto para o futuro e a da lembrança guardada do passado. Observando cada uma delas, lembrar-nos-emos de que memória e iniciativa se misturam. Koselleck conserva atenção especial a essa característica da consciência histórica na conjunção entre o que define como o “âmbito da experiência” e o “horizonte de esperança” (ou de expectativa) (KOSELLECK, 1993, p. 112) de cada época, no sentido da consciência histórica iluminar o campo de ação dos indivíduos. Voltaremos a este tema em maior detalhe no capítulo terceiro, sobre narrativa histórica. Claro que sempre Koselleck (1993, p. 14); Malerba (1994, p. 300-304). Os exemplares estudos, para diversas épocas e sociedades, de: Le Goff, 1980; Duby, 1979; Thompson (1967, p. 56-97).

15

74

Malerba, Ensaios

há problemas, no que tange à memória social. Como lembra Le Goff, existem diversos tipos de perturbações da memória: amnésia, que não é só individual, mas que pode ser coletiva e gerar perturbações graves de identidade coletiva. Do mesmo modo, a memória está sujeita a manipulações, sobretudo no que se refere à produção do esquecimento, manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura, exercem sobre a memória individual (e que, eu diria, é extensivo à vida coletiva).16 Portanto, todos esses autores mencionados nos mostram como a consciência histórica atua como guia para a ação. Mozaré, mais uma vez, estabelece a articulação entre tempo e ação, entre o acontecimento exemplar, cravado no retículo temporal da memória social, e a necessidade do impulso: [...] o acontecimento só se torna memorável devido a uma certa maneira de ser excepcional, de suscitar além de seu desenrolar efêmero uma realidade durável, inscrita nos mapas e monumentos, introduzida nas leis e nos hábitos, feita também de comentários e de glosas. Após ter sido a espontaneidade do gesto, adiciona alguma coisa às instituições expressivas e protetoras de comportamentos médios, ele tende a constituir uma experiência exemplar. Seja qual for, o fato é mais cultural do que histórico. (MOZARÉ, 1970, p. 64, grifo nosso).

Exemplos desse poder de permanência do acontecimento seriam as próprias maneiras dos homens demarcarem sua história por épocas verdadeiramente heroicas, ao falarmos, por exemplo, “do príncipe e seu tempo” como coisas sinônimas a ponto de podermos nos referir ao século de Augusto ou de Luís XIV, ou ainda, à era vitoriana. A inscrição na memória social acaba tornando a seleção um imperativo. As festas surgem, então, como balizas para manter vivas nas sociedades as lições dos acontecimentos e dos heróis passados. Mas não vou avançar mais neste ponto. Afastemos apenas, de chofre, concepções reducionistas que percebem fenômenos históricos, como as festas, como ardis maquiavelicamente concebidos para ludibriar e dominar o povo incauto. Não, tais mecanismos sociais, como diria Elias, funcionam, cumprem uma função de coesão social, 16 Legoff 1992, p. 425. Ver também Ricœr, 2000. Também Jörn Rüsen, enquanto formula sua “pragmática”, também nessa discussão, ao pensar a experiência do tempo como fundamento da autoidentidade, na origem da consciência histórica. Rüsen (2001, p. 56).

acontecimentos

75

contribuem para manter orgânicas as sociedades. Como lembra Mozaré, “[...] quando cada momento do ano faz assim surgir uma lembrança, a necessidade de comemorar é tão imperativa quanto a particularidade do que se comemora”17.

Propriedades do “histórico”: seleção e intervenção Vamos, enfim, enfrentar o desafio da tentativa definição de fato histórico, a partir da crítica das posturas dominantes na historiografia. Dentro daquela perspectiva geral que podemos chamar de “senso comum” da história temos, então, o entendimento corrente de que os fatos são dados que aguardam serem coletados pelo historiador, guardando a ressalva de que existem fatos de proporções diferentes, de dimensões diferentes. Aqui, levantamos um ponto novo. O problema não seria tanto definir o que é o fato (usando-o como sinônimo ao acontecimento), o substantivo, mas o que lhe confere o status de histórico. O adjetivo é que estabelece o diferencial. Resgatemos, pois, alguns autores, para ver como se equaciona a questão da operação de seleção do que seja ou não histórico. No livro sobre o “valor da história”, já referido anteriormente, Joseph Hours (1978, p. 89) externa um entendimento em linhas gerais muito próximo ao proposto por Langlois e Seignobos, segundo os quais os documentos registram os acontecimentos, ou pelo menos uma fração minúscula da totalidade dos fatos históricos. Para Hours, o historiador, querendo conhecer o passado e não podendo fazê-lo reviver, procura ao menos obter uma representação dele, a mais próxima o possível da realidade inefável. Mas nenhum golpe de vista vai conseguir abarcar a totalidade da história, assim como nenhum jornal diário consegue dar mais do que uma pálida ideia da realidade. A seleção impera! O que o historiador faz, segundo Hours, é impor uma ordem aos documentos, no momento da seleção. A operação histórica seria, ao fim e ao cabo, uma ordenação mental dos fatos, a qual pressupõe sua seleção e hierarquização por parte do historiador. Tal ordenação seria executada na narrativa. 17

76

Ver capítulo sobre Memória neste volume.

Malerba, Ensaios

Essa escolha, uma vez feita, fica a ordenar os pormenores assim acumulados. Porque o problema nascido num primeiro e rápido exame dos factos encontra sua resposta na sua ordenação. Os acontecimentos são aí dispostos segundo uma sucessão no tempo e sua revisão constitui, segundo a definição de Voltaire, uma narrativa. (HOURS, 1978, p. 92).

Pois bem, essa operação narrativa-ordenativa ultrapassa o valor estético, já que a narrativa se constituiria numa série orientada de acontecimentos. Esses nunca seriam “absolutos”, pois uma narrativa lógica tem sempre um começo e um fim, um desfecho e um fecho; e, na história, haverá sempre algo antes do início e depois do fim da narrativa: “Ora, esta ‘lógica narrativa’ é a da própria história. A história tem a sua maneira, a sua lógica no sentido de que procura a ordem de dependência, a gênese e a significação dos acontecimentos”. Neste ponto, Hours parece anteceder as formulações de Paul Veyne. O objetivo básico do historiador seria, então, mais do que recuperar os acontecimento, restabelecer as relações de causalidade entre eles. Isso pressupõe: 1) que se admita a existência dos fatos enquanto unidades de sentido; 2) que ao historiador caberia resgatar um conjunto de relações de causalidade entre os fatos, que já estaria inscrita na realidade histórica. Apenas nesse segundo aspecto diferenciam-se as visões de Hours e de Veyne: para este existem os fatos, mas as relações entre eles são as “tramas” narrativas criadas pelo historiador. Mesmo quem se apresenta numa posição teórica bem distante, tanto de um quanto de outro, como é o caso de E. H. Carr, acaba compartilhando desse entendimento do “senso comum” da história, pelo menos no tocante à ideia de fato e à sua seleção. O que Carr coloca como um problema é que nem todos os fatos são históricos ou tratados como históricos pelo historiador. Mas afinal, o que seriam então, para ele, fatos históricos? São aquilo que o senso comum quer: os acontecimentos que formam a espinha dorsal da história. Aqueles que o historiador, apoiado nas ciências auxiliares, tem a obrigação moral de resgatar com precisão. Os chamados fatos básicos, que são os mesmos para todos os historiadores, normalmente pertencem mais à categoria de matéria-prima do historiador do que a própria história. Um segundo problema é que a definição desses fatos básicos repousa não numa qualidade intrínseca do fato, mas numa escolha do historiador. É o historiador quem

acontecimentos

77

decide, por meio de seleção, o que é ou não histórico. Assim, o historiador é, necessariamente, um selecionador. (CARR, 1989, p. 14-15). Daí decorre um grande problema: quem define os critérios de seleção de quais fatos são historicamente relevantes? Carr remete, então, ao exemplo da História Antiga, que nos dá a falsa impressão de que conseguimos reunir num número limitado de volumes todos os fatos que a compõe, como se a história fosse um quebra-cabeças e caberia-nos preencher as lacunas do mosaico.

Atributos do fato: percepção e linguagem Contra a ideia do fato-evento – ainda dentro, porém, da concepção maior que propõe a objetividade do fato – surge um grande problema. Em contraposição àquela concepção do fato-acontecimento unívoco, motor da história, muitos historiadores rebelaram-se. A ele opuseram “as instituições e os costumes, elementos duradouros da matéria histórica” – enfim, aquilo a que Braudel definiu dentro de uma “gramática das civilizações”, – que seriam distintos do acontecimento, estritamente localizado no tempo e no espaço, do fato marcado essencialmente pela sua duração, como são as instituições. Aqui, como veremos, acontecimento e estrutura começam a confundir suas tênues demarcações. Então, desde Langlois-Seignobos, vigora o entendimento do fato como matéria-prima da história, independentemente de qual seja a natureza dos fenômenos estudados e independentemente do seu grau de generalidade, sejam fatos materiais conhecidos pelos sentidos, como condições materiais e atos dos homens; ou fatos de natureza psíquica, como sentimentos, impulsos, ideias. A questão complica-se em relação ao fato histórico quando a ênfase em sua definição recai, mais do que sobre o substantivo, sobre o que qualifica este fato como histórico. Não basta dizer que é porque o fato pertence ao “passado”. Nem porque ele seja “importante” definição fundada inevitavelmente em juízos subjetivos, em função de ter produzido “consequências”. Em um texto que marca até hoje a discussão, o antropólogo Levi-Bruhl – um dos fundadores dos Annales junto com Bloch e Febvre – afirma que o fato histórico deve reunir essas duas qualidades: a de ser fato passado e a de ser

78

Malerba, Ensaios

fato portador de consequências. Nesse sentido, o fato acabará sendo, afinal, um fenômeno de opinião, que ultrapassa, em importância, o fato material que lhe deu nascimento. De acordo com Lévy-Bruhl: “Merecerá a qualificação de fato histórico, todo fato passado tal como se refletir na consciência coletiva, e a importância histórica destes fatos medir-se-á pela importância que tiveram na seqüência dos fatos da mesma ordem”. (LÉVI-BRUHL, 1926, p. 53-59). Ora, o fato é mais do que cabe nessa definição, se pensarmos, por exemplo, que elegemos hoje fatos que escapavam à consciência dos povos passados! Toda a história estrutural, a ser abordada no capítulo seguinte, aquela que opera com fontes estatísticas e seriais, firmou-se sobre esse pressuposto. Por estranho que pareça, encontraremos posição teórica semelhante em Paul Veyne, historiador que se apresenta como crítico imperdoável das versões tradicionais da história. Ao tecer sua crítica ao historismo, que diferenciava o que é ou não histórico a partir de juízos de valor – portanto, a partir de atitudes subjetivistas –, o corolário de sua crítica o leva de volta ao ponto de partida. O historismo sustentaria que tal seleção obedece a critérios de valor inerentes aos próprios fatos, como se os eventos possuíssem em si atributos, valores, que permitiriam aos historiadores classificá-los como históricos ou não históricos. A todo momento, dão-se acontecimentos de toda espécie e o nosso mundo é o do vir a ser; é vão que alguns desses acontecimentos teriam uma natureza particular, seriam “históricos” e constituiriam a História. Ora, a questão inicial que o historismo colocava era a seguinte: o que é que distingue um evento histórico de outro que não é? Como logo tornou-se evidente que não era fácil fazer-se essa distinção, que não se podia confiar na consciência ingênua ou na consciência nacional para fazer a separação, mas, que não se conseguia fazer melhor do que ela e que o objeto do debate escapava por entre os dedos, o historismo concluiu que História era subjetiva, que ela era a projeção de nossos valores e a resposta às perguntas que houvéssemos por bem fazer-lhe. (VEYNE, 1982, p. 26).

Mas Veyne, em vez de avançar sua crítica, recua para um pressuposto epistemológico muito duvidoso: para ele, a resposta da corrente historista não satisfaz, já que ela não distingue entre o histórico e o não histórico, exatamente não percebe que “tudo é história” – e, portanto a história não existe, o que não deixa de ser um mero jogo de palavras.

acontecimentos

79

Ora, basta admitir que tudo é histórico para que esse problema torne-se, ao mesmo tempo, evidente e inofensivo; sim, a história não é senão respostas a nossas indagações, porque não se pode, materialmente, fazer todas as perguntas, descrever todo o porvir, e porque o progresso do questionário histórico coloca-se no tempo e é tão lento quanto o progresso de qualquer ciência; sim, a história é subjetiva, pois não se poder negar que a escolha de um assunto para um livro de história seja livre. (VEYNE, 1982, p. 25, grifo nosso).

Ora, dirá o crítico, a resposta de Veyne leva ao entendimento de que a história é inevitavelmente subjetiva em virtude do também inevitável questionário, obra do historiador, que circunscreverá, num sentido mallarméniano, o universo inesgotável da história, entendida como “todos os acontecimentos passados” – já que “tudo é história”. Voltamos ao velho entendimento de “totalidade” como acúmulo de “dados históricos”. O questionário seria o instrumento para operar a seleção do que vai entrar na composição da trama. Seguindo seu raciocício: Se tudo o que aconteceu é igualmente digno da história, esta não se tornaria um caos? Como um fato seria mais importante do que outro? Como tudo não se reduz a uma pintura cinzenta de fatos especiais? A vida de um camponês do Nivernais teria a mesma importância do que a de Luís XIV; esse barulho de buzinas que vem, nesse momento, da avenida equivaleria a uma guerra mundial... Pode-se escapar da pergunta historicista? É preciso haver uma escolha em história, para evitar a dispersão de singularidade e uma indiferença em que tudo teria o mesmo valor. (VEYNE, 1982, p.27, grifo nosso).

Parece que escapa a tal raciocínio justamente o princípio geral de ordenação, de (re)construção seletiva da realidade, por meio da antecipação teórica! Da maneira como argumenta Veyne, tem-se a impressão de que ele compreende que os fatos possuam em si um “valor histórico”, menor ou maior, e que o problema se resolveria com a “seleção”. Persiste a ideia do fato-coisa, objeto que se coleta... Bem, se os fatos são dados, o que cabe ao historiador? Para Veyne, cabe-lhe estabelecer, pela via narrativa, a relação entre os fatos, o reencontro com sua organização: a trama, que não se encontra pronta, mas que é obra do historiador. Aqui já podemos ir “amarrando” algumas considerações mais conclusivas. De qualquer modo, embora atribuindo à subjetividade do

80

Malerba, Ensaios

historiador a competência do estabelecimento da trama, fica claro que Veyne concebe a existência “material” do fato-coisa, que anseia ser içado do oceano do esquecimento para ser restituído à história por meio da trama de um historiador-pescador-escritor. A arte da manufatura aqui estaria restrita apenas a essa operação da organização, do estabelecimento das correlações entre os fatos – numa palavra, ao restabelecimento das relações de causalidade entre os fatos. Não deixa de jazer aí um entendimento de causalidade mecânica misturado com niilismo narrativista. Eu acredito, para além de Veyne, que a intervenção do historiador é mesmo anterior: o historiador não apenas restabelece a trama das relações entre os fatos, mas (re)constrói o próprio fato – o que não significa que o historiador cria, insitui, inventa ou funda o fato – que a história, como postula a epistemologia pós-moderna, só tem existência no plano discursivo.18 Para Veyne, a subjetividade da história é decorrência da seleção dos fatos. É, pois, literalmente verdadeiro afirmar, com Marrou, que toda historiografia é subjetiva: a escolha de um assunto de história é livre e todos os assuntos são iguais em direito; não existe História e nem “sentido da história”; o curso dos acontecimentos (puxado por alguma locomotiva da história verdadeiramente subjetiva) não caminha numa rota traçada [...]. (VEYNE, 1982, p. 29).

Até aqui, vemos o helenista francês vir afirmando a objetividade do fato, contra a subjetividade da trama que os liga no plano da escrita da história. A partir daqui, ele se contradiz flagrantemente, negando o que afirmara da existência objetiva do turbilhão de fatos-coisa, diferentes quanto a sua dimensão e importância, perdidos no passado, os quais o historiador deve resgatar, a partir de critérios pessoais de seleção, para compor sua trama. Os historiadores narram tramas, que são tantas quantas forem os itinerários traçados livremente por eles, através do campo factual bem objetivo (o qual é divisível até o infinito e não é composto de partículas factuais); nenhum historiador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho dever ser escolhido e não pode passar por toda parte [...].

18

Esta discussão será aprofundada no capítulo “Narrativa: história e discurso”, a seguir.

acontecimentos

81

Etecoetera. Em seguida: Os acontecimentos não são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos na realidade, um aglomerado de procedimentos que agem e sofrem substâncias em interação, homens e coisas. [...] Os acontecimentos não existem, com a consistência de um objeto concreto. (VEYNE, 1982, p. 30).

Essa contradição evidencia não mais que a extrema debilidade conceitual não só de Veyne, mas da grande maioria dos historiadores ao utilizarem as palavras como conceitos: o que se pretende distinguir quanto se pensa em “campo factual bem objetivo” em contradição com “coisas, objetos consistentes, substâncias, objetos concretos?”. Ora, tratando-se dos fatos históricos, parecem se confundir aqui, como em vários autores, duas instâncias independentes: uma que se refere ao plano ontológico da história e da sociedade; e outra que remete aos modos de conhecê-lo, ao plano epistemológico. De um ponto de vista materialista, pode-se efetivamente afirmar a existência ontológica da história – e dos fatos históricos, se se quiser. Mas o historiador, em sua operação histórica, não tem a pretensão demiúrgica de restituir à existência o acontecimento. O historiador procura aproximar-se ao máximo, com a maior precisão e o maior rigor ao acontecimento histórico, à história wie es eigentlich gewesen – e isso deveria fazer parte de sua ética profissional. Mas é claro que esse é apenas um horizonte utópico e a reconstrução será sempre uma operação intelectual. O fato histórico, reconstituído pelo historiador, só existe no segundo plano, epistemológico. É o resultado de uma operação intelectual, a qual é moderada por regras metódicas preestabelecidas e amparada no uso de fontes, ou indícios, ou vestígios.19 Não se trata de ciência, que seria uma atitude gnosiológica limitada e insuficiente para resolver o problema do conhecimento histórico, o qual lida com operações mentais e obstáculos operacionais infinitamente mais complexos do que os apresentados pela operação cientificamente regulada.

19

82

Cf. as pertinentes ponderações de Grespan, 2005.

Malerba, Ensaios

Considerações parciais A concepção de acontecimento que vimos descrevendo até aqui é, em geral, dominante na historiografia. Aquela, segundo a qual “os ‘fatos históricos’ são os fenômenos materiais, as coisas que acontecem aos homens: os acontecimentos”. (GLÉNISSON, 1983, p. 124). Concepção que vemos em Langlois-Seignobos, mas também em Braudel, Mozaré, Vilar, Veyne, de acordo com a qual os fatos são fenômenos únicos e singulares, cujas condições únicas que cercaram e provocaram seu nascimento estão inscritas num tempo irreversível. Segundo Glénisson, “assimilado ao acontecimento, então o fato histórico surge como marcado pela unicidade. Excluído de qualquer repetição, revela-se como o elemento motor da história, como fator da transformação”. (GLÉNISSON, 1983, p. 125). Tal concepção, como a de Veyne, indiferencia o acontecimento perceptível à consciência dos homens de uma época e os gestos mecânicos e cotidianos que caracterizam as civilizações. Não obstante parecer tratar-se de coisas diversas, esse é o entendimento sensorial, do fato-coisa. Um historiador, senão por uma astúcia do seu objeto, dificilmente irá elevar à categoria de “histórico” um gesto cotidiano mecânico, banal, ou uma palavra lançada ao vento. A expressão “localizado no tempo e no espaço” é a manifestação de uma linguagem que pressupõe o fato-coisa, que “está lá”, dormindo ou escondido na floresta, a espera de ser “caçado”, ou nas profundezas do oceano, esperando ser “fisgado”, ou a peça que falta no mosaico, aguardando ser encontrada pelo historiador-caçador, pescador, colecionador. A rigor, os fatos devem ser tomados como não mais nem menos do que um construto intelectual, uma armação teórica em forma narrativa. O que há de menos concreto, de menos real na operação é o fato, ponto de chegada da operação histórica. Na construção narrativa do fato, depois das operações prescritas por Ricouer (2000), as delimitações espaço-temporais, as relações causais, as interpretações serão elementos constitutivos do fato narrado. Portanto, confunde-se sempre a ontologia e a epistemologia da história. Os acontecimentos únicos e singulares passados não são o que se busca restituir quando se escreve um trabalho de história: são horizontes utópicos, inatingíveis, metas referenciais para a operação intelectual de reconstrução histórica; operação essa que é eminentemente mental, intelectual, balizada

acontecimentos

83

por documentos e instituída por metodologias, procedimentos e regras publicamente conhecidos e debatidos pela comunidade dos historiadores. Em oposição a essa suposta materialidade do fato, como veremos, os teóricos costumam contrapor a artificialidade das estruturas. O entendimento comum do fato-coisa, gerado no momento de afirmação do conhecimento histórico que, na primeira metade do século XIX, pretendia instituir-se alçando foros de ciência, tranquilizava ao evidenciar a realidade do objeto do historiador, contra qualquer resistência dos cientistas ou qualquer deslize filosófico ou metafísico. Contra esse falso consenso, é usual contrapor-se outro: o da artificialidade das estruturas. Um fato seria algo concreto – por exemplo, o ataque terrorista aos Estados Unidos em 21 de setembro de 2001, a destruição das torres gêmeas, acontecimento sofrido e assistido por milhões de pessoas. Já as estruturas seriam algo construído, uma arquitetura conceitual, uma armação teórica que o historiador criaria para articular os fatos e explicálos em termos causais. No exemplo em que estamos, o triste episódio do 11 de setembro, transmitido ao vivo pelo mundo afora, seria decorrência de diversos conflitos estruturais: econômicos, gerados pela má distribuição de renda e o aumento da desigualdade entre povos ricos e pobres; políticos, resquício do desmantelamento do mundo cindido pela Guerra Fria e as novas formas assumidas; culturais – ou civilizacionais-, que confrontam Ocidente e Oriente em termo de religião, estilo de vida etc. Essa concepção do senso comum na história é análoga à outra também muito difundida, presente na sociologia: a que proclama a realidade, a materialidade do indivíduo, contra a artificialidade da sociedade. O primeiro seria concreto; a segunda, abstrata, um mero conceito, como classe ou outras formas de estratificação social. Elias já demonstrou cabalmente a impropriedade de tal distinção: o indivíduo só pode “individualizar-se” em suas relações com outros indivíduos, portanto, em sociedade; a sociedade é conjunto das relações que ligam os indivíduos em configurações distintas. (ELIAS, 1993). No caso de acontecimento e estrutura, a mesma refração verifica-se. A tendência a crer na realidade do acontecimento e na artificialidade da estrutura é fundada numa ilusão gnosiológica. Acontecimentos e estruturas pertencem ambos ao mesmo plano gnosiológico: ambos são construtos intelectuais, ambos são elaborações teóricas que o historiador produz e das quais se utiliza para

84

Malerba, Ensaios

conhecer a história. O conceito de acontecimento não estará satisfatoriamente enunciado sem a devida consideração a essa separação de planos, que se entrecruzam, necessariamente, no ato da escrita da história.

acontecimentos

85

estruturas:

estruturalismo e história estrutural

Vimos no capítulo anterior como nosso cérebro tem a tendência em operar, em criar conceitos a partir de antinomias, de polaridades complementares e antagônicas. Em geral, esses grandes conceitos históricos, verdadeiros fundamentos teóricos da disciplina, são construídos “em oposição a”, ou pelo menos “em relação a”: o acontecimento é algo que se define ante a estrutura ou em relação à ela. Mas há outras complementaridades possíveis, como sujeito histórico versus estrutura social. No caso do estabelecimento de determinações, o primeiro termo define o reino da vontade e da ação; o segundo o imperativo das necessidades – e o limite da ação. Ao movimento dinâmico e diacrônico desses três elementos; sujeito, acontecimento, estrutura, durante muito tempo e sem qualquer constrangimento, denominou-se processo. Não precisamos ir além. O que me interessa aqui é buscar construir um conceito de estrutura, pois seu surgimento e difusão por todas as ciências sociais, desde meados do século XX, continuam pautando, saibam os historiadores ou não, as mais antagônicas percepções do que seja a história. Um bom ponto de partida pode ser diferenciar estruturalismo e história estrutural. A segunda é filha bastarda do primeiro, surgiu como que para enfrentá-lo e acabou curvando-se a ele. O primeiro, eu vou evocar apenas na medida da necessidade, para dizer que não avançaremos muito se nos permitirmos enveredar pelos descaminhos estruturalistas. Trabalhando no plano do realismo, posso ficar na constatação e nos esforços da historiografia para a construção de uma história estrutural. Projeto antigo, de mais de cem anos, pretendeu ultrapassar os limites da

estruturas

87

história événementielle, dos sujeitos oniscientes, senhores de seu destino, do âmbito da consciência e da vontade individual como motor da história, para fixar-se nas estruturas sociais, aquelas realidades subjacentes, invisíveis aos atores históricos que, no entanto, encerram seus limites de ação. A linha de raciocínio é a que segue: começamos com uma sumária contextualização da eclosão do Estruturalismo; continuo por indagar sobre os fundamentos e filiações intelectuais da Antropologia Estrutural e quais os impactos epistemológicos do estruturalismo nas Ciências Humanas. Em seguida, apresento uma distinção conceitual entre Estruturalismo e História estrutural, verticalizando questões centrais desta última, como duração e mudança. Nas considerações finais, retomo, puxado pela mão de R. Koselleck, a articulação conceitual íntima entre acontecimento, estrutura e narrativa.

A explosão do Estruturalismo chamusca a história Sobre o Estruturalismo, pouco há que acrescentar ao que François Dosse fez, ao historiar esse movimento intelectual que, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial, espraiou-se por todas as ciências humanas, a partir da Antropologia, afetando de maneira incontestável a disciplina histórica. Com o fim da Segunda Grande Guerra, assiste-se a uma mudança da balança de poder mundial entre Estados Unidos e União Soviética, como houve similar no pós-Primeira Guerra, marcada pelo declínio da hegemonia europeia e por convulsões sociais no terceiro mundo. A esse movimento, “o discurso do historiador, fundamentado no estado nação, na vocação européia da missão civilizadora universal, não resiste”.1 Os anos posteriores ao advento da “cortina de ferro” marcam também a culminação do questionamento do “sentido do progresso”2 – filho temporão do Iluminismo nutrido no século XIX pelo desenvolvimento da ciência –, em que a bomba atômica é o símbolo maior de que o avanço tecnológico não era Em A história em migalhas (DOSSE, 1989) e, sobretudo, em História do estrturalismo (DOSSE, 1993). 2 Sobre a ideia de progresso na filosofia da história, cf. o livro clássico de J. B. Bury (1920); para uma crítica contemporânea, cf. Callinicos, 1995, particularmente capítulo 4, “History as Progress” (p. 141). 1

88

Malerba, Ensaios

sinônimo de progresso civilizacional. Estamos em um período marcado pela revolução tecnológica, a internacionalização da economia e a disseminação dos meios de comunicação de massa. Esse novo contexto internacional é logo assimilado pelas demais ciências sociais, mas a história demora um pouco mais para assimilá-lo.3 Nessa conjuntura do pós-guerra ocorre a explosão das Ciências Sociais, sob a batuta dos norte-americanos, sob patrocínio da UNESCO, que capitaneiam a reconstrução do mundo – leia-se, da Europa destruída pela Guerra. Sob orientação norte-americana, as ciências sociais passam a ser aplicadas, o que significa postas a serviço do planejamento e da racionalização da sociedade. Concomitantemente, projetos de envergadura mundial são financiados por órgãos internacionais, facilitando o surgimento de novos centros de pesquisa e divulgação do conhecimento. Esse quadrante coincide com o auge dos movimentos de descolonização, quando explode o Estruturalismo, como a manifestação explosiva de uma consciência etnológica que descobre “o outro”, o diverso, as outras civilizações afastadas no espaço, abalando a força do eurocentrismo; a história europeia, tal como praticada por historiadores do establishment acadêmico europeu, passa a ser recusada pelos intelectuais em favor de um olhar sobre o mundo mais espacial que temporal. Com o retorno dos antropólogos, que estavam dispersos pela periferia do planeta estudando as “sociedades primitivas”, esse olhar que caça o “outro”, a alteridade, a diferença, direciona-se para o próprio umbigo, facultando a descoberta de uma outra Europa incrustada na Europa: à margem do mundo oficial, racional, domesticado, descobrem-se os marginalizados, o bizarro, o reprimido, o ágrafo, universos inscritos na memória popular. Como ensina Dosse (1992, passim) “Tudo se torna objeto de curiosidade para o historiador, que desloca seu olhar para as margens, para o avesso dos valores estabelecidos, para os loucos, as feiticeiras, os transgressores, dentro de um presente imóvel [...]”. Com a crise da ideia de progresso detonada em Hiroshima, assiste-se ao retorno a civilizações anteriores à industrialização; sintoma de uma resistência ao movimento, à mudança, à transformação. O devir cede espaço à permanência, à continuidade. Eclode, após os desdobramentos do estruturalismo nas décadas 3

Todo esse movimento é exemplarmente descrito em Wallerstein, 1996a; Iggers, 1997.

estruturas

89

de 1950 e 1960, uma vigorosa história que adere à antropologia, quase que perdendo sua própria identidade disciplinar nesse cruzamento. O fenômeno, eminentemente francês, foi percebido e saudado por um eminente quadro da nebulosa dos Annales, François Furet, em artigo publicado no n. 92 de Preuves, em fevereiro de 1967 – não por acaso, o mesmo ano de publicação do ensaio de Roland Barthes sobre “Le discours de l´Histoire”.4 Para Furet, havia chegado o momento da superação da concepção humanista e retrógrada da história linear, fundada na ideia da missão civilizadora que competia à Europa: [o intelectual francês] já compreende a si próprio, já se compreende cada vez mais como cidadão de um país que, apesar da retórica gaulista, já não tem o sentimento de fazer a história humana: esta França, expulsa da história, aceita tanto melhor expulsar a história. Pode deitar sobre o mundo um olhar que já não está velado pelo seu próprio exemplo e pela sua obsessão civilizadora: um olhar quase espacial, doravante cético sobre as “lições” e o “sentido” da história. Desde o primeiro após-guerra, nos seus Regard sur lê monde actuel, Valéry pressentira admiravelmente o fenômeno. (FURET, [198?], p. 46). (grifo nosso)

Antropologia Estrutural: fundamentos e filiações intelectuais Por trás de todo esse movimento, que remonta aos anos 1940 e 1950, se sobressai a figura ímpar de Claude Levi-Strauss, intelectual de formação erudita e precoce, egresso de família abastada e de intelectuais. Nascido em 1908, aos 30 anos, Levi-Strauss recebe convite para vir ao Brasil, como membro da missão francesa responsável pelo projeto de construção da Universidade de São Paulo.5 Nesse período, promove a expedição à terra dos índios nhambiquara, que resultará em seu célebre Tristes Trópicos (1955). Retorna à França um ano depois; porém, com a eclosão da guerra busca refúgio nos USA, onde conhece Roman Jakobson, fonólogo que lhe inicia na obra de Ferdinand de Saussure e na linguística estrutural. Desse encontro do antropólogo brilhante com a linguística saussureana surge a antropologia estrutural. Aquela irá posicionar-se francamente contra o empirismo e o funcionalismo vigentes na antropologia da época, de que são exemplos 4 5

90

Reproduzido como “The discourse of history” In: Jenkins, 1997. Sobre a passagem de Levi-Straus pelo Brasil, cf. Capelato, et al. 1995; Prado e Capelato, 1989.

Malerba, Ensaios

Malinowisky e Radicliff-Brown, para situar-se abertamente a favor do relativismo cultural dos alemães como Robert Lowie (1908), Alfred L. Kroeber (1901) e o grande mentor de ambos em Bekerley, o alemão Franz Boas. Estes autores afirmavam a natureza inconsciente dos fenômenos culturais e a proposição das leis da linguagem no centro do entendimento das estruturas inconscientes.6 Em 1948, Levi-Strauss publica Les structures elementaire de la parenté e, no ano seguinte, sua tese complementar La vie familiale et sociale des Nambikawara, ambas com enorme recepção. Seu tema central era o incesto, entendido como uma invariante universal. (DOSSE, 1989, passim). O método da antropologia estrutural criada por Levi-Strauss foi derivado da influência de Roman Jakobson e da fonologia.7 Esta se preocupa com ultrapassar os fenômenos linguísticos conscientes, não se interessando por suas especificidades, mas tão somente suas relações internas. É pela fonologia de Jakobson que se introduz a noção de sistema, único modo por meio do qual se pode aspirar à construção de leis gerais em ciências humanas. A lição que da fonologia toma Levi-Strauss para a antropologia é dupla: por um lado, seu objeto será a investigação das invariantes, para além do universo de variedades estudadas; por outro, a recusa de qualquer apelo à consciência do sujeito falante, ou seja, a preponderância dos fenômenos inconscientes da estrutura.8 Levi-Strauss assimila o corte saussuriano: a distinção entre significante e significado (som e conceito), atribuindo ao significante o lugar da estrutura e ao significado o do sentido. Incorpora totalmente a preponderância da sincronia própria da linguística saussureana, atrelando para sempre a antropologia à linguística. (DOSSE, 1993, v. 1, p. 65-70). Trata-se do efeito daquilo que Perry Anderson chamou de “exorbitação da linguagem”.9 De acordo com Anderson, foi na linguística que Saussure desenvolveu a oposição entre langue e parole (língua e fala), “o contraste entre a ordem sincrônica e a ordem diacrônica, e Ver Cole, 1999; Lewis (2001, p. 447-467); Jacknis, 2002, p. 520-532; Stocking Jr., 1966, p. 867-882. 7 Jakobson, 1944, p. 188-195; Waugh e Monville-Bourston, 1990; Costa Lima, 1973, particularmente capítulo V, “Os discursos de re-presentação” (p. 395-450). 8 Conforme proposto no clássico estudo de Levi-Strauss (1955, p. 428-444). Ver também Chilcott (1998, p. 103-111). 9 Anderson (1984, p. 47). A radicalização da linguística saussureana foi obra principalmente dos pós-estruturalistas. Ver Barthes, 1985. 6

estruturas

91

a noção de signo como unidade entre significante e significado, cuja relação com seu referente era essencialmente arbitrária ou não motivada, em qualquer língua dada”. Como lembra Peter Burke (2002, p. 154): O modelo ou metáfora fundamental subjacente ao pensamento desses intelectuais era o modelo da sociedade ou da cultura como linguagem. Os teóricos da língua e da linguagem – Saussure, Jakobson, Hjelmslev - constituíram fonte de inspiração para essa abordagem “semiótica” ou “semiológica” de cultura como “sistema de signos”. A famosa distinção estabelecida por Saussure entre “langue” (língua) – os recursos de que dispõe a língua” – e “parole” (fala) – uma manifestação oral específica do usuário, selecionada com base nos recursos disponíveis na língua – foi generalizada, transformando-se em uma distinção entre “código” e “mensagem”. O aspecto ressaltado por Saussure é que o significado da mensagem depende não (ou não somente) das intenções do indivíduo que a transmite, mas das regras que constituem o código ou, em outras palavras, sua estrutura.

A partir de Levi-Strauss a interpretação do social seria o resultado de uma teoria da comunicação. A linguística foi elevada a verdadeiro cânone dentro das ciências sociais e a Antropologia Estrutural a responsável por sua enorme difusão. Enfim, de Jakobson, o instrumental saussureano passou para Levi-Strauss, que o generalizou para o domínio antropológico, quando nasceu o estruturalismo como movimento. Levi-Strauss (Apud ANDERSON, 1984, p. 47) afirmou os sistemas de parentesco como “uma espécie de língua”, defendendo que as regras de casamento e os sistemas de parentesco eram adequados àquelas, já que formavam “um conjunto de processos que permitem o estabelecimento de um certo tipo de comunicação entre os indivíduos e grupos”. Daí, foi um pequeno passo para esse entendimento migrar para outras esferas da atividade humana, como a economia, a psicanálise, a semiologia etc. As críticas a tal concepção já foram lavradas por muitos pensadores e não vou insistir nelas. (ANDERSON, 1984, p. 49). Mas o que é o tal corte saussureano? Em 1915, Ferdinand de Saussure, em seu livro póstumo Curso de Lingüística Geral, propõe o conceito de signo arbitrário: “A língua é um sistema de valores constituído não por conteúdos

92

Malerba, Ensaios

ou produtos de uma vivência, mas por diferenças puras”. (SAUSSURE, 1969, passim). Trata-se de uma concepção de linguagem fundamentada no mais elevado grau de formalização, o que permitirá alçá-la doravante como verdadeiro modelo das outras Ciências Sociais. Ela se assenta na crítica radical a toda interpretação histórica ou psicolgizante da língua, que deve ser entendida como uma partida de xadrez, no qual um número finito de unidades de significação inatas aos seres humanos combina-se, no sentido matemático do termo, ao infinito, gerando as línguas conhecidas, históricas.10 A proposição saussuriana marca a vitória da sincronia, que vai se constituir em fundamento das epistemes foucaultianas. Um outro ponto fundamental é o total deslocamento do sujeito do plano de análise: a linguística só alcança o status de Ciência se delimitar rigorosamente seu campo: a língua, desembaraçando-se totalmente dos resíduos da fala, do sujeito, da psicologia. O indivíduo é expulso da perspectiva científica saussureana. É a propalada negação do homem, um dos esteios do pensamento pós-estruturalista.11

Impactos Humanas

epistemológicos do estruturalismo nas

Ciências

Não tenho a pretensão de sequer explorar as possibilidades de discussão possíveis nesse domínio, mas apenas levantar uns pontos para balizar minha exposição. Dosse mostra em detalhe como, do sucesso que seguiu à difusão do estruturalismo, que decretou a ontologização da estrutura e a morte do sujeito, efetiva-se a sagração do estruturalismo no campo intelectual francês e mundial; e a consagração ecumênica da Antropologia estrutural, cuja ambição de hegemonia no campo intelectual francês quis fazer do historiador um coletor de dados, manipulador de um saber essencialmente ideográfico, servidor da Antropologia –esta, supostamente a única empresa realmente nomotética, 10 Concepção oposta à da teoria simbólica de Elias, fundada na experiência histórica do uso da língua como meio de comunicação e orientação dos seres humanos em sociedade. Cf. as obras de Elias supra. 11 Terry Eagleton trata desse fenômeno intelectual da ascenção (e queda) do pós-modernismo em vários de seus trabalhos, com ênfase em Eagleton, 1996 e numa visão de maior angular em Eagleton, 2005. Ver também Anderson, 1998 e Poster, 1997.

estruturas

93

capaz da síntese que pode fazer passar o conhecimento do singular ao geral, do consciente ao inconsciente, por meio de um comportamento rigorosamente científico.12 Esse rebaixamento do historiador a coletor de fatos e a delegação do poder de síntese aos antropólogos foi respaldada mesmo por historiadores célebres, como François Furet, para quem a história é a “perturbadora” da ciência, já que introduz desequilíbrios estruturais. Sincronia e diacronia não caberiam na mesma abordagem e impõe-se a divisão das tarefas entre historiadores e antropólogos. Mas há de haver o reconhecimento de uma hierarquia de funções: Precisamos de etnólogos estruturalistas para a ordem, de historiadores para a desordem. O estudo das estruturas conserva um duplo privilégio, cronológico e lógico. Cronológico, visto ser pela sua descrição que é preciso começar. A atividade estruturalista tem por este fato uma inteira autonomia, e a recíproca não é verdadeira: o trabalho do historiador é dependente, ornamental, relegado de qualquer forma a um futuro distante. E lógico, portanto, ao contrário das estruturas, a história pulveriza a norma no acontecimento, racionaliza-se com grande dificuldade [...]. (FURET, [1986], p. 50).

O alvo político é o humanismo marxista, identificado a Sartre e Simome de Bouvoir. Contra ele proclama-se a ontologização da estrutura: a negação de qualquer possibilidade de ação do homem, de intervenção direta na história, de construção da liberdade. Como diz Furet sobre a agressividade metodológica de Foucault, “os analistas da ‘dissolução’ do homem sucederam aos profetas do seu advento”. (FURET, [198?], p. 51). No marxismo, salve-se Althusser, que renegou o humanismo e aderiu à ilusão da ciência estrutural insípida. É a propalada morte do sujeito, o desafio ao humanismo sartreano que ficou sem resposta. Junto com o homem, nega-se igualmente a própria história e qualquer forma de substancialismo ou de causalismo em proveito da noção de arbitrário. O programa foi lançado em 1966, com As palavras e as coisas, de Foucault, um verdadeiro fenômeno intelectual e editorial. Foucault é homem das descontinuidades, das rupturas, das epistemes. Nega o homem (o sujeito) e a história (a continuidade). A “morte do homem” tem fundamentação 12

94

Dosse, 1993, v. 1, citado; também Ferry e Renault (1988, p. 125).

Malerba, Ensaios

nietzche-heiddegeriana, baseada na rejeição radical do humanismo: o homem consciente, sujeito de sua história, desaparece: para Foucault, ele é criação da episteme do século XIX, criação recente e fadada a desaparecer. Como bem definiu Dosse, “Na esteria de Freud, que descobriu o inconsciente das práticas cotidianas do indivíduo, e de Levi-Strauss, que se liga às práticas inconscientes coletivas das sociedades, Foucault parte em busca do inconsciente das ciências que se crê habilitadas por nossas consciências”.13 Proclamam-se as temporalidades múltiplas, descontínuas: depois de descentrado o homem, Foucault volta-se contra a historicidade, contra o historicismo, a história como totalidade, como referente contínuo. A história foucaultiana não se atrela mais a uma evolução nem a um progresso, mas suas análises se apoiam nas múltiplas transformações sincrônicas, na localização das descontinuidades, na superposição de flashes instantâneos que prescindem da ideia de devir, de história. Propõe romper radicalmente com as noções de origens e causalidade: tudo está no discurso, nas palavras que remetem a outras palavras. Aqui assenta sua proximidade ao estruturalismo, na valorização da esfera discursiva como autônoma de qualquer referente, o que permite, na dimensão sincrônica, encontrar coerência em discursos que têm em comum apenas serem simultâneos. As críticas, formuladas por inúmeros pensadores, marxistas ou não, como Luc Ferry e Alan Renault, Ciro Cardoso, Jean Baudrillard, Perry Anderson, convergem em grande parte para dois pontos: em primeiro lugar, ninguém conseguiu explicar até hoje, nem o próprio Foucault, como em seu pensamento se daria a passagem de uma episteme a outra; em segundo, se é dado para Foucault que todo discurso é enunciado em consonância com uma episteme, e instrumento de um jogo de poder, nem por isso o próprio deixou evidenciado a partir de qual episteme se enuncia o seu discurso – e a que posições/interesses serve. Uma consequência fundamental a destacar dessa exorbitação da linguagem atrela-se ao problema da ruptura entre conhecimento e verdade, já que nenhum referente existiria fora do discurso. Tratei alhures dessa questão, que problematiza o estatuto da própria representação em história.14 13 Dosse (1993, v. 1, p. 169-186); Descombes, O momento francês de Nietzsche. In: Ferry e Renault (1993, p. 97-127). Três leituras de Foucault: Machado, 1988; Megill, 1987; Merquior, 1985. Três leituras críticas de Foucault: Baudrillard, 1984, Cardoso, 1988 e Sahlins, 2004. 14 Cf. Cardoso e Malerba, 2000; Malerba, 2007; Malerba. História, memória, historiografia:

estruturas

95

Aqui, fique apenas registrado que, com a consagração do pós-estruturalismo, iniciava-se uma era de relativismo: não há mais história, mas apenas discursos historicamente localizáveis; abandona-se a transformação, a mudança, a diacronia, em favor das descontinuidades enigmáticas.

Estrutura e função Antes de entrarmos na discussão da História estrutural, restam ainda algumas ponderações a serem feitas, concernentes a esse recuo estruturalista. Não será demasiado lembrar que a promulgação de uma história fixada nas invariâncias, nas permanências, nas resistências que aprisionam os homens sem que estes sequer tenham consciência de sua prisão, de seus limites estruturais de ação, funda-se num deslocamento: abandona-se o acontecimento em favor da estrutura; o homem em favor da circunstância. Peter Burke lembra com didatismo os perigos contidos nesse conceito fundamental e aparentemente inofensivo da teoria social, que é o de função social, intimamente ligado ao de estrutura: A função de cada uma das partes de uma estrutura, por definição, é manter

o todo. “Mantê-lo” significa conservá-lo em “equilíbrio”. O que faz a teoria

tanto atraente quanto perigosa é o fato de que não se apresenta apenas como descritiva, mas também como explicativa. De acordo com os funcionalistas, a

razão da existência de um determinado costume ou instituição reside justamente em sua contribuição ao equilíbrio social. (BURKE, 2002, p. 145-180).

Depois de buscar definições clássicas do conceito de função na História e nas Ciências Sociais (GIBBON, MAX, GLUCKMAN), Burke indica uma das razões da atração exercida pelo funcionalismo nos historiadores: sua propriedade de “compensar a tradicional inclinação dos historiadores a explicar o passado excessivamente em termos de intenções manifestas por indivíduos”. E adverte sobre os perigos para a história de uma teoria do social que se funda algumas considerações sobre historiografia normativa e cognitiva no Brasil. In: (MALERBA; AGUIRRE R. 2007).

96

Malerba, Ensaios

na busca do equilíbrio, contra a mudança, entre quais estão as tentações de se negligenciar a mudança social, o conflito social e os motivos de natureza individual, em favor das determinações impessoais, estruturais, pois “A análise funcional não se preocupa com pessoas, mas sim com estruturas”. (BURKE, 2002, p. 153). Ou seja, um tipo de abordagem do social que, ao depositar ênfase na função, no equilíbrio, no sistema, que desdenha da mudança, do conflito, da transformação, revela-se fortemente conservadora, senão reacionária – ou seja, refratária à ação. Quanto ao conceito de estrutura, Burke distingue três diferentes modalidades: 1) a abordagem marxista (fundada na metáfora arquitetônica da base-superestrutura); 2) a estrutural-funcionalista, que faz um uso mais genérico do conceito de estrutura, em referência a um complexo de instituições: família, Estado, sistema jurídico etc.; 3) e os “estruturalistas” (Levi-Strauss, Barthes e Foucault). O importante a destacar da análise de Burke é que ele diferencia história estrutural (aquela feita segundo o modelo de Marx ou de Braudel) de história estruturalista. Mas há o problema de que, dentro do conceito de estrutura do Estruturalismo, permeia uma refração ao próprio conceito de história. Saussure definiu sua posição por oposição aos lingüistas de sua época, cujo modelo de linguagem seguia uma vertente evolucionária. Ele inovou porque sugeriu que o estado de uma língua em determinado momento poderia ser explicado pela relação entre seus diferentes elementos, sem a necessidade de nenhuma referência ao passado. O modelo de Saussure era de equilíbrio, que, deliberadamente, primava pela estrutura (o “sincrônico”) em detrimento da mudança (o “diacrônico”). (BURKE, 2002, p. 145-180, grifo nosso).

Por certo que há inúmeros descontentes com as análises estruturalistas e os principais pontos de questionamento são afeitos à ideia de significado abstraído do contexto de espaço, tempo, falante, ouvinte e situação, além da inquietação com o determinismo estrutural. Sobretudo nos últimos anos, sociólogos como Giddens e Touraine, além de Bourdieu reclamam trazer de volta à ação “os sujeitos” ou “atores sociais”. Enfim, do que foi dito, não parecerá abusado dizer que a expressão “história estruturalista” praticamente constitui-se numa contradictio in adjecto, uma contradição em termos. Aqueles que inventaram o Estruturalismo, como estruturas

97

Levi-Strauss, ou depois radicalizaram-no e popularizaram-no, como Barthes, Foucault, Lacan e Derrida, visavam justamente eliminar a história. O que não significa que conseguiram e nem que nós, historiadores, podemos negligenciar ou evitar o termo. Afinal, a melhor história produzida no século XX foi a história estrutural (conf. MALERBA, 2009), aquela que dialogou com o Estruturalismo, e, num primeiro momento, contrapôs-se a ele; de qualquer modo, mas recebeu muito de sua influência. Vejamos como historiadores sérios enfrentaram o desafio.

Estruturalismo e História estrutural É sintomático que, no verbete “Estruturas”, um dos ensaios escritos para Enciclopédia Einaude, o célebre historiador Krzysztof Pomian tenha se sentido compelido a prestar contas a toda tradição estruturalista, de Saussure a Jackobson, Hjelmslev, Levi-Strauss, Chomsky e René Thom. (POMIAN, 1990, p. 189). Porém, para o annalist, mesmo todas essas concepções seriam insatisfatórias para enunciar uma definição de estrutura. Elas partem da suposta equivalência entre “estrutura” e “conjunto de relações pensadas como lógicas, racionais, tais que se podem deduzir ou prever de antemão as transformações do conjunto, conhecendo-se a mudança de uma de suas componentes”. Tal entendimento opõe estrutura à substância, tal como se pensava no século XVII: uma “totalidade unitária que subsiste por si mesma”. (POMIAN, 1990, p. 257). Seguindo o raciocínio de Pomian, em oposição à substância, a estrutura comportaria uma multiplicidade interna: como se trata de uma multiplicidade de relações, a estrutura é, em princípio, invariante por consideração a seu substrato, enquanto que a substância se define, precisamente, como o substrato das relações/acidente (“pensamento”, “extensão”, “matéria” etc). Dito de outro modo, uma estrutura é pensável sem substrato algum, ao contrário das relações/acidente, estas sim impensáveis sem uma substância, da qual pode perfeitamente prescindir. É a partir desse entendimento de estrutura, entendida como multiplicidade de relações que prescinde de qualquer substrato, que se forjou a definição clássica de “estrutura” como “arquitetura, conceito puro”, no Estruturalismo:

98

Malerba, Ensaios

[...] a partir do momento em que as pensamos, [a estruturas] se encarnam em configurações cerebrais ou vestígios materiais, daí se segue que todo objeto estável se compõe de um significante e um significado, um substrato e uma estrutura, um componente perceptível ou observável e um componente inteligível. Em outros termos, todo objeto se compõe de “matéria” e “forma” [...] Desta análise se depreende outra conclusão: o Estruturalismo vai necessariamente unido a um ponto de vista semiológico, por mais que a recíproca não seja verdadeira; compreende-se então sua afinidade para o estudo da linguagem e fatos análogos. (POMIAN, 1990, p. 257).

A questão é como tornar inteligível a sucessão temporal, se o fluxo dos fenômenos não seria outra coisa senão uma série de acontecimentos, posto que, por definição, todo acontecimento é um fenômeno e todo fenômeno um acontecimento, no sentido de que corresponde a uma mudança que um espectador é capaz de perceber em seu campo visual. (KOSELLECK, 1993). Segundo Pomian, o Século XIX aceitou buscar a explicação da sucessão em entidades como “espírito”, “força”, “vida”, “éter”, “duração” etc, conceitos que serviam como suportes a diferentes séries de acontecimentos psíquicos ou físicos. Enquanto um programa de investigação cujo fim precípuo é o de oferecer uma teoria para qualquer objeto estudado pelas ciências humanas e sociais, e a despeito de toda sua diversidade matricial, o estruturalismo teria feito essa “passagem de nível”, superando o conceito de estrutura/substância para algo diverso.15 Com efeito, sua primeira exigência é a de abordar o objeto estudado não tanto como uma série de acontecimentos unidos por um suporte, um substrato ou algo que o valha, mas enquanto um sistema, entendido como conjunto de elementos em interação. Elementos, únicos, não reproduzíveis, são de pronto descartados. Apenas elementos repetitivos, recorrentes, permitem satisfazer à segunda exigência do programa estruturalista: demonstrar que o sistema comporta relações lógicas e interdependentes; em outros termos, que será dotado de uma estrutura, cuja descrição será a teoria do objeto estudado. Assim, na análise estruturalista, outros dois elementos vêm substituir ao objeto, cujos estatutos ontológicos são diferentes entre si: palavra e língua (Saussure), 15 Pomian resgata essa diversidade matricial do estruturalismo ao elencar suas fontes diversas: Saussure, Jackobson, Hjelmslev, Levi-Strauss, Chomsky e Thom, cujas posições vão da fenomenologia husserliana ao empirismo lógico e do neocartesianismo ao neoaristotelismo. Idem. 239.

estruturas

99

sons e fonemas ( Jackobson, Trubetzkoy), substância e forma (Hjelmslev), sistema de parentesco e suas estruturas elementares (Levi-Strauss), execução e competência (Chomsky). (POMIAN, 1990, p. 241). Os primeiros termos desses pares – que Pomian denomina “realizações” – são acessíveis à experiência sensorial, à reconstrução ou à observação; nisto consiste sua realidade. Os demais termos, as estruturas, por definição não poderiam ser percebidos ou observados; atribui-se realidade a eles com base em demonstrações argumentativa. As relações entre “realizações” e “estruturas” são variáveis, mas serão sempre as últimas que tornam aquelas estáveis e inteligíveis. Daí uma definição mais satisfatória de estrutura como “conjunto de relações racionais e interdependentes cuja realidade se demonstrou e cuja descrição resultou numa teoria [...]”. (POMIAN, 1990, p. 241). Ou seja, as estruturas, para Pomian, são desprovidas de existência objetiva e só podem ser constatadas por derivações intelectuais.

As prisões do imóvel Chegamos, enfim, ao que podemos chamar de história estrutural. Antes de seguirmos as melhores reflexões sobre o tema, feitas por Vilar, a partir da matriz inicial, Braudel, e das intervenções agudas de Koselleck, vale a pena observar como a história estrutural é pensada por alguém que, como Pomian e praticamente todos os membros dos Annales da terceira geração, sofreu os efeitos da “revolução estruturalista”. Tal revolução no campo da historiografia, lembra Pomian, foi marcada pela mudança do questionário, quando a história, aproximando-se das Ciências Sociais, voltou-se para problemas cujas respostas estariam nas fontes seriais, as quais remetem a “fatos não visíveis”.16 Seu pressuposto é o de que os produtos da história serial (evolução demográfica, flutuações dos preços, atitudes diante da morte, da sexualidade e do corpo, relações de dominação, variações climáticas, etc) são todos objetos reconstruídos, não visíveis, que remetem a estruturas: o oposto do que seriam os acontecimentos, visíveis a olho nu, acessíveis à consciência dos que deles participam. Ora, o pressuposto

16

100

Pomian (1990, p. 50). Também Reis, 1994 e 1996; e Aguirre Rojas, 2004.

Malerba, Ensaios

donde parte Pomian, de qualquer modo, é falso, pois tanto uns como outros são reconstruções, tanto as estruturas quanto os acontecimentos pertencem ao campo do “invisível”, nesse sentido. A seriação e a utilização do “tempo largo” teriam permitido ao historiador voltar-se a objetos que não se dão à percepção imediatamente na experiência vivida: a invariância e os fatores que a mantém, ou, num segundo caso, as oscilações e seus mecanismos subjacentes. Portanto, estruturas e conjunturas. Os acontecimentos, a partir dessa ótica de Pomian, não seriam mais do que “pontos na curva”, mas, mesmo nesse emprego, o termo se alinharia a uma acepção nova. Pomian quer atribuir um novo significado a acontecimento, como intermezzo entre estruturas, o ponto de superação de uma estrutura a outra: o acontecimento como revolução, como ruptura. Mas as definições de uma História estrutural como apologia da imobilidade, em Pomian, encontram-se mesmo em outro trabalho. Refiro-me a sua contribuição à coletânea organizada por Le Goff, um texto confuso, em que o autor se perde numa viagem historiográfica um pouco inconsequente e demasiado provinciana, sem colocar o problema dentro de uma equação mais adequada. (POMIAN, 1993, p. 98). Tanto é assim que começa o artigo, depois de citar a definição clássica de Braudel – o que permite supor que ele a toma como pressuposto –, com um exemplo: o conceito de estrutura tal como construído na obra de Pierre Toubert sobre “As estruturas do Lácio medieval”. Numa discussão que se supõe eminentemente conceitual, o autor parte diretamente do caso empírico... Constata, como desejará demonstrar, que “os historiadores abandonaram os acontecimentos em favor das estruturas”. Ora, não parece o caso de se optar por um em detrimento do outro. A definição de “estruturas”, ele a tentará oferecer a partir da obra de Toubert. Destaquemos apenas alguns aspectos de seu conceito de estrutura, que nos parecem relevantes porque típicos de toda uma concepção de história. Segundo Pomian, estrutura define-se: a) na longa duração, como um elemento invariante ao longo de séculos; b) em limites geográficos/naturais: além de impor um caráter repetitivo às atividades humanas, a estrutura fixa limites ao crescimento demográfico e ao aumento da produção agrícola, isto é, às flutuações conjunturais; c) como imobilidade:

estruturas

101

A descrição de uma estrutura desemboca numa história que poderíamos chamar de interna e que, devido à estabilidade da própria estrutura, se caracteriza por uma grande lentidão, por uma quase imobilidade. Todavia, essa não é a única história que encontramos no livro de Pierre Toubert. Nele também temos a história de várias outras estruturas, cuja evolução é mais rápida; cada uma delas, aliás, tem seu próprio ritmo [...]. (POMIAN, 1993, p. 100, grifo nosso).

Sutilmente, Pomian elege Febvre como precursor de Braudel. Para Febvre, os acontecimentos não interessam em si, mas como elementos de uma série. Embora não utilize os termos acontecimento e estrutura, a oposição entre os dois está sempre presente em sua obra.17 Um aspecto marcante da análise de Pomian consiste em sua fragilidade conceitual, talvez originária da mesma dubiedade que encontramos em sua matriz, Braudel, já criticada por muitos autores. Pomian identifica “estrutura” com “longa duração” e “acontecimento” com “tempo curto” (ou breve): [...] eles [os conceitos “acontecimento” e “estrutura”] não parecem trair o pensamento de Lucien Febvre, que consagra a primeira parte de seu livro ao “meio geográfico”, para utilizar a linguagem da época, e às instituições políticas, reservando a segunda ao conflito entre a nobreza e a burguesia, como se estivesse consciente de que todos esses fenômenos prendem-se à longa duração, enquanto aqueles de que trata mais tarde situam-se num tempo curto. (POMIAN, 1993, p. 105, grifo nosso).

Assim, segundo Pomian, os historiadores mudaram seu questionário, interessando-se agora prioritariamente por outros assuntos: [...] aquilo que se repete, pelo que retorna de forma periódica, até mesmo pelo que permanece constante, ou quase, durante um longo intervalo temporal. Assim, o olhar se desloca para do excepcional para o regular, do extraordinário para o cotidiano, de fatos singulares para os que aparecem em massa [...]. (POMIAN, 1993, p. 106).

Essa guinada levou ao abandono de objetos consagrados (como a história política) e à eleição de novos temas e documentos no fazer história. Contudo, Pomian faz uma distinção do tipo de história proposta por Labrousse e por Braudel, este o grande modelo de história estrutural que deveria ser copiado. Para uma excelente abordagem da obra de Febvre, Cordeiro Jr, 2000. Também Mann, 1971; Mastrogregori, 1987; Mozaré, 1957. 17

102

Malerba, Ensaios

A história de Braudel centra-se no estudo das repetições; é uma história econômica e social, mas também geográfica, demográfica, cultural, política, religiosa, militar. Mais do que com curvas e ciclos, ou de acontecimentos singulares, a história de Braudel invade tudo, cobrindo longos espaços e intervalos temporais. A história de Braudel está arraigada no meio natural, o mar, o clima, o mundo sem fronteiras etc. Faz, então, a exegese da obra em três tempos: estrutura, conjunturas, acontecimentos, como Paul Ricouer fez depois, em maior profundidade.

As características da história estrutural Para chegarmos a uma discussão produtiva sobre a história estrutural, um bom caminho será acompanhar as reflexões de Pierre Vilar em torno do conceito de estrutura. Vilar define a investigação histórica como “investigação dos mecanismos que vinculam a sucessão dos acontecimentos à dinâmica das estruturas – estruturas dos fatos sociais, é óbvio”. (VILAR, 1985, p. 49). Mas, o que se entende por “estrutura”? Vilar enfatiza sua distância em relação ao conceito de “estrutura” tal como proposto pelo Estruturalismo, como um equivocado novo método de análise científica, que procurou reduzir todas as coisas a astúcias da linguagem. Motivo pelo qual Levi-Strauss foi procurar construir seu campo de investigação na antropologia, do que se chama a “história estacionária” das sociedades “frias”, em vez de fazê-lo no da história “quente”. Tal opção levou-o a buscar construir uma “ciência do homem” que prescinde de fenômenos históricos para apoiar-se na estabilidade, na permanência, na sincronia. O problema está em que a grande questão existencial do ser humano é buscar alcançar uma consciência de si que é precipuamente uma consciência da historicidade do mundo e do próprio indivíduo, consciência fundada no devir, na diacronia, no desenvolvimento histórico.18 18 Vilar (1985, p. 50). Autores de orientações as mais diversas como Agnes Heller, Reinhardt Koselleck ou Jörn Rüsen, concordam que a consciência histórica nasce a partir da experiência que os seres humanos têm do tempo. Para Agnes Heller (1997, p. 185) em filosofia da história os valores supremos são a verdade da existência humana como historicidade, isto é, de nossa existência histórica, de modo que o sentido da existência humana se concebe como o sentido da existência eminentemente histórica. Para Rüsen (2001, p. 54; 129), a consciência histórica é o modo pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção do tempo se realiza no processo da

estruturas

103

Para resgatar as origens e utilizações da palavra “estrutura”, Vilar parte da etimologia da palavra latina, que vem do verbo struere, que significa “construir”. A imagem preferida é a de um edifício, com seu plano, altura, volume, suas diferentes funções. Seriam dois os perigos iniciais da palavra: primeiro, a sugestão de que algo fora “construído” por um suposto “arquiteto”, que não deixa de ter um fundamento metafísico ou mesmo teológico; e segundo, a ideia de que uma estrutura seja algo harmonioso, em equilíbrio, um objeto estático, “acabado”, como vimos na crítica ao funcionalismo, feita por Burke. Outro entendimento possível da palavra é como “modelo”, ou seja, algo que, a partir de nossa observação, permite reproduzir o maior número possível de características do objeto ou dos seus traços fundamentais. No que tange às Ciências Sociais, Vilar reporta às célebres referências de Marx à palavra estrutura contidas na famosa passagem da introdução à Crítica da Economia Política: Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações de produção determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; estas relações de produção correspondem a um dado grau de desenvolvimento das respectivas forças materiais. O conjunto dessas relações materiais constitui a estrutura econômica da sociedade... (MARX Apud VILAR, 1985, p. 51).

Vilar esclarece que, aqui, Marx ainda está trabalhando com imagens, metáforas, querendo indicar ao mesmo tempo o caráter “natural”, necessário da sociedade civil, e a imagem arquitetônica, das estruturas econômicas como fundamentos reais sobre os quais se elevariam as superestruturas jurídicas e políticas e as respectivas formas de consciência. Será apenas em O capital que Marx irá demonstrar, “por meio da construção de um mecanismo abstrato de funcionamento, o que entendera por ‘estrutura econômica da sociedade’”. A utilização científica da palavra estrutura pode ser muito elucidativa do modo pelo qual foi assimilada tanto pelos estruturalistas quanto pelos “Historiadores estruturais”. Como enuncia Vilar:

vida humana. Ou seja, a consciência histórica é o modo como o homem constitui de sentido sua experiência do tempo.

104

Malerba, Ensaios

[...] em matemática todos os conjuntos são sólidos e coerentes (e por esta razão, nas outras ciências, procurar as ‘estruturas’ equivale a dar uma expressão matemática a um conjunto). As imagens são as mesmas que as da linguagem comum: ‘armação’, ‘princípio’, ‘esquema’, ‘padrão’ – mas tais palavras introduzem um matiz importante: trata-se não tanto de um “edifício” acabado como de um princípio “oculto”, “interior”, da construção. (VILAR, 1985, p. 53).

Já nas Ciências Naturais: [...] a noção de estrutura emprega-se cada vez mais: estrutura da matéria, do átomo, da célula etc. Mas, neste caso, como nos modelos das estruturas químicas em forma de balões ou bastões, tratam-se de representações que permitem definir uma realidade através de posições, de proporções, das relações. Fica patente a dimensão espacial do conceito de estrutura nas CN. (VILAR, 1985, p. 54).

Em Ciências Humanas, como vimos acima, foi a linguística que forneceu o modelo das investigações, ora decompondo a língua em elementos cada vez mais simples (fonemas, semantemas, unidades de sintaxe) e definindo as leis que regem suas relações, ora formalizando os sistemas de uma língua em caracteres distintivos que se condicionam mutuamente, de modo a privilegiar a sincronicidade e a permanência como fundamentos da língua – fundamentos que foram elevados, com o pós-estruturalismo, a princípios explicativos de todo e qualquer aspecto da vida humana. A partir daí, como também demonstraram posteriormente François Dosse, Terry Eagleton e Perry Anderson, entre outros, as demais Ciências Sociais copiaram o exemplo da linguística, como se todas elas (a psicologia, a etnologia, a economia, a sociologia) tivessem que ser subservientes à “lógica dos signos”, do sistema de trocas que se opera no ato da comunicação. A partir deste ponto, Vilar dirige sua crítica à antropologia estrutural de Levi-Strauss. Resultaria, porém, abusivo assimilar do mesmo modo a “linguagens’ as relações humanas que constituem o objeto das ciências com razão denominadas “sociais”, dado que estas ciências não estudam o homem em si mesmo, antes sim o homem em sociedade, em sociedades que, por seu turno, não são independentes da natureza; a economia, em particular, trata não só da produção, que é uma apropriação da natureza, mas também da troca e da distribuição de bens, um vez produzidos. E os bens não são signos. (VILAR, 1985, p. 54).

estruturas

105

Estrutura e mudança Mas o que nos interessa efetivamente é a passagem em que Vilar pensa a relação entre estrutura e história. (VILAR, 1985, p. 62). Ora, se Marc Bloch não errou em sua definição clássica, a história ocupase das sociedades humanas no tempo. (BLOCH, 1996). Para que estas possam ser estudadas, é necessário poder exprimir suas respectivas relações internas por meio de um esquema estrutural. Acontece que as sociedades estão em permanente movimento, de modo que o historiador deve construir esquemas estruturais de funcionamento (de movimento, transformação, devir), para além de relações estáticas (estruturais), nos quais devem constar, mais do que tais ou quais estruturas existentes no mundo num determinado momento, as contradições, os conflitos, as tensões, que provocam as mudanças das estruturas, que Vilar denomina “desestruturações” e “reestruturações”. Os dois grandes modelos de história estrutural que Vilar indica são justamente aqueles que o identificam e o distinguem no cenário historiográfico francês: o da longa duração braudeliana e o marxismo. Neste, o conceito de estrutura segue atrelado ao de modo de produção. O conceito legítimo de modelo estrutural aplicável em história, segundo Vilar, é aquele elaborado por Marx: o modo de produção, que deve ser entendido como “uma estrutura que exprime um tipo de realidade social total”. Esta totalidade deve contemplar as relações quantitativas e qualitativas que regem os modos como os homens, por meio de seu trabalho, extraem da natureza os bens necessários às suas demandas, assim como as normas que regulam as relações dos homens entre si nesse processo de produção; e, por fim, as formas como os homens tomam consciência de si dentro desse mesmo processo. (VILAR, 1985, p. 66). O modelo estrutural persegue a lógica interna do sistema, “a qual permanece oculta na simples observação empírica, seja qual for, por um lado, a imagem empregada para expressar esta lógica oculta (‘armação’, ‘padrão’, ‘anatomia’, ‘rede de comunicação’)”. (VILAR, 1985, p. 66). A questão que não quer calar é que a história é composta não só pela observação das estruturas estabelecidas como também pelas lutas, combates, insurgências dos homens

106

Malerba, Ensaios

contra a opressão de determinadas estruturas sociais. Dessa perspectiva, como então colocar na equação a questão da experiência?19 O segundo grande modelo histórico estrutural é o da longa duração. Aqui, vale a pena seguir o raciocínio do seu próprio formulador.

Estrutura e duração Braudel fixou os parâmetros da discussão em texto célebre sobre “A longa duração”, por demais conhecido para ser resgatado aqui em sua íntegra. Porém, cumpre evocar algo de sua significação histórica e de sua lógica interna.20 O introito evoca uma guerra de posições dentro das Ciências Sociais na década de 1950. Braudel proclama a existência de uma crise geral das ciências do homem, esgotadas por seus próprios progressos. A questão é saber se elas teriam então capacidade para superar seus desafios. O maior deles situa-se em torno da definição das fronteiras disciplinares. Argumenta Braudel que a história, desde Marc Bloch e Lucien Febvre, crescera a partir das alianças que fez com suas vizinhas. A nouvelle histoire é definida como o encontro da história com as Ciências Sociais – o qual variou ao longo do tempo: primeiro a geografia, depois a economia, a demografia, a sociologia, a própria linguística, a antropologia cultural. Nesse contexto, Levi-Strauss define a antropologia “estrutural” a partir dos processos da linguística, da história “inconsciente” e o imperialismo das matemáticas sociais. É contra elas que Braudel, reverencial e estrategicamente, irá se lançar. As querelas e disputas têm interesse, são férteis. Negar o inimigo pressupõe conhecê-lo previamente. Mais que isso, nessa guerra de territórios, as Ciências Sociais pretendem impor-se umas às outras oferecendo um conceito 19 Essa foi o desafio e a grande contribuição da história social inglesa, na qual sobressaem os trabalhos de Hobsbawn e, particularmente, de E. P. Thompson (1981; 1994; 1998). Sobre a obra de Thompson, ver Kaye e McClelland 1990. Sobre o marxismo britânico, ver Kaye, 1984 e Samuel, 1984. 20 Braudel, 1986. Para uma aproximação à obra de Braudel, ver os anais das Primeras jornadas braudelianas (1993), com ensaios de Carlos Antonio Aguirre Rojas, Ruggiero Romano, Bolívar Echeverría, Immanuel Wallerstein, Paule Braudel e Maurice Aymard; e as Segundas jornadas Braudelianas – Historia y Ciencias Sociales (1995), com ensaios de Bernard Lepetit, Aguirre Rojas, Pierre Dockès, Jacques Revel, Aymard, Maaten Prak, Giovanni Levi, e Emiliano Fernández de Pinedo. Também Lopes, 2003; Wallesrstein, 1983; Aguirre Rojas, 2000 e 2003 e Lopes, 2003.

estruturas

107

mais consistente de “totalidade”, acabando por invadir o território umas das outras. As aproximações dão-se por muitos caminhos, como acontecia nas area studies americanas. Mas, de modo geral, ponderava Braudel em seu texto seminal, as Ciências Sociais não se davam conta da revolução conceitual vivida na História “nos últimos vinte ou trinta anos” - ou seja, desde o surgimento dos Annales; em função, particularmente, de sua capacidade de lidar com um aspecto da realidade social que escapa às demais Ciências Sociais: [...] a duração social, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens que são não só a substância do passado, mas também a matéria da vida social atual. Mais uma razão para sublinhar fortemente, no debate que se inicia entre todas as ciências do homem, a importância e a utilidade da história, ou melhor, da dialética da duração, tal e qual se desprende do ofício e da reiterada observação do historiador [...] Quer se trate do passado quer se trate da atualidade, torna-se indispensável uma consciência nítida desta pluralidade do tempo social para uma metodologia comum das ciências do homem [...]. (BRAUDEL, 1986, p. 9).

Os historiadores formaram-se aprendendo, importando conhecimentos dos cientistas sociais vizinhos. Braudel suspeita que talvez era chegado o tempo de lhes retribuir com uma novidade: “Uma noção cada vez mais precisa da multiplicidade do tempo e do valor excepcional do tempo longo, vai abrindo caminho a partir das experiências e das tentativas recentes da história.” Braudel demonstra como se deu a ruptura com o tempo breve, do acontecimento, a partir da história econômica e social, que se voltou para o estudo do tempo médio da economia de mercado. Tal ruptura não implicou uma negação total do tempo breve, mas num redimensionamento de sua importância, em favor da história econômica e social, em detrimento da história política. Essa mudança de orientação implicou verdadeiras revoluções teórico-metodológicas, como demonstrara José Carlos Reis (1994; 1996). Um conjunto de revoluções fundado na renovação radical do tempo histórico tradicional: não mais os acontecimentos do tempo breve, mas as conjunturas e os ciclos do tempo médio, para analisar-se, por exemplo, as curvas gerais nos movimentos dos preços ou das taxas de natalidade ou mortalidade. A história sai em busca das explicações. Aí, seguem-se vários exemplos, com destaque para a obra de Ernest Labrousse.

108

Malerba, Ensaios

Faltava, porém, para Braudel, chegar ao cerne da questão. Para além do tempo da economia e da sociedade, buscar-se a longa duração, onde jazem as estruturas. A economia e a sociedade, que desvelam tendências conjunturais, não são mais que introduções à história de longa duração, uma primeira chave a ela. A segunda, muito mais útil, é a palavra estrutura. Boa ou má, é ela que domina os problemas da longa duração. Os observadores do social entendem por estrutura uma organização, uma coerência, relações suficientemente fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é, indubitavelmente, um agrupamento, uma arquitetura; mais ainda, uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar. Certas estruturas são dotadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história, entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer. Outras, pelo contrário, desintegram-se mais rapidamente. Mas todas elas constituem, ao mesmo tempo, apoios e obstáculos, apresentam-se como limites (envolventes, no sentido matemático) dos quais os homens e suas experiências não se podem emancipar. Pense-se na dificuldade em romper certos marcos geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade e até reações espirituais: também os enquadramentos mentais representam prisões de longa duração. (BRAUDEL, 1986, passim).

O exemplo que evoca é, como sempre, aquele que nos dá também Charles Mozaré: a geografia. Segundo Mozaré, a historicidade manifesta-se nos acontecimentos e eles podem ser das mais variadas espécies. Os acontecimentos naturais são diferentes dos acontecimentos humanos e uns incidem sobre os outros. Mozaré (1970) pensa, como Elias,21 na longuíssima duração, que o 21 Em poucos momentos de sua vasta obra, Elias se remete a um conceito específico, o de “biogênese”, que se refere a formas de integração daquilo a que aprendemos a chamar de “natureza”, ao lado dos mais conhecidos de “sociogênese” e “psicogênese”, processos de integração dos grupos humanos que desaguaram nas atuais instituições e estruturas psíquicas que constituem as atuais sociedades humanas. Elias demostrou como as ciências evoluíram em seus campos particulares de investigação, não havendo, contudo, uma renovação epistemológica correspondente. Assim, ainda hoje muitos cientistas se apoiam num modelo da Física cuja representação da natureza - seja no plano astronômico ou molecular - é estática, com regularidades que podem ser enunciadas em “leis” eternas. A formulação de processos de síntese, de integração e desintegração [por exemplo, da busca da compreensão da gênese e evolução dos corpos celestes a partir de um Big-Bang - que pressupõe a concepção de um universo em expansão] fez a física astronômica, desde Hubble, lançar-se à explicação da evolução por meio da síntese, na qual antes, na mecânica newtoniana, só era permitido um conhecimento descritivo. seus “Pensées sur la Grande Évolution” In: Elias (1993a, p. 177-254).

estruturas

109

“homem” é uma casualidade na evolução natural. “O acontecimento humano, tipo particular de fenômenos próprios à natureza toda, se situa completamente nos últimos tempos de uma imensa duração evolutiva que zomba de milhões de anos mais facilmente do que nós fazemos com decênios”. (MOZARÉ, 1970, p. 46). Nessa longuíssima duração, o surgimento da espécie humana seria um acontecimento breve e recente. Independentemente do homem, a natureza é suscetível de seus próprios acontecimentos, que incidem na vida humana, como os acontecimentos climáticos, por exemplo: Em perspectiva de duração bastante longa, quase não se pode negar a existência de insidiosas modificações de condições meteorológicas e, conseqüentemente fitológicas que, a longo prazo, repartem de outra forma a fecundidade ou a miséria. Tais mudanças são também acontecimentos, muito desdobrados, que provocam lentas migrações ou modificações de horizontes de trabalho; há mormente traço delas nas lendas que resumem séculos, nos mitos como o do dilúvio. (MOZARÉ, 1970, p. 49).

Aqui adentramos num território já bem conhecido, justamente aquele por onde caminhou Braudel. Território onde a geografia, a influência exercida pelo poderio geológico e cósmico sobre o destino coletivo dos homens, é o que define a localização das planícies e os relevos, os recursos do solo e do subsolo. Tudo isso afeta os dinamismos da ação humana coletiva na conquista de suas paisagens - e não deixa de se constituir em acontecimentos, embora, dada nossa formação, não estejamos treinados para entendê-los como tais. Além das condições físicas, a natureza interfere nas variações coletivas da saúde – outra forma de acontecimento natural que influência decisivamente a vida humana. Tudo isso era o que principalmente instigava a Braudel. Voltando ao texto clássico de Braudel sobre “a longa duração”, ali o homem surge como prisioneiro de determinismos naturais; nesse equilíbrio se forjam as civilizações. Então, Braudel aponta para o grande desafio dos historiadores: para avançar no conceito de longa duração, seria necessária uma mudança de atitude, a aceitação de uma nova concepção do social, assente na ideia de um tempo quase no limite da (i)mobilidade. Mas a questão fundamental reside em aceitar a determinação da longa duração sobre todas

110

Malerba, Ensaios

as demais temporalidades. “Todos os níveis, todos os milhares de níveis, todos os milhares de fragmentações do tempo da história, se compreendem a partir desta profundidade, desta semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela”. (BRAUDEL, 1986, p. 14). São muitos os autores que estudaram a obra de Braudel, destacando sua novidade, suas contribuições e seus problemas. François Dosse, tanto quanto Paul Ricouer, por exemplo, lembram que uma questão fundamental para Braudel é que não dá para simplesmente “escolher” uma temporalidade, desprezando as demais. Elas devem ser pensadas em interação. O problema é que o próprio Braudel jamais conseguiu fazer isso, como é exemplo seu magistral Mediterrêneo, onde as três partes que constituem o livro aparecem simplesmente superpostas, sem que haja uma articulação lógica ou narrativa entre elas. (BRAUDEL, 1976).

Considerações derradeiras sobre acontecimento e estrutura Para fechar esta discussão sobre estruturas – e resgatando as provocações iniciais que as enlaçam aos acontecimentos –, apoio-me basicamente nas reflexões de R. Koselleck (1993, p. 141), sumarizadas num texto seminal sobre a questão da relação entre representação, acontecimento e estrutura, que os aborda no contexto teórico da narrativa histórica. O que mais me atrai nesse texto é que Koselleck distingue dois planos de percepção do problema: um ontológico e outro gnosiológico. Para o autor, estruturas e acontecimentos possuem uma existência inegável, embora diferenciada, no plano da realidade; o que faz com que exijam duas maneiras de ser no plano do conhecimento. Em primeiro lugar, os acontecimentos, que são estabelecidos post facto na sucessão infinita do tempo, podem ser percebidos pelos contemporâneos que os vivem como um contexto, uma unidade de sentido passível de se expor de forma narrativa. Em princípio – e aqui lembrando muito as formulações de Mozaré sobre o “acaso” –, a coincidência de diversos incidentes na constituição de um acontecimento obedece primeiramente a uma cronologia natural. A trama dos acontecimentos ao longo do tempo é tal que, em sua observação, chega-se sempre e inevitavelmente a um limite para a divisão dessas unidades estruturas

111

de sentido que constituem o acontecimento. A situação do acontecimento no curso do tempo, que se define de modo eminentemente relacional, ao definir as noções de anterioridade e de posterioridade, permite chegar à unidade de sentido que constitui um acontecimento no fluxo do tempo. Sempre segundo Koselleck, o que é anterior e posterior na constituição do acontecimento pode variar ou inclusive ampliar-se; de qualquer modo, o substrato daquilo a que chamamos acontecimento está sempre relacionado a sua situação no curso do tempo. Assim também a sua percepção pelos que o experimentam enquanto tal. Porém, essa cronologia natural, essa (re)situação do acontecimento no decurso temporal, por si mesma não lhe atribui uma qualidade ou caráter de histórico. Sempre segundo Koselleck, para se investigar uma cronologia histórica – e para atribuir sentido histórico aos acontecimentos - é preciso elaborar sua “estruturação”. Por isso, pode-se falar de uma estrutura diacrônica. Aqui, o autor chega aos conceitos de estrutura e de história estrutural. Numa formulação muito próxima à de Braudel, para Koselleck podem ser concebidas como estruturas aqueles contextos temporais não perceptíveis no decurso estrito dos acontecimentos; ou seja, que fogem à consciência dos sujeitos históricos que os vivenciam. Concordando com outros autores, como o próprio Braudel e K. Pomian, Koselleck propõe que as estruturas indicam permanência, maior continuidade, invariância; ou mudança, mas a prazos mais dilatados. As categorias do médio e do longo prazo sintetizam de forma mais clara aquilo que no século XIX concebia-se como “condições”, ou o que hoje alguns, como Thompson (1981) chamam de “circunstâncias” – ou o que Braudel definiu como “limites” da ação humana. Foi a essa estratificação do decurso temporal do longo prazo, tendente à significação do estático, das “prisões do imóvel”, que a historiografia de meados do século XX batizou de “história estrutural”. Se a cronologia, o estabelecimento do que é anterior e posterior no decurso temporal, é fundamental para a exposição narrativa dos acontecimentos, ela perde totalmente o significado, torna-se conceitualmente inócua, quando se trata da descrição das estruturas no longo termo. Uma das características da história estrutural, além da desaceleração do tempo histórico, foi ter descentrado o homem em favor das massas humanas. (REIS, 1996A; REIS, 1996; REIS, 1994; DOSSE, 1994; LOPES, 2003). De forma que, na proposição de uma história estrutural, o foco desvia-se da ação de sujeitos 112

Malerba, Ensaios

conscientes para as formas de organização, as forças produtivas e as relações de produção; as relações das sociedades com o meio ambiente, as formas inconscientes de comportamento; os costumes e sistemas jurídicos e assim por diante. Deixando-se de lado a questão de como estruturas se relacionam entre si, Koselleck propõe que, em geral, as constantes temporais das estruturas apontam para além do âmbito cronologicamente registrável da experiência dos participantes de um acontecimento. Enquanto os acontecimentos são produzidos ou sofridos por sujeitos determináveis, nomináveis, as estruturas serão sempre supraindividuais e intersubjetivas. Esse é o motivo pelo qual de sua ação decorrem sistematicamente determinações funcionais sobre grupos sociais inteiros. Assim, as estruturas não se convertem em magnitudes extratemporais, porém antes adquirem com frequência um caráter processual, desse modo determinando, ou ao menos interferindo nas experiências do acontecer cotidiano. Enquanto experiência do devir, tanto os acontecimentos e como as estruturas convertem-se em objetos. Diversos e complementares, do conhecimento histórico. Em geral, “a representação de estruturas se aproxima mais da descrição; a representação dos acontecimentos se aproxima mais da narração”. (KOSELLECK, 1993, p. 145). Ambos os planos, de acontecimentos e estruturas, remetem-se mutuamente um ao outro, sem que um seja parte do outro. Mais ainda, a depender do objeto de investigação, ambos os planos intercambiam seu valor posicional. Por exemplo, as séries estatísticas demarcadas ao longo de um decurso temporal se nutrem de acontecimentos concretos e individuais que possuem seu próprio tempo. Mas essas séries estatísticas não se podem enunciar enquanto estruturas senão no contexto dos prazos longos. A narração e a descrição encaixam-se ali onde o acontecimento se converte em pressuposto de enunciados estruturais. As estruturas mais ou menos permanentes, no prazo longo, são condições para os possíveis acontecimentos. Que uma batalha possa liberar-se nos três atos do veni, vidi, vici, pressupõe determinadas formas de domínio, disposição técnica sobre as circunstâncias naturais, pressupõe uma situação assimilável da relação amigoinimigo, etc, ou seja, estruturas que pertencem ao acontecimento dessa batalha, que formam parte dela na medida em que a condicionam. A história de uma batalha única, da qual Plutarco informa apoditicamente, possui, pois, dimensões de

estruturas

113

diferente extensão temporal contidas na narração ou na descrição e que se estendem “antes” de que se reflita sobre o resultado que confere “sentido” ao acontecimento da batalha. Portanto, trata-se de estruturas in eventu, sem prejuízo do problema hermenêutico de que seu significado se converte em algo concebível apenas post evetum. Aqui as estruturas são os motivos gerais de Montesquieu, que tornam possível que uma batalha possa chegar a ser também decisiva para a guerra, devido à contingência de seu acontecer. (KOSELLECK, 1993, p. 146, grifo nosso).

Em relação aos acontecimentos individuais, existem condições estruturais que possibilitam o transcurso de um acontecimento, que permitem a um determinado acontecimento “acontecer”. A forma por excelência de referência a tais estruturas é a descrição; porém, tais estruturas são passíveis de vir a compor o contexto narrativo, se seu resgate vir a contribuir para o esclarecimento dos acontecimentos. A “permanência”, a invariância, a inércia, por sua vez, podem converterse também em acontecimento no ato da escrita histórica! Conforme a perspectiva, as estruturas podem introduzir-se como um complexo particular no contexto de acontecimento maior. Uma vez analisadas e descritas, explica Koselleck, as estruturas podem ser narradas, por exemplo, como fator de contextos envolventes de acontecimentos. O caráter processual da história deve ser concebido a partir da reciprocidade dessas perspectivas, os acontecimentos ante as estruturas, e vice-versa. De qualquer modo, fica clara em Koselleck a pressuposição de uma realidade histórica ontológica, complexo de acontecimentos e estruturas, à qual adere a narrativa. Não obstante sua minuciosa teorização, uma questão permanece pendente para Koselleck, uma aporia metódica que impede a interpolação de acontecimentos e estruturas. Existe um hiato entre ambas magnitudes porque não se pode forçar a congruência a suas extensões temporais, nem na experiência nem na reflexão científica. O cruzamento do acontecimento e da estrutura não deve levar a que se desvaneçam suas diferenças se, por outra parte, hão de conservar sua finalidade cognoscitiva de tornar patente a diversidade de níveis de qualquer história. (KOSELLECK, 1993, p. 147).

Assim, pois, ao disporem-se metodicamente os modos de representação vis-a-vis, os decursos temporais que a eles se referem, no “âmbito dos objetos” 114

Malerba, Ensaios

da história, chega-se a uma tripla derivação teórica: primeiro, por mais que se condicionem mutuamente, os planos temporais não se fundem nunca; segundo, um acontecimento pode alcançar um significado estrutural, assim como – terceiro – a “duração” pode converter-se ela mesma em acontecimento. Mas então, como se dará a passagem de um plano a outro? Para Koselleck, seria um equívoco defender-se uma maior “realidade” aos acontecimentos do que às estruturas só porque os acontecimentos, no curso concreto do acontecer, permanecem aderidos ao antes e ao depois que se efetua empiricamente na cronologia natural.22 Não é incomum no exercício do conhecimento histórico a estratégia de mudar os planos de demonstração para fazer derivar um a partir do outro. Porém, por meio da mudança no plano temporal, mediante a passagem do acontecimento à estrutura e vice-versa, não se resolve o problema da derivação: A fundamentação válida, a definição da melhor perspectiva, só se pode decidir a partir de uma antecipação teórica. Quais são as estruturas que fixam o marco para as possíveis histórias particulares? Que dados se convertem em acontecimentos, que acontecimentos se fundem no curso da história passada? (KOSELLECK, 1993, p. 149, grifo nosso).

Corresponde à historicidade de nossa ciência que essas questões não possam ser reduzidas a um denominador comum; esclarecer seus planos temporais dever ser uma prescrição metódica. Os acontecimentos e as estruturas são igualmente “abstratos” e “concretos” para o conhecimento histórico, dependendo do plano temporal em que se mova a análise. Daí que, para Koselleck, estar a favor ou contra a realidade passada não seja uma alternativa para o historiador. A questão da representação de acontecimentos e estruturas, que não são mais que formas de percepção e realização temporal do mundo histórico, ou, em outras palavras, a questão de como os historiadores constroem 22 Aqui é possível se fazer uma analogia à análise que faz Elias sobre a relação indivíduo/sociedade, quando observa o equívoco do senso comum em atribuir uma maior “realidade” ao indivíduo, ao qual se pode apontar, do que para a sociedade, que seria uma abstração teórica. Elias aponta para a necessidade de superação de nossa aparelhagem cognitiva, que tende a apoiar-se nesses binômios bipolares como sujeito/objeto, natureza/cultura, corpo/alma, indivíduo/sociedade, e para a necessidade de formulação de teorias complexas que voltem a integrar aquilo que nunca foi separado. Elias, A sociedade dos indivíduos. In: Elias, 1993.

estruturas

115

narrativamente experiências humanas historicamente determinadas, conduz ao terceiro elemento substantivo da relação acontecimento/estrutura/tempo, que é sua necessária formulação narrativa. A relação que as representações do tempo guardam com as efetivas experiências do tempo é o núcleo da reflexão que a confrontação teórica entre estrutura e acontecimento necessariamente faz decorrer. Mas trata-se de outra matéria, que escapa aos propósitos deste ensaio.

narrativa:

história e discurso

Julho de 2006. Uma foto: a do massacre de Qana (Líbano), estampando o corpo de um bebê de pijama imobilizado feito estátua sob uma camada de reboco. A imagem da chupeta presa à roupa com o alfinete, as dobrinhas do cotovelo, a expressão de sono transfigurada pela eternidade, detalhes pungentes que acabam gravados na memória. Ela mostra, na sua impressionante simplicidade, a que vêm as guerras: infligir dor em proporções devastantes. Dor no corpo de quem vai e dor na mente de quem fica.1 Maio de 2006. Uma onda de pânico faz parar a maior e mais rica cidade do país e espalha pânico pelo Estado de São Paulo. No quarto dia de terror provocado pela facção criminosa PCC, contabilizavamse 184 atentados, com 81 mortos, 49 feridos, 85 ônibus queimados e 18 agências e 8 fóruns foram incendiados no Estado. (Ao fim de uma semana, segundo o IML, foram mais de 400 óbitos por arma de fogo em todo Estado de São Paulo.) As empresas de ônibus tiraram os coletivos das ruas, e cerca de 5,5 milhões de pessoa ficaram sem transporte, fazendo com 3 em cada 10 alunos faltassem, assim como a ausência de funcionários e professores prejudicou 50% das escolas da grande São Paulo. Setembro de 2004. Quarta-feira, 1 de setembro, 9h30 da manhã. Fim das férias de verão no hemisfério norte. Crianças voltam às aulas em uma escola desconhecida de uma república desconhecida na Rússia. Cinquenta e três horas depois, o mundo assiste perplexo à morte de 339 pessoas no mais sangrento atentado terrorista de 2004. As crianças Essa descrição do massacre de Qana é da pena de Plínio Freire Gomes, em correspondência com o autor. O presente ensaio beneficiou-se muito do rico diálogo informal estabelecido com Plínio F. Gomes sobre o estatuto da história. Agradeço também a outro amigo e incentivador, Paulo Parucker, pelas conversas criativas pelos bares de Brasília.

1

narrativa

117

não puderam se alimentar ou beber água durante as 53 horas em que permaneceram como reféns dos terroristas tchetchenos. Para matar a sede, começaram a beber a própria urina. Uma das sobreviventes contou ao canal russo de televisão NTV que ela e seus colegas da cidadezinha de Beslan urinavam dentro de garrafas e depois, para beber, usavam as roupas como filtro atado ao gargalo. Março de 2004. Dez bombas explodiram entre 7h39 e 7h41 em algumas das principais estações de trem e metrô de Madri, capital da Espanha. A carnificina deixou um saldo de 202 mortos e dezenas de feridos. Outubro de 2002. Um teatro de barbárie. Cerca de 50 rebeldes tchetchenos, fortemente armados, tomaram o edifício enquanto um público de mais de 700 pessoas assistia a apresentação do musical russo “Nord-Ost” (Norte-Leste). Os rebeldes, entre eles dez mulheres, tinham bombas presas a seus corpos. Exigiram que a Rússia se retirasse da Tchechenia. Cento e quinze reféns morreram por causa dos efeitos do gás e mais 200 foram internados por intoxicação. Os terroristas tchetchenos foram executados e não houve nenhuma vítima por parte dos soldados russos.

Preâmbulo Essas e muitas outras notícias ecoaram estrondosamente por todos os veículos de comunicação. Haverá quem as trate de factoides, de criações midiáticas para vender notícia, de discursos produzidos e consumidos como mercadorias; de discursos ideológicos de líderes políticos oportunistas. São acontecimentos luminosos, que mexeram com a vida de muitas pessoas, as que os viveram e as que deles tomaram conhecimento. Além das violências urbana ou oriunda de atos terroristas e guerras, sempre traumáticas, há outros tipos mais silenciosos, de que muitas vezes não tomamos conhecimento por ação ou por omissão. Fatos, digamos, como as guerras permanentes no continente africano que mutilam e matam, por arma, doença, fome e toda sorte de flagelo, milhões de pessoas por ano. Ou a exclusão social em todo o mundo, a fome, a miséria, o preconceito social, racial, sexual, religioso...

118

Malerba, Ensaios

O exercício do poder é outro tipo flagelo que vitima milhões de pessoas. Pensemos apenas na grande onda de escândalos de corrupção que varreu o Brasil nos últimos dois anos. Homens públicos que se desviam de suas funções para benefícios particulares ilícitos de uma monta tal que nunca se viu. Está em todos os noticiários. Um jornalista avaliou bem as consequências da corrupção e da impunidade: os que roubam do sistema de saúde assassinam e causam sofrimento e humilhação aos pobres e doentes de hoje; os que roubam da Educação subtraem o futuro às crianças, criam os marginais de amanhã. Haverá, aqui também, quem venha sustentar que esse é um discurso panfletário, um humanismo retrógrado, que a coisa não é bem assim – ou que sempre foi assim e não há recurso. Diante de uma realidade tão avassaladora, tão perversa, como nós historiadores nos posicionamos? Como respondemos? Como temos tentado explicar os processos que culminaram em quadros tão complexos e, muitas vezes, terríveis? Que respostas temos formulado a essas questões que, pareceme, são algumas das mais substantivas do nosso tempo? Arrisco uma hipótese: temos oferecido poucas respostas, porque não temos levantado as questões que nos caberia responder. E isso acontece em função do próprio cenário intelectual vigente em nosso tempo, que começou a ser configurado há cerca de três ou quatro décadas.

Introdução

Parece o eterno retorno do mesmo, depois de tudo ainda. Temos que voltar, voltar, para ver onde tudo começou, onde nos encontramos agora. Lembro-me que muito recentemente, ali por volta da queda do Muro de Berlim, alguém sentenciou de modo enfático que a histórica havia chegado ao fim. Tiros para lá, tiros para cá e hoje o fim da história tornou-se um não tópico. Principalmente depois dos atentados ao WTC, onde algum grande observador anônimo afixou um cartaz junto às grades em torno à cratera aberta no coração de Nova York, onde se lia o epitáfio: “Rest in Peace Francis Fukuyama”. A história “enterrava” seu algoz sob os escombros de 21 de Setembro. E o autor nipo-americano, após desfrutar de seus quinze minutos de glória, houve de retornar ao limbo do anonimato, de onde jamais deveria ter saído. narrativa

119

O “fim da história” hegelianamente sugerido por Fukuyama subentende que, depois da última pá de cal jogada no projeto socialista com o fim da União Soviética, a civilização humana conheceu o último degrau de sua evolução histórica e nada mais acontecerá fora do quadro vigente do capitalismo planetário ou globalizado.2 Esse “fim da história” de Fukuyama foi só mais um, dentre os inúmeros ataques cotidianos que atingem esse nosso campo da história. Uma impugnação muito mais elaborada, porém, começou a ser preparada lá pela década de 1960, com o advento pós-estruturalista – e esta hoje se encontra muito mais sutilmente arraigada nos campos e canteiros dos historiadores. Muitas confrontações se anunciaram, mas o encontro não aconteceu. Esse outro “fim da história”, proposto por pós-estruturalistas e renovado pelos seus herdeiros intelectuais, os pós-modernistas, é mais sutil porque, autorizando o debate da história apenas no plano do discurso sobre a história, renega grosso modo a ontologia da existência humana como existência histórica. E, por isso, o debate não aconteceu. Porque cada lado se guardou em sua trincheira, fez profissão de fé em suas próprias premissas e não se permitiu adentrar a arena para o diálogo. O campo argumentativo seria o único lugar para resolução da contenda ou, pelo menos, para a qualificação do debate. Algo, porém, me faz insistir e voltar a esse tema com validade vencida – o realismo histórico. Um incômodo talvez, um conjunto de intuições, de percepções. Uma inquietação exasperada por entender como intelectuais com formação profissional conseguem eliminar qualquer suposição, a mais formal que seja, de que possa existir uma “realidade histórica”. A história é inefável, produto da fala dos homens e mulheres. A história é nada, senão uma inflexão do discurso. Isso cheira (mal) à teoria. Creio que as questões só poderão ser devidamente formuladas e alguma resposta alcançada se dentro desse campo minado da teoria. Voltarei a essas inquietações quase existenciais na última seção deste ensaio. Hoje, quem trabalha profissionalmente com história, particularmente com disciplinas teóricas, em cursos de graduação ou pós-graduação como na orientação de trabalhos de conclusão de curso, é capaz de diagnosticar a vigência de um imenso défict teórico na formação de nossos estudantes. É como se vivêssemos uma época de paradoxo, por assim dizer. Talvez nunca se tenha Callinicos, “Sympathy for the Devil? Francis Fukuyama and the end of History”. In: Callinicos (1995, p. 15-42).

2

120

Malerba, Ensaios

escrito e discutido tanto teoria como hoje em dia, quando, justamente, esse défict teórico alcança um patamar inédito. Penso que talvez possamos atribuir esse fato a estarmos vivendo o que o Prof. Boaventura de Souza Santos chamou, para o campo de toda epistemologia, de uma época de transição paradigmática. Muitas certezas vigentes durante décadas, mesmo séculos, escorrem como areia por entre nossos dedos. Princípios cognitivos solidamente assentados se esboroam. Parafraseando Marshall Bermann, “tudo que é sólido desmancha no ar”. Mas pouco ainda conseguimos discernir com clareza sobre o que ficará no lugar.3 Fundamentos até então solidamente construídos como o imperativo da busca da verdade (seja lá isso o que for) e da objetividade do conhecimento histórico, as relações de causalidade entre sujeitos, acontecimentos, estruturas e processos, a busca e os limites da explicação e da interpretação históricas, o status da história no concerto das ciências sociais (e a questão da interdisciplinaridade), os procedimentos metódicos inescapáveis a quem praticasse a história como ciência – todos esses fundamentos, construídos ao longo de séculos, num lapso minúsculo de tempo foram visceralmente contestados. Não é o caso de pretender resgatar aqui um processo tão rico e plural, mas apenas indicar que, no campo da história, muito desse sentimento de perda de referenciais se deve ao amplo movimento intelectual do chamado linguistic turn (e do cultural turn, seu desdobramento), que desde a década de 1960, atingindo todas as ciências sociais e Humanidades, procurou por terra os modos de pensar herdeiros do pensamento racionalista forjados desde o Iluminismo. Estou falando, obviamente, da contribuição iconoclasta de pensadores ligados ao pós-estruturalismo e, moto continuo, ao pós-modernismo. Mas penso que é importante, neste momento de perda do Norte, voltar a levantar algumas questões de fundo do pensamento histórico – pensar esses fundamentos do pensamento histórico – ou seja, pensar teoricamente. Questões fundamentais que apenas espíritos diferenciados como Marc Bloch (1996) levantaram com singela clareza e profundidade: 3 Uma primeira versão deste texto começou a ser desenhada para ser apresentado no I Colóquio de História da Historiografia e Teoria da História, realizado na Universidade Federal de Juiz de Fora em agosto de 2006. Agradeço a todos os interlocutores pelas contribuições críticas. Muitas questões levantadas conduziram-me à necessidade de ampliar um pouco o foco e especificar alguns posicionamentos. Quanto às discussões levantadas acima, o conceito de transição paradigmática de Boaventura Santos encontra-se nas seguintes obras: Santos, 1993, 1995a e 1995a. Também Bermann, 1986.

narrativa

121

O que é e para que serve a história? Que tipo de conhecimento dela podemos ter? Qual sua função dentro das sociedades? Como se fundamenta esse tipo tão específico e tão limitado da história como ciência? Tenho a impressão de que nossos estudantes são, às vezes, pouco provocados a responder a esse tipo de indagação, da qual decorrem inúmeras outras possíveis. Penso que a teoria tem um papel fundamental na formulação de tais problemas e em suas possíveis e sempre provisórias respostas. Muitas delas, aliás, poderão mesmo soar extemporâneas para quem não mais aceita pensar a história como ciência, como é o caso daqueles autores vinculados à nebulosa pós-moderna. As impugnações feitas pelos autores pós-modernos (reconheçamos: sempre mais filósofos do que historiadores de ofício) à tradição racionalista são muito conhecidas. (IGGERS, 1997; ZAGORIN, 1998). Não cabe aqui, também, buscar uma definição do conceito de pós-moderno, esse sincretismo de diferentes teorias, teses e reivindicações que tiveram origem na filosofia germânica moderna, especialmente em Nietzsche estendendo até Heidegger e na adaptação dessa filosofia por vários intelectuais franceses, particularmente os propositores das teorias pós-estruturalistas da linguagem desde a década de 1960, como Michel Foucault e Roland Barthes. Num sentido muito geral, o pós-modernismo sustenta a proposição de que a sociedade ocidental passou nas últimas décadas por uma mudança de uma era moderna para uma pós-moderna, a qual se caracterizaria pelo repúdio final da herança da ilustração, particularmente da crença na Razão e no Progresso, e por uma insistente incredulidade nas grandes metanarrativas, que imporiam uma direção e um sentido à História, em particular a noção de que a história humana é um processo de emancipação universal. No lugar dessas grandes metanarrativas surge agora uma multiplicidade de discursos e jogos de linguagem, o questionamento da natureza do conhecimento junto com a dissolução da ideia de verdade,

122

Malerba, Ensaios

e outros problemas de legitimação em vários campos.4 O impacto das proposições pós-modernas na teoria da história, mais especificamente, na teoria da historiografia, foi enorme.5 A seguir, procurarei aprofundar um pouco na base desses dois postulados axiomáticos da teoria do conhecimento pós-moderna – se assim podemos chamá-la – que são sua teoria da linguagem e sua veemente negação do realismo; em seguida, tratarei essa discussão conceitual trazendo-a mais próxima ao nosso campo, para discutir as premissas e os desdobramentos daqueles postulados na prática da escritura histórica pós-moderna, fundamentada no antirrealismo histórico e no narrativismo. Depois de esboçado o quadro geral, sempre de um ponto de vista crítico, indicarei algumas diretrizes teóricas para o enfrentamento do argumento antirrealista de que é o discurso que funda, institui, cria a realidade, o mundo, a história. Para tanto, resgatarei algumas formulações em torno do conceito de habitus de Pierre Bourdieu e da teoria simbólica de Norbert Elias. Em seguida, avançarei mais um argumento nesse debate, a partir da discussão de um fundamento da histórica que é a consciência histórica. Por fim, na última seção, procurarei articular os enunciados desses preâmbulos e introdução ao argumento desenvolvido a seguir.

Linguagem e negação do Realismo As duas bases do pós-modernismo assentam, portanto, em sua concepção de linguagem e na negação do realismo. A primeira é tributária direta dos desdobramentos do linguistic turn e das negações pós-estruturalistas, que 4 Os axiomas das impugnações pós-modernas foram lançados, primeiramente, em Lyotard, 1989 (versão original de 1979) e sistematizadas para o campo da história em Ankersmit e Kellner, 1995. Para uma teorização séria da questão das metanarrativas e o problema do fim da história que ela suscita, ver: Callinicos, 1995. 5 Como eu disse em outro lugar, quanto à contribuição do pós-modernismo: “[...] no campo da teoria da história mais do que no da historiografia, o pós-modernismo efetivamente contribuiu para derrubar alguns dogmas, alguns postulados férreos que sobreviveram à derrocada de uma certa concepção de história herdeira de certos fundamentos iluministas, humanistas e cientificistas e ainda vigente em muitos polos importantes durante a década de 1970. [...] Porém, fora essa atitude iconoclasta – sem dúvida alguma fundamental para a superação do estado do debate -, pouco contribuiu o pós-modernismo para a teoria da história e a historiografia. Fez avançar negando e derrubando, mas pouco colocou no lugar”. Malerba, Introdução: teoria e história da historiografia. In: Malerba, 2006.

narrativa

123

levaram ao paroxismo as apropriações que os primeiros estruturalistas, como Levi-Strauss, fizeram da obra de Saussure. Trata-se agora de uma filosofia do idealismo linguístico ou pan-linguísmo que afirma que a linguagem constitui e define a realidade para as mentes humanas, v. g., que não existe qualquer realidade extralinguística independentemente de nossas representações dessa realidade na linguagem ou discurso. Esse idealismo linguístico considera a linguagem como um sistema de signos que se referem apenas uns aos outros internamente, em processos sem sim de significação (“semiose”, segundo Ciro Cardoso) que nunca chegará a um sentido estabelecido.6 A grande vulgarização dessa concepção de linguagem em anos recentes é um aspecto forte daquilo que se convencionou chamar de linguistic turn7 na história e em outras ciências sociais. Assim, o pós-modernismo nega tanto a capacidade da linguagem ou discurso de referir a um mundo independente de fatos e coisas, quanto à determinação final – ou a “resolutibilidade” – do sentido textual. A partir daí, ele nega também a possibilidade do conhecimento objetivo e da verdade como horizontes utópicos de qualquer investigação. O leitor crítico, contudo, não terá dificuldade em perceber que essa filosofia idealista é, ela mesma, uma espécie de metafísica fundada em assertivas não provadas e improváveis a respeito da natureza da linguagem.8 A teoria pós-moderna da linguagem é produto das interpretações enviesadas pós-estruturalistas do trabalho do linguista suíço Ferdinand de Saussure, tal como expostas em seu Curso de lingüística geral, publicado postumamente. Só para lembrar os principais eixos de sua teoria, Saussure tornou-se o fundador da linguística estrutural ao ensinar que o objeto das ciências da linguística deve ser a langue ou o estudo sincrônico, a-histórico da linguagem como um sistema total, antes que a parole ou o estudo diacrônico e histórico da linguagem falada. Sua explanação da linguagem como um sistema de signos distinguíveis apenas por sua oposição e diferença – e sua definição do signo como um significante arbitrariamente ligado ao significado – não Cardoso, 1998 (reproduzido em Cardoso, 2005). Também Iggers (1997, p. 118). Pulino, Richard Rorty e a questão das representações em filosofia. In: Cardoso e Malerba, 2000. 8 A literatura sobre o fenômeno “pós-modernismo” em história é extensa. Nela se há de incluir Rüsen, 1993; Ankersmit, 1994; Topolsky, 1994; Bailyn, 1982; Stone e Spiegel, 1992; Pieters, 2000. 6 7

124

Malerba, Ensaios

implicou, contudo, a renúncia ao realismo ou a negação de que palavras podem referir-se a objetos no mundo. Embora formado por uma conexão arbitrária entre um som e um sentido particular, o signo, tal como ele definia, era ele mesmo um conceito com uma relação referencial às coisas. Saussure nunca supôs que o mundo fosse construído ou fundado na linguagem e que inexistisse independentemente de nossas descrições linguísticas. Conforme demonstraram inúmeros intelectuais, como Perry Anderson,9 essas opiniões idealistas não eram do próprio Saussure, mas conclusões tiradas e impostas ao seu trabalho por pós-estruturalistas e teóricos literários subsequentes, formuladores da filosofia pós-moderna da linguagem. No que nos diz respeito, os teóricos pós-modernos são críticos do que eles chamam da “prática histórica normal”,10 por algumas razões: o que os incomoda são coisas como a fé dos praticantes dessa “história normal” na possibilidade de uma história objetiva, sua convicção teimosa de que a história não apenas está relacionada a textos e discursos, mas aspira fornecer, em algum sentido, não absoluto ainda que válido, uma representação e um entendimento verdadeiros do passado, e sua suposta cumplicidade com o suporte ideológico do status quo político e econômico.11 Um dos mais badalados teóricos historiadores pós-modernos, Keith Jenkins afirma que as diferentes interpretações existem porque a história é, basicamente, um discurso em litígio, um campo ideológico de batalha no qual pessoas, classes e grupos elaboram autobiograficamente suas interpretações do passado, para agradarem a si mesmos. Todo consenso só seria alcançado quando as vozes dominantes conseguissem silenciar outras. “Ao fim, a história é teoria, a teoria é ideologia e a ideologia é pura e simplesmente interesse material”.12 Anderson. Estrutura e sujeito. In: Anderson (1984, p. 47); também Anderson, 1992. Jenkins. Introduction: On Being Open about our Closures. In: Jenkins, 1997; no mesmo volume e na mesma linha, o artigo de Robert Berkhofer Jr., The Chellenge of Poetics to (Normal) Historical Practice. 11 Toda essa discussão sobre o caráter da representação histórica é o eixo problemático da coletânea organizada pelo professor Ciro Cardoso e por mim e será inevitável retomar alguns pontos ali desenvolvidos na construção de meu argumento. Cardoso e Malerba, 2000. 12 Jenkins (2001, p. 43). Os ensaios que balizaram a discussão sobre narrativa histórica em sua relação com o linguistic turn são: Mink, 1978; Carroll, 1984; e, principalmente, White, 1978 (originalmente publicada em Clio, jun.1974) e Ankersmit, “Six Theses on Narrativist Philosophy of History” (1994). 9

10

narrativa

125

Nesse litígio de interpretações, qualquer anseio de busca da verdade está definitivamente comprometido, já que não existe um referente não linguístico que garanta qualquer objetividade ao texto do historiador. Nesse sentido, todos os textos se equivalem e a busca da verdade e da totalidade está definitivamente comprometida, pois tudo se resume, no final, a pontos de vista, perspectivas, fundadas em textos, que remetem a outros textos e que se configuram por fim em textos, passíveis, enquanto tais, de todo tipo de leitura, já que o produto da história não é nada além de interpretação. O exemplo utilizado por Jenkins para caracterizar a fragilidade das fronteiras disciplinares em ciências humanas é muito eloquente. Ele lembra uma paisagem, enquadrada por uma janela (já que toda paisagem é, necessariamente, enquadramento). Uma paisagem com suas estradinhas, casas, campos, em diferentes planos; no horizonte, morros baixos, o céu azul pálido. ( JENKINS, 1991, p. 27). Para Jenkins, não há nada nessa paisagem que diga “geografia”, mas para o geógrafo está claro que ela é passível de uma análise “geográfica”. Da mesma maneira, o sociólogo pode perceber essa paisagem em termos sociológicos, o antropólogo em termos antropológicos e assim por diante. Mas, ao fim e ao cabo, nada há naquela paisagem de intrinsecamente “geográfico”, “sociológico”, “antropológico”, “histórico” etc; ao contrário, são os profissionais das várias áreas que a decodificam em categorias inerentes à lógica de seus próprios discursos. Como preferem alguns, é assim que lemos o mundo como texto, e tais leituras são infinitas. No limite, segundo Jenkins, o mundo passado sempre nos chega como narrativas e não podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou ao passado reais, “pois elas constituem a realidade”. ( JENKINS, 1991, grifo meu). Estamos aqui no âmago de nosso problema. Antes de seguir escrutinando os fundamentos da teoria pós-moderna, abro parênteses para contrapor um singelo argumento aos postulados pós-modernos que vimos esboçando. À análise de Jenkins, contraponho uma imagem singela oferecida por E. H. Carr, já que ambas operam no mesmo código, o espacial. Ao discutir o problema da representação histórica, Carr entra numa outra discussão – a da filosofia da história – sobre os “significados do fato” e as “determinações subjetivas” decorrentes da atividade do historiador, as quais levariam ao perigo

126

Malerba, Ensaios

do relativismo. A visão liberal confiante e cômoda dos positivistas, firmada na primazia e autonomia dos fatos na história, foi abalada nas décadas de 1880 e 1890 por filósofos como Dilthey e, depois, por Croce e Collingwood, que atentavam para as determinações do presente sobre o passado: “Toda história é história contemporânea”.13 Uma questão insolúvel, para Carr, decorreria da constatação croceana da determinação do presente sobre a concepção do passado, uma das maiores armadilhas do próprio uso da linguagem. Embora destacando a pertinência da reflexão sobre o que chama de “visão da história de Collingwood”, Carr conclama uma luta contra todo o ceticismo que dela se depura. Contra a concepção da história como mera compilação de fatos, Collingwood posicionase perigosamente no corner oposto, tratando a história como algo tecido pelo cérebro humano, chegando à conclusão de que “não há verdade histórica objetiva”. A crítica que Carr dirige ao relativismo de Collingwood pode ser bem endereçada aos historiadores pós-modernos, como Keith Jenkins: Em lugar da teoria segundo a qual a história não tem significado, aqui nos oferecem a teoria de uma infinidade de significados, nenhum mais certo do que o outro - o que no fundo dá no mesmo. A segunda teoria é tão insustentável quanto a primeira. Não podemos concluir que, porque uma montanha parece tomar diferentes formas de acordo com os diversos ângulos de visão, não tem objetivamente nenhuma forma em absoluto ou uma infinidade de formas. Não podemos concluir que, porque a interpretação desempenha um papel necessário no estabelecimento dos fatos da história e porque nenhuma interpretação é completamente objetiva, qualquer interpretação é tão boa quanto a outra e que os fatos da história são, em princípio, responsáveis pela interpretação objetiva. (CARR, 1989, p. 26, grifo meu).

Retomando as posturas pós-modernas, podemos constatar na introdução da antologia organizada por Keith Jenkins, The postmodern History Reader (1997), uma crítica reducionista e preconceituosa da “prática histórica normal” como “produto da ideologia e dos interesses burgueses” – concepção e atitude observáveis também em seu A história repensada. Jenkins é adepto da ideia de A visão de Collingwood, esboçada em The Idea of History, é a de que “A filosofia não é relacionada com o “passado em si” nem com “o pensamento do historiador sobre o passado em si mesmo”, mas “com as duas coisas em suas relações mútuas”. (COLLINGWOOD Apud CARR, 1989, p. 22).

13

narrativa

127

que estamos vivendo na condição da pós-modernidade e não temos escolha quanto a isso. Sustenta que “histórias são apenas histórias sobre o passado e como ele deveria ser apropriado” e que “só a teoria é capaz de constituir aquilo que chama de fato”. Ele é simplesmente incapaz de conceber a validade ou o valor do esforço histórico de resgatar e tentar compreender um passado desvanecido ou explicar um presente borbulhante de história, com seus diversos modos de vida e pensamento, embora esse seja o tipo de projeto de vida de muitos historiadores. Ele também assevera que, se os historiadores recusam uma orientação futurista no fazer história, é porque eles não desejam um futuro diferente do presente, no qual o capitalismo domina o mundo. É impossível não sublinhar o caráter francamente conservador de uma tal perspectiva.

Antirrealismo e narrativismo A teoria pós-moderna da história define-se em duas teses principais que guardam o tipo mais radical de ceticismo do que qualquer proposta jamais enunciada nos debates relativistas anteriores a respeito da objetividade. Diante delas, as formas de idealismo historiográfico ou de subjetivismo, como o historismo e o presentismo, criticadas por Adam Schaff em História e Verdade não passam de ensaios ingênuos. (SCHAFF, 1983). A primeira é o chamado antirrealismo, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas. Tais representações, o conhecimento histórico, são portanto construídas como referidas não ao passado, mas apenas a outros e sempre presentes discursos, assertivas e textos históricos. Assim retirando quaisquer pretensões do conhecimento histórico de se relacionar com um passado real, o pós-modernismo dilui a história numa espécie de literatura e faz do passado mesmo nada mais que um texto. A segunda tese é o narrativismo – ou a tese tropológica – que afirma a prioridade, na criação das narrativas históricas, aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso inerentes a seu uso linguístico. De acordo com essa tese, as histórias ficcionais inventadas por escritores e as narrações dos historiadores não diferem entre si em nenhum aspecto essencial, porque 128

Malerba, Ensaios

ambas são constituídas pela linguagem e igualmente submetidas às suas regras, na prática da retórica e da construção das narrativas. A maneira pela qual as narrativas históricas são construídas, as conexões que elas estabelecem entre os eventos e as interpretações e explicações que apresentam são tidas como construções impostas sobre o passado, antes do que sendo fundadas nos fatos tais como depurados de evidências, vestígios, fontes. Do ponto de vista narrativista, os tropos e gêneros literários empregados pelos historiadores prefiguram e determinam a visão, a interpretação e o sentido dos fatos. Pelo mesmo enfoque, as narrativas históricas colocam-se na mesma categoria dos discursos ficcionais, de modo que seria impossível fazer distinção entre história e ficção ou argumentar pró ou contra diferentes interpretações históricas.

Antirrealismo A rejeição ao realismo tem sido um tema essencial na filosofia do pósestruturalismo e do pós-modernismo.14 Ele teve sua formulação canônica em Da gramatologia, na qual, negando que a leitura poderia “legitimamente transgredir o texto rumo a um referente” ou uma “realidade”, o filósofo francês Jacques Derrida conclui que “nada há fora do texto”. Roland Barthes endossa essa tese em relação ao discurso histórico em famoso ensaio de 1967, “Le discours de l´Histoire”, que se tornou verdadeiro texto canônico de pósestruturalistas e pós-modernos.15 A partir de um ponto de vista semiótico, Barthes defende que a referência a uma realidade passada pressuposta num discurso é sempre algo espúrio, “efeito falaz de linguagem”, e que o significado em tal discurso é destituído de qualquer outro referente senão o próprio discurso. Robert Berkhofer Jr. também se opõe ao realismo histórico e enfatiza o profundo desafio que a “desreferencilização” apresenta ao conhecimento histórico tradicional. Sua razão para rejeitar o realismo em história consiste primeiramente em levantar a questão: “qual o referente para a palavra ‘história’?”, seguida então pela resposta de que “não pode ser o passado, porque ele é ausente por definição”. Ao contrário da pretensão dos historiadores de uma realidade passada, explica Berkhofer, “ninguém pode apontar para o passado do mesmo modo que se pode apontar para um cavalo 14 15

A análise que segue é muito tributária das reflexões contidas em Zagorin, 1998. Reproduzido como “The discourse of history”. In: Jenkins, 1997.

narrativa

129

ou uma árvore (ou mesmo para uma fotografia deles), tal como os objetos aos quais as palavras ‘cavalo’ e ‘árvore’ se referem”.16 E avança no sentido da opinião dos teóricos literários de que o referente em história só pode relacionar-se a outras histórias e textos. Para demonstrar que tais entendimentos não são novidade do pósmodernismo, ainda que sejam igualmente efeitos da virada linguística, vou exumar um exemplo eloquente do ponto a que se chegou nesse fetichismo do texto decorrente do desconstrucionismo pós-estruturalista. Estou me referindo à baixa intelectual operada no marxismo por Louis Althusser, mas aqui estarei resgatando seus discípulos mais radicais: Barry Hindess e Paul Hirst. Hoje parece galhofa citar esses autores, que tratam de um assunto tão obsoleto quanto “modos de produção pré-capitalistas”. Mas é interessante lembrar que esses autores tiveram seus quinze minutos de fama. Seu livro Modos de produção pré-capitalistas, publicado na Inglaterra em 1975, fora traduzido imediatamente no Brasil. (HINDESS; HIRST, 1976). Segundo os autores, a história não pode ter a pretensão de ser “ciência”, uma vez que seu objeto é o passado. Mas, por definição, o passado não existe e o que se constitui como objeto da história é a representação desse passado, construída a partir dos diversos registros que nos chegam. O equívoco dos historiadores seria tomar o que “não existe, o passado,” como objeto da ciência histórica. Sua crítica é a de que o limite da operação história é sua obsessão com o empírico, o que a impediria definitivamente de se constituir enquanto ciência. Assim, o historiador teria um objeto que seria dado pelas representações do passado e do conjunto de eventos reais a elas correspondentes: a teoria aqui seria criada apenas para explicar aquilo que já estaria dado a priori. A história estaria condenada pela natureza de seu objeto ao empiricismo e sua explicação possível limitar-se-ia ao porque das representações do passado: “A despeito das alegações empiricistas da prática histórica, o objeto real da história é inacessível ao conhecimento [...]”. (HINDESS; HIRST, 1976, p. 362). Esse é o limite da história: seu objeto não pode ser teoricamente constituído; quando se constitui teoricamente, obrigatoriamente ele se afasta do real, do que realmente aconteceu, como quis Ranke. Mas mesmo esse passado que é “dado” não seria realmente dado, mas construído ideologicamente.17 Uma vez que o passado não existe, o discurso sobre 16 17

130

Berkhofer Jr, The Chellenge of Poetics to (Normal) Historical Practice. In: Jenkins, 1997. Aqui, qualquer semelhança com os postulados de Jenkins não será mera semelhança. Uma de

Malerba, Ensaios

ele, que se apresenta como a realidade do passado, é contaminado de ideologia: Os modos particulares de escrever a história dão a este ou aquele corpo de representações o status de registro. Artefatos, catálogos que não desbotam, atas da corte, sambaquis, memórias, são convertidos em textos – representações através das quais o real pode ser lido. O texto, constituído como texto, por sua leitura, está à mercê dessa leitura. Longe de trabalhar sobre o passado, o objeto ostensivo da história, o conhecimento histórico trabalha sobre um corpo de textos. Esses textos são um produto do conhecimento histórico. A escrita da história é a produção de textos que interpretam esses textos. (HINDESS; HIRST, 1976, p. 363).

Essa epistemologia “marxista-estruturalista”, prima-irmã do antirrealismo consignado por Berkhoffer Jr, Jenkins e outros, parte de uma compreensão tacanha da relação cognitiva. Em primeiro lugar, por causa da afirmação de que o passado não pode ser referente das assertivas históricas simplesmente porque já passou. Ora, “ter passado” é condição ontológica daquilo a chamamos “passado”, “pretérito” e o que nos autoriza a conjugar verbos e formular sentenças nesse tempo verbal. Em segundo lugar, a teoria simbólica de Elias já demonstrou, no sentido oposto, que tudo o que existe tem inevitavelmente um lugar no universo simbólico, ou seja, tudo o que é só pode ser, se e quando representado.18 Do quê não decorre mecanicamente que sejam os símbolos que instituem o mundo, que fundam o mundo, muito ao contrário. Como diz Ciro Cardoso, quando absolutizamos a noção de representação, [...] quando ela se torna medida de todas as coisas, ela entra em conflito com o fato óbvio de que não criamos o mundo, mas sim que estamos em um: um mundo físico que indubitavelmente não criamos e que nos precede de quatro bilhões e seiscentos milhões de anos, aproximadamente, e um mundo social que, além de preceder nossos ‘textos’ sobre ele, longe está de ter o seu conhecimento redutível a mero efeito de construções signícas.19

suas premissas é justamente a de que: “O passado já aconteceu. Ele já passou, e os historiadores só conseguem trazê-lo de volta mediado por veículos muito diferentes, de que são exemplos os livros, artigos, documentários. O passado já passou, e a história é o que os historiadores fazem com ele quando põem mãos à obra”. ( JENKINS, 2001, p. 25). 18 Discutirei a perspectiva de Elias mais à frente, neste mesmo capítulo 4.2. 19 Cardoso. “Introdução: uma opinião sobre as representações sociais”. In: Cardoso e Malerba 2000.

narrativa

131

De resto, o argumento antirrealista de Berckhoffer é muito frágil: não dá para se levar a sério uma tal teoria empiricista do conhecimento, segundo a qual só se pode conhecer aquilo que está presente ou para o que se pode apontar. Trata-se de um argumento sem sentido, pois pressupõe a concepção incoerente de que, para os eventos passados serem referentes das assertivas históricas, eles deveriam antes “ser dispostos” na nossa frente como objetos presentes de percepção. O que é um absurdo, pois o passado e os eventos passados podem sobreviver como objetos do conhecimento apenas por meio de evidências de sua existência, as quais se encontram no presente. E tais evidências adquirem sua definição e seu status como evidências apenas se e somente se, elas forem tomadas para se referir a eventos reais, pessoas, instituições, ideias etc., que aconteceram no passado. Aquele argumento, se aceito, levaria a jogar na lata do lixo todo o conhecimento produzido por ciências como a Paleontologia ou a Geologia, cujos objetos igualmente não se apresentam “à frente dos historiadores”. Talvez a melhor resposta que pode ser dada ao ceticismo pós-moderno é a de que a ideia de um passado independentemente real ou atual não se apoia em qualquer teoria e não é uma conclusão filosófica. Ela é, antes, uma exigência da razão histórica e uma necessidade conceitual, autorizada pela memória, bem como implicada na linguagem humana, que inclui sentenças no tempo passado, e é imposta pela ideia de história como uma forma distinta de conhecimento que tem a experiência dos seres humanos no tempo como seu objeto. Negar a existência do passado como algo real a que os historiadores podem se referir e conhecer é, portanto, algo fútil, porque se trata de uma condição essencial da possibilidade da história como campo de conhecimento cientificamente regulado.

Narrativismo A segunda tese fundamental do pós-modernismo é o narrativismo, ou como se possa chamar a tese tropológica, pertence à constelação pós-modernista de ideias porque elimina a distinção entre narrativas históricas e ficcionais, e

132

Malerba, Ensaios

assim nega à historiografia a aspiração de verdade que ela reclama em suas abordagens e representações do passado.20 Enquanto os filósofos analistas da história anteriores ao advento do pós-modernismo, como Morton White, Arthur Danto, W. B. Gallie e Maurice Mandelbaum, depositaram grande interesse no papel das narrativas históricas, suas reflexões não conduziram a qualquer direção cética. O objetivo desses filósofos era primordialmente esclarecer a função das narrativas e mostrar como elas contribuíam para a questão da explicação histórica.21 Inicialmente, a visão narrativista não nega a realidade do passado ou a possibilidade de se dar uma descrição verdadeira de eventos históricos, que podem ser percebidos como simples registro de ocorrências sucessivas na forma de anais. Hayden White questiona, contudo, que, quando os fatos ou eventos são incorporados numa narrativa histórica coerente, eles devem ser encaixados numa estória que tem começo, meio e fim. Tal trama não corresponderia ou representaria a própria realidade dos eventos, que se resume a um mero fluxo contínuo e sem sentido. Os fatos são, para White, estórias coerentes que os historiadores inventariam por meio da linguagem e da retórica, com o fim de dotar a sucessão infinita dos eventos de alguma ordem e sentido. White também sustenta que, na definição dessas narrativas, os historiadores são obrigados, tanto quanto os autores de ficção, a encaixar os fatos de acordo com um ou outro dos principais gêneros literários (comédia, romance, tragédia, ironia ou sátira). Do mesmo modo, ao construir suas narrativas, os historiadores também terão a chance de escolher entre alguns dos principais instrumentos retóricos – ou tropos – tais como a metáfora, a metonímia, a sinédoque, ou a ironia, um dos quais irá predominar na geração das estórias ou interpretações apresentadas.22 “Qualquer conjunto dado de eventos reais”, afirma White, “pode ser exposto de diversos modos, porque os eventos mesmos são carentes de sentido e não Uma abordagem lúcida desse assunto encontra-se em Falcon, “História e representação”. In: Cardoso e Malerba, 2000. 21 Dray, On the Nature and Role of Narrative in History. In: Dray, 1989, que contem uma revisão da discussão da narrativa histórica por filósofos analíticos como Morton White, Arthur Danto e Louis Mink. Entre outros trabalhos seminais de filósofos analistas da história devem incluir-se: Gallie, Narrative and Historical Understanding; Mandelbaum, A Note on HIstory as Narrative e Ely, Mandelbaum on Historical Narrative: a Discussion”, todos incluídos em Roberts, 2001. 22 Cf. propôs em seu clássico Metahistória e em seus livros posteriores como Trópicos do discurso. White, 1992a; White, 1994. Ver Domanska, 1998. 20

narrativa

133

são igualmente intrinsecamente trágicos, cômicos, etc.” Assim, eles “podem ser construídos como tais apenas pela imposição da estrutura de um dado tipo de estória aos eventos” e “que é a escolha do tipo da estória e sua imposição sobre os eventos que os dota de sentido”. Encadear eventos reais numa estória de tipo específico, sintetiza White, é tropear [to trope] esse eventos. Isso porque não há nada como uma estória ‘real’. Estórias são contadas ou escritas, não encontradas. A idéia de uma ‘estória verdadeira’ é uma contradição em termos. Todas as histórias são ficções, o que significa, obviamente, que elas podem ser ‘verdadeiras’ num sentido metafórico e num sentido no qual uma figura de discurso pode ser verdadeira.23

Portanto, a concessão inicial que a tese narrativista faz ao realismo histórico é assim anulada por sua teoria construcionista do trabalho do historiador. Apagando a demarcação entre trabalhos de ficção e narrativas históricas, ela considera as últimas como objetos verbais formalizados que devem ser analisados em termos literários, e descarta o conceito de um passado real e conhecível no qual esse passado e seus possíveis sentidos são vistos puramente como construções tropológicas e literárias.24 Portanto, White sustenta que a tropologia enfatiza a função metalinguística sobre a função referencial do discurso e também redefine as relações entre fato e ficção ao mostrar como os protocolos linguísticos constituem os fatos. Contra tais proposições, bastará evocar a própria história, como no caso do Holocausto, pretexto para a coletânea na qual se insere o texto de White e em que se encontra o contra-argumento de Carlo Ginzburg.25 23 White. Historical emplotment and the Problem of Truth. In: Friedlander (1992, p. 37-53). (traduzido como Enredo e verdade na escrita da história. In: Malerba, 2006) 24 White, 1992a. Cf. a crítica detalhada proposta à tese tropológica por Zagorin, 1998. 25 White. “Enredo e verdade na escrita da história” e o questionamento a suas premissas por Ginzburg, “O extermínio do judeus e o princípio da realidade”, ambos incluídos em Malerba, 2006. As implicações políticas das teses negacionistas foram analisadas por Falcon, no texto acima citado. No mesmo sentido, podemos ainda evocar as objeções lúcidas do filósofo analítico William Dray: “Será que o historiador tem realmente ‘carte blanche’ a respeito de como um conjunto de eventos como o genocídio stalinista dos Kulaks ou o extermínio dos índios americanos deveriam sem postos num enredo? Se ele ‘escolhe’ representá-los como cômicos, aqueles que acham isso inaceitável devem considerar isso como uma simples licença poética ou devem se contrapor a isso como algo moralmente obtuso?”. Dray, Narrative and historical realism. In: Dray, 1989.

134

Malerba, Ensaios

Também é questionável a tese de White de que não há sentido nos próprios fatos históricos, ao menos por uma razão: porque nem as percepções humanas individuais ordinárias, nem as ações coletivas geradas e sofridas em sociedade são mera experiência caótica, mas consistem naturalmente de configurações estruturadas e dotadas de sentido, como já provou David Carr.

Enfrentamento teórico do argumento antirrealista Alguns autores já enfrentaram a espinhosa tarefa de refletir sobre a relação entre a narrativa e os fatos que ela descreve. Questão ainda mais espinhosa quando se tratam de fatos culturais. Neste caso particular, de acordo com John R. Bowling e Peter Stromberg, são duas questões básicas: uma reside no campo epistemológico, da teoria do conhecimento. Nós podemos ou não pretender que o conhecimento que produzimos sobre o mundo refere-se a esse mundo, seja ele o que for? A outra questão nos traz para um patamar inferior de problema, que diz respeito aos obstáculos que essa mesma questão nos impõe quando o mundo a que desejamos conhecer é o social. Isso leva ao campo das representações como objeto do conhecimento nas Ciências Humanas. (BOWLING; STROMBERG, 1997). Que relação existe, pois, entre a narrativa e os fatos que descreve? Entre a intriga histórica e o passado que ela evoca? Entre os conceitos históricos e o mundo em devir que eles querem explicar? Estas questões, que evocam o debate epistemológico sobre veracidade (ou não) das explicações em forma de um relato, como no caso dos textos históricos, foram levantadas por eminentes teóricos.26 Talvez a resposta mais articulada contra a tese que reivindica uma ruptura absoluta entre o discurso histórico e o “mundo real” seja aquela oferecida por David Carr, que afirma que, longe de deformar os fatos que relata, a narrativa prolonga seus traços fundamentais. Em outras palavras, existiria sim uma comunidade formal de características entre a narrativa e a realidade humana, tanto a individual quanto a coletiva.27 Porém, não vou aqui 26 Como enuncia Ciro Cardoso, trata-se de se verificar se a história produz textos científicos ou, meramente, textos da mesma ordem dos da literatura ficcional. Cardoso, 1998. 27 Carr, 1986; Carr, Getting The Story Straight: Narrative and Historical Knowledge. In: Topolsky,

narrativa

135

resgatar os argumentos de David Carr, o que o professor Ciro Cardoso fez com propriedade em outro lugar. (CARDOSO, 1998). Meu anseio é acrescentar algum elemento novo de reflexão, equacionando a articulação entre o conceito histórico e aquilo a que ele se refere a partir do conceito de habitus formulado por Pierre Bourdieu e de algumas sugestões extraídas da teoria simbólica de Elias.

Conceito e realidade em Bourdieu Em primeiro lugar, pretendo não me perder na extensa obra de Bourdieu, na qual seus conceitos foram paulatinamente elaborados e reelaborados, de modo a ganhar acepções diferenciadas ao longo da formulação de sua complexa teoria da ação. Em vez disso, quero chamar a atenção para um ponto específico sobre a constituição do habitus, que está bem presente em sua obra sobre a “distinção”. (BOURDIEU, 1984; 1996a, 1996b). Ao pensar a relação entre espaço social e espaço simbólico, Bourdieu parte da premissa de que o real é relacional. Essa concepção relacional explicita de imediato o tripé teórico que fundamenta toda sua arquitetura conceitual: a relação entre as posições sociais, definidas dentro de um campo, e que é um conceito relacional; as disposições consoantes a esses campos, ou o que ele chama de habitus; e as tomadas de posição ou as ações práticas movidas pelos agentes numa situação social concreta: O próprio título do trabalho assinala que o que comumente chamamos de distinção, uma certa qualidade, mais freqüentemente considerada como inata, de porte e de maneiras, é de fato diferença, separação, traço distintivo, resumindo, propriedade relacional que só existe em relação a outras propriedades. (BOURDIEU, 1996a, p. 18).

Essa ideia da diferença funda-se numa noção de espaço, entendido como conjunto de posições distintas e coexistentes e mutuamente exteriores, que assinalam relações de proximidade, vizinhança, distância ou outras relações 1994. Dentre os esforços mais eficazes na articulação teórica entre narrativa e realismo histórico devem ser lembrados: Dray, Narrative and Historical Realism. In: Dray, 1989; Norman, 1991. Todos esses textos foram compilados por Geoffrey Roberts, 2001. Ver também Kuzminski, 1979.

136

Malerba, Ensaios

de ordem, como “acima, abaixo, entre [...]”. O espaço social constrói-se com base em dois princípios de diferenciação: o capital econômico e o capital simbólico. As distâncias e proximidades observam esses dois vetores. Esse quadro das posições sociais conforma um outro, de tomadas de posição, mediada pelas disposições, ou o habitus, em duas palavras, as práticas sociais e os bens que se possui. A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo. (BOURDIEU, 1996a, p. 18).

É o habitus que dá conta dessa unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes “O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.” (BOURDIEU, 1996a, p. 18). Assim como os habitus são diferenciados de acordo com a posição no campo, são igualmente diferenciadores; por distintos, tornam-se distinguidos e operadores de distinção. São os habitus os geradores de práticas distintas e distintivas; conformam esquemas classificatórios, princípios de classificação, de visão de mundo e de (di)visão social. O que nos interessa mais diretamente em Bourdieu é seu entendimento de linguagem, que é oposto ao da linguística estruturalista. Para Bourdieu, ao conformar categorias de percepção e de comunicação, os habitus transformam-se em linguagem. Os diferentes códigos, particularmente associados às maneiras, estabelecem separações diferenciais, tornam-se “signos distintivos”. O melhor exemplo que se pode evocar desses signos distintivos é o do “consumo conspícuo” das sociedades de corte de que falam Veblen e Elias. (VEBLEN, 1951; ELIAS, 1987). Mas aí está a questão: uma diferença só se torna uma diferença, visível, perceptível, conspícua, se ela é percebida por alguém dotado de instrumentos cognitivos que o tornem apto a percebê-la, a estabelecer a diferença, alguém dotado dos códigos necessários para isso que, portanto, não seja “indiferente à narrativa

137

diferença”, que seja dotado de categorias de percepção, esquemas classificatórios, conceituais, de um gosto, enfim, que lhe permita estabelecer a diferença, distinguir, discernir. Portanto, a distinção pressupõe a disseminação de um conjunto de códigos interiorizados, de uma linguagem comum aos agentes no espaço social. Este é o ponto a que eu quero chegar e, talvez, avançar uma hipótese. Um ponto que me parece central na definição do conceito de habitus de Bourdieu é o de que a realidade (social) configura aqueles instrumentos de percepção por meio dos quais o indivíduo vai acessar e processar essa mesma realidade. Duas breves passagens podem explicitar melhor esse ponto. A representação que o indivíduo faz jamais é uma abstração, mas uma elaboração conceitual cujos instrumentos cognitivos usados para sua percepção e processamento foram estabelecidos pela inserção mesma desse indivíduo em sua realidade circundante. Diz Bourdieu: Pode-se mesmo explicar em termos sociológicos o que aparece como uma propriedade universal da experiência humana, isto é, o fato de que o mundo familiar tende a ser considerado evidente, percebido como natural. Se o mundo social tende a ser percebido como evidente [...] é porque as disposições dos agentes, seu habitus, isto é, as estruturas mentais mediante as quais apreendem seu mundo social, são essencialmente o produto de uma internalização das estruturas do mundo social. (BOURDIEU, 1990, p. 131).

E em outro lugar: O habitus é não somente uma estrutura estruturante, que organiza as práticas e a percepção das mesmas, mas também uma estrutura estruturada: o princípio da divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, ele próprio, produto da interiorização da divisão em classes sociais. (BOURDIEU, 1984, p. XIII ).

Ou seja, diversamente do que propõe a concepção estruturalista da linguagem, que nutre a epistemologia pós-moderna, a constituição de uma língua, por meio da qual representamos o mundo (social inclusive), é um processo eminentemente histórico e social e o sujeito do conhecimento é sempre coletivo. Os signos, conceitos e discursos sobre o mundo não são jamais arbitrários, mas formulados a partir de um conjunto de 138

Malerba, Ensaios

determinantes sociais que são interiorizadas pelo indivíduo, a partir das quais ele constrói as lentes (os conceitos) com os quais apreende (percebe, classifica, narra) o mundo. Assim, os indivíduos, seres eminentemente sociais, observam, descrevem, classificam e narram a realidade. Porém, para fazê-lo, estamos equipados com instrumentos cognitivos elaborados do contato com a própria realidade e com os quais nos assenhoreamos intelectualmente dela. O sujeito histórico (individual e coletivo) não deturpa o mundo real ao enxergá-lo, por exemplo, cindido em classes sociais, castas ou estamentos, pois as clivagens sociais, as estratificações desse tipo são, no mundo social, motivo pelo qual o indivíduo consegue classificá-lo dessa forma.

Conceito e realidade na teoria simbólica de Elias Uma analogia entre essa função ou propriedade do habitus percebida por Bourdieu e o conceito de representação proposto na teoria simbólica de Norbert Elias poderá ser interessante para tentarmos (re)ligar o discurso ao mundo real.28 que foram separados pelos pós-modernos. Para se compreender as representações (entre elas as narrativas históricas) e resolver o problema da verdade no conhecimento, afirma Elias, é preciso superar um hábito que condiciona nosso pensamento, o da separação entre “real” e “abstrato” – aquilo a que Elias chamou ironicamente de “o bicho da maçã da modernidade”. Sabemos como desde o início da era moderna a ciência se impôs como a via mais eficaz de acesso à realidade,29 à verdade e à natureza. Sua concepção de processo do conhecimento – ainda hoje dominante –, no entanto, baseia-se na separação entre o sujeito do conhecimento e seu objeto. Assim, temos inculcado em nossa própria representação do que seja o ato conhecimento, que seu produto – a ideia, o pensamento, o conhecimento – seja algo “imaterial”, abstrato, falaciosamente referido a algo que seja Ousei uma analise comparativa dessas duas matrizes teóricas em Malerba, Para uma teoria simbólica: conexões entre N. Elias e P. Bourdieu. In: Cardoso e Malerba, 2000, que constitui o último capítulo deste livro. Toda linha de raciocínio a seguir apoia-se fartamente em Elias, 1994b. 29 Cf. os trabalhos de Boaventura de Sousa Santos citados supra. 28

narrativa

139

concreto, natural. Portanto, nossa concepção de processo cognitivo baseia-se até hoje na separação radical entre homem e natureza ou “cultura” e natureza.30 Elias propõe que devemos superar essa atitude gnosiológica, transformar nossa aparelhagem cognitiva para podermos transcender a maldita dúvida cartesiana, da possibilidade ou não de acesso a um suposto mundo “exterior”. Essa separação é baseada na ideia de homem fechado em si mesmo, do homo clausus leibziano, que se depara com um mundo que lhe é estranho e começa a conhecê-lo a partir de um ponto zero.31 Essa concepção está na base da teoria pos-moderna da história. Tentemos sintetizar as ideias de Elias. Em primeiro lugar, é preciso considerar que não existe conhecimento que não seja socialmente adquirido. O ato do conhecimento funda-se num complexo, que liga linguagem, conhecimento, memória e pensamento. Se aceita essa nova proposição, o problema da verdade e da representação do mundo se equaciona de uma maneira renovada. (ELIAS, 1989, passim).

Elias parte da constatação óbvia de que qualquer ser humano torna-se plenamente humano ao aprender uma língua – o que acontece geralmente na sua primeira infância, quando dizemos que a criança está aprendendo a “falar” – uma língua obviamente falada por outros antes dela nascer.32 Não existe uma “língua individual”, ela só se concretiza no ato de transmissão das 30 Um artigo seminal, que antecipa todos os trabalhos de cunho epistemológico e teórico de Elias, como seu Sobre el tiempo, a “Transformação no equilíbrio nós-eu”, Engagement et distanciación ou sua Teoria simbólica, é Elias, 1971a e Elias, 1971. Naquela primeira parte, fica desde já anunciado o entendimento de Elias do conhecimento como um processo de longo termo, baseado na transmissão socializada dos códigos culturais de geração em geração. Ver também Elias, 1989; 1993; Elias, 1993a. 31 Sua discussão e crítica sobre o ato cognitivo na postura tradicional encontram-se em muitos trabalhos. Ver Elias (1993, p. 79-80) e a “Introdução à edição de 1968”, que se encontra anexa à edição brasileira de O processo civilizador; uma história dos costumes (ELIAS, 1990). Particularmente, são muito instigantes as sugestões de se pensar, numa atitude que antecipa um pouco a postura multiculturalista, a ciência enquanto forma de conhecimento com um mesmo estatuto que outras formas. Nesse sentido, “não existe a ciência separada da não ciência e o processo científico não se produz independentemente de outros processos de conhecimento da sociedade”. Para ter-se uma abertura a esse tipo de sugestão, é preciso consentir que o conhecimento não é produzido por indivíduos isolados, e, mais que isso, que o conhecimento é um processo cumulativo na longuíssima duração. Elias, 1972. Ver também Malerba, Sobre Norbert Elias. In: Malerba, 1996. 32 Elias (1994, p. 22). Essa discussão é retomada em diversos outros ensaios, como em La soledade de los moribundos: “Todo ser humano se vincula a otros desde la temprana infancia aprendiendo a utilizar, como médio de emisión y recepción de mensajes, um código de símbolos específico de um determinado grupo, o dicho em otras palabras: uma lengua”. Elias (1989a, p. 69).

140

Malerba, Ensaios

mensagens que acontece sempre envolvendo, no mínimo, um emissor e um receptor. As línguas têm uma força vinculativa em relação a seus usuários e não existe sem eles: não há uma língua extra-humana, metafísica – ou natural, como desejaram os estruturalistas. Para serem operativos enquanto língua, os padrões sonoros devem ser compreendidos por outros seres humanos para além de um indivíduo emissor de mensagens. Ou, como diz Elias, “a força de uma língua tem sua raiz no fato de representar um cânone unificado de fala que deve ser observado por todo um grupo, a fim de manter a sua força comunicativa”. O signo arbitrário e inato dos pós-estrturalistas cai por terra aos pés da teoria simbólica de Elias. Os seres humanos foram os únicos do planeta que criaram meios de comunicação e orientação padronizados e que variam de grupo humano para grupo humano dentro da espécie. Devido a sua constituição biológica, os seres humanos estão preparados para a aquisição de uma língua por meio da aprendizagem individual a partir de uma idade bastante precoce, mas não nascem dotados de uma língua. São dotados naturalmente para aprender uma língua, mas só o fazem com o contato com outras pessoas do seu grupo social, inicialmente em geral dentro da família.33 De fato, Elias argumenta muito convincentemente que as línguas são um dos principais caminhos que unem a natureza e a sociedade ou a cultura. Toda criança saudável atravessa um processo de maturação geneticamente predeterminado, isto é, natural, que a habilita a começar a aprender a comunicar com outros seres humanos a partir dos padrões sonoros específicos de uma língua. As ondas sonoras emitidas e recebidas no ato da comunicação são dados naturais ou, como se usa na academia, dados físicos. A sua articulação, que lhes confere a forma de linguagem mediante do aparato vocal e auditivo em desenvolvimento (um aspecto biológico do ser humano), é produzida socialmente por meio do processo de aprendizagem. Este é um exemplo do entrelaçamento da maturação natural da evolução biológica com o desenvolvimento social, da unicidade entre natureza e cultura. No longuíssimo prazo, biológico, os seres humanos superaram os meios de comunicação não Elias (1993, p. 101). Em Elias, 1971, aponta-se para esse equívoco, que também é reproduzido pelos próprios cientistas: “Yet specialists for a sociology of knowledge usually attempt to build up general theories only from the evidence about the more subject-centred, more emotive non-scientific knowledge of society. Take into consideration equally subject-centred and emotive non-scientific types of knowledge of nature. The fact that the later too have many characteristics, and are in fact a specific type of what we today call ‘ideology’ scapes to them. They are probably misled by the very sharp classificatory division between these two fields of our eye, between ‘nature’ and ‘society’, which almost makes it appear as if these two fields had a separate and independent existence”. 33

narrativa

141

verbais para elaborarem símbolos cada vez mais complexos de orientação e de comunicação.34 A aprendizagem da língua é um elemento fundamental para chegarmos ao ponto que nos interessa. Para aprender uma língua – para aprender a falar –, o equipamento orgânico da criança tem de ser estandardizado dentro dos padrões sonoros do grupo em que ela nasceu. Quem nasce no Brasil falará português, e isso é um fato. Portanto, diferentemente dos outros animais, quando a criança aprende uma língua, ela recebe junto com ela todo um fundo social de conhecimento do universo em que se encontra, ao qual se acrescerá por certo sua própria experiência de vida. O processo de aprendizado de uma língua ilustra bem a falácia da imagem que herdamos da separação ontológica entre “natureza” e “cultura”.35 Nosso equipamento cognitivo tem um vício que precisa ser superado, o de reduzir processos a condições estáticas e antitéticas.36 Assim fizemos com o ser humano, dividindo-o em duas entidades ontológicas separadas, uma concreta, visível e seu oposto, uma outra abstrata e intangível. É o que ocorre com a separação entre corpo e alma, ou matéria e espírito ou ainda ser e consciência – ou a história e o discurso sobre ela. Mas, lembra Elias, nenhuma antítese pode representar de modo adequado seu objeto sem uma síntese complementar, e que seja uma síntese processual. Assim acontece com o falso binômio natureza/cultura, ou sobre história/discurso. Não temos ainda uma teoria que dê conta de uma síntese em que encontremos os homens dentro de 34 Elias, 1971a, Elias define sinteticamente a representação simbólica do sujeito coletivo do conhecimento: “To show this, to insist on the social character of knowledge, is the great merit of a sociological study of knowledge. As it has not been stated before explicitly and unumbiguously, it may as well be stated here: the greater potential objected-adequacy of a sociological theory of knowledge compared with a philosophical theory of knowledge is essentially due to the different symbolic representation of the subject of knowledge characteristic of the two types of theories. In the one case the subject is what we symbolically represent as ‘society’ or, to make its dynamic character more visible, the continuous stream of figurations which human beings form with each other”. 35 Elias (1993, p. 163), Elias, 1971. Esse tema é também retomado em Elias, Sociology ad Psychiatry In: Foulkes e Price, 1969, particularmente p. 158-159, no qual retoma a distinção conceitual tênue entre fantasia e realidade e a importância da linguagem na socialização dos indivíduos. 36 Uma discussão do porque está em baixa nos últimos tempo a aceitação de modelos sociológicos processuais, frente à profusão de modelos estáticos fundados na estrutura e função, encontra-se em Elias, 1987a. Este número de Theory, Culture and Society é especialmente dedicado à obra de Elias, todo por subtítulo “Norbert Elias and the Figurational Sociology”.

142

Malerba, Ensaios

um único e mesmo longo processo de evolução do universo: ao mesmo tempo astronômico, biológico e social.37 Por isso, tendemos a ignorar o fato de que o uso de uma linguagem e, num sentido mais amplo, o uso, a manipulação e o armazenamento de um grande número de símbolos pressupõem um equipamento biológico que exigiu milhões de anos de evolução. Sobretudo, tendemos sempre a ignorar que a própria sociedade é um nível de integração da natureza. E temos a sensação de que a natureza, e principalmente a sociedade e a história, se esgotam nas formulações discursivas que sobre elas elaboramos. Esse é o grande diferencial dos seres humanos em relação aos outros seres deste planeta. Nós produzimos padrões sonoros que servem como símbolos para coordenar atividades ou para designar acontecimentos. (Deixemos fora dessa discussão a questão fundamental do poder de que se investem aqueles que classificam ou denominam).38 Pela nossa competência de enviar e receber mensagens codificadas na forma de uma língua, temos acesso a uma dimensão do universo que é exclusivamente humana. Aquela a que Elias chamou, para além das quatro dimensões do espaço-tempo, a quinta dimensão, a dos símbolos. Aqui chegamos a um ponto de dispersão, de confusão. A troca linguística (pois não existe língua de um indivíduo só!) ocorre sempre entre pessoas que vivem dentro de uma comunidade linguística. Tudo o que os membros dessa comunidade podem experimentar e comunicar a outros membros encontrase localizado no interior da língua. Ela representa o mundo inteiro tal Em Teoria simbólica (ELIAS, 1994b, p. 97) encontrei a única menção de Elias ao que ele denominou de “a biogênese do uso dos padrões sonoros socialmente estandardizados como símbolos que podem ser compreendidos no interior de um mesmo grupo lingüístico [...]”. A biogênese seria um processo evolutivo de longuíssima duração diante do qual os processos de sociogênese e psicogênese - que levou à diferenciação funcional das sociedades contemporâneas (baseadas no alto grau de autocontrole das pulsões dos indivíduos e na formação de agências centralizadas de monopólio da violência) - , seriam uma última etapa recentíssima. Elias, 1993a, sobretudo o brilhante ensaio inconcluso “Pensées sur la Grande Évolution”. Uma discussão do porque está em baixa nos últimos tempos a aceitação de modelos sociológicos processuais, frente à profusão de modelos estáticos fundados na estrutura e função, encontra-se em Elias (1987a, p. 223-249). Este número de Theory, Culture and Society é especialmente dedicado à obra de Elias, tendo por subtítulo “Norbert Elias and the Figurational Sociology”. 38 Elias pensa detidamente essa questão entre conhecimento e poder (desde a alfabetização até a detenção do monopólio do conhecimento por uma agência centralizada de tipo estatal) em uma entrevista homônima concedida a Peter Ludes. Elias. Conocimiento y poder. In: Conocimiento y poder. Júlia Varela. Madrid: La Piqueta, s/d. Sobre o poder de nominar, ver Chamorro Arguello, Teologia e Representação: uma aproximação ecofeminista do monoteísmo. In: Cardoso e Malerba, 2000. 37

narrativa

143

como ele é experimentado pelos membros dessa comunidade. Tudo o que é conhecido, o é pelo nome que os homens atribuem. Como diz Elias, “a ocorrência inominada é aterradora”. Se os símbolos de uma língua não fossem minimamente congruentes com a realidade, com os dados que eles pretendem representar, os seres humanos não poderiam sobreviver. Esse ponto é central na teoria simbólica de Elias. A relação entre os símbolos sonoros e aquilo que eles representam está irremediavelmente atrelada à sua função social como meio de orientação e de comunicação: permitem às pessoas diagnosticarem objetos e fenômenos particulares, determinar sua natureza e seu lugar no universo e discutirem entre si sobre objetos específicos na ausência destes. A constatação de que os seres humanos estão sempre dependentes dos símbolos para orientar-se e comunicar socialmente pode levar à ideia de que nada existe fora dos símbolos, do discurso. Nada mais falacioso. Claro que é perfeitamente possível se distinguir entre o modo de existência e o modo de representação das coisas. Mas o fato de os seres dependerem dos símbolos para sua orientação no mundo – assim como dependem da história para sua orientação no tempo – não implica que os objetos e os fenômenos dependam dos seres humanos representá-los para que ganhem existência.39 Aqui localizamos os pontos de convergência entre o conceito de habitus de Bourdieu e a teoria simbólica de Elias no que concerne à articulação entre realidade e conhecimento, válida plenamente para a articulação entre narrativa e história, ou entre narrativa e o mundo real. Assim também é para Elias que uma língua, no ato da comunicação entre um emissor e um receptor, representa simbolicamente o mundo tal como é experimentado pelos membros de uma sociedade na qual ela é falada. Essa língua é portadora do fundo social de conhecimento, do conjunto de experiências sintetizadas historicamente, ao longo do tempo, pela comunidade linguística que a utiliza. Essa língua, que 39 Em A sociedade dos indivíduos Elias faz uma longa discussão sobre a necessidade da fantasia e da magia nas sociedades humanas. Desde priscas eras ela serviu para aliviar aos seres humanos do peso de sua incapacidade para controlar determinados fenômenos que, de outra maneira, não seriam capazes de controlar, como a fertilidade ou não dos solos e dos rebanhos, as intempéries (raios, inundações), epidemias e outras forças da natureza que afetavam diretamente sua vida. “A magia”, diz Elias, “através de pensamentos e ações e ações imaginárias, ajuda os seres humanos a atenuarem a insuportabilidade de uma situação em que como crianças se vêm entregues a forças enigmáticas e incontroláveis”. (ELIAS, 1993, p. 98-99). Tal esfera da sociabilidade humana é muito marcante nas atitudes das diversas sociedades diante da morte e para com seus moribundos. Ver também La soledade de los morimbundos. (ELIAS, 1989a).

144

Malerba, Ensaios

é plástica, que é também histórica, constitui-se no principal instrumento de comunicação e orientação no mundo dos indivíduos que a praticam. Essa língua, por fim, cria-se e recria-se para representar o mundo cósmico, social conforme a experiência de sua comunidade praticante ao longo de sucessivas gerações. É no universo da experiência, do mundo histórico (diria Dilthey), que os homens se tornam capazes de formular conceitos para compreender e narrar (e dominar, porque não?) esse mesmo mundo. Entendendo então que os conceitos são sociais, coletivos – e históricos –, Elias parte para uma crítica à gnosiologia tradicional, que nos legou o modelo básico do ser humano individual, portador de uma consciência que lhe serve de “janela” para o mundo, que separa sujeito e objeto do conhecimento. Ora, já vimos que a aquisição do conhecimento é um ato social, já que não existe sujeito individual da comunicação. Portanto, um sujeito não cria conhecimento por “abstração” e não é um ponto de partida, o início do ato do conhecimento. Os conceitos não são nem concretos nem abstratos, mas representam níveis diferentes, capacidades diferentes de síntese daquilo que podem experimentar da realidade. Daí a existência dos discursos em litígio. Tudo isso conduz à possibilidade de questionamento da opção pósmoderna por suprimir a experiência do tempo na construção e análise do discurso sobre o tempo. Subvertendo o axioma pós-moderno, digamos que os mundos históricos constroem seus discursos múltiplos de si, mas que em hipótese alguma esses mundos históricos se encerram nesses textos do tempo. Em seguida, procurarei reforçar a importância da vinculação entre realidade e narrativa a partir de um fundamento da própria teoria da história proposta por Rüsen, que estabelece a vinculação entre vida prática e conhecimento histórico (e suas formas de apresentação – suas narrativas), como que ampliando o círculo hermenêutico de Ricouer.40

40 Inspirou-me essa analogia entre Ricœr e Rüsen a conferência proferida pelo Prof. José Carlos Reis no I Colóquio de História da Historiografia e Teoria da História, realizado na Universidade Federal de Juiz de Fora em agosto de 2006.

narrativa

145

Conceito e realidade no conhecimento histórico Nesta seção, pretendo oferecer mais um argumento em favor da continuidade entre narrativa e mundo real, agora a partir das discussões de um fundamento do pensamento histórico. Para tanto, é mister pensar teoricamente, no sentido proposto por Rüsen, de que a teoria é sempre uma metarreflexão, um pensar sobre o pensamento histórico. E a questão inicial deve ser: como surge a consciência da história? Autores de orientações as mais diversas como Agnes Heller, Reinhardt Koselleck ou Jörn Rüsen, concordam que a consciência histórica nasce a partir da experiência que os seres humanos têm do tempo.41 A experiência do tempo e a procura da autoidentidade são a origem da consciência histórica, que esses autores entendem como “fenômeno do mundo vital”, ou seja, como uma forma da consciência humana que está relacionada imediatamente com a vida humana prática, com a existência atual, com a experiência histórica, ou como se quiser chamar. Assim como, de acordo com a teoria simbólica de Elias, a linguagem é um meio de orientação e de comunicação dos seres humanos no mundo, estes precisam da história também como um meio de orientação, precisam situar-se no tempo para guiar sua ação com vistas à sua sobrevivência. E como a história o ajuda? Diz Rüsen: O homem precisa estabelecer um quadro interpretativo do que experimenta como mudança de si mesmo e de seu mundo, ao longo do tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal, ou seja, assenhorear-se dele de forma tal que possa realizar as intenções de seu agir. [...] A consciência histórica é o modo pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção do tempo se realiza no processo da vida humana. Ou seja, a consciência histórica é modo como o homem constitui de sentido a experiência do tempo. (RÜSEN, 2001, p. 54, grifo nosso).

E porque os homens têm essa necessidade de orientação no decurso temporal? Em função da ameaça perturbadora da contingência, do imprevisto, do acaso, que subverte uma ordem necessária à tomada da ação na vida prática, impedindo qualquer possibilidade de previsibilidade do futuro a partir do qual indivíduos (ou grupos) consigam se orientar corretamente para uma tomada de ação. 41

146

Heller, 1997; Koselleck, 1993; Rüsen (2001, p. 129).

Malerba, Ensaios

Esse é o ponto de partida do quadro interpretativo de todo o processo de constituição do pensamento histórico em Rüsen, especificamente da construção da história como ciência.42 Enfim, não há outra forma de pensar a consciência histórica: ela é a instância em que o passado é levado a falar – e o passado só vem a falar quando questionado; e a questão que o faz falar se origina da carência de orientação da vida prática atual, real, diante das violentas experiências dos homens no tempo. E a consciência histórica “fala”, manifesta-se, particularmente no caso desta forma peculiar de consciência histórica que é a história como ciência, em construções narrativas. Por isso, assim como a consciência histórica, a narrativa, como forma de apresentação, se constitui num fundamento do conhecimento histórico. A narrativa constitui a consciência histórica ao representar as mudanças temporais do passado, rememoradas no presente como processos contínuos nos quais a experiência do tempo presente pode ser inserida interpretativamente e extrapolada em uma perspectiva de futuro. (RÜSEN, 2001, p. 63).

Essa interdependência íntima entre passado, presente e futuro é concebida como uma representação da continuidade, para que, com ela, os homens consigam formular um quadro interpretativo de sua trajetória que os guiem na tomada de ação no presente, que possam orientar-se na sua vida prática atual. Seria um equívoco, portanto, entender por consciência histórica apenas uma consciência do passado: o passado só se torna inteligível, só se torna história, porque possui uma relação estrutural com a interpretação do presente e com a expectativa ou projeto de futuro. Assim, acionando memória da experiência passada e um horizonte de expectativa comum, os homens constituem sua identidade como grupo para orientar sua ação no presente por meio da construção de uma narrativa histórica comum.43 Isso se encontra tanto em Rüsen como em Koselleck. Cf. o diagrama elaborado por Rüsen (2001, p. 35). “A consciência histórica constitui-se mediante a operação, genérica e elementar da vida prática, do narrar, com a qual os homens orientam seu agir no tempo. Mediante a narrativa histórica são formuladas representações da continuidade da evolução temporal dos homens e de seu mundo, instituidoras de identidade, por meio da memória, e inseridas, como determinação de sentido, no quadro de orientação da vida prática humana”. (Idem, p. 65). A relação entre construção da memória e identidade foi formulada numa perspectiva hermenêutica por Paul Ricœr, 2000; Ricœr, 1994-96. 3. t 42 43

narrativa

147

Portanto, seja como for que a consciência histórica penetre no passado, o impulso para esse retorno, para esse resgate do passado, é sempre dado pelas experiências do tempo presente. É a inserção dos seres humanos na história e sua necessidade prática de orientação no decurso do tempo que os faz representar sua percepção desse movimento numa narrativa histórica. Então, diferentemente do que postulam os pós-modernos, podemos entender que não é o discurso que institui ou funda ou cria o mundo, mas a experiência prática da vida humana no mundo que estabelece a necessidade da constituição de um quadro interpretativo do movimento histórico, que funda a consciência histórica e suas formas de apresentação.

*** Duas palavras finais Depois de tudo o que já se escreveu, alguém ousa vir a público dizer que existe algo como uma realidade e, pior, que ela pode ser conhecida por meio de procedimentos racionais. Cabe aqui uma relativização. Eu tenho a tranquila convicção de que, por um lado, nem o conhecimento pode ser estritamente racional e, por outro, a realidade não é um dado. Quanto à primeira questão, já os filósofos da vida, como Dilthey, procuraram mostrar que o ser humano é um complexo de razão, imaginação, intuição, criatividade, instinto e que o conhecimento do seres humanos só poderia ser feito com êxito se todas essas características formadoras do gênero humano entrassem no cômputo do processo cognitivo. Isso é um ponto pacífico para mim. Porém, se desse conjunto de instâncias cognitivas, nós privilegiarmos todas as últimas em detrimento da razão, estaremos renegando aquilo que nos diferencia de todo o resto da criação; aquilo que faz deste homo, sapiens. Por outro lado, acredito que a história tem algo a mais a oferecer à sociedade do que deleites estéticos, uma função a mais que o prazer dionisíaco. A história tem que buscar compreender porque os serem humanos agem historicamente do modo como agem, para explicar os acontecimentos e processos que os envolvem. Também aqui, é claro que os seres humanos não agem apenas movidos pela razão. Os sentimentos, as paixões, os traumas, as

148

Malerba, Ensaios

taras e tudo mais que há de pulsão instintiva, de irracional, movem a ação humana. Porém, se continuarmos a aceitar que tudo, menos a razão, está presente nas tomadas de decisão, nas ações humanas, estaremos nos omitindo em relação a um aspecto fundamental da realidade. O massacre de Qana que gerou aquela foto do bebê em pijamas não é apenas uma explosão de ódio de um dirigente judeu; assim como a invasão do teatro de Moscou ou da escola de Beslan pelos tchechenos. O ataque contra a sociedade empreendido pelo crime organizado em São Paulo; enfim, todos esses atos não se devem atribuir a “monstruosidade” dos líderes ou de seus agentes. Acima de tudo, todas aquelas pessoas que sofreram esses acontecimentos, que foram suas vítimas, porque morreram ou tiveram de enterrar seus filhos, não são meros efeitos do discurso. Eu não tenho a menor dúvida sobre o poder de criação e de destruição do inefável, do não dito, da tara e da paranoia, da poesia e da arte, do amor e do ódio, do discurso e do silêncio como potências geradoras de ação e omissão de pessoas e povos sobre povos e pessoas. E não tenho dúvida de que tudo isso move a história - sem curso, sem sentido nem direção, sem fim -, assim como gera o (dis)curso sobre si mesma, o discurso da história sobre si mesma. Mas entendo que tudo aquilo - o inefável, o não dito, a tara e a paranoia, a poesia e a arte, os sentimentos e até o discurso - são na história, no real. O problema é mirar todo foco, é cingir toda análise só àqueles elementos “irracionais”, a tal custo que se suprima o curso - os interesses, as razões, os conluios, as maquinações - e só se deixe no lugar o discurso. Se deixarmos de entender que as ações o dirigente judeu, do líder hisbollah, do ditador africano, do líder do PCC são movidas apenas pelo que há de irracional, intuitivo, passional, instintivo no ser humano, estaremos aliviando a esses agentes do terror toda culpa e todo dolo das ações que moveram. Eu me volto, então, para a necessidade do aprimoramento de uma teoria da ação e da teoria da história que a incorpore. E minha fé me leva a crer que o habitus faz o monge e funda as religiões e tiranias de todo espectro. Retomando as questões levantadas no preâmbulo, sobre como nós historiadores nos posicionamos diante de uma realidade tão avassaladora, tão perversa, como respondemos a ela; e retomando a hipótese formulada de que temos oferecido poucas respostas, em função do próprio cenário intelectual vigente em nosso tempo, eu avanço na resposta. O discurso da fragmentação do real e de sua inacessibilidade, sustentada pelos teóricos da pós-modernidade,

narrativa

149

desvela a adesão desse discurso ao próprio projeto político que suporta essa pós-modernidade, cuja expressão macroeconômica é a do (neo?) liberalismo globalizado, que necessita de um mundo cindido em individualidades ególatras que se entendam incapazes de agir coletivamente e tomar o destino do planeta em suas mãos.44 No plano do conhecimento, um artifício eficaz para isso é isolar discurso e realidade, chegando mesmo a anular a existência desta última. A fixação do conhecimento dentro dos limites do discurso não deixa de ser uma atitude escapista, evasiva da realidade, que é virulenta e ameaçadora. Mas, se um território muito mais seguro, porque enquadrado e controlável, a opção pelo discurso desvinculado da realidade não deixa de ser, igualmente, uma posição submetida, submissa ao status quo, portanto, conservadora. Enfim, para terminar com uma assertiva provocadora, a história existe, como resultado do conflito de interesses e ações complexas dos indivíduos em seus grupos; o conhecimento desse processo de transformações de si e do mundo a que chamamos história é possível, não deixando-se de fora o que há no sujeito do conhecimento de tudo o que lhe constitui como ser humano (imaginação criadora, instinto, paixão...), mas “controlando” racionalmente o processo do conhecimento. A história existe e pode ser conhecida, como vem sendo feita cada vez mais e melhor. O resto é discurso.

44

150

Não se trata aqui, obviamente, de exumar projetos coletivistas falidos como o socialismo “real”.

Malerba, Ensaios

historiografia:

conceito e prática

Reflexões iniciais As ideias que procurarei problematizar a seguir são fruto de um investimento de pesquisa de anos, no campo da teoria e da história da historiografia, que foram agora sistematizadas com vistas à elaboração de um novo projeto de pesquisa, o qual orientará minhas investigações nos próximos anos. A pretexto de investigar a história da historiografia brasileira sobre nossa emancipação política, pretendo historiar a evolução da disciplina “história” no Brasil. Primeira pergunta: por que a Independência? Por que o tema da Independência atravessou, vigoroso, duzentos anos de história do Brasil. A respeitar as periodizações tradicionais, forjadas no oficialismo monárquico do IHGB e acatadas pela crítica especializada posterior, de Varnhagen a José Honório, a historiografia brasileira teria tido um ato fundador com a edição do primeiro volume da Revista do Instituto Histórico e geográfico Brasileiro, em 1839.1 Ora, a Independência, no sentido restrito da emancipação política da América portuguesa frente à metrópole europeia, golpe derradeiro no que Fernando Novais consagrou conceitualmente como Antigo Sistema Colonial, é cronologicamente anterior à própria instauração oficial da historiografia. Foi sob o império dos Bragança que se produziu a opus magna da Independência do Brasil, da pena de um dos maiores historiadores brasileiros de todos os tempos, Francisco Adolfo de Varnhagen.2 InstaurouOutros reconhecem tal ato com a monografia escrita por Karl Friedrich Phillp Von Martius, que ganhou o concurso “Como se deve escrever a História do Brasil”, promovido pelo IGHB em 1844. A tese do naturalista alemão centrava-se na especificidade da trajetória histórica do país tropical, a partir da tese das três raças formadoras. 2 Varnhagen, 1948. Dois excelentes estudos sobre Varnhagen são: Weheling, 1999 e Odália, 1997. Também Malerba. História: memória, historiografia: algumas considerações sobre 1

historiografia

151

se a República e, ironia, logo viriam as comemorações do Centenário. Foi o pretexto perfeito para a apropriação da memória do grande acontecimento por parte daqueles imbuídos em “restaurar” uma ordem que se perdera e detratar o status quo, e outros, firmes no propósito de enxovalhar a velha ordem que “já ia tarde”, mas resgatando, a seu modo, o simbolismo da emancipação em prol da causa republicana. Seguiram-se ditaduras, aberturas, renovações políticas, historiográficas, mas o tema manteve-se lá, ícone intocável da brasilidade. As diversas gerações de historiadores brasileiros, imersos em suas próprias temporalidades históricas, contaram a história da Independência cada qual a seu modo: reiterando teses fundadoras, retificando detalhes equivocados, rejeitando in limini aquelas teses e apresentando outras novas. A cada época, foi-se ampliando o acesso a diversos acervos, ao passo que a própria prática historiadora se aprimorava, aperfeiçoando seus instrumentos. A renovação da disciplina histórica acompanhou muito próxima a história da história da Independência do Brasil. Mas para perscrutar as diversas versões sobre o processo de nossa emancipação política, elaboradas por sucessivas gerações de historiadores, é imperativo o exercício reflexivo sobre a matéria com a qual estamos lidando. É esse o exercício que pretendo fazer hoje aqui, em torno de três eixos: da ambiguidade original do conceito de história enquanto Res gestae e Historia rerum gestarum; da busca de uma definição de Historiografia; e em torno das implicações da prática da crítica Historiográfica. Um exercício prévio, muito elucidativo das dificuldades conceituais que se enfrentam no campo da história da historiografia, consistirá na observação da polissemia do conceito pela crítica brasileira, que indicarei a partir de dois exemplos, tirados entre vários possíveis.

Definições

do conceito de historiografia na recente crítica

brasileira

A dificuldade em se trabalhar com o campo historiográfico é imensa, na proporção da falta de parâmetros conceituais minimamente estabelecidos para o conceito de “historiografia”. Isso é observável, particularmente, no historiografia normativa e cognitiva no Brasil. In: Malerba e Aguirre Rojas, p. 351-370.

152

Malerba, Ensaios

produto de boa parte daqueles que vem se propondo ao exercício da crítica historiográfica e da insipiente história da historiografia no Brasil, de que vou dar alguns exemplos a seguir. Aliás, o número de obras e projetos voltados a esses exercícios ampliou-se sensivelmente na década de 1990 no Brasil. Não sei se nesse rol poderíamos incluir, por exemplo, um livro com o chamativo nome de Ensaios historiográficos, organizado por Paulo Alves (1997), reunião de três artigos de professores da Unesp de Assis. Os ensaios que compõem o livro consistem em capítulos introdutórios de tese de doutorado dos autores, sem qualquer pretensão de análise crítica das respectivas historiografias com que dialogam. Sem dúvida mais criterioso, mas nem por isso livre de contradições conceituais, é o livro de Ana Maria Burmester (1997), que efetua uma avaliação da produção uspiana na década de 1970. Tese de titularidade em Teoria da História no Departamento de História da UFPr, um de seus pontos fortes, que elege como tema de reflexão a revolução brasileira na historiografia dos anos 1970, é esse quase balanço de toda sua geração, dentro dos quadros históricos delineados politicamente pela ditadura militar e academicamente pela ascendência do marxismo. Com estes limites, seu objetivo foi avaliar como se pensou o tema da revolução no Brasil naquele quadrante histórico, tomando como corpus documental as teses acadêmicas defendidas no Departamento de História da Universidade de São Paulo, notoriamente o mais importante polo de produção do conhecimento histórico no país naquele momento. Ao propor-se tal recorte, a autora revisa nos sucessivos capítulos o episódio da Revolução de 1930: o tema da revolução em trabalhos acadêmicos que o focaram em outros períodos da história do Brasil, desde o século XVIII até o XX; as teses que, em vez das grandes transformações revolucionárias ou tentativas, privilegiaram os chamados momentos de transição lenta e gradual da história brasileira, particularmente no século XIX; e, finalmente, no quarto capítulo, “Do modo de ser do capitalismo no Brasil”, já não se atem ao corpus documental que caracteriza o trabalho (as teses defendidas na USP), mas propõe ser um recenseamento historiográfico das principais matrizes que procuraram definir o capitalismo no Brasil durante o século XX. Nas “Considerações Finais”, a autora procura estender a análise que vinha desenvolvendo até os anos 1980, pontuando certas mudanças de orientação na historiografia uspiana, nas quais surgiram novas temáticas e abordagens historiografia

153

de pesquisa em torno, agora, dos assim chamados heróis anônimos, em que despontam os temas das mentalidades, da resistência e do cotidiano. Do ponto de vista conceitual, a coletânea organizada por Marcos Cézar Freitas (1998), em princípio um grande balanço da produção historiográfica no Brasil, apresenta alguns nós conceituais apertados. Trata-se de uma coletânea de ensaios historiográficos (nem todos), heterogêneos em sua proposta quanto à abordagem e a abrangência desses. Na verdade, é praticamente impossível encontrar-se uma unidade que alinhave conjunto tão diverso de material. Isso é facilmente compreensível em função da ausência de um plano de obra vigoroso, fundado em um conceito preestabelecido de historiografia. Basta passar os olhos pela impressionista introdução do organizador: “[...] Talvez a historiografia esteja fadada a ser sempre uma parte da história das idéias (e vice-versa) uma vez que sua ocupação com o registro está impregnada das impressões (fantasmagóricas ou não) do ‘não registrado’”. (FREITAS, 1998, p. 9). Nela, tenta-se justificar o porquê da divisão da obra em duas partes: “Historiografia brasileira: os olhares sobre as fontes” e “Historiografia brasileira: novas fontes para novos olhares”, o que absolutamente não fica esclarecido, mesmo porque, a rigor, nenhum dos dezoito artigos se dedica a uma reflexão sobre “fontes”. O que fica é a ideia de um critério subjetivo a partir do qual se colocaria, de um lado, um “balanço” de temas clássicos e, de outro, um conjunto de avaliações de temas “inovadores”. Mas cada conjunto em si impossibilita até essa divisão. Basta observar que, entre as “novas fontes para novos olhares”, há um texto anódino sobre “Braudel e os vagalumes”, outro sobre livros didáticos, outro a história dos intelectuais nos anos 1950 e ainda um sobre a pintura de Victor Meirelles. Enfim, ao concluir-se a leitura dessa coletânea, resta a sensação de que a falta de uma definição teórica e conceitual comprometeu o empreendimento, que resultou numa justaposição de materiais novos e inovadores com coisa velhas e cristalizadas, que absolutamente não acompanham a avalanche da produção historiográfica brasileira, que se assistiu com a profissionalização do campo na década de 1990. Faltou dizer sob qual perspectiva se iria ali focar a historiografia brasileira. Poderíamos utilizar como mais um exemplo a análise da conceituada historiadora do Varguismo e do Trabalhismo no Brasil. Em História e

154

Malerba, Ensaios

Historiadores, a Prof.a Ângela de Castro Gomes estuda a política cultural do Estado Novo e o papel dos historiadores nesse contexto, “visando compreender o processo de constituição do saber e da disciplina de História do Brasil em nosso país”, focando o objeto em seu campo de pesquisa, que é o recorte do Estado Novo. Para tanto, utilizou-se da seção “autores e livros” do jornal A Manhã e algumas seções da revista Cultura Política. Na sequência dos capítulos, a autora esforça-se por resgatar o que seria a galeria dos intelectuais que então eram reconhecidos como historiadores, para em segunda interpretar a “cultura histórica” então vigente: [...] minha estratégia para lidar com o trabalho historiográfico (seus nomes, títulos e temas) foi, o que pode parecer estranho, não tomar diretamente a produção histórica profissional, e sim, conforme o dizer de Jacques LeGoff, examinar o que constituiria a ‘cultura histórica’ de uma época. [...] Desejo desde já declarar que tenho insuficiente conhecimento, e seria impossível adquirilo em curto espaço de tempo, sobre os autores e obras que conformam essa produção histórica profissional”. (GOMES, 1999, p. 10).

Como destaca a própria autora, sua análise historiográfica é feita a partir das glosas, ensaios e resenhas feitas sobre obras historiográficas e publicadas naqueles veículos. Ela não leu as obras mesmas. Enfim, fez um livro sobre “história e historiadores” sem ter lido os próprios, e sim comentários de segunda mão. Aí, parece-me, evidencia-se a carência de rigor conceitual no campo da análise historiográfica no Brasil. Prof. Francisco Falcon, em resenha à obra, chama a atenção para dois problemas. Primeiro, as ausências, como a de Manuel Bonfim, entre outros. Como não se opera com um conceito claro, é comum nas análises de crítica ou de história da historiografia, a utilização de parâmetros, digamos, impressionistas ou subjetivos, no estabelecimento de critérios de inclusão/exclusão do que deve entrar na análise. Outro problema, apontado por Falcon, comum à maioria dos analistas historiográficos brasileiros, é o de não trabalhar diretamente com os autores e suas obras, mas com “textos selecionados” de autores “reconhecidos”, leitores e comentadores daqueles que ela quer analisar – tanto da época como posteriores. A dificuldade está no “entrecruzamento de vozes múltiplas, oriundas de tempos e lugares os mais diversos”.3 Gomes (1999, p. 9). Para uma avaliação crítica da obra, ver Falcon (1997, p. 141144).

3

historiografia

155

Mas parece-me mais produtivo, para demonstrar a ausência de parâmetros conceituais mínimos no campo da crítica e da história da historiografia no Brasil, analisar não aqueles autores que eventualmente tenham se dado à aventura de uma análise ou balanço historiográficos, mas sim os que se propuseram efetivamente a empreendimentos historiográficos de maior fôlego. Nesse sentido, é reconhecido pela comunidade de historiadores brasileiros que um dos maiores trabalhos de crítica historiográfica da década de 1990 no Brasil foi aquele empreendido por Carlos Fico e Ronald Polito, à frente do Centro Nacional de Referência Historiográfica. Na obra crítica da produção historiográfica brasileira da década de 1980, que lançou o projeto, os autores procuraram definir conceitualmente seus parâmetros de análise, ao proporem um conceito amplo de historiografia, talvez o mais rigorosamente circunscrito em estudos do gênero no Brasil: Partimos de um conceito de historiografia que não considera apenas a efetiva produção do conhecimento histórico mas, também, na medida do possível, a sua disseminação social. Estamos entendendo, então, por historiografia, não só a análise da produção do conhecimento histórico e das condições desta produção, mas, igualmente, o estudo de suas condições de reprodução, circulação, consumo e crítica. O momento da produção do conhecimento, portanto, não se confunde com o de sua disseminação social, ainda que sejam evidentes as possibilidades de ambos se relacionarem. (FICO; POLITO, 1992, v. 1).

Um tal conceito amplo de historiografia, embora atraente em sua pretensão de tudo abarcar, escapa às definições mais autorizadas que entendem historiografia em sua acepção mais essencial, como “escrita da história”. No caso de um estudo temático como, por exemplo, o que pretendo fazer com a história da historiografia da Independência, aquele conceito abrangente de historiografia, atento às esferas da circulação e repercussão da historiografia no grande público, torna-se inoperante. Com o fim declarado de observar a evolução histórica da disciplina História no Brasil, tendo como eixo temático (ou pretexto) a historiografia da Independência, é o âmbito estrito da produção do conhecimento e do debate acadêmico, codificado em “saber redigido”, o lugar privilegiado, senão o único, para se observar a evolução de nossa cultura

156

Malerba, Ensaios

historiográfica: suas transmutações teóricas, metodológicas, ideológicas, narrativas e assim por diante. O problema da disseminação do tema da Independência, ficando no exemplo indicado, implicaria problemas específicos, de muito diversa natureza, que fogem ao nosso interesse neste momento: como estudar a questão da divulgação, ou da “circulação”, ou “disseminação” como querem Fico e Polito, sem se considerar a questão da construção da memória de uma certa identidade nacional?4 Acrescerá em muito pouco ao conhecimento da evolução da matriz historiográfica brasileira os aspectos relacionados à sua disseminação social, a análise detalhada do mercado editorial na área de história. Talvez função do caráter do tema da Independência, o Estado e agências culturais não estatais, como os Institutos Históricos, embora estes estreitamente vinculados àquele, impulsionaram o debate sobre o tema e, em decorrência, o incremento da disciplina, muito mais que o mercado, este último um fator efetivamente relevante de interferência na produção do conhecimento histórico em anos bem mais recentes. Os autores de A história no Brasil não se furtaram a uma definição clara do que seja produção do conhecimento histórico: “É assim que, para considerarmos a produção histórica, levamos em conta as teses de livredocência, as teses de doutorado e as dissertações de mestrado defendidas no período em pauta, além dos artigos, instrumentos de pesquisa e transcrições publicados”. (FICO; POLITO, 1992, p. 22-29). Aqui também tendemos a uma definição mais circunscrita. Diferentemente dos autores, os objetos de análise que se afiguram mais apropriados para uma história da historiografia, pelo menos para o caso mencionado da emancipação política brasileira, são as obras publicadas. Portanto, restrinjo aqui também meu conceito de produção, e pelas razões seguintes: embora se encontrem publicados muitos trabalhos de qualidade intelectual duvidosa, o inverso não ocorre. Serão pouquíssimos, se os houver, os trabalhos acadêmicos de inquestionável qualidade, que tiveram repercussão e desdobramentos historiográficos em termos de crítica e inspiração a outros congêneres, que não alcançaram as graças do prelo. Se isso chegou a acontecer, Como propôs com grande propriedade Noé Freire Sandes (2000) com o problema da construção da identidade nacional e Iara Lis Souza (1999), com a questão específica da construção da persona de D. Pedro no imaginário político brasileiro.

4

historiografia

157

seu percentual diante da massa publicada é tão irrisório que não poderá jamais afetar os resultados da pesquisa. Instrumentos de pesquisa e transcrições, incluídos por Fico e Polito em seu estudo, não parecem muito apropriados porque neles, afinal, não há elementos que possam servir diretamente de indicadores da evolução teóricometodológica da disciplina história – são, como o nome diz, “instrumentos de pesquisa”. Ao lado de Fico e Polito, Astor Diehl foi outro grande propulsor da crítica historiográfica brasileira nos anos 1990. A proposta do seu projeto historiográfico está sintetizada no primeiro volume das quatro peças que compõem sua análise da Matriz da Cultura Historiográfica brasileira: [...] a proposta é fazer uma garimpagem e o mapeamento das diferentes tradições da historiografia brasileira, desde meados do século XIX, a fim de compreender de que modo essas tradições representam e podem nutrir e enriquecer reais possibilidades de conquista da modernidade e como essas podem empobrecer ou obscurecer o senso do que seja ou possa ser a modernidade na cultura historiográfica.5

Astor Diehl, da Universidade de Passo Fundo (RS), procurou estabelecer as linhas mestras da historiografia brasileira desde sua fundação, com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, até o final da década de 1990. Essa análise foi desenvolvida como tese de doutoramento defendida na Alemanha, e dividida em quatro volumes, todos já publicados. O primeiro é breve e denso livro sobre onde o autor estabeleceu os parâmetros teóricos do conceito de “matriz historiográfica” e delineou o corpo completo da obra em seus quatro volumes. (DIEHL, 1993a). O segundo constitui-se na análise da historiografia brasileira desde a fundação do IHGB até os anos 1930. (DIEHL, 1998). O terceiro (DIEHL, 1999) procura cobrir desde os anos 1930 até o final da década de 1970. O quarto, um dos primeiros a ser publicado, detém-se na avaliação da mudança estrutural da matriz historiográfica brasileira nos anos 1980. (DIEHL, 1993b). Aqui eu me deterei apenas na avaliação deste último título, por ele trazer em si os méritos e os problemas que eu pude detectar na obra de Fico e Polito. Diehl (1993a, p. 39). Seu projeto e o de Fico e Polito foram pormenorizadamente analisados em Malerba, 2000a.

5

158

Malerba, Ensaios

De modo geral, Diehl evoca discussões sobre a evolução recente do debate intelectual da crise da modernidade tal como se desenrola na Europa, e procura “explicar” os desdobramentos da historiografia brasileira a partir desses influxos externos. O problema é que nem sempre, a rigor, na maioria das vezes, o que acontece no Brasil se liga de qualquer maneira ao que acontece no Norte (Europa e/ou Estados Unidos), ou seja, o autor não releva as circunstâncias “internas” da história da historiografia nacional. Por outro lado, o autor não procura fundamentar suas afirmações sobre a historiografia brasileira em um levantamento exaustivo, nem ao menos por amostragem, dessa produção, e se limita, quando muito, a analisar uma ou outra obra que, para ele, seria representativa de toda a historiografia. Por exemplo, quando fala da recepção de Weber, Benjamin e Foulcault no Brasil. Tentarei demonstrar isso detalhadamente na apreciação de sua obra. Ao tratar da crise da razão histórica no exemplo do marxismo e da tradição de Max Weber (DIEHL, 1993a, p. 16), o autor procura abordar a crise do marxismo por entender que a crise da razão histórica passa pela influência do marxismo no debate sobre a modernidade, e vai ao centro europeu deste. Creio ser ao menos problemático seguir esse caminho para avaliar as influências do marxismo na historiografia brasileira. Segundo o autor, “[...] a questão da receptividade da teoria, metodologia e ideologia reducionista do marxismo no Brasil tornou-se um componente essencial para o estágio atual da historiografia”. Isso só é verdade em parte, e numa parte bem pequena. Primeiro, porque essa avaliação é impressionista. O marxismo no Brasil não foi só aquele, o reducionista. O autor desconsidera que do marxismo resultou de altíssima qualidade para a historiografia brasileira, nas décadas de 1970 e 1980, por exemplo, o debate sobre a escravidão colonial ou sobre a história do movimento operário, com todos seus desdobramentos ainda frutíferos. Além do mais, há que se resgatar a formação específica de nossos historiadores, que fundiram várias influências, de Weber, de Marx, de Durkheim, de Foulcault. Queiram ou não, podemos dizer que todos os historiadores brasileiros são um pouco marxistas. Isso porque não há tema ou período da história do Brasil cuja investigação historiográfica não aponte para alguma matriz marxista fundamental, que tenha resultado em prolixo debate e com o qual qualquer pesquisador tem que se haver. historiografia

159

Mas o maior problema é a falta de embasamento empírico de certas afirmações categóricas, como, por exemplo, no tocante à recepção do marxismo ou da obra de Foucault no Brasil. Analisei isso em detalhe em outro lugar. Aqui, desejo apenas sublinhar que o autor não se pauta em um levantamento realmente exaustivo da produção historiográfica do período analisado. A crítica à avaliação historiográfica levada a cabo por Diehl assenta em sua metodologia: como o autor não se baseia em toda a produção, os exemplos que indica podem ser a exceção e não a regra, de modo a ser impraticável o apontamento de tendências. Isso não é absolutamente um “pecado” deste importante analista historiográfico. É frequente em autores que se cristalizam em torno de uma matriz teórica, característica particularmente marcante no caso dos foucaultianos. A grande contribuição do projeto historiográfico de Diehl é a atenção que dá à necessária fundamentação teórica da análise historiográfica, por meio de seu conceito de “matriz” e, sobretudo, de “cultura historiográfica”, apoiados no sólido argumento da vinculação desses conceitos ao problema da modernidade/modernização/modernismo, cruciais para a compreensão do fenômeno historiográfico no Brasil. Seguindo suas pistas, certamente em muito se avançará neste fundamento do conhecimento histórico. Pela própria vastidão da proposta, o projeto de Diehl é uma obra aberta que aguarda desdobramentos.

A prática da crítica historiográfica O caráter autorreflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das Ciências Humanas. Embora, às vezes, nos deparemos com algumas aberrações em contrário, o trabalho histórico profissional exige um exercício de memória, de resgate da produção do conhecimento histórico sobre qualquer tema que se investigue. Não nos é dado supor que partimos de um “ponto zero”, decretando a morte cívica de todo um elenco de pessoas que, em diversas gerações e à luz delas, se voltaram a este ou aquele objeto que porventura nos interesse atualmente. Devido a uma característica básica do conhecimento histórico, que é sua própria

160

Malerba, Ensaios

historicidade, temos que nos haver com todas as contribuições dos que nos antecederam. Essa propriedade eleva a crítica historiográfica a fundamento do conhecimento histórico. Contudo, não podemos afirmar que, na prática, o exercício da crítica historiográfica tem sido feito dentro de parâmetros ao menos análogos e nem recebido a mesma atenção por parte dos historiadores, sobretudo no Brasil. Foi Beneddetto Croce quem primeiro sistematizou os problemas inerentes à crítica de uma obra do gênero histórico.6 Segundo o filósofo, a crítica dos livros de história enfrenta dificuldades análogas à crítica dos livros de poesia. Os críticos muitas vezes não sabem como abordar tanto uns como outros e têm dificuldade em perceber qual o fio que os liga a suas mentes; outras vezes, utilizam-se de critérios estranhos e arbitrários, múltiplos, ecléticos e discrepantes; seriam poucos os que julgam retamente com único critério que é o conforme a sua própria natureza. (CROCE, 1962, p.11). Por isso, Croce procurou lançar as bases metódicas para uma crítica historiográfica conveniente. O julgamento de uma obra de história deveria ser levado a cabo não pela quantidade e exatidão de informações que ela fornece.7 Claro que se deve sempre esperar que as informações dos livros de história sejam verdadeiras, senão por outro motivo, por que “a exatidão é um dever moral” dos historiadores. Também não se deve julgar a obra histórica pelo prazer que o livro proporciona, pela excitação ou comoção que provoque; mas simplesmente por sua historicidade: O julgamento de um livro de história deve fazer-se unicamente segundo sua historicidade, como o de um livro de poesia segundo sua poeticidade. E a historicidade pode ser definida como um ato de compreensão e de inteligência, estimulado por uma exigência da vida prática, que não pode satisfazer-se passando à ação se antes os fantasmas, as dúvidas e a escuridão contra os quais se luta não são afastados mercê da proposição e da resolução de um problema teórico, que é aquele ato do pensamento. (CROCE, 1962, p. 18).

6 Mantendo a tradição italiana, vale a pena conferir todos os ensaios contidos no n. 1 da revista Storiografia, editada por Massimo Mastrogregori, que tem por tema justamente “La recensione: origini, splendori e declino della critica storiografica”. Mastrogregori, 1997. 7 “Os recolhos de notícias chamam-se crônicas, apontamentos, memórias, anais, mas não mais história”. Croce (1962, p. 12).

historiografia

161

Discutindo o caráter da subjetividade inevitável (“boa” ou “má”) presente na análise histórica, Paul Ricœur afirma que sempre esperamos do historiador um certo tipo de subjetividade, precisamente aquela apropriada à subjetividade que convém à história. Como Rüsen sistematizou depois, não se trata de tentar eliminar a subjetividade do ato cognitivo, como um dia iludiram-se os historiadores metódicos. Ela deve entrar na equação, mas como uma subjetividade exigida pela objetividade que se espera. Existiria, pois, uma subjetividade boa e uma subjetividade má: para efetuar a separação entre ambas, Ricœur se apoia em Marc Bloch e sua programática do ofício do historiador. A história opera e exige uma objetividade própria, que lhe convém; a maneira como ela cresce e se renova no-lo atesta: procede a história sempre da retificação da arrumação oficial e pragmática feita pelas sociedades tradicionais com relação a seu passado. Tal retificação não é diferente do espírito de retificação operada pela ciência física em relação ao primeiro arranjo das aparências na percepção e nas cosmologias que lhes são tributárias. (RICŒUR, 1968, p. 24).

Portanto, a fonte geradora da historiografia é a necessária retificação das versões do passado histórico, operada a cada geração. Quase desnecessário lembrar a ascendência croceana dessa postura, de acordo com a qual cada época levanta suas próprias questões e novas demandas e fórmulas para uma sociedade interrogar para seu passado. A retificação, motivada e condicionada pela própria inserção social do historiador em seu contexto, costuma apoiarse também em novas descobertas documentais e/ou no alargamento do horizonte teórico-metodológico da disciplina. Desse modo, como ensina Rüsen, cada geração conhece mais e melhor o passado do que a precedente. É essa historicidade do próprio conhecimento que obriga ao historiador a haver-se com toda a produção que procura superar. Nasce aqui a necessidade incontornável da crítica. Nessa brecha, instaura-se a história da historiografia como ramo legítimo do conhecimento histórico. Mas os impasses epistemológicos da disciplina permanecem. Como reflete acertadamente Prof. Arno Wehling, as saídas meramente metodológicas não esgotam a questão. A proposta de Lê Goff, de uma pan-história, que incorporasse as contribuições de todas as ciências sociais numa macroperspectiva, afigura-se ineficiente, bem como as 162

Malerba, Ensaios

soluções puramente teóricas.8 Acolhemos com segurança a proposta do Prof. Wehling de encaminhar o aprofundamento teórico da história no sentido do conhecimento da historiografia: A resposta para o papel de uma epistemologia da história, parece-nos, está no momento intermediário da epistemologia “geral” com o mundo revelado pela pesquisa histórica, através da historiografia. Uma análise historiográfica, além dos elementos empíricos, metodológicos, ideológicos, sociais (da sociologia do conhecimento) que revele, pode ser útil “objeto” de investigação para o estudo da construção de um saber histórico que seja análogo aos demais saberes da história da ciência, sem que tenha relações necessárias com a metodologia da história (no sentido de fornecer elementos críticos) e muito menos com a empiria (o que afasta de antemão qualquer tentação de trabalhar a “filosofia material da história”). (WEHLING, 1994, p. 94, grifo meu).

Res gestae e historia rerum gestarum O estabelecimento de um conceito operacional de historiografia requer uma reflexão, breve que seja, sobre as dubiedades que marcam o próprio conceito de história. Alex Callinicos indica como origem das deturpações pós-modernas, nas quais a meta-história acaba por absorver aquilo que convencionalmente se pensava como um referente existindo independentemente do discurso histórico, a própria ambiguidade da palavra História. Seguindo as reflexões de W. Walsh, Callinicos lembra que história cobre (1) a totalidade das ações humanas passadas, e (2) a narrativa ou relato que delas construímos hoje, ou seja, a historiografia. Essa ambiguidade é importante, pois que abre a dois campos distintos da filosofia da história. Tal estudo pode voltar-se, como o foi na forma tradicional, ao curso real dos eventos históricos, a história vivida pelos agentes, no sentido da “experiência histórica”. Também pode, por outro lado, ocupar-se com os processos do pensamento histórico, os meios pelos quais a história no segundo sentido chega – ou constrói - àquela. Portanto, conduz tanto à filosofia da história como à historiografia. (CALLINICOS, 1995, p. 12). 8 Popper já combatia com a razão a ideia de uma “história teorética” em A miséria do historicismo, semelhante a uma “física teorética”, o que nos faria recair na velha filosofia da história, conforme o programa setecentista. Lembrem-se os estragos causados, na mesma linha, pela “ciência conceitual” defendida pelos althusserianos. (DOSSE, 1994. 2 v).

historiografia

163

Em suas reflexões profundas do porquê se escreve e se reescreve a história, e particularmente das razões da explosão dessa reescrita na última geração, o filósofo da história Louis Mink caracteriza a história como a última fronteira a ser explorada pela civilização ocidental. A inesgotabilidade da história residiria exatamente naquela dubiedade a que vimos nos referindo, e que Mink chama do “senso do paradoxo” o qual, por sua, vez, é a grande força intelectual motivadora da filosofia da história hoje em dia: A surpresa da história, parece-me, assenta em nossa aguda consciência da diferença entre história-como-escrita e história-como-vivido, aqueles dois sentidos do único termo “história” [...] Nós ainda desejamos chamar o conhecimento histórico de uma reconstrução, não de uma construção simpliciter. Não é fácil superar a crença de Ranke, de que a história pode representar o passado wie es eigentlich gewesen (embora parcilamente). Então, nesse aspecto eu penso que nós não alcançamos nada como uma visão coerente de históriacomo-realidade-passada e de história-como-conhecimento-presente; antes, nós oscilamos entre um lado e outro do paradoxo, às vezes tão rapidamente que facilmente acreditamos que as crenças em ambos os lados são coerentes simplesmente porque nós sustentamos a ambas [...]. (MINK, 1987, p. 92-94).

Nesta mesma linha e em outra chave, Armando Saitta, seguindo a reflexão iniciada pelas célebres questões formuladas por Lucien Febvre (porque se fazer a história? E, então, o que é a história?), prefere deixar de lado as implicações a elas inerentes, implicações que só podem ser pensadas e respondidas, como vimos Mink fazer, num plano puramente filosófico e necessariamente não historiográfico. E reforça a ambiguidade do conceito: La lengua italiana, al igual que la francesa, unifica en el mismo término dos realidades completamente diferentes: “historia” (en francés histoire) significa tanto la historia rerum gestarum como las res gestae; por el contrario, en alemán se utiliza el término Geschichte para indicar el complejo de hechos y de acontecimientos u el término Historie para indicar el pensamiento historico y la elaboración historiografica de esos acontecimientos.9

9 Saitta (1996, p. 11-12). François Hartog retoma o conceito alemão de Geschichte de acordo com a formulação original de Droysen, da “história como conhecimento de si mesma”. Hartog (1998, p. 198).

164

Malerba, Ensaios

A dupla significação do uso linguístico moderno de “história” [Geschichte] e “história” [Historie], que faz com que ambas expressões possam qualificar tanto a conexão entre os sucessos como sua representação, foi aprofundada também por Reinhardt Kosselleck. Para o historiador dos conceitos, tais questões têm tanto um caráter histórico como sistemático: “O próprio significado de história, que se refere também a saber de si mesma, pode entender-se como a fórmula geral de um círculo pretensamente antropológico que remete a experiência histórica a seu conhecimento, e vice-versa”. (KOSELLECK, 1993, p. 177). A convergência entre ambas é histórica, datada: teve lugar a partir do século XVIII. Enquanto singular coletivo, a história é um processo sistemático que marca a experiência da modernidade. Nesse cenário, coincidente com a concepção da “história absoluta”que deu início à filosofia da história, mesclaramse o significado transcendental de história como âmbito da consciência e da história como âmbito da ação. Paradoxalmente, o surgimento da filosofia da história, singular coletivo, coincide com a consciência da existência de “histórias”, no plural – ou seja, para o reconhecimento da pertinência da historiografia.

Em busca de uma definição de historiografia Frank Ankersmit (1986) tem uma definição poética do conceito: “Como um dique coberto por uma camada de gelo no final do inverno, o passado foi coberto por uma fina crosta de interpretações narrativas; e o debate histórico é muito mais um debate sobre os componentes da crosta do que propriamente sobre o passado encoberto sob ela”. Essa seria uma expressão estilisticamente formulada de um entendimento corrente em um amplo círculo de historiadores contemporâneos, que alguns críticos denominam de “narrativistas”. A tese principal que sustentam é a do antirrealismo epistemológico, segundo a qual a história é um construto intelectual, um discurso, que não guarda articulação com qualquer referente extralinguístico,10 com qualquer “mundo histórico” (para usar o adágio diltheyano). Não pretendo entrar no mérito dessa discussão 10 Zagorin, 1998. Ver também as análises críticas às teses narrativistas do Prof. Ciro Cardoso. Cardoso, Ciro Flamarion. Introdução. In: Cardoso e Vainfas, 1997; Cardoso, 1998; Cardoso, 1999.

historiografia

165

senão na exata medida em que ela incida sobre nossa necessidade de construir um conceito razoável de historiografia. Não há dúvida de que a historiografia é uma representação do passado. Há como sustentar uma divergência, contudo, quanto à suposta desvinculação dessa representação de seu referente histórico. Tendo a concordar com Reinhardt Koselleck quando afirma, ao pensar a relação entre representação, acontecimento e estrutura, que as questões acerca da representação, acerca de até que ponto a Historie narra quando descreve, apontam, no âmbito do conhecimento, para diferentes tramas temporais do movimento histórico. O descobrimento de que uma “história” está desde sempre já pré-formada, eu diria “prefigurada”, extra-linguisticamente “não apenas limita o potencial de representação, como também reclama do historiador estudos objetivos de existência das fontes”. (KOSELLECK, 1993, p. 141, grifo meu). Quero insistir, neste sentido, na necessária articulação da historiografia com a história, da Historie com a Geschichte. A paternidade da história e da crítica historiográficas, que lançou as bases desse tipo de investigação, costuma ser atribuída ao filósofo e historiador italiano Benedetto Croce. Suas formulações elucidam o caráter histórico da historiografia, que faz dela um meio dos mais ricos para se conhecer as sociedades passadas. Para ele, a historiografia é sempre e essencialmente contemporânea: Toda história é contemporânea; prova-o a existência da historiografia. O crivo dessa deliberação é o interesse de um historiador ou de uma sociedade. [...] sua condição de existência é a inteligibilidade do próprio fato “para nós”, “que ele vibre na alma do historiador”, através dos documentos; sempre ligado a seu fato haverá um feixe de narrativas, de acordo com suas potencialidades para fazer-se sempre vivo e atual - e as narrativas (historiografia) que se formam vão se tornando elas próprias fatos documentados de outros tempos, a serem interpretados e julgados. (CROCE Apud GARDNER, 1993, passim).

Jörn Rüsen, tratando da distinção entre “realidade” e “imaginação”, concorda com Croce, no sentido de que a narrativa constitui a consciência histórica na medida em que evoca lembranças, no trabalho de interpretação das experiências do tempo. O mergulho no passado será sempre dado pelas experiências do tempo presente. Tal ideia é reiterada em outros momentos de sua obra, como quando reflete sobre a metodização do pensamento histórico:

166

Malerba, Ensaios

É sabido que as histórias sempre são escritas e reescritas, de acordo com o contexto social em que vivem os historiadores e seu público. É igualmente sabido, todavia, que as histórias não são apenas reescritas, mas também - ao menos na perspectiva do longo prazo - mais bem escritas, desde que a metodização de sua garantia de validade se tornou científica. Elas se tornam melhores no sentido de que, ao longo do desenvolvimento da história como ciência, nós passamos a conhecer o passado melhor e com mais precisão. (RÜSEN, 2001, p. 129).

Croce foi um dos pioneiros na reflexão do porque se reescreve a história a cada geração. O historiógrafo italiano Armando Saitta, seu discípulo, retoma a questão de porque se reescreve constantemente a história, a “humanidade” do historiador, a sempre contemporaneidade da história (veritas filia temporis). Não obstante ser conformada por “versões”, às vezes antagônicas, nem por isso ela deixa de ser objetiva. Diferentemente do que pode acontecer nas ciências naturais, na história dificilmente uma obra histórica é totalmente “superada”, até porque ela se torna documento de uma época: há sempre algumas páginas que resistem à crítica mais inclemente.11 As definições de historiografia, pois, tendem a entendê-la como produto resultante da prática dos historiadores em geral. E não há motivo para se questionar, a princípio, tal definição, esposada por renomados historiadores da história como Charles Olivier Carbonell: O que é historiografia? Nada mais que a história do discurso – um discurso escrito e que se afirma verdadeiro – que os homens têm sustentado sobre o seu passado. É que a historiografia é o melhor testemunho que podemos ter sobre as culturas desaparecidas, inclusive sobre a nossa – supondo que ela ainda existe e que a semiamnésia de que parece ferida não é reveladora da morte. Nunca uma sociedade se revela tão bem como quando projeta para trás de si a sua própria imagem. (CARBONELL, 1987, passim).

Carbonell nos oferece, nessa generosa definição, uma proposição de método: a historiografia é um produto da história e revela com clareza a sociedade que a gerou. 11 Saitta (1996, p. 15-18). Não obstante as ressalvas que faz, rogando não confundir-se suas propostas com o “presentismo a la Croce ou Collingwood”, Josep Fontana firma sua tese de que toda análise histórica alicerça-se num projeto de futuro; em outras palavras, reafirma a adesão das análises do passado aos imperativos do presente: “Toda visão global da história constitui uma genealogia do presente. Seleciona e ordena os fatos do passado de forma que conduzam em sua sequência até dar conta da configuração do presente, quase sempre com o fim, consciente ou não, de justifica-la.” Fontana (1998, p. 9).

historiografia

167

Destacados filósofos da história, como Jörn Rüsen e Agnes Heller concebem a “Historiografia” (“escrever história” no sentido mais amplo da palavra), assim também a filosofia da história, como objetivações que aspiram a compreensão da história, como formas elaboradas e diferenciadas da consciência histórica. Segundo Heller, elas refletem sobre a história; o objeto de sua investigação é a história stricto sensu. A historiografia, assim como a filosofia da história, está sujeita à historicidade, ou seja, a mudança em seu próprio objeto, mas é uma empresa contínua há 1500 anos. A filosofia da história, porém, surgiu em um estágio da consciência histórica relativamente recente. Enquanto a historiografia é insubstituível, a filosofia da história é apenas uma subespécie da filosofia, não uma objetivação independente: pode ser substituída por outros gêneros filosóficos. (HELLER, 1997, p. 177).

Rüsen, por sua vez, que define historiografia como produto intelectual dos historiadores, reafirma tanto a historicidade da historiografia quanto sua efetividade textual. Para o historiador alemão, com efeito, o conhecimento científico obtido pela pesquisa exprime-se na historiografia, para a qual as formas de apresentação desempenham um papel tão relevante quanto o dos métodos para a pesquisa. (RÜSEN, 2001, p. 33). Os processos de pesquisa do conhecimento histórico, metodicamente regulados, culminam nas formas de apresentação, entendidas como quarto fator do pensamento histórico, ao lado do interesse, dos critérios de ação e do método de pesquisa empírica. Ainda que frequentemente negligenciadas como menos importantes ou até mesmo “externas” à ciência, elas fazem parte do trabalho do historiador. Não se resumem a mero resultado dos fatores anteriores, embora a obtenção do conhecimento histórico empírico a partir das fontes, pela regulação de métodos, tenda, por princípio, a tornar-se historiografia. Ela mesma é um produto da pesquisa histórica. Sendo originária de uma necessidade da consciência histórica de orientação temporal no mundo, Rüsen demonstra a impropriedade de se pensar a historiografia como mera representação:12

12 Para uma discussão aprofundada do conceito, ver Cardoso e Malerba, 2000.

168

Malerba, Ensaios

O trabalho da consciência histórica é feito em atividades culturais específicas. Eu gostaria de chamá-las práticas de narração histórica. Por meio dessas práticas a “historiografia” torna-se parte da cultura e um elemento necessário da vida humana. Qualquer comparação intercultural tem que sistematicamente levar em conta essas práticas e tem que interpretar formas específicas da atividade cultural universal de fazer sentido do passado por meio da narração. (RÜSEN, 1996, p. 13).

Nesse reino das várias práticas culturais de narração histórica e das diferentes manifestações do construto mental chamado história, “historiografia” pode ser caracterizada como uma espécie de prática cultural e de estrutura mental. É uma apresentação elaborada do passado limitada ao meio da escrita, com suas possibilidades e limites. Ela pressupõe a experiência social de um historiógrafo, caracterizada por um certo grau de especialização e eventualmente de profissionalização e sua função numa ordem política e social. Historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência histórica. Ela geralmente apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos que são apresentados como “factuais”, ou seja, como uma qualidade especial de experiência. Para propósitos comparativos, é importante saber como essa relação aos assim chamados fatos do passado é organizada e apresentada. Uma outra característica da historiografia é sua forma lingüística. Ela é apresentada em verso ou em prosa? O que esses dois modos de apresentação de escrita indicam? É essa distinção a mesma através das fronteiras culturais? Na cultura ocidental, prosa indica uma certa racionalidade, um modo discursivo da experiência do passado na base de uma idéia integradora de sentido e evidência empírica. (RÜSEN, 1996, p. 18).

Uma definição técnica do conceito, com vistas a torná-lo operacional no campo da pesquisa em história da historiografia, é proposta por Paul Ricœur. Para o filósofo, é na fase escritural da atividade de investigação que se declara plenamente a intenção precípua do historiador de representar o passado tal como ele se produziu (“wie es eigentlich gewesen”, conforme o adágio rankeano) – qualquer que seja o sentido que se atribua a “tal como”. Eu prefiro finalmente o termo “fase”, na medida em que, na ausência de uma ordem cronológica de sucessão [na investigação], ele sublinha a progressão da operação quanto à manifestação da intenção historiadora de reconstrução verdadeira do passado. Não é senão na terceira fase, com efeito, que se declara

historiografia

169

abertamente a intenção de representar a verdade das coisas passadas, por que se define face à memória o projeto cognitivo e prático da história tal como a escrevem os historiadores de ofício. (RICŒR, 2000, p. 168, 170-2).

O termo “historiografia” é empregado especificamente para a terceira fase, da representação escrita, o produto final da produção histórica. Eu o emprego [o termo historiografia], tal como Certeau, para designar a operação mesma em que consiste o conhecimento histórico depositado na obra. A escolha do vocabulário tem uma vantagem maior que não surge quando se reserva essa denominação à fase escritural da operação, como sugere a própria composição da palavra: historiografia, ou escritura da história. A fim de preservar a amplitude do emprego do termo historiografia, eu não chamo de escritura da história à terceira fase, mas fase literária ou escritural, já que se trata de um modo de exposição, de demonstração, da exibição da intenção historiadora inscrita na unidade de suas fases, a saber a representação presente das coisas ausentes do passado. A escritura, com efeito, é o solo da linguagem que o conhecimento histórico nos franqueia, em seu enlaçamento da memória para vivenciar a tripla aventura do arquivamento, da explicação e da representação. (RICŒR, 2000, p. 171, grifo nosso).

Os esforços de Rüsen no sentido de uma metodização da operação histórica acabam aproximando seu conceito de historiografia com o de Paul Ricœur. Para o teórico alemão, a historiografia teria passado a um segundo plano em função da proporção que a pesquisa ocupou na operação histórica e o papel da teoria é justamente o de questionar isso: ela deve refletir sobre as formas de apresentação como um dos fundamentos da ciência histórica e valorizar a historiografia como seu campo específico. Nesse sentido, a teoria da história não se resumiria uma teoria da arte de escrever história, mas “enuncia os princípios que consignam a pretensão de racionalidade da ciência histórica de tal forma que eles valham também para a historiografia”. Assim, a teoria ganha uma função nova: a de racionalizadora da pragmática textual exercida pela teoria da história na historiografia. A historiografia passa a ser, desse modo, parte integrante da pesquisa histórica, cujos resultados se enunciam, pois, na forma de um “saber redigido”. (RÜSEN, 2001, p. 45).

170

Malerba, Ensaios

Considerações finais Do que pudemos rapidamente refletir acerca do conceito de historiografia, enquanto produto intelectual dos historiadores, mas antes enquanto práticas culturais necessária de orientação social, portanto, enquanto produto da experiência histórica da humanidade, podemos concluir que ela se apresenta duplamente como objeto e como fonte histórica. Talvez função desta mesma interpolação que lhe é inerente resulta a permanente dificuldade em circunscrever a historiografia enquanto legítimo campo de investigação. Ela estará sempre, dado seu próprio estatuto, vinculada a uma história das ideias e dos conceitos, portanto, uma histórica necessariamente conceitual. Mas Koselleck já ensinou como fazê-la, mostrando como os conceitos não são castelos no ar. Inscreveu, assim, a história da historiografia no campo da história social. Ela está toda aí, virgem, à nossa espera.

historiografia

171

processos: Elias

No início dos anos 1990, a tradução brasileira de O processo civilizador, de Norbert Elias, chegava envolta na atmosfera de expectativa criada pelos rumores das décadas imediatamente anteriores, quando foi enfim “resgatada” na Europa e nos Estados Unidos da América. O atraso em sua recepção pelo próprio circuito acadêmico do “primeiro mundo”1 impinge-lhe a mácula de “clássico adormecido”, que depõe menos contra a obra que contra a inteligentsia ocidental do pós-guerra. Sua descoberta, ainda que tardia, significa o reconhecimento ao valor de um pensamento sistêmico e inovador - dentre os mais importantes do século XX. Seu vigor reside não apenas no fato de ter-se antecipado em meio século a temas muito caros, hoje em dia, sobretudo à historiografia. Seu enfoque em aspectos do comportamento humano estava à margem da pauta de preocupações da ciência histórica, tal como entendida e praticada nos centros de pesquisa oficiais na década de 1930.2 Atualmente, o olhar dos cientistas sociais, incluídos os historiadores, volta-se para as maneiras de vestir-se, comer, amar, apresentar-se, para os gestos e cerimoniais. O pensamento de Elias sobressai, como se disse, pelo seu caráter sistêmico. Apresenta uma teoria original e coerente da dinâmica histórica dos homens no Ocidente. Se existe uma teoria que se aplique a um único objeto, a obra de Elias consiste numa teoria da civilização ocidental. Para formulá-la, partiu da crítica às teorias sociológicas estáticas e apriorísticas do século XIX, O processo civilizador, publicado em 1939 na Basileia, foi traduzida para o francês em dois volumes entre 1973 e 1975, para o inglês entre 1978 e 1982 e no Brasil entre 1990 e 1993. A sociedade de corte, de 1933, foi publicada na Alemanha apenas em 1969, tendo recebido traduções para o francês e o inglês respectivamente em 1974 e 1983. A versão em língua portuguesa, de 1987, é de Lisboa. Ver bibliografia final e Chartier (1990, p. 91-120). 2 Lembre-se que revista Annales surge nesse contexto de crítica à prática da historiografia acadêmica - e que Elias cita artigos nela publicados, além de Les caracteres originaux de la histoire rurale française, de Bloch. Ver Elias (1993c. v. 2). (Doravante apenas Formação do estado e civilização). 1

processos

173

caracterizadas por concepções de “sociedade” ou “civilização” como sistemas em estado de repouso,3 verdadeiros circuitos fechados onde sujeitos cumpririam “papéis” ou “funções” sociais. Desde seu primeiro trabalho, escrito em 1933 mas publicado em alemão apenas em 1969, percebem-se elementos de uma teoria social alternativa, cujo objeto não é propriamente um ser, mas um sendo. O gerúndio em lugar do particípio deve-se tomar como o essencial no pensamento eliasiano: a civilização é um processo e a ênfase recai na ideia de evolução, de desenvolvimento social. Aqui reside o grande incômodo ao pensamento sociológico e à historiografia contemporâneos, que descobrem Elias num momento em que a ideia de continuidade, passados 1968 e toda a diatribe pós-estruturalista, está totalmente em baixa. Mas a obra de Elias, uma vez redescoberta, não pode ser simplesmente desconsiderada, e o que se vê é uma apropriação, para usar um eufemismo, parcial de seu corpo conceitual. Além da ideia de processo, ressalta em Elias uma proposição nova da relação entre indivíduo e sociedade, preocupação que perpassa toda a existência do sociólogo.4 Sintomática é a divisão de sua opus magna em duas grandes seções, que mereceram das traduções francesa, inglesa e portuguesa e da versão brasileira, edições em separado. O primeiro volume de O processo civilizador, com o subtítulo “Uma história dos costumes” é o que mais brilha aos olhos dos novos historiadores e, certamente, dos editores. Embora, para Elias, a compreensão dos processos civilizadores implica a investigação da transformação simultânea das estruturas da personalidade e de toda sociedade, a explanação desse processo desenvolveu-se numa narrativa na qual, no mencionado primeiro volume, analisa-se a psicogênese das atuais estruturas da personalidade dos indivíduos, desde suas funções mais elementares até as norteadoras de sua conduta. O segundo campo de investigação, exposto no volume que tem por subtítulo “Formação do Estado e civilização”, focaliza o processo civilizador na perspectiva que Elias chamou sociogenética da estrutura total, “[...] não só Ver as observações constantes na “Introdução” feita para a edição de 1968, de O processo civilizador, apensa ao primeiro volume da edição brasileira. Elias (1990, p. 214-251). (Doravente apenas Uma história dos costumes). 4 Indicativo disso é, por exemplo, que sua A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1993), seja composta de três ensaios datados, respectivamente, de 1939, das décadas de 1940/50, e de 1987 - três anos antes da morte do autor. Há também uma traducão brasileira. As referências a essa obra, quando não houver indicação em contrário, reportam-se à edição portuguesa. 3

174

Malerba, Ensaios

de um único Estado-sociedade mas do campo social formado por um grupo específico de sociedades interdependentes, e da ordem seqüêncial de sua evolução”. (ELIAS, 1993c, p. 239). Para a percepção da relação íntima entre a evolução de estruturas sociais mais amplas, desde as casas principescas dos séculos XI e XII, passando pelas cortes absolutistas até as formações altamente complexas e centralizadoras dos atuais Estados nacionais, e a evolução das estruturas da personalidade dos indivíduos que, no mesmo percurso, tendeu a um crescente controle das pulsões e ao refinamento das maneiras, Elias precisou desenvolver um arsenal conceitual próprio que o distingue e o insere no debate sociológico e da psicologia no mesmo plano que pensadores como Marx, Weber ou Freud, seus principais interlocutores. O entendimento desses novos método e teoria, contudo, conforme adverte seu próprio criador, demanda uma necessária reeducação de nosso aparelho cognitivo, no sentido de termos que abandonar velhos hábitos de pensamento, fundados num procedimento gnoseológico tradicional. Influenciado até certa altura por Karl Mannhein, a preocupação com a sociologia do conhecimento é permanente em Elias.5 O vício maior da equipagem cognitiva do homem ocidental desde a viragem copernicana, no passo de uma maior consciencialização e individualização que marcam o processo civilizador nos séculos XV, XVI e XVII, é a descoberta de uma “razão” independente e autônoma, prova indefectível da própria existência humana. (ELIAS, 1993a, p. 149; ELIAS, 1989, p.74). Com o Cogito, ergo sum cartesiano, marca de um tempo quando os homens (re)começaram a livrar-se da necessidade de entidades fantásticas para a explicação do incógnito, quando foram se colocando no centro do universo como os dominadores cada vez mais poderosos de uma natureza cada vez menos indômita, mais inteligível e controlada pela observação e experimentação, começou a estabelecer-se um modo de pensar no qual haveria um eu cognoscente, portador de uma “razão”, reificada como um estômago ou outro órgão qualquer, e um objeto que se conhece, totalmente fora e independente daquele sujeito.6 Ver sua autobiografia intelectual: Elias, 1991. Essa problemática é recorrente na obra de Elias. Ver, por exemplo, Elias (1989, p. 138), Elias (1993, p. 79-80; 108; 163). É o tema por excelência da coletânea intitulada Engagement et distanciation; contribuitions à la sociologie de la connaissance. (ELIAS, 1993a).

5 6

processos

175

A divisão espacial entre um “mundo interior” - da personalidade -, independente de um “mundo exterior” - da sociedade - insere-se no processo de individualização em marcha nos últimos séculos e que ainda não chegou a seu termo. A partir de Galileu, aproximadamente, a operação gnoseológica do distânciamento entre sujeito e objeto converteu-se na introjeção da existência de uma distância real entre ambos, de maneira que o mundo seria “exterior”, enquanto o saber é algo “interior”. Porém, o saber veicula-se através da linguagem, que pressupõe um conjunto de homens intercomunicativos. A percepção e o entendimento de um objeto qualquer, por sua vez, viabiliza-se apenas em função de um acervo social de conhecimento, transmitido aos indivíduos por meio da aprendizagem e que, portanto, constrói-se no suceder de gerações: não é algo inato ou genético.7 Mas, ainda hoje em dia, a miopia com que se tratam os fatos humanos, sociais ou psicológicos, é tal que a disposição de “natureza” e “sociedade”, “natureza” e “cultura”, “indivíduo” e “sociedade”, “objeto” e “sujeito”, “matéria” e “espírito” como pares antagônicos é recebida como algo natural, insofismável. Segundo Elias, esta separação do universo em duplos contrários reflete uma concepção de mundo específica: e a divisão do próprio saber em disciplinas acadêmicas desvinculadas. Uma observação mais contundente a esse respeito consta na “Introdução”, de 1968. Desmitificando a imagem do homo clausus de Leibniz, o homem-mônada fechado em si mesmo, Elias diagnostica o contágio dessa concepção pelas ciências humanas. “Seus derivativos”, constata, “incluem não só o tradicional homo philosophicus, a imagem do homem da epistemologia clássica, mas também o homo oeconomicus, o homo psicologicus, o homo historicus, e não menos o homo sociologicus em sua versão moderna. As imagens do indivíduo traçada por Descartes, Max Weber, Parsons e muitos outros sociólogos são da mesma origem”.8

Essa discussão está presente também na “Introdução” à edição de 1968, e constitui-se num dos temas centrais de A sociedade dos indivíduos; ver, por exemplo, Elias (1993a, p. 121; 130; 180; 221-2); e “De ce que j’apris” In: Elias (1991, p. 126), em que indica sua noção da aprendizagem como quinta dimensão humana. 8 “Introdução à Edição de 1968” In: Elias (1990, p. 239). 7

176

Malerba, Ensaios

A pergunta que mais importa, frequentemente, não se faz: que relação há entre estas áreas? A resposta, segundo Elias, apontará para uma unidade entre natureza e sociedade.9 Os homens são parte integrante da natureza, inserem-se nela, da mesma maneira que os indivíduos não podem ser pensados “fora” da sociedade, nem a segunda fora dos primeiros. A sociedade é o próprio conjunto das redes de interrelações entre os indivíduos e, portanto, é dinâmica. Mais que isso, esse movimento apresenta uma ordem que ninguém planejou, não tem um “começo”, mas é inteligível. Para conhecer essa ordem, Elias desenvolveu todo um aparato conceitual, coerente e sólido, que o eleva à condição de referência no pensamento sociológico contemporâneo.10 Nas sociedades mais simples, antepassadas das do período a que denominamos “História”, os homens conviviam com uma natureza desconhecida e aterradora e com o medo permanente da morte. Suas interligações eram diminutas e não ultrapassavam as fronteiras da saciação das necessidades imediatas. A possibilidade de projeção a longo prazo, de elaboração da ideia de um “futuro”, eram extremamente limitadas. O campo de experimentação temporal não ía além do suceder dos dias. Não havia a necessidade de reprimirse impulsos quaisquer em função da busca de satisfação de algo para uma “semana” ou um “mês”. Não tem 10 mil anos que os homens começaram a rasgar a terra e nela meter sementes silvestres para produzir alimentos que só seriam consumidos meses depois, ou, com o mesmo intuito, domesticar animais selvagens. Esses foram os primeiros passos num longo caminho que os levou de coletores a agricultores; de caçadores a pastores; que os conduziu da lasca da pedra ao trato do metal e o mesmo que transformou o artesanato em indústria maquinizada. (ELIAS, 1993a, p. 155). Uma ilustração eloquente é fornecida no ensaio Sobre El tiempo, no qual se demonstra por meio de inúmeros exemplos a evolução da percepção diferenciada do tempo por diversos povos. Paradigmático é o exemplo das sociedades agrárias, onde o sacerdote investia-se do poder e da tarefa de determinar para seu povo o tempo propício para a colheita, acompanhando o movimento do sol ao longo do horizonte. As aldeias tiravam suas provisões da “natureza”, dependiam das chuvas para fazer germinarem as sementes e observavam o movimento do sol, um fenômeno físico, natural, para saber quando plantar, uma atividade social. Começaram a observar o sol, um ato social, para encontrar uma maneira de saciar sua fome, um instinto natural. Inúmeros outros exemplos transcorrem nas páginas desse ensaio. Elias (1989, p. 101). 10 Um tratamento sistemático de seus principais conceitos encontra-se em Introcução à sociologia. (ELIAS, 1980). De forma diluída há referências por toda a obra. Uma exposição global acha-se no artigo citado de Chartier, 1990 e também em Kuzmics (1988, p. 149-76). 9

processos

177

Nesse percurso assiste-se a uma especialização cada vez maior das atividades humanas, entrelaçando os indivíduos em redes cada vez mais complexas de ações, gerando cadeias cada vez mais amplas de interdependências devido à divisão das funções. Progressivamente, nesse continuum, essas múltiplas teias de integração passaram a exigir funções coordenadoras mais e mais especializadas. A criação de medidas de troca universais, numa palavra, as moedas, e de instrumentos precisos de medição da duração e para a sincronização das atividades sociais, como os relógios e calendários, são marcos específicos de uma transformação que passou a exigir de cada indivíduo em particular um autocontrole progressivamente maior na repressão aos impulsos espontâneos.11 O controle das pulsões instintivas e a crescente divisão funcional com agências especializadas de coordenação e integração correm paralelas, vinculando os indivíduos em cadeias de interdependências que foram se ampliando, inserindo-os em configurações socias de dimensões as mais diversas.12 O alto nível de sincronização à distância das atividades que verificamos atualmente exigem dos seres humanos um autocontrole bastante elevado. A constituição da personalidade dos homens contemporâneos é o resultado do mesmo processo a longo prazo que levou aldeias com uma crescente divisão funcional a se transformarem em colônias urbanas, em Estados-cidades, reinos, Estados dinásticos e estes em Estados nacionais. Convém ressaltar que se, para Elias, é clara a direção que se percebe a posteriori nessas transformações, elas não são contudo lineares nem mecânicas,

11 Chartier (1990, p. 103) identifica na obra de Elias três “correntes de evolução”, com modos e ritmos distintos: a evolução biológica, a social e a individual. Essa distinção nos parece forçada. Toda aquela transformação na divisão das funções e no controle dos impulsos, de acordo com o próprio Elias, não é sintoma “[...] de uma outra evolução biológica mas de uma evolução social e psíquica do mesmo tipo biológico [o homo sapiens] [...] E é precisamente pelo facto da evolução nesse sentido não ter sido uma evolução biológica, não estar ancorada na natureza humana [...], que se torna mesmo possível que ela retroceda”. Elias (1993a, p. 158, grifo nosso). 12 Uma primeira digressão sobre essas categorias encontra-se em Elias (1987a, p. 115). Sobre o conceito de configuração, ver “Trop tard ou trop tôt. Notes sur la classification de la théorie du processus et de la configuration” In: Elias (1993a, p. 161-184). Também Elias (1980) particularmente às p. 147-172, sobre a questão das ligações sociais ou cadeias de interdependência.

178

Malerba, Ensaios

[...] no âmbito deste grande movimento constataram-se de tempos em tempos rupturas, ou seja, épocas em que transformações sociais e psíquicas no mesmo sentido entreabriam aos seres humanos novas possibilidades de vida, até então perfeitamente inimagináveis, na verdade, novas possibilidades do ser humano em si.13

A noção de configuração, traduzida ainda como figuração ou formação social, estreitamente vinculada à de habitus ou “hábito social” é central na arquitetura conceitual de Elias, no sentido de evitar qualquer desentendimento na noção de evolução, como um movimento linear ou mecânico. Permite ao pesquisador esquivar-se de uma opção forçada entre indivíduo e sociedade. Cada homem, singular dentro de um grupo, possui uma personalidade própria pela qual interage com os demais. Mas seu caráter específico, ou seu hábitus social, não é algo inato, mas construído socialmente mediante uma herança cultural que lhe é introduzida desde a tenra infância e por meio de sua convivência com os que o circundam.15 Esse habitus ao mesmo tempo o identifica e o distingue dos demais, isto é, cria um equilíbrio na relação “nós/ eu”.16 Ninguém é um “eu” separado de um “nós”. E esse eu é tanto mais complexo quanto maior o número de configurações a que pertença. Nas sociedades contemporâneas, onde é muito amplo o número de entrelaçamentos, o habitus tende a ser multifacetado. Uma pessoa pode, além da família, ser um aluno em uma escola, associado a um clube ou entidade filantrópica, ou a uma associação criminosa clandestina, ao mesmo tempo em que pertence a este ou aquele país, habitando regiões litorâneas ou serranas, tropicais ou temperadas, com uma tradição religiosa hindu ou protestante, e cada um desses traços incidirão sobre seu habitus social. 14

13 Elias (1993a, p. 160). A preocupação básica do pensamento de Elias foi a de equacionar os problemas concernentes às estruturas dos processos sociais não planificados. Ver também Elias, 1993. 14 Em verdade, só com muita licença se permitiria traduzir configuration por “formação social”, o que não ocorre nas traduções portuguesas, feitas dos originais alemães, mas reproduz-se nas brasileiras, elaboradas a partir de versões em inglês. Na versão brasileira de A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994c) traduz-se “espírito” por “mentalidade”; “psíquico” por “psicológico”, “regularidade” por “lei”; “regularidade interna” por “lei autônoma”, e assim por diante. 15 A importância da aprendizagem na constituição da personalidade humana, como mecanismo de transmissão de toda a herança cultural, numa palavra, de toda a experiência humana, e dos instrumentos intelectuais que tornam adulta a criança é detidamente pensada em Elias (1980, p. 47; 92; 192). 16 Essa problemática ganha especial desenvolvimento em Elias, N. Transformações do Equilíbrio Nós-Eu (1987). In: Elias (1993, p. 175-258).

processos

179

O conceito de configurações sociais é, pois, mais versátil que a de sociedade, considerada como um sistema, uma vez que descarta a ideia de uma entidade fechada ou dotada de alguma harmonia imanente. Sua neutralidade permite que seja ampliada tanto a grupos com certo grau de estabilidade quanto a outros tensos e instáveis - como numa sociedade de corte. Mais que isso, pensar as configurações sociais de indivíduos interdependentes, em constante interação, elimina qualquer possibilidade de se pensar o desenvolvimento social de maneira teleológica.17 Antes de abordarmos esse problema tão delicado, cabem duas palavras acerca dos interlocutores de Elias. Primeiramente, cumpre ressaltar que Elias, não obstante as críticas abertas e refutações a algumas teorias e teóricos, sabe, quando é o caso, reconhecer-lhes o valor. Não é fortuito o fato de que, ao abrir o capítulo “Sobre o mecanismo monopolista”, em Formação do Estado e civilização, ou seja, ao tratar da monopolização da violência legítima por meio do controle das armas militares por uma autoridade central, durante a formação dos Estados absolutistas,18 remeta diretamente a Max Weber, quem até então havia melhor sistematizado esse assunto.19 Igualmente, na análise da sociedade de corte, desenvolve extensas reflexões sobre o carisma e a dominação carismática, discutindo veladamente com Weber, mesmo que para afirmar que a dinâmica da corte difere desse mecanismo e que Luís XIV tinha nada a ver com um líder carismático. Por outro lado, ao observar a tendência geral da civilização ocidental nos últimos séculos, que vai do controle social pelos Estados, centralizados e monopolizadores da tributação e da força física, a um crescente autocontrole das emoções pelos próprios indivíduos, que lhes produz sentimentos e vergonha e embaraço, e que tende, portanto, a uma pacificação geral da sociedade, Elias dirige um Não! maiúsculo às concepções de racionalidade, 17 Para traduzir a ideia de relações mútuas entre os homens, constituindo cadeias ou redes de interdependência, Elias constrói a imagem dos milhares, depois milhões de seres humanos percorrendo o mundo, seus pés e mãos ligados por fios invisíveis, sem haver nenhum conducteur. Ver Elias (1993a, p. 19). 18 Elias, Sobre o mecanismo monopolista. In: Elias, 1993c, p. 98. Essa discussão é retomada no ensaio Violence and civilization: the state monopoly of physical violence and its infringement. (ELIAS, 1987b, p. 274-84). 19 Em sua autobiografia intelctual, Elias paga tributo e aponta os limites de seus principais formadores, como K. Mannhein, K. Jaspers, Alfred e Marianne Weber.

180

Malerba, Ensaios

tais como as propostas por Weber. Se se observa aquela tendência geral, se é verificável uma ordem na mudança, nada comprova que ela tenha sido realizada “racionalmente”, mediante ação intencional de indivíduos ou grupos. Segundo Elias, “[...] a coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem”. (ELIAS, 1993c, p. 193). Nenhuma razão, entendida nem no sentido tradicional segundo a qual cada ser humano dispõe em sua “natureza”, como um órgão peculiar da espécie, de uma “luz” ou um “farol” que lhe ilumina o caminho, nem uma razão tida como um ente supraindividual, qual uma “astúcia da razão” com que algum tipo de “Espírito” guiaria a história da humanidade. (ELIAS, 1993a, p. 83-128; 1993c, p. 194). Em uma extensa nota, Elias demonstra como tais entendimentos impedem a observação do desenvolvimento social. Não há “ação racional” que o explique: As metas, planos e ações de indivíduos isolados constantemente se entrelaçam umas com as outras. Esse entrelaçamento que, além do mais, prossegue sem cessar de uma geração a outra, não é em si planejado. Não pode ser compreendido em termos de planos e intenções individuais, nem em termos que, embora não diretamente propositais, são modelados de acordo com modos teleológicos de pensamento. (ELIAS, 1993c, p. 288).

Em outra nota, Elias questiona a metodologia dos “tipos ideais” de Weber, conforme utilizada por Otto Hintze no estabelecimento de um tipo ideal subjacente ao feudalismo. De acordo com Elias, ao comparar diferente sociedades, um observador não produz tipos abstratamente construídos, mas opera com semelhanças entre estruturas sociais reais. Propõe, ante ao conceito de “tipo ideal”, que se trabalhe com o de “tipo real”, mais próximo aos mecanismos do aparelho gnoseológico humano. A construção de uma teoria do processo civilizador, de um modelo dinâmico da evolução histórica, não poderia simplesmente desconsiderar a contribuição decisiva de Karl Marx. Em algumas passagens, Elias ressalta a referência e, ao mesmo tempo, a intenção de vincar as diferenças em relação ao modo de pensar do criador do materialismo histórico, ao analisar os processos imbricados que chamou de “psicologização” e “racionalização”, perceptíveis de forma cada vez mais acentuada a partir do século XVI nas processos

181

cortes absolutistas,20 Elias contesta a concepção de uma história das “ideias” desvinculada da “história da sociedade”, como duas entidades segregadas, em que uma “determinaria” a outra. Esse esquema cindido não se ajusta à teoria do processo civilizador. A evolução dos modos de pensamento rumo a uma maior racionalização. Por exemplo, não mudaria a sociedade, porquanto constituí-se ao mesmo tempo num fenômeno psicológico e social. Assim tampouco explica-se como mera “ideologia”, empregada na luta entre grupos específicos.21 O conflito, a luta de classes, ressalta Elias, são “parte integral” da dinâmica civilizatória, “afetando decisivamente a direção em que ela mudou”. (ELIAS, 1993c, p. 235). Mas ocorre mais ou menos independentemente da vontade ou do interesse de classes ou grupos.22 A civilização não se restringe a um processo exclusivo de “ideias” ou do “pensamento”, mas uma transformação em toda a constituição humana, de que as ideias formam apenas um aspecto. Com isso, patenteia-se a impropriedade de conceitos como “superestrutura” e “ideologia” no estudo do processo civilizador. No mesmo sentido, dirige-se o argumento contra outros tipos de causalidade, como as fundadas em determinações econômicas ou meramente políticas, na análise, por exemplo, do surgimento do Estado modermo.23 O próprio conceito de classes sociais mostra-se ineficaz ante aquele objeto. Em uma nota à tradução inglesa de Formação do Estado e civilização, A psicologização e a racionalização corresponderiam, trocando em miúdos, à capacidade crescente de previsão da conduta das pessoas, manifestadas em estreita combinação, a partir do incremento das atividades urbano-comerciais, na nobreza de corte e nos principais grupos burgueses. (ELIAS, 1993c, p. 225). 21 A crítica à formulação marxista fundada num dualismo ontológico de um ser separado de uma consciência estende-se à sociologia do conhecimento de Mannheim. Ver “Alfred Weber et Karl Mannheim (1)” In: Elias,(1991, p. 133). 22 “Nascem da poderosa dinâmica das atividades coletivas que se entrelaçam, cuja direção geral qualquer grupo isolado dificilmente pode mudar. Não são acessíveis à manipulação consciente ou semiconsciente ou à conversão deliberada em armas na luta social, muito menos, na verdade, do que as idéias, por exemplo”. Ibidem. 23 “Os monopólios de violência física e dos meios econômicos de consumo e produção, sejam coordenados ou não, estão inseparavelmente ligados, sem que um deles jamais seja a base real e o outro meramente uma ‘superestrutura’“. Ibidem, p. 264. Cf., também, Elias (1994a, p. 62), em que Elias argumenta que somente com o aumento da diferenciação social das funções, com a criação de órgãos centralizados do poder e da respectiva pacificação interior, o que costumamos designar por “esfera econômica” se torna uma rede de interdependências distinta no fino tecido das interrelações humanas. 20

182

Malerba, Ensaios

Elias sugere, mas não desenvolve, um conceito mais amplo e maleável, batizado como “relação nativos-estrangeiros” (tradução infeliz de establishedoutsiders ou établis-marginaux), para suprir a lacuna que impele os cientistas sociais a deduzirem das relações de classe quaisquer formas de opressão social ou de emancipação de grupos. Nesse sentido, o modelo de classe mostra-se limitado.24 Quem, na década de 1930, se propusesse a tentar desvendar os meandros das estruturas da personalidade, o maior autocontrole das pulsões libidinais, a ponto de referir-se à “Psicologia histórica”, “uma ciência que ainda não existe” (ELIAS, 1993c, p. 234), não poderia deixar de fazer referência à obra de Freud. A utilização sistemática de conceitos relativos à estrutura psíquica, formulados pelo pai da psicanálise, indica a reverência a sua obra que, em mais de uma passagem, é explícita.25 O que não impediu Elias de mostrar os limites do emprego dos conceitos freudianos para o processo civilizador. Durante a construção do mesmo raciocínio em que rejeita a proposição marxiana de uma “ideologia” conscientemente aplicada por grupos sociais por detrás da racionalização verificada a partir do seçulo XVI, Elias tece suas críticas à arquitetura conceitual psicanalítica – na qual reincide o mesmo vício do pensamento sociológico, que consiste em interpor um abismo entre indivíduo e sociedade. (ELIAS, 1993, p. 167). Se não há uma evolução autônoma da consciência humana, da “razão”, das “ideias” ou qualquer denominação que se dê, pertence ao mesmo gênero de equívoco a proposição psicanílitica que tende a resgatar um “inconsciente”, “[...] concebido como um ‘id’ sem história, como o dado mais importante em toda a estrutura psicológica”. Faz-se a ressalva de que, embora na prática terapêutica tenha-se corrigido tal imagem, o mesmo não ocorre no âmbito puramente conceitual.26 24 Elias (1993c, p. 259). Em A socieade dos indivíduos, p. 92, questiona-se o modelo teleológico marxiano, segundo o qual, no curso de uma evolução automática de relações econômicas, e a partir de uma série de explosões sociais, o proletariado se imponha a uma sociedade finalmente redimida. Sobre o conceito de établis-marginaux, ver “Notes sur les juifs en tant que participant à une relation établis-marginaux” In: Elias (1991, p.150-160). Nesse texto há menção à obra na qual Elias mais detidamente trabalhou aquele conceito: Elias e Scotson, 1994. 25 Cf. nota 81 da edição brasileira de Uma história dos costumes. 26 Formação do Estado e civilização, p. 236: “A idéia de que a ‘psique’ humana consiste em zonas diferentes, que funcionam independendentemente umas das outras e que podem ser estudadas em separado, enraizou-se há muito tempo e profundamente na consciência humana”.

processos

183

O que importa não são um id, um ego ou um superego independentes, mas a relação entre essas funções psicológicas, que interagem dentro do homem, pondo em conflito as paixões e os impulsos assim como os instrumentos de controle (como a vergonha e o embaraço), conflito que vai se transformando em conformidade com a “[...] estrutura mutável dos relacionamentos entre seres humanos individuais na sociedade em geral” (ELIAS, 1993a, p. 237), no curso do processo civilizador. Percorrer a obra de Elias permite descortinar uma pensamento original, ancorado em instrumentos conceituais e pressupostos teóricos próprios, que ajusta contas com toda uma tradição gnoseológica ao mesmo tempo em que lança ao debate uma interpretação particular da história humana. Não seria abusivo dizer que a espinha dorsal do modelo interpretativo dinâmico de Elias constitui-se na percepção das configurações sociais complexas a que chamamos “sociedades” e das personalidades dos “indivíduos” como duas faces de um mesmo e único processo, o que implica a ideia de evolução, de desenvolvimento social, não bastasse o próprio nome de sua teoria e principal obra explicitá-lo. Valha a redundância frisar que Elias não é marxista, nem weberiano, nem freudiano, senão “eliasiano”, ou seja, alguém que pensou com sua própria cabeça e, para sermos coerentes com seus pressupostos, a partir de todo o conhecimento humano acumulado em centenas de gerações. Por isso, causa certa estranheza o conteúdo dos textos exordiais dos dois volumes das edições brasileiras de O processo civilizador, de autoria do filósofo e Prof. Renato Janine Ribeiro. (RIBEIRO, 1990, p. 9-12; RIBEIRO, 1993 p. 9-12). Em ambos, destila-se uma dissimulada comiseração por uma suposta ingenuidade de Elias devido a seu apego à categoria de evolução, enfatizando-se como sua grande contribuição o pioneirismo no resgate ao “pormenor, à minúcia, o irrelevante”,27 tão em voga com a difusão da história Ribeiro (1990, p. 12). Essa prática de apropriação parcial de uma obra não é, de resto, novidade alguma. Isaiah Berlin acusou o mesmo procedimento em Michelet, no que respeita à obra de Vico. O historiador francês derivou do filósofo italiano “[...] aquilo que encaixava na sua própria e já forjada concepção de história”. Apropriara-se da ideia voluntarista dos homens como forjadores de seu destino, mas “[...] meio que traduz em termos seculares, e meio ignora, de igual maneira que ignora os momentos platônicos de Vico, sua teoria dos ciclos históricos, suas tendências antidemocráticas, e sua admiração pelas sociedades primitivas, devotas e autoritárias, tudo o que constitui a verdadeira antítese da fé apaixonada de Michelet na liberdade popular”. (BERLIN, 1976, p. 10-11). 27

184

Malerba, Ensaios

das mentalidades. Seria até plausível considerar-se as maneiras à mesa, os cuidados com o corpo, por exemplo, “pormenores”, se não pelo fato de que são peças centrais, a matéria mesma, da análise da evolução da personalidade no Ocidente nos últimos dez séculos. Além disso, atribuir valor a essa obra, “a despeito” do conceito de evolução, soa a algo como afirmar-se a contribuição inestimável de Marx à teoria do modo de produção capitalista, “não obstante” seus conceitos de mais-valia ou de luta de classes; ou reconhecer-se o vigor do pensamento sociológico de Weber, “apesar” de seu conceito de racionalidade; ou ainda a teoria psicanalítica, apesar do inconsciente. Elias apresenta-nos uma teoria própria da civilização cuja ideia de processo, de evolução é central, agrade-nos ou não. E não parece apropriado condená-la como se de uma motivação “ideológica” ou meramente “ética” se tratasse. Passagens inúmeras há em que Elias demonstra controle absoluto sobre a questão axiológica. O processo civilizador que experimenta a humanidade há séculos não significa uma crença na ideia de progresso, 28 na perfectiblidade humana e no avanço da humanidade rumo a uma felicidade final, como proposto pelos filósofos dos séculos XVIII e XIX. Essa crença, bem como a arbitrária separação entre indivíduo e sociedade, expressa uma carga extremamente pesada de motivações afetivas, de “desejos e receios” do que os homens gostariam que fosse, e não o que realmente é.29 O acerto de contas com o ranço ideológico que perpasssa o Na famosa “Introdução à edição de 1968” (p. 221) por exemplo, é diáfana a passagem em se afirma que os homens não são, mas tornaram-se civilizados, “sem necessáriamente implicar que é melhor ou pior, ou tem valor positivo ou negativo, tornar-se civilizado”. Em seu ensaio Sobre el tiempo, ao desvincular-se a ideia de evolução da de progresso, própria do Iluminismo, mostra-se que nesta última um momento posterior superaria o anterior em moral e felicidade. Mas essa distorção ideológica não deve obstaculizar a observação de desenvolviementos em que se verificam progressos comprováveis - como o maior controle e/ou prevenção de intempéries naturais ou o próprio conhecimento humano, ou, de acordo com o caso, também retrocessos. Ilustrativo é o exemplo da evolução biológica proposta por Darwin: “Para Darwin não se tratava de se os anfíbios eram melhores, moralmente falando, que os peixes, e os mamíferos que os répteis, nem que os homens foram mais felizes que os macacos; apenas, clara e objetivamente, da questão de como e porque distintas espécies chegaram a ser o que são agora, e de explicar a superioridade funcional de umas espécies que surgiram depois, em relação a outras anteriores. A questão do desenvolvimento de sociedades em geral e do ‘tempo’ em particular requer um levantamento similar”. 29 Elias. Desejos e receios: auto-imagens dos seres humanos enquento indivíduos e sociedade. In: Elias (1993, p. 89-112). Ver também nota 130 de Formação do Estado e civilização, p. 289, que aborda o problema do processo social: “Esse nosso estudo do processo civilizador difere desses 28

processos

185

pensamento evolucionista desde o Iluminismo é feito, além da mencionada “Introdução” de 1968, no ensaio “Transformações do equilíbrio nós-eu”, no qual Elias historiciza o porquê do grande descrédito do conceito de evolução que grassa atualmente, nascido de suscessivas gerações que experimentaram o fracasso da promessa de um progresso constante, que rumaria numa ascenção linear para um destino feliz de uma humanidade emancipada. (ELIAS, 1993, p. 197). É sintomática, portanto, a leitura obtusa que se verifica na “Apresentação a Norbert Elias”. Primeiro porque força uma aproximação entre civilização dos costumes e “busca da felicidade”.30 Essa ligação entre civilização e felicidade não faz parte da análise de Elias: ele mesmo o afirma textualmente alhures.31 Faz parte mais da visão de evolução do crítico, que do criticado. Segundo, e mais pejorativa, é a afirmação de que em Elias há um “sentido” na história. Faz-se a ressalva de que Elias não apresenta a evolução como sendo a única possível, “[...] menos ainda como necessária para o homem. Mas não é menos verdade que a seu ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um caráter irreversível”. (RIBEIRO, 1990, p. 10). Na apresentação ao volume 2 de O processo civilizador, intitulada “Uma ética do sentido”, o que seriam reparos generosos à teoria de Elias ganham conotações bastante agressivas: uma atitude surpreendente por parte de quem já se mostrou tão sensível a um outro “discurso diferente”. Abandona-se a discussão esforços prgamáticos no sentido em que, suspendendo todos os desejos e exigências a respeito do que moralmente deve ser, tenta estabelecer o que foi e o que é, e explicar de que maneira, e por que, tornou-se o que foi e o que é. Pareceu-nos mais apropriado fazer o tratamento depender do diagnóstico do que o diagnóstico do tratamento.” Não é outra a questao central de Engagement et distanciation, particularmente de seu primeiro ensaio, homônimo. 30 Como se anuncia na referência à crítica inscrita em Eros e civilização, de Marcuse, em que se afirma que o custo da Kultur está na infelicidade, “no crescente recalcamento das pulsões cuja satisfação nos pode fazer felizes”. Ribeiro (1990, p. 10). 31 Elias (1993, p. 197): “É difícil, por exemplo, negar que o saber humano acerca das leis da natureza fez progressos ao longo de milênios e também no século atual. Mas, freqüentemente, assim que se pronuncia esta afirmação pode observar-se uma reacção automática de defesa. ‘É possivel’, é a resposta, mas será que os homens se tornaram mais felizes com estes progressos?’ Os factos perdem importância perante a desilusão que provoca o conceito de progresso. [...] A questão de saber se os homens se tornam mais felizes ou não ao longo desta transformação [da evolução social] já não se discute aqui. Trata-se do entendimento desta transformação em si, da sua tendência e, talvez mais tarde, também das suas razões”.

186

Malerba, Ensaios

da lógica interna dos conceitos, para se relacionar, de uma maneira muito estranha, sua vida e sua obra.32 Como, indaga-se, poderia um judeu fugitivo do nazismo, acreditar em dias melhores? A resposta, no plano filosófico, seria que Elias possuiria uma crença no progresso, crença repleta de uma dimensão ética: “a convicção de que o homem se civiliza, e de que isso constitui um valor positivo”.33 Tudo isso se explicaria pelo fato de Elias incorporar uma ética humanista, de ter feito “uma opção pelo homem”. Semelhante leitura soa a algo como “o que diria Nietzsche a respeito de O processo civilizador?” Os “desejos e receios” do filósofo inspiram-lhe mesmo uma aproximação entre “o que se pode salvar” de Elias e o pensador francês Michel Foucault. Ambos entenderiam que todo e qualquer gesto, de qualquer pessoa, pensador ou “não pensador” (sic), merece atenção de quem os estuda. Só que o olhar de Elias se voltaria para um eixo diacrônico, e o de Foucault para um sincrônico.34 É lógico que qualquer tentativa de interlocução é possível entre teóricos de posturas as mais discrepantes. Mas não é esse o objetivo do texto citado, e sim apontar para o que em Elias possa ser identificado ou aproximado ao pensamento foucaultiano, na lógica daquele discurso elevado à condição de paradigma de verdade. Bastaria, contudo, para desvanecer qualquer tentativa forçada nesse sentido, lembrar as passagens nas quais Elias critica os modelos eleáticos de pensamento, como o de Foucault, segundo os quais [...] apenas conseguimos conceber pontos isolados, mudanças abruptas e separadas, ou absolutamente nenhuma mudança. E evidentemente ainda temos muita dificuldade em nos imaginarmos como parte de um processo gradual de mudança, contínuo, dotado de estrutura e regularidade específicas [...], e como parte de um movimento que, tanto quanto possível, deve ser visto como um 32 Esse procedimento verifica-se também em Chartier, 1990, em que se chega à constatação trivial de que Elias era “um homem de seu tempo”. Mas a aproximação entre Luís XIV e Hitler parece ser fruto mais dos “desejos e receios” do comentarista que do próprio autor de A sociedade de corte. 33 Ribeiro (1993), Formação do Estado e civilização, p. 12. 34 Essas apropriações indébitas sempre acabam mutilando o pensamento original. O próprio Elias dá testemunho, com tristeza, de como seu pensamento, centrado sobre o processo de longa duração, foi posto à margem mesmo pelos alunos que ele formou na cadeira de Sociologia que criou em Leicester. Diz até entendê-los, pois se não o fizessem, poderiam ter comprometido suas carreiras: “Le fait de penser en termes de processus à long terme n’était pas du tout à la mode, en sociologie.” (ELIAS, 1991, p. 85).

processos

187

todo, tal como o vôo de uma flecha ou o fluir de um rio, e não como a repetição da mesma coisa em pontos diferentes, ou como algo que salta de um ponto para outro35.

A ideia de desenvolvimento social não renega totalmente a possibilidade de que houve progressos em algumas esferas da atividade humana, cujo exemplo mais eloquente é o conhecimento humano, elemento central de identidade do “eu”, e estreitamente entrelaçado com outro fator dessa identidade: a memória.36 Não se detecta esse sentido “positivo” que se afirma em “Uma ética dos sentidos”. Há, isso é claro, uma ordem na transformação das cadeias de funções e instituições que ligam os seres humanos, uma regularidade subjacente e verificável na história da civilização ocidental, diferente do que cada indivíduo planejou para si próprio,37 e estranha a qualquer formulação conceitual apriorística. Essa regularidade liga-se à tendência dos seres humanos a um aumento progressivo de sua autorregulação orgânica “impulsional”, controlada externamente por terceiros, para a “psíquica”, um controle introjetado, resultado da crescente diferenciação de funções e da interdependência dos indivíduos. As interrelações humanas não são organicamente prescritas; suas interpenetrações abrangem cadeias de gerações em uma transformação que não tem origem nem no aparelho genético do homem, nem foram intencionalmente desejadas ou planejadas por indivíduos singulares, mas nem por isso são caóticas.38 A taxativa de que essa ordem factualmente verificável é “definitiva” e possui um “caráter irreversível” não são passíveis de verificação na lógica 35 Elias (1991, p. 231). Também Elias (1990, p. 225). A distância entre os dois pensadores pode ser verificada a partir de outros planos, como as diferentes abordagens sobre a violência física e o controle social. Uma análise comparativa bastante apurada encontra-se em Kuzmics (1988, p. 165-9). 36 Elias (1993, p. 209). “A continuidade de uma memória que consegue armazenar o saber adquirido, e como tal também as experiências pessoais de fases anteriores, enquanto forças do comando activo de sensações e comportamentos de fases posteriores, e isto numa dimensão, largura e profundidade para as quais não existe correspondência nos seres não-humanos”. 37 Elias (1993c, p. 194; 239). Uma síntese encontra-se em “O problema da ‘inevitabilidade’ da evolução social”. In: Elias (1980, p. 173-92). 38 Elias (1993, p. 57): “[...] com a interpenetração irrevogável de acções, necessidades, pensamentos e impulsos de muitos seres humanos se produzem estruturas e mudanças estruturais numa determinada ordem e direção, numa ordem social, que não é pura e simplesmente de índole ‘animalesco-natural’ nem ‘espiritual’, que nem é ‘racional’ nem ‘irracional’”.

188

Malerba, Ensaios

conceitual de Elias. Ao contrário, a possibilidade de “retrocesso” na escala civilizatória é totalmente cabível, uma vez que a evolução da sociedade não está ancorada na “natureza” humana.39 Buscamos aqui refletir sobre alguns tópicos do pensamento de Norbert Elias, sem nenhuma pretenção de exegese e conscientes de que muitos outros sequer foram tocados; verificar em que debates se inseria e qual sua lógica interna de análise. Por isso, evitamos ao máximo referências externas a sua obra. Desejamos sublinhar a originalidade de uma teoria que começa a ser introduzida na pauta de preocupações dos cientistas sociais brasileiros. Mas sempre resta esse problema: a leitura da leitura. Se carregamos nas tintas foi para deixar expresso nosso estranhamento a um hábito acadêmico muito difundido, que consiste na cristalização deste ou daquele paradigma e a consequente rejeição a tudo que dele se afaste ou, mais generoso, o “enquadramento do aproveitável”, ou seja, o esquartejamento de algo que compõe um todo para aproveitamento de suas “partes”. Essa prática está sintetizada ali naquele exórdio, em que se atribui um sentido quando não haveria de haver sentido, e se o explica por uma necessidade de “razão”, depois de exaustivamente excluída a possibilidade de tal “astúcia”. E verifica-se também em seguida, ao se bem receber a prática interdisciplinar de Elias, ou sua atenção ao “irrelevante” e ao “pormenor”, e se sucatear a parte central de sua teoria, a partir da convicção de que ela “destilaria” um “sentido”. Uma obra tão rica merece ser lida na integridade de suas reais proposições, nos sejam elas simpáticas ou não, compatíveis ou não com nossos “desejos e receios”. Sobretudo quando se trata da divulgação de uma matriz teórica de tamanha envergadura - da qual depende toda sorte de apropriações. Idem, p. 158. O conceito de evolução é absolutamente central no pensamento de Elias, que o explorou, para além do nível de integração complexo entre indivíduos a que chamamos: “sociedade”, no terreno da epistemológica em geral. Demonstrou como as ciências evoluíram em seus campos particulares de investigação, não havendo, contudo, uma renovação epistemológica correspondente. Assim, ainda hoje muitos cientistas se apoiam num modelo da Física cuja representação da natureza, seja no plano astronômico ou molecular, é estática, com regularidades que podem ser enunciadas em “leis” eternas. A formulação de processos de síntese, de integração e desintegração, por exemplo, da busca da compreensão da gênese e evolução dos corpos celestes a partir de um Big-Bang, que pressupõe a concepção de um universo em expansão, fez a física astronômica, desde Hubble, lançar-se à explicação da evolução mediante a síntese, onde antes, na mecânica newtoniana, só era permitido um conhecimento descritivo. “Pensées sur la Grande Évolution”. In: Elias (1993a, p. 177-254). 39

processos

189

símbolos:

Elias e Bourdieu

Preâmbulo As representações, sociais como preferem uns, mentais como preferem outros, não são um tema de pesquisa que se circunscreve ao campo da História. A força que ganhou o conceito nos estudos históricos na última década talvez assim dê a entender, mas as propostas de tratamento e os desdobramentos do assunto pela via da “questão narrativa” estão a exigir um olhar mais cuidadoso. É inegável a importância desse veio temático que tem feito proliferar pesquisas, particularmente no caso das representações culturais e das representações políticas, quando essas duas não se cruzam organicamente. Não obstante, embalado concomitantemente pelas obras do New Criticism americano e pela onda pós-estruturalista francesa que, no “giro linguístico” dos anos 1960, reduziram todo o conhecimento nas Ciências Humanas a efeitos de discurso, o tema das representações passou a ocupar um lugar central na própria discussão do estatuto epistemológico da História. O objetivo deste ensaio é o de apresentar o tema das representações sob uma ótica bastante singular, aquela formulada na obra do sociólogo alemão Norbert Elias, pois acredito que nela exista uma alternativa aos impasses que hoje travam as teorias do social.1 Na primeira parte, procuro sistematizar os principais elementos constituintes de sua teoria simbólica, que dispõe, numa mesma equação, as questões de conhecimento, linguagem e representações, reclamando por uma nova atitude epistemológica que supere a ilusória separação sujeito/objeto promovida pela modernidade e que seja formulada na Tendo por eixo o tema das representações, essa seção não faz mais que procurar sintetizar uma sofisticada arquitetura teórica que, no caso de Elias, não se encontra sistematizada pelo próprio autor, mas dispersa por sua extensa e fragmentada obra. Já havia feito algo semelhante em Malerba (1996), apontando alguns desenganos iniciais que houve na recepção da obra de Elias no Brasil. Uma oportunidade maior de desenvolver esse assunto, o da recepção da obra de Elias no país, foi levada a cabo em Malerba e Gebara (1999).

1

símbolos

191

consideração iniludível do longo prazo, ou seja, processualmente. Na segunda parte, apresento uma discussão em torno do conceito de habitus, instituidor das representações sociais e, a meu ver, fértil caminho metodológico para enfrentarse o tema das representações no cotidiano da pesquisa concreta. O conceito que faz parte de um fundo comum de conhecimento nas Ciências Humanas, elaborado e (re)elaborado ao longo de gerações, merecerá aqui uma análise comparativa entre duas matrizes: a de Elias e a de Pierre Bourdieu, escolhidas em função de suas muitas proximidades: as diferenças são o fundamento para uma opção.

Historicização da fratura epistemológica, segundo Elias Em “Curialização e romantismo aristocrático”, último capítulo de A sociedade de corte, Elias indica, tendo como pano histórico a curialização das sociedades guerreiras, o momento preciso em que o progresso crescente do individualismo e do controle das emoções começou a estabelecer uma postura de distanciamento crescente que o homem passou a adotar frente a natureza, resultado não de uma transformação das “ideias”, mas do próprio habitus dos homens ocidentais que então se operava. (ELIAS, 1987, p. 211). Para mostrar a dificuldade que os homens de então, e mesmo de hoje, têm para perceber o caráter daquela transformação, que levou a uma conscientização psicológica e individuação sem precedentes, utiliza o exemplo do romance da Astréia, de Honoré D’Urfé. Neste romance que marcou época se apresenta o grande problema dos homens do Renascimento, que é o das relações entre realidade e ilusão. A ironia desses acontecimentos seria precisamente esta, a de que, no momento em que os homens passam a alargar seu domínio sobre o mundo, em particular sobre aquilo que designamos natureza, mas também sobre si mesmo e sua condição, começa também a interrogar-se sobre o que é ou não verdadeiro, real, objetivo e ou que é apenas pensamento, ilusão, impressão subjetiva e, como tal, desprovida de realidade. Ora, para Elias, este problema está estreitamente ligado ao desenvolvimento de mecanismos específicos de autodomínio no âmago do homem, da fundação da concepção do homo clausus, encoberto com a couraça que lhe dá a impressão de viver longe do mundo, numa jaula: o homem 192

Malerba, Ensaios

já não tem certeza sobre se o que penetra através da couraça não será ao fim e ao cabo uma miragem, uma invenção, uma fantasia da sua imaginação e, por esse fato, irreal. (ELIAS, 1987, p. 216; 1990, Apêndice). Elias procura, então, por intermédio do romance de D’Urfé, compreender essa individualização sintomática no processo de curialização da sociedade guerreira dentro do processo civilizador mais amplo que o engloba. E o faz definindo um conceito histórico de representação, mostrando como, no nível anterior de consciência psicológica, o conceito de “real” era impregnado de afetividade, era pouco refletido e emocional. Essa realidade carregada de afetividade era simplesmente tomada como existente. Utiliza-se do oportuno exemplo da relação dos primitivos com suas máscaras, que poderiam ser sentidas como portadoras de um grande espírito durante um ritual, ao fim do qual se as poderia atirar ao lixo, uma vez que o espírito já teria “abandonado a máscara”. Vendo-se mais de perto, verifica-se que o que de fato abandonou a máscara quando a situação mudou foi a emoção do homem subjugado pela sua experiência. A esse nível, a identidade do objeto não se baseia ainda prioritariamente no seu caráter de objeto , mas no caráter das representações afetivas que sugere. Assim, a emoção que suscita é forte, o objeto é sentido como “forte”. Esse elemento de força é e continua a ser o critério determinante daquilo que os homens consideram como “real”.

É apenas a partir do final da Idade Média que uma corrente de pensamento, até hoje preponderante, procura retirar essa carga emocional, conferindo identidade própria aos objetos, independentemente das cargas subjetivas de seus observadores. O mundo se “objetiva” nessa passagem ao mundo moderno, não casualmente coetânea ao nascimento da ciência, cuja maior ambição será retirar a carga emotiva do conhecimento humano sobre o mundo, controlando todos os elementos e etapas da construção do conhecimento por meio de um método científico com validade universal. (ELIAS, 1971; 1971a). Mas se esse passo na evolução da humanidade significou reais avanços, fez crescer também incertezas: principalmente a incerteza sobre seus conceitos, com os quais procura explicar a natureza: os homens têm, ainda, muita dificuldade em acreditar que o que “pensam” da “realidade” não é o produto artificial de seu intelecto, não é um simples “pensamento” ou representação.

símbolos

193

E aqui chegamos no ponto nodal de nossa discussão epistemológica: Elias mostra a base histórica de fundação do atual antirrealismo epistemológico, que recebeu a discussão sobre as representações como uma dádiva: Essa incerteza, essa dúvida sobre a relação entre a realidade e a ilusão, atravessa todo o período. A tendência que se manifesta no domínio da pintura para representar a realidade tal como sentida é, em certo sentido, sintomática das flutuações e dos amálgamas que se observam nos limites da realidade e da ilusão. As tentativas de projetar fenômenos especiais em três dimensões acabam por produzir uma representação artística mais realista, mais próxima da verdade vivida, que é o objetivo que nesta época se pode atingir. Porém, a imagem projetada na tela dá, simultaneamente, a ilusão do espaço tridimensional. A capacidade e ambição de conferir à ilusão as aparências de realidade vão em paralelo, no plano pictural, com a inquietação filosófica que se interroga sobre a realidade daquilo que se apresenta como tal. Os homens, chegado a este nível da consciência psicológica, fazem incessantemente a si próprios a mesma pergunta: “o que é realidade? O que é ilusão”? (ELIAS, 1987, p. 218, grifo nosso).

Essa inquietação, manifestada na mudança do habitus nesses momentos derradeiros da Idade Média – e tão atual com os recurso da realidade virtual hoje em dia, quando já se encontram na web sites que exalam odores -, é a mesma que se verificava então no plano do pensamento filosófico. A incerteza sobre o conteúdo da realidade e o alcance das projeções da mente humana assenta nessa incerteza crônica que caracteriza o habitus dessa época, quando o homem procura “objetivar” os obstáculos que impõe à sua emotividade em relação aos objetos de sua reflexão.2 O ato de distanciamento entre o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento parece ser aos homens dessa época uma distância efetiva entre eles, portadores da razão que os permite conhecer e dominar o mundo, e os objetos, naturais e exteriores. O habitus constrói então a couraça dos autocontroles integrados, que se torna para eles uma barreira real erguida entre os homens e os objetos de seu pensamento: A incerteza sobre a natureza da ‘realidade’ que leva Descartes a concluir que só se tem certeza do próprio pensamento dá-nos um exemplo eloqüente da ‘reificação’ de uma representação emocional. Ela corresponde a uma particularidade estrutural dos seres humanos que atingiram um determinado nível de evolução social e de consciência psicológica. (ELIAS, 1993 p. 219). Toda essa discussão sobre o surgimento da ciência moderna também na famosa “Introdução de 1968”, reproduzida em Elias (1990, p. 240-245).

2

194

Malerba, Ensaios

O sentimento de que existe um abismo entre o homem e os objetos em qualquer relação de conhecimento (mesmo a científica) foi e é efetivamente autêntico. Porém, como Elias demonstra, esse abismo não existe senão enquanto constituinte de um sentimento, no mesmo sentido da crença efetiva no poder mágico que os povos primitivos atribuem às suas máscaras. A única diferença entre esses sentimentos seria a de que, no caso da epistemologia moderna, “a couraça emocional, fruto da civilização, é muito mais duradoura, sólida e englobante”.

Proposição epistemológica do problema segundo Elias3 Para se compreender as representações e resolver o problema da verdade no conhecimento é preciso superar um hábito que condiciona nosso pensamento, aquele instituído pela modernidade e que afirma a separação entre “real” e “abstrato” Desde o início da era moderna, a ciência se impôs como a via mais eficaz de acesso à realidade, à verdade e à natureza. Sua concepção do ato do conhecimento, que ainda hoje impera, no entanto, baseia-se na separação entre o sujeito do conhecimento e seu objeto. Assim, temos inculcado em nossa própria representação desse ato que seu produto, a ideia, o pensamento, o conhecimento, seja algo “imaterial”, abstrato, referido a algo que é concreto, natural. Nas palavras de Elias, a separação radical entre homem e natureza ou “cultura” e natureza faz parte de nosso habitus. É preciso superar essa atitude gnosiológica, transformar nossa aparelhagem cognitiva, se quisermos superar a maldita dúvida cartesiana, da possibilidade ou não do acesso a um mundo “exterior”, baseada na ideia de homem fechado em si mesmo, do homo clausus leibniziano, que se depara com um mundo que lhe é estranho e começa a conhecê-lo a partir de um ponto zero. Essa concepção está na base das teorias pós-modernas da história.

Este item e o subitem seguinte (Linguagem e conhecimento) foram desenvolvidos anteriormente, no item Conceito e realidadena teoria simbólica de Elias, do capítulo Narrativa: história e discurso, supra. Com vistas a evitar repetições, reproduzirei a seguir apenas suas ideias centrais, suprimindo agora as notas.

,

símbolos

195

Linguagem e conhecimento Elias parte da constatação óbvia de que qualquer ser humano torna-se plenamente humano ao aprender uma língua, o que acontece geralmente na sua primeira infância, quando dizemos que a criança está aprendendo a “falar”, uma língua obviamente falada por outros antes dela nascer. Não existe uma “língua individual”, ela só se concretiza no ato de transmissão das mensagens que acontece sempre envolvendo, no mínimo, um emissor e um receptor. As línguas têm uma força vinculativa em relação a seus usuários e não existe sem eles: não há uma língua extra-humana, metafísica, ou inata, natural, como já desejaram os estruturalistas; a língua é no ato da fala. Para serem operativos enquanto língua, os padrões sonoros devem ser compreendidos por outros seres humanos para além de um locutor individual. Ou, como diz Elias, “a força de uma língua tem sua raiz no fato de representar um cânone unificado de fala que deve ser observado por todo um grupo de pessoas a fim de manter a sua força comunicativa”. Esse cânone é como o cimento do habitus que identifica uma configuração humana. Aqui se confundem aspectos que nossos hábitos disciplinarizados tendem a separar: natureza e cultura. Os seres humanos foram os únicos do planeta que criaram meios de comunicação e orientação estandardizados e que variam de grupo humano para grupo humano, dentro da espécie. Ao contrário dos tipos pré-humanos de comunicação sonora, cuja forma dominante é determinada geneticamente, as línguas como meio de comunicação têm que ser adquiridas pela aprendizagem. Os seres humanos, pela sua constituição biológica, estão preparados para a aquisição individual de uma língua por meio da aprendizagem a partir de uma idade bastante precoce, mas não nascem dotados de uma língua. São dotados naturalmente para aprender uma língua, mas só o fazem com o contato com outras pessoas do seu grupo social, inicialmente e em geral dentro da família. Este é um exemplo do entrelaçamento da maturação natural da evolução biológica, com o desenvolvimento social. No longuíssimo prazo biológico, os seres humanos superaram os meios de comunicação não verbais para elaborarem símbolos cada vez mais complexos de orientação e de comunicação.

196

Malerba, Ensaios

A aprendizagem da língua é um elemento fundamental para chegarmos ao ponto. Para aprender uma língua, para aprender a falar, o equipamento orgânico da criança tem de ser padronizado pelos padrões sonoros do grupo em que ela nasceu. Diferentemente dos outros animais, quando a criança aprende uma língua, recebe junto com ela um fundo social de conhecimento da sociedade em que se encontra, ao qual se acrescerá por certo sua própria experiência de vida. O processo de aprendizado de uma língua ilustra bem a falácia da imagem que herdamos da separação ontológica entre “natureza” e “cultura”. Nosso equipamento cognitivo tem um vício que precisa ser superado, o de reduzir processos a condições estáticas antitéticas. Assim, fizemos com o ser humano, dividindo-o em duas entidades ontológicas separadas, uma concreta, visível, e seu oposto, uma outra abstrata e intangível. É o que ocorre com a separação entre corpo e alma, ou matéria e espírito ou ainda ser e consciência. Mas nenhuma antítese pode representar de modo adequado seu objeto sem uma síntese complementar, e que seja uma síntese processual. Assim acontece com o falso binômio natureza/cultura. Não temos ainda uma teoria que dê conta de uma síntese em que encontremos os homens dentro de um único e mesmo longo processo de evolução do universo: ao mesmo tempo astronômico, biológico e social. Por isso, tendemos a ignorar o fato de que o uso de uma linguagem e, num sentido mais amplo, o uso, a manipulação e o armazenamento de um grande número de símbolos pressupõem um equipamento biológico que exigiu milhões de anos de evolução. Só a humanidade atingiu essa emancipação simbólica, a sua libertação da submissão a sinais geralmente inatos e a transição para a dominação de uma padronização da voz em geral aprendida visando aos propósitos da comunicação. Mas tendemos sempre a ignorar que a própria sociedade é um nível de integração da natureza.

A emancipação simbólica Esse foi o grande diferencial dos seres humanos em relação aos outros seres deste planeta: sua capacidade de produzir símbolos na linguagem para coordenar atividades ou para designar acontecimentos. Pela nossa competência

símbolos

197

de enviar e receber mensagens codificadas na forma de uma língua, temos acesso a uma dimensão do universo que é exclusivamente humana, para além das quatro dimensões do espaço/tempo, a quinta dimensão, a dos símbolos. E essas dimensões não são em absoluto separadas. Elias retoma o velho exemplo da mesa. Alguém que fale em inglês, ao tocar tal objeto, poderia dizer que se trata de uma table; um alemão diria tratar-se de um Tisch. Fica evidenciado que os seres humanos não vivem num mundo tetradimensional, mas sim pentadimensional. Eles localizam os objetos de comunicação de acordo, não apenas com sua posição no tempo e no espaço, mas tal como ele é indicado simbolicamente pelo padrão sonoro que os representa na língua dos locutores. (ELIAS, 1994b, p.127 - p. 47). Assim é que uma língua, no ato da comunicação entre um emissor e um receptor, representa simbolicamente o mundo tal como é experimentado pelos membros de uma sociedade na qual ela é falada. Entendendo, então, que os conceitos são sociais, coletivos, Elias parte para uma crítica à gnosiologia tradicional, que nos legou o modelo básico do ser humano individual, portador de uma consciência que lhe serve de “janela” para o mundo, que separa sujeito e objeto do conhecimento. Ora, já vimos que a aquisição do conhecimento é um ato social, já que não existe sujeito individual da comunicação. Portanto, um sujeito não cria conhecimento por “abstração” e não é um ponto de partida, o início do ato do conhecimento. Os conceitos não são nem concretos nem abstratos, mas representam níveis diferentes, capacidades diferentes de síntese.4 A língua na qual uma pessoa é educada é seu meio de acesso ao conhecimento. Mas, olhando por outro ângulo, ela pode ser ao mesmo tempo um obstáculo ao conhecimento: por exemplo, para uma pessoa decifrar os códigos de uma outra cultura diversa da sua, portadora de um diferente fundo social de conhecimento. Quando pensamos a(s) língua(s) como os limites concretos dos símbolos sociais herdados, uma atitude quase que natural é utilizarmos imagens espaciais para facilitarmos a compreensão das coisas. Por exemplo, somos tentados a tomar a linguagem e o conhecimento como 4 Exemplo eloquente disso Elias deu em seu ensaio Sobre el tiempo (ELIAS, 1989b), ao questionar que o tempo não é nem físico ou concreto, nem individual ou abstrato, mas uma síntese simbólica com alto grau de complexidade que os seres humanos desenvolveram para orientar-se em sociedade. Ver Malerba, 1994 e 1996.

198

Malerba, Ensaios

“portas”, ou “janelas” ou uma “cortina” entre nós e o mundo. Porém, sempre segundo Elias, essas imagens são inúteis, pois os símbolos não são “imagens” ou “espelhos” do mundo, nem janelas ou cortinas. Eles não têm uma função imitativa ou pictórica, mas representacional. Representam objetos de comunicação no interior de uma comunidade lingüística pela simples razão de que a natureza humana prepara a criança em desenvolvimento para uma impregnação com uma língua coletiva e de que a tradição social tornou os padrões sonoros específicos nos representantes de objetos de comunicação específicos. (ELIAS, 1994b, p. 97).

Elias deixa muito claro o caráter social das línguas e de sua função como meios de comunicação e orientação. Esse dado permite compreender o termo “significado”, que seria incompreensível se pensássemos os indivíduos vivendo isoladamente. “Não precisaríamos de uma língua, se pudéssemos viver isoladamente”. Em outras palavras, não precisaríamos de representações.5 É preciso um alto grau de distanciamento para se compreender que o pressuposto de proposições gnosiológicas como as de Elias partem, não da concepção de um ato de conhecimento que tem no princípio o indivíduo isolado, portador de uma razão que lhe permite conhecer o mundo, mas de configurações que pressupõem uma pluralidade de seres humanos interagindo no tempo. (ELIAS, 1993, p. 121; 126; 180).

Falso, verdadeiro ou mais ou menos congruente com a realidade A troca linguística ocorre, portanto, entre pessoas que vivem dentro de uma comunidade linguística. Tudo o que os membros dessa comunidade podem experimentar e comunicar a outros membros encontra-se localizado no Não pretendo desenvolver este ponto aqui, mas apenas indicá-lo. Caberia um estudo mais sério do porque os seres humanos, a partir de determinado momento, passaram a ter necessidade de representações históricas, de pensar a vida de um grupo humano mais ou menos amplo na duração. A partir do momento em que isso se institui uma prática social, as representações históricas não podem ser pensadas como discursos sem referente, mas inscrevem-se no processo da própria constituição dos grupos sociais, como mecanismo identitário, por exemplo. Para ilustrar, pensemos na importância do discurso histórico na construção dos Estados nacionais ocidentais no século XIX.

5

símbolos

199

interior da língua. Ela representa o mundo inteiro tal como ele é experimentado pelos membros dessa comunidade. Tudo o que é conhecido, o é pelo nome que os homens atribuem. Como diz Elias, “a ocorrência inominada é aterradora”. Se os símbolos de uma língua não fossem minimamente congruentes com a realidade, com os dados que eles pretendem representar, os seres humanos não poderiam sobreviver. Esse ponto é central na teoria simbólica de Elias. Claro que a linguagem pode servir como uma representação muito exata da realidade, mas também pode ser uma representação incorreta, embora, de uma maneira ou de outra, é o que uma determinada configuração social possa produzir para orientar-se no mundo num dado momento de sua existência. Mas é imperativo ter-se em mente, para se compreender este ponto da teoria simbólica de Elias tal e qual ele a concebeu, que “realidade” aqui não pode ser pensada no sentido ontológico, pelo menos não de uma filosofia do ser tradicional que o percebe como algo estático, uma realidade absoluta a qual nunca teremos certeza se nossa aparelhagem cognitiva pode acessar ou se ela sistematicamente nos trai. Essa aporia vem desde Platão, com colorações diversas. “Realidade”, para Elias, é o mundo em transformação. Sua ontologia é processual, já que busca conhecer não o ser, mas o sendo das coisas. Nesse sentido, a realidade será sempre correlata à capacidade das sociedades humanas em conhecê-la e transformá-la. Portanto, com esse conceito de “maior ou menor congruência dos símbolos para com a realidade”, Elias supera a armadilha da verdade absoluta e de sua (im)possível representação. A relação entre os símbolos sonoros e aquilo que eles representam está irremediavelmente atrelada à sua função social como meio de orientação e de comunicação: os símbolos permitem às pessoas diagnosticarem objetos particulares, determinar sua natureza e seu lugar no universo e discutirem entre si sobre objetos específicos na ausência destes. Para ilustrar isso, Elias dá um exemplo translúcido. A constatação de que os seres humanos estão sempre dependentes dos símbolos para orientarse e comunicar socialmente pode levar a ideia de que nada existe fora dos símbolos. Nada mais falacioso. Claro que é perfeitamente possível se distinguir entre o modo de existência e o modo de representação das coisas. Mas o fato de os seres humanos dependerem dos símbolos para sua orientação no mundo não implica que os objetos, ainda que os objetos conceituais, dependam dos

200

Malerba, Ensaios

seres humanos para existirem. Todas as línguas vivas e mortas têm padrões sonoros para representar o Sol e a Lua. Isso não implica que esses corpos celestes dependam dos seres humanos dizerem as palavras Sol e Lua para que esses astros existam, independentemente do fato de que, durante muito tempo e em várias sociedades, Sol e Lua tenham sido percebidos como deuses e deusas ou outras fantasias coletivas, portanto uma percepção com menor congruência com a realidade.6 Apenas recentemente percebeu-se que aquele astro que brilha, ilumina e aquece a Terra é uma massa incandescente de hélio e outros gases. Lembre-se que mais recente ainda é a admissão de que a Terra é que gira em torno dele, e não o contrário.7 Esse exemplo mostra que o equilíbrio no significado das palavras entre sua congruência com a realidade ou com a fantasia pode variar. Mas num caso ou no outro, percebidos como deuses ou como astros da galáxia, os símbolos que designam Sol e Lua serviram como meios de comunicação e de orientação entre diferentes povos humanos. Durante milhares de anos, o ritmo da transformação social e do alargamento do conhecimento foi, sem dúvida, muito lento, embora agora pareça estar crescendo em razão geométrica. Isso também ocorre com o fundo de conhecimento humano congruente com a realidade. Não obstante todo o avanço tecnológico, temos ainda muito presentes em alguns povos do planeta, no Brasil inclusive, representações da realidade bastante congruentes com a fantasia. As imagens míticas ligadas aos seres da floresta, com suas sereias, nereidas, sacis, caiporas, lobisomens etc, povoaram até muito recentemente o imaginário de populações inteiras. A transição de uma imagem mítica para uma imagem científica da natureza é frequentemente considerada como algo trivial. Mas, de fato, ela é um dos caminhos seguidos pelo desenvolvimento 6 Em A sociedade dos indivíduos, Elias faz uma longa discussão sobre a necessidade da fantasia e da magia nas sociedades humanas. Desde priscas eras elas serviram para aliviar aos seres humanos do peso de sua incapacidade para controlar determinados fenômenos que de outra maneira não seriam capazes de controlar, como a fertilidade ou não dos solos e dos rebanhos, as intempéries (raios, inundações), epidemias e outras forças da natureza que afetavam diretamente sua vida. “A magia”, diz Elias, “através de pensamentos e ações e ações imaginárias, ajuda os seres humanos a atenuarem a insuportabilidade de uma situação em que como crianças se vêm entregues a forças enigmáticas e incontroláveis”. (ELIAS, 1993, p. 98-99). Tal esfera da sociabilidade humana é muito marcante nas atitudes das diversas sociedades diante da morte e para com seus morimbundos. Ver também Elias (1989a). 7 Cf. a citada “Introdução de 1968”.

símbolos

201

dos símbolos no sentido de uma maior congruência com a realidade, o que em hipótese alguma significa ser este o único caminho ou o ponto final do conhecimento humano. Tomando mais uma vez a imagem do Sol, o fato de ele ter sido recentemente entendido como uma fornalha de gás em chamas, na imagem dos leigos, pode vir a revelar-se ou não como o estágio final desse processo cognitivo.8 Hoje é, sem dúvida, maior o desenvolvimento que temos no sentido de uma maior congruência com a realidade, mas não é necessariamente o ponto final. Outro exemplo elucidativo são os bestiários da Idade Média, quando comparados com um livro atual sobre animais. Nos primeiros, encontramos descrições vivas de javalis, leões, ao lado de unicórnios e sereias; esses últimos, sabemos hoje, produtos da imaginação humana, mas ali representados como reais. Nos livros de hoje sobre animais, esses seres míticos desapareceram. Assim também acontece com a menor unidade da matéria. Os átomos já não fazem jus ao nome, uma vez que se descobriram partículas ainda menores que constituem os prótons e elétrons. Os exemplos podem ser estendidos ao infinito, se pegarmos então as representações antigas sobre o corpo humano com seus órgãos, as representações dos oceanos e das partes incógnitas do planeta, as representações do espaço sideral etc. Inclusive, as representações daquilo que não se conhece, mas apenas se crê, como Deus. Do mito de Adão e Eva ao “Big-Bang”, as teorias sobre o surgimento do universo apontam claramente para uma maior congruência com a realidade, embora, também aqui, tenhamos certeza de que ainda não se disse a palavra final sobre o assunto. Isso aponta para uma outra característica dos símbolos, que é sua flexibilidade. Os símbolos podem mudar e o têm feito em geral no sentido de uma cada vez maior congruência com a realidade. A dúvida básica, a incerteza cartesiana fundamental quanto a se saber se os seres humanos podem ou não ter Elias (1971, p. 359), onde mostra que a transição da representação geocêntrica para a heliocêntrica do universo físico, inaugurada por Galileu, Copérnico e Newton, indica de maneira paradigmática a mudança crucial da dominância de uma percepção centrada no indivíduo para uma orientação mais centrada no objeto. Nessa etapa, o equilíbrio entre os dois, na exploração da natureza pelo homem, dirige-se visivelmente em favor da última: “However, unlike the rigid static simbols ‘truth’ and ‘falsehood’, ‘objective’ and ‘subjective’, the symbolic representation of this change in terms of shifting balance between subject-centredness and object-centredness of knowledge in favour of the latter, does not imply, as the classical epistemological models do, that one theoretical paradigm, that of Newton, is, as it were, the final state in the developement of knowledge in this field”.

8

202

Malerba, Ensaios

acesso ao mundo tal como ele é realmente, baseia-se na suposição equivocada de que as funções cognitivas dos seres humanos se desenvolvem por si próprias, independentemente do mundo a ser conhecido, e de que esse mundo não está em movimento. Esse é o vício original da epistemologia moderna. Os seres humanos não são exteriores, mas desenvolveram-se, assim como suas funções cognitivas: historicamente, evoluíram no interior de um mundo que é humano e natural. Sujeito e objeto fazem parte de um mesmo mundo. Atesta-o a propensão biologicamente predeterminada dos seres humanos para formar símbolos sonoros, ou para formular sínteses simbólicas mais ou menos complexas para orientar-se na vida como o tempo ou os padrões de troca, numa palavra, a moeda.9 Tudo se complica ainda mais quando aquilo que se quer representar não é algo da “natureza”, mas a própria sociedade. No campo da natureza, o conhecimento congruente com a realidade hoje predomina claramente sobre o conhecimento congruente com a fantasia. No campo do conhecimento das sociedades humanas, o conhecimento baseado na fantasia, por exemplo, sob a forma de ideais sociais, ideologias etc, é ainda tomado como congruente com a realidade. Nesse campo, a distinção entre fantasia e realidade ainda é fluida, prevalecendo a primeira, nitidamente dominante nas formas de conhecimento do social. O mesmo se aplica à história e à cultura.

Conhecimento, realidade, linguagem De tudo isso, Elias chega à constatação do perigo de se separar conhecimento, realidade e linguagem. Para ele, é uma trivialidade o fato de que nada existe que não tenha um lugar no tempo e no espaço e, por outro lado, que tudo tenha também sua representação simbólica. Mas isso não é absolutamente incompatível com o fato de que tudo o que tem um lugar na dimensão simbólica tem também seu lugar no tempo e no espaço. Em É confortante pensar que o ramo do conhecimento histórico voltado àquilo a que os marxistas chamariam base material, concreta, sobre a qual se elevariam as formas de consciência etc, fundase, pelo menos nas sociedades modernas, numa representação, ou melhor, numa convenção: a moeda. Ou seja, um padrão estandardizado de valor que serve de parâmetro para se medir o valor de todas as outras coisas intercambiáveis no mercado.

9

símbolos

203

palavras mais simples, tudo o que é representação é “real” e tudo o que é real é representado, independentemente de sua maior ou menor congruência com a realidade. Um grande problema que enfrentamos no campo gnosiológico é justamente que a “realidade” é um conceito altamente estigmatizado, após ondas e mais ondas de filosofia transcendental, segundo a qual o conhecimento, inevitavelmente, distorce ou oculta o mundo real. Elaborar um conceito de representação mais congruente com a realidade exige a superação das formas tradicionais da gnosiologia, as quais, aliás, não têm uma definição clara do que seja o conhecimento. Na teoria simbólica de Elias, o conhecimento readquire seu caráter linguístico de mensagens, portadoras de um fundo social de conhecimento de pessoas para pessoas sob a forma de padrões sonoros socialmente convencionados. Esses padrões servem aos homens como meios de orientação. Nesse sentido, pode-se afirmar que o conhecimento não possui de fato qualquer similaridade ontológica com seus objetos, exceto no caso específico em que ele próprio se torna objeto. O ponto central é que as teorias tradicionais em geral não se referem a esses aspectos substantivos do conhecimento. Partindo de uma concepção atomista do mundo, segundo a qual a razão individual é o ponto de partida do conhecimento, em que um sujeito fechado em si mesmo se depara com um mundo que lhe é exterior, essas teorias desprezam que o sujeito do conhecimento é um “nós” e não um “eu”, um “nós” que ao longo de sua evolução criou mecanismos, como os símbolos, para superar os desafios naturais e garantir a preservação da espécie. Elias sustenta, ao contrário, que o conhecimento é inseparável da linguagem. Assim como é fato que o conhecimento, quer transmitido oralmente quer por meio de um livro, pode ser linguisticamente transmitido de geração em geração, o que explica a evolução do fundo social de conhecimento da humanidade. Toda comunicação é, para Elias, linguisticamente transmitida. Conhecimento e linguagem não são mais pensados como dois conjuntos de dados diferentes e com existências separadas, mas como duas funções diferentes dos mesmos símbolos sonoros de determinados fatos, de padrões sonoros que simbolizam objetos de comunicação. Portanto, a teoria do conhecimento de Elias diverge em pelo menos dois pontos em relação à teoria tradicional do conhecimento. Primeiro, no plano ontológico, o conhecimento, tal como a linguagem, pertence ao universo dos processos que ligam a natureza e a

204

Malerba, Ensaios

sociedade ou a cultura; não é algo “imaterial”, pois sem a estandardização social dos padrões sonoros e sua deposição nos espaços da memória humana, não haveria conhecimento. Segundo, o conhecimento humano pertence ao campo simbólico, apreendido socialmente pelo processo de aprendizagem por meio de uma língua. Partindo destes pontos inovadores propostos por Elias, o tema das representações passa a exigir um tratamento mais cuidadoso, tanto a partir de seu recorte como “objeto” do conhecimento no âmbito das Ciências Humanas, quanto, antes mesmo disso, no questionamento ao niilismo pós-moderno em relação à suposta inacessibilidade do conhecimento a um mundo caótico ou irreal.

Uma via metodológica plausível: o conceito de habitus em Elias e Bourdieu Pode-se dizer que quase nada em Elias está sistematizado e definido; sua obra, produzida em meio às turbulências que marcam sua longa existência, é um todo organicamente articulado; mas em nenhum momento o próprio Elias deu-se ao trabalho de uma sistematização.10 O oposto ocorre com a sociologia de Bourdieu, que teve o cuidado de clarificar seus conceitos em inúmeras oportunidades, para além de suas obras nas quais os aplica praticamente.11 Além disso, uma dificuldade suplementar que emerge ao se pretender comparar ambas matrizes repousa no fato de que, se em Elias é possível encontrar uma unidade orgânica e conceitual em sua obra produzida ao longo de mais de seis décadas, em Bourdieu é detectável uma permanente 10 Nem mesmo em sua Introdução à sociologia, que deveria efetuar esse trabalho, o faz plenamente. Se nessa obra se encontra um tratamento mais sistemático à conceitos como o de “interdependências”, o mesmo não se verifica para outros tão importantes na arquitetura da sociologia figuracional, como os de “configurações” , “estabelecidos”, autocontrole ou o de habitus. Para uma introdução à biografia de Elias, ver Elias (1991). 11 Assim se verifica em relações a muitos conceitos que conformam sua teoria da ação. Por exemplo, todo livro Razões práticas (BOURDIEU, 1996) é uma sistematização de conceitos aplicados em pesquisas de campo. O mesmo se encontra em outros artigos: Bourdieu, 1986; Bourdieu, Pierre. Sur le pouvoir symbolique. Annales E.S.C., 3: 405-411, mai./jun. 1977; Bourdieu, Pierre. The genesis of the Concepts of Habitus and Field. Theories and Perspectives, II, 2: 11-24, dez. 1985. Estes dois últimos traduzidos em Boudieu, 1989.

símbolos

205

inquietação, que se manifesta na contínua revisão que opera em seus conceitos, o que explica, talvez, tantos textos teóricos e sensíveis nuances desses conceitos ao longo da carreira intelectual deste autor. Não obstante essas dificuldades, parece valer a pena o esforço da comparação em função da proximidade teórica de Elias e Bourdieu. Como é bem sabido, toda a empresa intelectual deste último autor foi voltada à construção de uma teoria da ação. Um dos grandes desafios que enfrentou provinha de uma série de vícios das ciências sociais, dentre os quais os binômios consciência versus inconsciente, fundado na filosofia do sujeito, voluntarismo versus determinismo, oriundo das teorias mecânicas da causalidade, e assim por diante. Buscando na utilização do conceito de habitus em Panofsky um antídoto ao paradigma estruturalista com o qual se defrontava e que lhe permita esquivar-se das obsoletas filosofias do sujeito e da consciência, Bourdieu contestava particularmente a teoria da ação estruturalista, tal como proposta na noção de inconsciente de Levi-Strauss e assimilada servilmente pelos marxistas estruturalistas, segundo a qual os homens seriam suportes ou vítimas das estruturas. A partir deste primeiro enfrentamento, e dialogando com Chomsky, Bourdieu foi construindo seu conceito de habitus, nele destacando suas capacidades criadoras, ativas, para além das esferas conscientes e inconscientes dos agentes, mas considerando esses agentes efetivamente em ação no campo: outro conceito fundamental que suporta o anterior. Como diz Bourdieu, “tratava-se de chamar a atenção para o ‘primado da razão prática’ de que falava Fichte, retomando ao idealismo, como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o ‘lado ativo’ do conhecimento prático que a tradição materialista, sobretudo a teoria do reflexo, tinha abandonado”. (BOURDIEU, 1989, p. 61). Portanto, acima de tudo, com o conceito de habitus, Bourdieu procurava fugir da filosofia da consciência, sem contudo tirar do cenário o próprio agente em atividade, estabelecendo para com este uma “cumplicidade ontológica com o mundo”. Na obra de Elias, o conceito de habitus está bem mais diluído do que em Bourdieu. Já indiquei atrás como Elias atribui a uma mudança no habitus, ou hábito social, como ele por vezes nomeia, fruto da curialização da sociedade guerreira, o surgimento do terreno propício para o distanciamento crescente entre homem e a natureza, ou, em outras palavras, para uma

206

Malerba, Ensaios

crescente objetivação do mundo. Investigando a construção da estrutura social da psicologia num ensaio seminal sobre a relação do equilíbrio nós/eu, em que procura superar a falsa dicotomia ou o princípio gerador entre indivíduo e sociedade, Elias sugere dentro de que campo de entendimento deve-se enquadrar o conceito de habitus. 12 Este seria, ao lado do conceito de estrutura social da personalidade, uma dispositivo conceitual ótimo para se fugir à pressão das teorias sociológicas pela necessária opção entre indivíduo e sociedade. Em conjunto, ele permite evidenciar o fato, mais que conhecido no senso-comum, de que cada homem singular, embora diferente de todos os demais, apresenta um caráter específico que partilha com os outros membros da sociedade. Seria esse caráter, ou esse hábito social dos indivíduos, que constituiria a base da qual derivam as características pessoais que dão aos homens singulares, ao mesmo tempo, a sua identidade, ou seja, tudo aquilo que o identifica e o distingue dos demais membros da coletividade. Ao lado da língua, fundadora por assim dizer do habitus, instaura-se esse sentimento um estilo mais ou menos individual. Elias o explica, então, com um conceito como o de caráter nacional, “um problema de hábito por excelência”.13 Esse conceito demanda outros da arquitetura teórica de Elias, pois só se pode pensar o habitus a partir de indivíduos interligados e interagentes, compondo configurações cada vez mais complexas e interligadas quanto mais diferenciadas as funções dentro de uma sociedade. Portanto, quanto mais complexa a sociedade, mais diferenciado se torna o habitus, de acordo com o número de níveis de integração do indivíduo com seu(s) grupo(s). Esse pertencimento à coletividade, o caráter social do individualidade humana, é efeito e função do habitus social. Diante do exposto, fica patente que em ambos autores há uma recusa aberta à qualquer concepção platônica das representações como uma “projeção” ou “reflexo” imaterial, imaginário, de uma realidade material fundadora. Ao contrário, na expressão de Pierre Bourdieu, são “estruturas estruturadas e Elias (1993, p. 204). Uma ótima explanação dessa problemática entra-se em Silva (1997, p. 255). 13 Elias (1993, p. 205). Um grande livro para se entender o conceito de habitus posto em ação para a investigação de uma sociedade concreta é Os alemães, traduzida me português em 1997. Tratase de uma coletânea de trabalhos de Elias sobre o desenvolvimento social alemão, no sentido eliasiano do termo “desenvolvimento social”, nos séculos XIX e XX, que gira em torno de dois eixos conexos: o do habitus nacional (já tratado no primeiro capítulo de O processo civilizador) e do processo descivilizador promovido pela hecatombe do nacional-socialismo. 12

símbolos

207

estruturantes” que viabilizam a própria vida social. (BOURDIEU, 1989, p. 139). Particularmente no que diz respeito aos rituais desenrolados como um “drama”, uma ação representada num “palco”, num espaço sagrado, como nas cerimônias que consagram o poder, a ação reveste a forma do espetáculo. Aqui a representação não se resume à “exibição”, como no caso das entradas triunfais dos reis, que apenas reforçam a ideia do poderio de um império ou celebram uma vitória militar: é isso e mais, presume a real identificação, a repetição mística ou a reapresentação do acontecimento. Segundo o historiador Johan Huizinga, “o ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente reproduzido na ação”. (HUIZINGA, 1990, p. 18). O exemplo limite dessa representação ritual é a eucaristia cristã, o “mistério da fé”: a “transubstanciação” do pão em carne e do vinho em sangue. Esse significado forte de representação ilumina a compreensão da reverência dos súditos diante de signos materiais da realeza.14 A problemática das representações tem como principal desdobramento da recepção do que é representado, questão de extrema complexidade que se traduz na “crença” pelo público espectador da mensagem ritualizada. Nesse ponto, tendo a concordar com Bourdieu, que atrela a legitimidade e o reconhecimento dos sistemas simbólicos ao conceito de habitus. A autoridade do rei, exemplo de que se utiliza, pressupõe uma identidade entre quem expressa e quem recebe a autoridade, a qual emerge no próprio ato da enunciação.15 Huizinga aproxima-se dos antropólogos nessa questão da crença nos rituais mágicos e sobrenaturais em geral, no sentido de que não se deve considerálos, os sistemas de crenças e práticas que os suportam, como meras farsas inventadas por um grupo de “incrédulos”, com o objetivo racional de dominar os ingênuos “crédulos”. A questão da credulidade das representações funda-se, para Pierre Bourdieu, no conceito de habitus, elaborado contra o “jurisdicionismo”, ou a tendência dos etnólogos, constatada pelo sociólogo francês, em descrever o 14 Desde o estudo paradigmático de Ernst H. Kantorowicz (1998) sobre os dois corpos do rei – um mortal e humano e outro ungido e divino, de 1957, multiplicaram-se as investigações em torno dos signos mágicos do poder. Ver, como exemplos, os trabalhos de Peter Burke, 1994; Loach, 1994; Apostolidès, 1993; Balandier, 1982. Entre nós, Schwarz, 1998; Souza, 1999, Malerba, 2000. 15 Bourdieu (1989, p.116). Concepção reiterada em sua formulação do habitus linguístico, em Bourdieu (1996a, p.24).

208

Malerba, Ensaios

mundo social na linguagem da regra, da norma. A crença situa-se fora do “cálculo racional” dos indivíduos, dentro, portanto, do habitus; ao lado da norma expressa e da ação racional, constitui-se em um dos “principes génerateurs des practiques”, que ao possibilitar aos indivíduos uma conduta regular, os provê da capacidade de previsão. (BOURDIEU, 1986, p. 40-44). Essa previsibilidade das condutas não pode estar ligada a uma regra ou legislação: o habitus tem a ver com o fluido, o vago. Essa espontaneidade geradora, que se afirma na confrontação improvisada das situações que não cessam de se renovar, que definem “le rapport ordinaire au monde”, guarda uma afinidade conceitual íntima com o conceito de habitus e de configuração social, sua matriz geradora, em Norbert Elias. Assim como as representações não são “projeções”, reflexos de uma realidade material, o conceito de habitus em Bourdieu evidencia suas capacidades “criadoras”, formadoras, mas não no sentido de uma razão universal ou espírito absoluto. Ao contrário, o habitus talvez melhor se defina como os limites de ação, das soluções ao alcance do indivíduo em uma determinada situação social concreta. É, portanto, um produto da história que produz práticas individuais e coletivas e que estabelece os limites dentro dos quais os indivíduos são “livres” para optar entre diferentes estratégias de ação. Práticas que, intuitivas enquanto tais, antes orientam mais que determinam as condutas. (BOURDIEU, 1989, p. 91; HARKER, 1993; INGLIS, 1979, p. 361). Limite de ação prática talvez no mesmo sentido empregado por Lucien Goldmann para a “consciência possível” de uma época [...]. (GOLDMANN, 1979, p. 20). É no habitus que assenta outro princípio fundamental da hierarquia social. Enquanto princípio gerador e unificador que configura as características intrínsecas de uma posição social em um estilo de vida homogêneo, é ele que instaura a distinção social. O conceito de habitus em Elias não se apresenta explicitamente definido como em Bourdieu, mas constrói-se a partir de sua teoria do processo civilizador. A civilização é um devir no qual um conjunto de interações forma um sistema não planejado e se estrutura progressivamente: as relações entre unidades ou grupos sociais são em realidade as relações de força que ligam, opõem e, dessa forma, inscrevem os indivíduos em estruturas hierarquizadas, que presumem “campos de forças”, “tensão”, “equilíbrio”, “competição”. Nesse sentido, a “configuração” de Elias é muito próxima do

símbolos

209

conceito de campo de Bourdieu, o qual traduz a ideia de um espaço estruturado de posições onde se desenvolvem as relações de luta. A proximidade não se resume na nomenclatura dos conceitos: Elias usa o conceito de campo em suas “Sugestões para uma teoria de processos civilizadores”, quando recomenda que, para um estudo sociológico, convém “esclarecer a estrutura do conjunto de um campo social determinado”. (ELIAS, 1994b, p.193-262). Em ambos encontra-se uma mesma concepção relacional e estrutural do social. Mas, ao privilegiar a gênese do habitus e a razão ou razões de sua evolução, a abordagem eliaseana torna-se mais apropriada à compreensão histórica. Para ele, a transformação do habitus não resulta inelutavelmente de uma modificação na hierarquia das posições dos agentes no campo, como para Bourdieu: pode ter um “motor exógeno”. Por estar atento ao processo histórico, Elias concebe a possibilidade de transformações do habitus decorrentes de mudanças históricas, as quais incidem na hierarquia das posições. Por isso, seu conceito de campo é mais flexível do que o de Bourdieu: trata-se de uma rede de relações estruturadas em espaço de posições, mas aberta e constantemente trabalhada pelas contingências históricas, que fazem agora função de variáveis exógenas e que, por certo, transformam a hierarquia das posições. Em sua construção de uma teoria do espaço social, em que se distancia definitivamente do marxismo, Bourdieu mais se aproxima de Elias: Os agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas neste espaço (social)... Na medida em que as propriedades tidas em consideração para se construir este espaço são propriedades atuantes, ele pode ser descrito também como campo de forças, quer dizer, como um conjunto de relações de força objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os agentes. (BOURDIEU, 1989, p.134).

Considerações finais Na primeira parte deste ensaio, procurei sintetizar uma percepção do problema das representações que se distingue nitidamente das proposições vendidas hoje no mercado. As representações, de uma década para cá, tornaram-se verdadeira palavra de ordem na historiografia mundial, sobretudo

210

Malerba, Ensaios

aquela orientada pelos ditames da Europa continental. Talvez isso venha a se configurar um modismo passageiro e, daqui a uma década, já se faça uma mea culpa dos equívocos cometidos, como só se faz hoje em dia em relação à historia das mentalidades ou a antropologia histórica, verdadeiras bandeiras programáticas da terceira geração dos Annales. Na época em que vivemos, quando os veículos de comunicação proliferam, inundam a sociedade de informação instantânea e transformam as relações do homem com seu entorno, quando as imagens o bombardeiam a cada minuto, o tema das representações instigam e desafiam as Ciências Humanas. Mas é preciso resgatar um ideal cartesiano contra elas: o da dúvida metódica. Não parece conveniente aderir sem questionar. Se temos um novo campo (nem tão novo assim) que se apresenta, parece prudente situá-lo num contexto mais amplo, buscar delinear suas potencialidades e também seus limites, sob o risco de, não o fazendo, incorrer no mesmo erro que levou a nada a história das mentalidades. Levar ao paroxismo o tema, “descarnando-o”, admitindo a concepção do “mundo como representação”, não parece ser o caminho. Essa opção expõe o conhecimento, nas ciências humanas, a concepções extremas e deletérias, como aquelas “pós-modernas” que, no campo da História, desistiram do desafio da história-problema, da busca de construção de teorias explicativas do real, para se contentarem com a redução da história a texto, substituído a explicação pela descrição. A teoria simbólica de Elias, a meu ver, propõe um conceito de representações que se esquiva do entendimento maniqueísta de mundo real versus mundo representado. Contribui para superar falsos impasses, ao reintegrar o homem à natureza, na construção de uma teoria processual do conhecimento e da linguagem. Isso lhe permite, como procurei demonstrar, questionar de maneira contundente as teorias tradicionais do conhecimento que temos inculcadas em nosso hábito social, forjadas no limiar da época moderna. Sua proposição de uma teoria evolutiva, processual da linguagem e do conhecimento permitem conceber as representações, mesmo as científicas, de uma maneira renovada. Representações que se produzem na experiência de vida dos indivíduos em sociedade, que se inscrevem em seu habitus, tal como sintetizados acima. Com a invocação desse conceito, pareceu-me imprescindível cotejar a proposição eliasiana com a de Pierre Bourdieu, duas das mais consequentes e frutíferas teorias sociológicas contemporâneas.

símbolos

211

O diálogo entre os dois pensadores também encontram-se no estudo comparativo dessas matrizes realizado por Jean-Hugues Déchaux (1993). Para esse autor, os dois sociólogos diferem sobretudo quanto à questão da historicidade: - ambos reconhecem a noção de habitus, mas não lhe atribuem o mesmo lugar na análise. Bourdieu desconsidera a contingência histórica, diferentemente de Elias, cujo objeto é claramente histórico, genético; - o habitus, por ser “estrutura estruturante e estruturada” para Bourdieu, faz com que nele se conceda um papel, senão ausente, meramente marginal à historicidade. Norbert Elias trabalha uma teoria da civilização. Uma vez estabelecido e descrito o processo, a pergunta que se coloca é: por que os habitus evoluem e se transformam? A orientação de sua sociologia é claramente genética: compreender e explicar a gênese do habitus humano. Para Boudieu, ao contrário, não se trata de explicar o habitus. Mais precisamente, seu objetivo é, uma vez identificado, explicar a imutabilidade das estruturas sociais, e mais ainda a lógica, o “senso prático” das ações que concernem a tal imutabilidade; - assim os dois autores se referem a quadros de análise próximos, mas para fins opostos: Bourdieu privilegia as estruturas sociais, dando ênfase ao campo e marginalizando as contingências históricas. Ao contrário, Elias interessa-se pela gênese do habitus e as razões de sua evolução. Desdobramentos historiográficos consequentes dentro do tema das representações deverão passar pela consideração dessas matrizes e dos problemas que elas suscitam. Meu objetivo não foi outro senão o de procurar sintetizar suas concepções e indicar suas possibilidades.

212

Malerba, Ensaios

bibliografia citada

ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Ensayos braudelianos: itinerários intelectuales y aportes historiográficos de Fernand Braudel. México: Associación Nacional de Profesores de Historia de México; Rosário: Prohistoria, 2000. ______. Antimanual Del mal historiador o como hacer uma buena historia critica. México: La Vasija, 2002. ______. Fernand Braudel e as Ciências humanas. Londrina: EDUEL, 2003. ______. Uma história dos Annales (1921-2001). Maringá: EDUEM, 2004. ______. América Latina: história e presente. Campinas: Papirus, 2004a. ______. 1989 en perspectiva histórica. In: ______. Para comprender el siglo XXI: Una gramática de la larga duración, [s.l.]: El Viejo Topo, 2005. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas atividades produtivas mineiras: Mariana, 1750-1850. Niterói: mimeo. 1993. (Projeto de Pesquisa apresentado ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense). ALVES, Paulo (org.) Ensaios historiográficos. Assis: Autores Associados, 1997. ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1984. ______. A zone of engagement. Londres: Verso, 1992. ______. The Origins of Postmodernity. London/New York: Verso, 1998. ANKERSMIT, Frank. History and tropology. Berkeley: Universiy of Califórnia Press, 1994. ______. The Dilemma of Contemporary Anglos-Saxon Philosophy of History. History & Theory, v.25, p. 26, 1986. ANKERSMIT, F.; KELLNER, H. (eds.). A New Philosophy of History. Londres: Reaktion Books, 1995.

bibliografia citada

213

APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina; espetáculo e plítica no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: EdUnb, 1993. ARRIGHI G.; HOPKINS T.; WALLERSTEIN I. 1989, the continuation of 1968, Review, v. 15, n. 2, 1992. BAILYN, Bernard. The Challenge of Modern Historiography. American Historical Review, v. 87, p. 1-24, 1982. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1993. BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: UnB, 1982. BARTHES, Roland. Saussure, le signe, la démocratie. In: ______. L’Aventure sémiologique. Paris: Le Seuil, 1985. , Roland. The discourse of history In: JENKINS, Keith. (org). The postmodern History reader. Londres/Nova York: Routledge 1997. BARTHES

BAUDRILLARD, Jean. Esquecer Foucault. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. BENDIX, Reinhard. Max Weber: um perfil intelectual. Brasília: UNB, 1986. BERGER, Stefan. Historians and the Nation-Building in Germany after Reunification. Past e Present, n. 148, p. 187-222, 1995. BERKHOFER Jr., Robert. The Chellenge of Poetics to (Normal) Historical Practice. In: JENKINS, Keith (org). The postmodern History reader. Londres/Nova York: Routledge 1997. BERLIN, Isaiah. HIstorical inevitabilty. Oxford: Oxford University Press, 1959. ______. Vico e Herder. Brasília: UnB, 1976. BERMANN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BITTENCOURT, Circe. As tradições nacionais e o ritual das festas cívicas. In: PINSKY, Jaime (org.). O ensino de história e a ciação do fato. São Paulo: contexto, 1992. BLOCH, Marc. Esquisse d’une histoire monétaire de l‘Europe. Paris: Armand Colin, 1954. ______. La historia rural francesa. Barcelona: Crítica-Grijalbo, 1978. ______. Apología para la historia o el oficio de historiador. México: INAH/Fondo de Cultura Económica, 1996.

214

Malerba, Ensaios

BODNAR, John. Remaking América: Public Memory, commemoration, and Patriotism in the 20th Century. Princeton: PUP, 1992. BOURDE, Guy; MARTIN, Hervé. Les écoles historiques. Paris: Seuil, 1997. BOURDIEU, Pierre. Distinction. A Social critique of the Judgement of Taste. Cambridge (Mass): Harvard University Press, 1984. ______. Habitus, code et codification. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, 64, p. 40 a 44, set., 1986. ______. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. 311 p. ______. In other words. Essays towards a reflexive sociology. London: Polity Press, 1990. ______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996a. ______. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996b. BOWLING, John R., Stromberg, Peter G. Representation and Reality in the Studies of Culture, American Antrhopologist, v.99, n.1 p.123-134, 1997. BRAUDEL, Fernand. El Mediterrâneo y el mundo mediterráneola época de Felipe II. México: Fondo de Cultura Económica, 1976. ______. A longa duração. In: ______. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1986. BURGUIERE, André. Histoire d’une histoire: la naissance des Annales, Annales.E.S.C., v. 34, n. 6, 1979. BURKE, Peter. A fabricação do rei: A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. ______. História e teoria social. São Paulo: Editora da Unesp, 2002. BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A (des)construção do discurso histórico: a historiografia brasileira dos anos 70. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997. BURY, J.B. The idea of Progress: an Inquiry into its Origin and Growth. London: Macmillan e Company, 1920. CALLINICOS, Alex. Theories and Narratives. Reflections on the Philosophy of History. Cambridge: Polity Press, 1995. CANARY, R.H.; KOZICKI, H. The Writing of History. Madison: The University of Wisconsin Press, 1978.

bibliografia citada

215

CAPELATO, Maria Helena Rolim et al. (org). Produção histórica no Brasil. São Paulo: Xamã, 1995. CARBONELL, Charles Olivier. Historiografia. Pedro Jordão. Lisboa: Teorema, 1987. CARDOSO JR., Hélio Rebello. Paul Veyne e o problema da relação entre filosofia e história. Campinas: Mimeo, 1992. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento Filosofia do IFCH/Unicamp). ______. Enredos de Clio: pensar e escrever a história com Paul Veyne. São Paulo: Editora da Unesp, 2003. ­­­CARDOSO, Ciro F. S. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988. ______. Introducción al trabajo de la investigacion histórica: Conocimiento, método, e história. 4.ed. Barcelona: Grijalbo, 1989. ______. Introdução. In: CARDOSO, C.; VAINFAS, Ronaldo. (org) Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. ______. Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo. Diálogos, Maringá, v. 2, n. 2, p. 47-64, 1998. ______. Epistemologia pós-moderna, texto e conhecimento: a visão de um historiador. Diálogos, Maringá, v. 3, n. 3, p. 01-29, 1999. ______. Introdução: uma opinião sobre as representações sociais. In: CARDOSO, Ciro; MALERBA 2000. ______. Um historiador fala de teoria e metodologia. Bauru: EDUSC, 2005. CARDOSO, Ciro; Perez B, Hector. Los Métodos de la historia: Introduccion a los problemas, métodos y técnicas de la historia demografica, económica y social. Barcelons: Critica/Grijalbo, 1976. CARDOSO, Ciro; MALERBA, J. Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. CARR, David. Getting The Story Straight: Narrative and Historical Knowledge. In: TOPOLSKY, Jerzy. (ed) Historiography Between Modernism and Postmodernism. Amsterdã: Rodopi, 1994. ______. Narrative and the Real World: an Argument for Continuity, History & Theory, p. 117-131, 1986. CARR, E. H. O que é história? 6.ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1989.

216

Malerba, Ensaios

CARROLL, Nöel. “Interpretation, History and Narrative”, The Monist, v. 73, p. 134166, 1984. Casanova, Julián. La historia social y los historiadores. Barcelona: Crítica, 1991. CHAMORRO ARGUELLO, Graciela. Teologia e Representação: uma aproximação ecofeminista do monoteísmo. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir. (Org.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. 1.ed. Campinas: Papirus, 2000, v. 1, p. 125-168. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. ______. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 5, p. 173-91, 1991. ______. A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, no 13, 1994; CHILCOTT, John H.. Structural Functionalism as a Heuristic Device. Anthropology e Education Quarterly, v.29, n.1, p.103-111, mar. 1998. COLE, Douglas. Franz Boas: The Early Years, 1858-1906. Vancouver: Douglas and Mclntyre, 1999. CORDEIRO Jr, Raimundo Barroso. Lucien Febvre: Combates por uma Nova HIstória - considerações sobre um projeto historiográfico. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas . Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2000. COSTA, Iraci del Nero; SLENES, Robert W.; SCHWARTZ, Stuart. A família escrava em Lorena (1801). Estudos econômicos, São Paulo, IPE-USP, v. 17, n. 2, 1987. CROCE, B. A história pensamento e ação. Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962. ______. História e Crônica. Lisboa: Fundação Kalouste Goulbenkian, 1993. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986. ______. Boemia literária e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: Sociedade e cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. DÉCHAUX, Jean-Hugues. N. Elias et P. Bourdieu: analyse conceptuelle comparée. Archives Européenes de Sociology, Cambridge, n.34, p. 365-385, 1993.

bibliografia citada

217

DESCOMBES, V. O momento francês de Nietzsche. In: FERRY, Luc; RENAULT, Alain. (eds.). Porque não somos Nietzscheanos. São Paulo: Ensaio, 1993. DIAS, Maria Odila Leite da S. Prefácio: Hermenêutica e narrativa. In: SEVCENKO, Nicolau.Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. DIEHL. A matriz da cultura histórica brasileira: do crescente progresso otimista à crise da razão histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993a. ______. A cultura historiográfica nos anos 80: mudança estrutural na matriz historiográfica brasileira (IV). Porto Alegre: Evangraf, 1993b. ______. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: EDIUPF, 1998. ______. A cultura historiográfica brasileira: década de 1930 aos anos 1970. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 1999. DOMANSKA, Ewa. Hayden White: Beyond Irony, History & Theory, v. 37, n. 2, p. 177-181, 1998. DOSSE, François. A história em migalhas. São Paulo: Ensaio, 1992. ______. História do estrturalismo. São Paulo: Ensaio, 1993. 2 v. ______. A História. Bauru: Edusc 2003. DRAY, William. On history and philosophers of History, Leiden/Nova York: E. J. Brill, 1989. DUBY, Georges. Economía rural y vida campesina, el occidente medieval. Barcelona: Península, 1973. ______. O Tempo das Catedrais. Lisboa: Editorial Estampa, 1979. EAGLETON, Terry. The Illusions of Postmodernism. Oxford: Blackwell, 1996. ______. Depois da Teoria. Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. ECHEVERRÍA, Bolívar. “1989”, Cuadernos Políticos, México, n. 59-60, 1990. ELIAS, Norbert. Processes of State Formation and Nation Building. In: Transactions of the 7th. World Congress of Sociology. Viena, v. 3, p. 274-84, 1970. ELIAS, Norbert. Sociology of Knowledge: new perspectives. Part one. Sociology, v. 5, n. 2, p. 149-168, 1971.

218

Malerba, Ensaios

______. Sociology of Knowledge: new perspectives. Part two. Sociology, v. 5, n. 3, p. 355-370, 1971a. ______. Theory of Science and History of Science. Economy and Society, n.1, p. 117133, 1972. ______. Introducção à sociologia. Maria Luísa Ribiero Fonseca, Lisboa: Edições 70, 1980. ______. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1987. ______. The retreat of Sociologists into the present. Theory, Culture and Society, v. 4, n 2-3, p. 223-249, 1987a. ______. Violence and civilization: the state monopoly of physical violence and its infringement. In: KEANE, J. (ed). Civil society and the State. London: Verso, 1987b. ______. Sobre el tiempo. Sobre el tiempo. México, Fondo de Cultura Económica, 1989. ______. La soledade de los morimbundos. Carlos Martín. 2.ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1989a. ______. Norbert Elias par Lui-méme. Paris: Fayard, 1991. ______. A sociedade dos indivíduos. Lisboa, Dom Quixote, 1993. ______. Engagement et distanciation  : contribuitions à la sociologie de la connaissance. Paris: Fayard, 1993a. ______. Engagement et distanciation; contribuitions à la sociologie de la connaissance. Michèle Hulin. Paris: Fayard, 1993b. ______. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. v.1 ______. O processo civilizador. Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993c. v.2. ______. Conocimiento y poder. In: Conocimiento y poder. Madrid: La Piqueta, 1994a. ______. Teoria simbólica. Oeiras: Celta, 1994b. ______. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994c ______. Os alemães; a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahjar, 1997. ______. Sociology ad Psychiatry. In: FOULKES, S. H.; PRICE, G. S. (eds.). Psychiatry in a changing society. Londres: Tavistock, [19--].

bibliografia citada

219

ELIAS, N., SCOTSON, J. L. The established and the outsiders: a Sociology enquiry into Comunity Problems. London: Sage, 1994. ELY, Richard. Mandelbaum on Historical Narrative: a Discussion. In: ROBERTS, Geoffrey (ed.). The History and Narrative Reader. Londres/Nova Yorque: Routledge, 2001. FALCON, Francisco José Calazans. História e cultura histórica. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, p. 141-144, 1997. ______. História e representação. [s.l.: s.n.], 2000. FEBVRE, Lucien ; MARTIN, H. J. L’Apparition du Livre. Paris: Albin Michel, 1958. FERRY, Luc; RENAULT, Alain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio, 1988, p. 125. FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A historiografia brasileira nos últimos 20 anos: tentativa de avaliação crítica. Mimeo. 1994. (comunicação apresentada no Congresso Internacional da ADILAC, México, 1994). ______. A história no Brasil: elementos para uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1992. v 1. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: propaganda, ditadura e imaginário no Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 1997. FONTANA, Josep. A história depois do fim da História. Bauru: Edusc. 1998a. ______. História: análise do passado e projeto social. Luiz Roncari. Bauru: Edusc, 1998b. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Salma Muchail, 6.ed. São Paulo: Martins Fon-tes, 1992. FRAGOSO, João Luís; FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de crioula, neto de Joana Cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). Estudos econômicos, São Paulo, IPE-USP, v. 17, n. 2, 1987. ______. Homens de grossa aventura: Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (179-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. FREITAS, Marcos Cézar de (org). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. FRIEDLANDER, Saul (ed) Probing the Limits of Representation/ Nazism and the Final Solution. Cambridege: Harvard University Press, 1992.

220

Malerba, Ensaios

FRONKIM, David. Paz e guerra no Oriente Médio. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. FURET, François. Os intelectuais franceses e o estruturalismo. In: A oficina da História. Lisboa: Gradiva, [1986]. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 21.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986. GALLIE, W. B. Narrative and Historical Understanding. In: ROBERTS, Geoffrey (ed.). The History and Narrative Reader. Londres/Nova Yorque: Routledge, 2001. GILLES, John R. (ed). Commemorations: the Politics of National Identity. Princeton: PUP, 1994. GINZBURG, C. Tentativas. Morelia, Mx: Universidad Michoacana San Nicolas Hidalgo, 2003. ______. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. In: MALERBA, J. (org.) A história escrita. São Paulo: Contexto, 2006. GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 4.ed. São Paulo: Difel, 1983. GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1979. GOMES, Ângela de Castro. História e Historiadores. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999. GOMES, Plínio José Freire. Um herege vai ao Paraíso. São Paulo: Mimeo, 1994. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História da FFLCH/USP, São Paulo, 1994. GOSSMAN, Lionel. Liberal Politics na the Reformo f Historiography. History and Theory, v. 15, n. 5, p. 6-19, 1976. GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: BASSANEZI PINSKY, Carla (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. GRUNER, Shirley. Politicalhistoririography in Restoration France, History and Theory, v. 8. n. 3, p. 346-365, 1969. GINZBURG, C. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. In: MALERBA, J. A história escrita. São Paulo: contexto, 2006. HALBWACHS, Maurice. La Mémoire collective. Paris: PUF/Albin Michel, 1997. ______. Les Cadres sociaux de la mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.

bibliografia citada

221

HALPERIN DONGHI, Tulio. Historia y longa duración. Examen de un problema, Cuestiones de Filosofía, Buenos Aires, v. 1, n. 2-3, 1962. HARKER, Richard; MAY, Stephen. Code and Habitus: comparing the accounts of Bernstein and Bourdieu. British Journal of Sociology of Education, Londres, v. 14, n. 2, p. 169-178, 1993. HARTOG, F. Arte da narrativa histórica. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Passados recompostos; campos e canteiros da história. Marcella Mortara e Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1998. ______. O século XIX e a História: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Ediotra UFRJ, 2003. ______. Tempos do mundo, história, escrita da história. In: GUIMARÃES, M. L. S. Estudos sobre a escrita da história. Rio de janeiro: Sette Letras, 2006. HELLER, Agnes. Teoria de la Historia. 5.ed. México: Fontamara, 1997. HINDESS, Barry; HIRST, Paul. Modos de produção pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção de tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. HOURS, J. O valor da história. Coimbra: Almedina, 1978. HUIZINGA, Joahn. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. HUNT, Lynn. Forgetting and Remembering: the French Revolution then and Now, The American Historical Review, v. 100, n. 4, p. 1119-1135, 1995. HUTTON, Patrick. History as an art of Memory. New Hampshire: University of new England Press, 1993. ______. Recent Scholarship in Memory and History. The History Teacher, v. 33, n. 4, p. 533-548, 2000. IGGERS, G. Historiography in the 20th century. Hanover/London: Wesleyan University Press, 1997. INGLIS, Fred. Good and bad habitus: Boudieu, Habermas and the condition of England. Sociological Review, Bristol, v. 27, n. 2, p. 353 -369, 1979. JACKNIS, Ira. The First Boasian: Alfred Kroeber and Franz Boas, 1896-1905. American Anthropologist, New Series, v. 104, n. 2, p. 520-532, jun. 2002.

222

Malerba, Ensaios

JACOB, Laurence. Le moment liberal: the distinctive Character of Restoration Liberalism. The Historical Journal, v. 31, n. 2, p. 479-491, 1988. JAKOBSON, Roman. Franz Boas’ Approach to Language. International Journal of American Linguistics, v. 10, n. 4, p. 188-195, out.1944. JENKINS, K. (org). The postmodern History reader. Londres/Nova York: Routledge 1997. ______. A história repensada. São Paulo: contexto, 2001. JESUS, Ronaldo Pereira de. Integração e resistência sindical. In: ROLLEMBERG, Denise. Que História é essa?Novos temas e novos problemas em História. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das letras, 1998. KAYE, H. J. The British Marxist Historians. Cambridge: Polity Press, 1984. ______; McCLELLAND, Keith. E. P. Thompson: critical perspectives. Philadelphia: Temple University Press, 1990. KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado. Para uma semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993. KRAMER, Lloyd. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick LaCrapa. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins, 1992. KULA, Witold. Problemas y métodos de la historia económica. Barcelona: Península, 1977. KUZMICS, Helmut. The civilizing process. In: KEANE, John (ed). Civil society and the state: New european perspectives. London/New York: Verso, 1988. p. 149-76. KUZMINSKI, Adrian. Defending Historical Realism. History e Tehory, v. 18, n. 3, p. 316-349, 1979. LABROUSSE, Ernest. Fluctuaciones económicas e historia social. Madri: Tecnos, 1962. LAHLOU, Saadi. The propagation of Social Representations. Journal for the Theory of Social Behaviour. Oxford/Cambridge, n. 26, v. 2, p. 157-175, 1996. LANGLOIS, C. V. SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.

bibliografia citada

223

LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980. ______. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ______. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Unesp. 1992. LÉVI-BRUHL, Henri. Qu’est ce que lê fait historique? Revue de synthèse historique, v. 42, p. 53-59, 1926. LEVI-STRAUSS, Claude. The Structural Study of Myth. The Journal of American Folklore, v. 68, n. 270, p. 428-444, 1955. LEWIS, Herbert S. The Passion of Franz Boas, American Anthropologist, New Series, v. 103, n. 2, p. 447-467, jun. 2001. LIMA, Luiz Costa. Estruturalismo e Teoria Literária. Introdução às problemáticas estética e sistêmica. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1973. ______. História, ficcção, literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LOACH, Jennifer. The function of ceremonial in the Reign of Henry VIII. Past and Present Oxford, 142, p. 43-68, fev. 1994. LOPES, Marcos Antonio. Voltaire historiador. Campinas: Papirus, 2000. ______. (org). Fernand Braudel. Tempo e História. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2003. LÜDKE, Alf (ed). The history of everyday life. Princeton: Princeton University Press, 1995. LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. MACHADO, Roberto. Ciência e Saber. A Trajetória da Arqueologia de Foucault. 2.ed. Rio de Janeiro, Graal, 1988. MALERBA, J. (org). Ensaio sobre o tempo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 14, p. 300-305, 1994. ______. A velha história: teoria, método e historiografia. Campinas: Papirus, 1996. ______. A corte no exílio; civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

224

Malerba, Ensaios

______. Note A Margine - La Critica Storiografica Degli Anni Novanta In Brasile. Storiografia, Roma, v.4, p.65-84, 2000a. ______. Pensar o acontecimento. História Revista – Revista do Departamento de História e do Programa de mestrado em História da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, v. 7, n. 1/2, p. 117-150, jan./dez. 2002. ______. (org). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. ______. A história e seus discursos: uma contribuição ao debate sobre o realismo histórico. Lócus, Juiz de Fora, 2007. ______. La historia y los discursos. Una contribución al debate sobre el realismo histórico. Contrahistorias, v. 9, p. 63-80, 2007. ______. Estrutura, Estruturalismo e História Estrutural. Diálogos, Maringá, v. 12, p. 19-55, 2008. MALERBA, J. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. MALERBA, J.; AGUIRRE ROJAS, C. A. Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: EDUSC, 2007. MALERBA, Jurandir; GEBARA, Ademir. Norbert Elias in Brazil: an initial impact. Figurations – Newsletter of the Norbert Elias Foundation, Amsterdam, v. 11, p. 2-3, 1999. MANDELBAUM, Maurice. A Note on History as Narrative. In: ROBERTS, Geoffrey (ed.). The History and Narrative Reader. Londres/Nova Yorque: Routledge, 2001. MANN, Hans-Dieter. Lucien Febvre: la pensée vivante d’un historien. Paris: Armand Colin, 1971. MARKOWÁ, Ivana. Towards an Epistemology of Social Representations. Journal for the Theory of Social Behaviour. Oxford/Cambridge, n. 26, v. 2, p.177-196, 1996. MARTINS, Amílcar; MARTINS, Roberto Borges. Slavery in a non-export economy: nineteenth-century Minas Gerais revisited. Hispanic American Historical Review. Madison, v. 63, n. 3, p. 141-56, 1983. MASTROGREGORI, M. (ed). Storiografia, Roma, 1997. (v. 1, “La recensione: origini, splendori e declino della critica storiografica”). ______. Historiografia e tradição da lembrança. In: MALERBA, J. A história escrita. São Paulo: contexto, 2006.

bibliografia citada

225

______. II genio dello storico. Nápoles: Edizione Scientifiche italiane, 1987. MEGILL, Allan. Prophets of extremity. Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida. Berkeley, Univ. of California, 1987. MERQUIOR, José Guilherme. Michel Foucault ou o niilismo de cátedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. MESQUITA, Eni Samara. A história da família no Brasil. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 17, p. 7-36, 1989. (Família e grupos de convívio). MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo dos livros, 1989. MINK, Louis. Narrative Form as a Cognitive Instrument. In: CANARY, R.H.; KOZICKI, H. (eds.). The Writing of History. Madison: The University of Wisconsin Press, 1978. ______. Historical Understanding. Ithaca: Cornell University Press, 1987. MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: Ediotra FGV, 1992. MOZARÉ, Charles. Lucien Febvre et l’histoire vivante. Revue Historique, v. 81, 1957. ______. A lógica histórica. São Paulo: Difel, 1970. NIETHAMMER, Lutz. Posthistoire: Has History Come to an End? Londres: Verso, 1989. NIETZSCHE, F. Más allá del bien y del mal. Madrid: Alianza Editorial, 1985. NORA, P. Comment écrire l’histoire de France? Les Lieux de mémoire, v. 3, p. 11-32, [19--]. NORA, P. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1992, 3 v. NORMAN, Andrew P. Telling It Like It Was: Historical Narratives on Their Own Terms. History & Theory, p. 119-135, 1991. ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Editora da Unesp, 1997. OLICK, Jeffrey K. Introduction: Memomry and the Nation: continuities, Conflicts, and Transforamtions, social Science History, v. 22, n. 4 (número especial: Memory ans the Nation), p. 377-387, 1998. OLIVEIRA, Lucia Lippi. As festas que a Repúblicas manda uardar. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 2, 1989. 226

Malerba, Ensaios

PETERSEN, Silvia Regina Ferras. Algumas interrogações sobre tendências recentes da historiografia brasileira: a emergência do “novo” e a crítica ao racionalismo. LPH Revista de História. Ouro Preto, v. 3, n. 1, p. 95-107, 1992. PIETERS, Jurgen. New Historicism: Postmodern Historiography Beteween Narrativism and Heterology, History & Theory, v. 39, n. 1, p. 21-38, 2000. POMIAN, Krzysztof. El orden Del tiempo. Barcelona: Júcar, 1990. ______. A história das estruturas. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993. POPPER, Karl. Conjeturas e refutações. 2.ed. Brasília: UnB, 1982. POSTER, Mark. Cultural History and Postmodernity. New York: Columbia University Press, 1997 PRADO Jr. Caio. Histórica econômica do Brasil. 6.ed. São Paulo: Brasiliense, 1962. PRADO, María Ligia Coelho; CAPELATO, María Helena Rolim. A l’origine de la collaboration universitaire franco-brésilienne: une mission française à la Faculté de Philosophie de São Paulo, Prefaces, n. 14, jul./set. 1989. PULINO, Lucia Helena. Richard Rorty e a questão das representações em filosofia. In: CARDOSO, Ciro, MALERBA, J. Representações. Campinas: Papirus, 2000. RAGO, L. M. Do Cabare Ao Lar. A Utopia da Cidade Disciplinar. Rio De Janeiro: Paz & Terra, 1985. ______. Os Prazeres da Noite: Prostituicão e Codigos da Sexualidade Feminina Em Sâo Paulo. Rio De Janeiro: Paz & Terra, 1991. RANGER, T. The invention o Tradition Revisited: The Case of colonial África. In: RANGER, T.; VAUGHAN. Legitimacy and the State in África. Londres: MacMillan, 1993. REIS, José Carlos. Nouvelle histoire e tempo histórico. São Paulo: Ática, 1994. ______. Annales: a renovação da história. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1996. ______. A história entre a filosofia e a Ciência. São Paulo: Ática, 1996a. ______. Wilhelm Dilthey ea autonomia das ciências histórico-sociais. Londrina: EDUEL, 2003. ______. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Autêntica, 2004. REIS, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis. Modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

bibliografia citada

227

RIBEIRO, Renato J. Apresentação a Norbert Elias. In: ELIAS, N. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. v 1. ______. Uma ética do sentido. In: ELIAS, N. O processo civilizador: Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v 2. RICŒR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968. ______. Temps et récit. Paris: Seuil, 1985. v 1. ______. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994-96. 3. t. ______. La memoire, l´histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. RÜSEN, J. Studies in Metahistory. Pretoria: Humana Sciences Research Council, 1993. ______. Some Theoretical Approaches to Intercultural Comparative Historiography. History & Theory, v. 35, n. 4, p. 5-22, 1996. ______. Razão Histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001. SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SAITTA, Armando. Historia y Historiografia. In: Guía crítica de la Historia y de la Historiografía. México: FCE, 1996. (Breviários 480). SALMON, Pierre. História e crítica. Coimbra: Almedina, 1979. SAMUEL, Raphael. Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Ed. Critica, 1984. SANDES, Noé F. A invenção da nação: entre a monarquia e a república. Goiânia: Editora da UFG, 2000. SANTOS, A. C. M. A invenção do Brasil: um problema nacional. Revista de História, São Paulo, jan./jun. 1985. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 3.ed. Porto: Afrontamento, 1993, ______. Toward a new common sense. Londres: Routledge & Keagan Paul, 1995a. ______. Um discurso sobre as ciências. 7.ed. Porto: Afrontamento: 1995b. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix; USP, 1969. SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1983. SCHAMA, Simon. Landscape and Memory. New York: Knopf, 1995.

228

Malerba, Ensaios

SCHAPOCHINIK, Nelson. Contextos de leitura no Rio de Janeiro do século XIX: salões, gabinetes literários e bibliotecas. In: BRESCIANE, Stella. (org.). Imagens da cidades, séculos XIX e XX. São Paulo: Anpuh/Marco Zero, 1994. SCHWARZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. D. Pdero II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SILVA, Luis Geraldo da. A noção de sociabilidade nas obras de Kant e Norbert Elias. História: questões e dèbates, Curitiba, n. 26/27, p. 244-256, jul./dez. 1997. SIMIAND, François. Méthode historique et science sociale. Annales ESC, p. 83-119, 1966. SIMONSEN, Roberto. Formação econômica do Brasil. 8.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. SOUZA, Iara Liz S. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo. São Paulo: Editora da Unesp, 1999. STOCKING Jr. George W. Franz Boas and the Culture Concept in Historical Perspective, American Anthropologist, New Series, v. 68, n. 4, p. 867-882, ago. 1966. STONE, Lawrence; SPIEGEL, G. History and Postmodernism. Past & Present, n. 135, p. 189-208, 1992. THOMPSON, E. P. Time, workdiscipline and Industrial Capitalism. Past & Present, v. 38, p. 56-97, fev. 1967. ______. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. ______. Making history: writings on history and culture. New York: The New Press, 1994. ______. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998. TODOROV, Tzvetan. Les Abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995. TOPOLSKY, Jerzy. (ed) Historiography Between Modernism and Postmodernism. Amsterdã: Rodopi, 1994. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil. 4.ed. São Paulo: Melhoramentos, [1948]. veblen, Thorstein. Teoria de la classe ociosa. Vicente Herrero. 2.ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1951. VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Brasília: Unb, 1982.

bibliografia citada

229

VIDAL-NAQUET, P. Os Assassinos da Memória. Um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1998. VILAR, Pierre. Iniciação ao vocabulário da análise histórica. Lisboa: Sá da Costa, 1985. VVAA. Primeras jornadas braudelianas. México: Ifal/Instituto Mora, 1993. ______. Segundas jornadas Braudelianas: Historia y Ciencias Sociales. México: Universidad Autonoma Metropolita/Instituto Mora, 1995. WALLERSTEIN, Immanuel. Braudel, los Annales y la historiografía contemporánea. Historias, México, 1983. ______. Después del Liberalismo. México: Siglo XXI, 1996. ______. et al. Open the social sciences. Stanford: Stanford University Press, 1996a. ______. La imagen global y las posibilidades alternativas de la evolución del sistemamundo, 1945-2025, Revista Mexicana de Sociología, México, n. 2, 1999. ______. Capitalismo histórico e civiilização capitalista. Rio de Janeiro: contraponto, 2007. WAUGH, Linda R.; MONVILLE-BOURSTON, Monique. (eds). Roman Jakobson on language. Cambridge: Harvard UP, 1990. WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1987. WEHELING, Arno. Fundamentos e virtualidades da epistemologia da História: algumas considerações. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 147-69, 1992. ______. Filosofia, metodologia e teoria da história: uma delimitação pelas respectivas origens. In: A invenção da história; estudos sobre o historicismo. RJ: EDUFF, 1994. ______. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. WHITE, Hayden. The Historical Text as Literary Artifact. In: CANARY, R.H.; KOZICKI, H. (eds.). The Writing of History. Madison: The University of Wisconsin Press, 1978. ______. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992a. ______. Historical emplotment and the Problem of Truth. In: FRIEDLANDER, Saul (ed) Probing the Limits of Representation/ Nazism and the Final Solution. Cambridege (MS): Harvard University Press, 1992b.

230

Malerba, Ensaios

______. Trópicos do discurso. São Paulo: EDUSP, 1994. ______. Enredo e verdade na escrita da história. In: MALERBA, J. A história escrita. São Paulo: contexto, 2006. WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia. [s.l.]: Companhia de Bolso, 2006. ZAGORIN, Perez. History, the Referent, na Narrative: Reflections on Postmodernism Now. History and Theory, v. 38, n. 1, p. 1-24, fev. 1998. ZERUBAVEL, Yael. Recovered roots: the making of israeli National tradition. Chicago: Um. Of Chicago Press, 1995.

bibliografia citada

231

Título Autor Prodção Gráfica Projeto Gráfico Editoração Texto de 4ª Capa Preparação de Originais Normalização Revisão Final Divulgação Formato Tipografia Número de Páginas Tiragem Impressão

Ensaios: teoria, história & ciências sociais Jurandir Malerba Maria de Lourdes Monteiro Maria de Lourdes Monteiro Maria de Lourdes Monteiro José Carlos Reis Diego Aureliano da Silva Rafael Silva Rodrigues Luiz Fernando de Oliveira Verênica Merlin Viana Rosa Carlos Alberto Cury Harfuch 16x23 Adobe Caslon Pro Papel Supremo 300g/m² (Capa) Off-set 75g/m² (Miolo) 232 300 Midiograf

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.