Ensinando história da África: um meio de construir uma sociedade racialmente igualitária no Brasil.

May 30, 2017 | Autor: Marina Souza | Categoria: Ensino de História da África
Share Embed


Descrição do Produto

Ensinando história da África: um meio de construir uma sociedade racialmente igualitária no Brasil.
Marina de Mello e Souza - Departamento de História - USP - Brasil.
Comunicação apresentada no Workshop Public Understanding of the Past - Universidade de York - setembro de 2016.


Por três séculos a força de trabalho de africanos escravizados e seus descendentes foi o principal motor da economia brasileira. Colonizado por portugueses que no século XVI e parte do XVII recorreram também à mão de obra das populações nativas escravizadas, o Brasil tornou-se independente em 1822 mas a escravidão só foi abolida em 1888, um ano antes do império brasileiro ser derrubado por militares que estabeleceram o regime republicano no país. A presença massiva de africanos na maior parte do território brasileiro, ao qual chegaram como escravizados de cerca de 1550 até 1850, definiu as feições da população, especialmente das camadas economicamente menos privilegiadas, por isso mesmo mais afastadas da condução da sociedade no que diz respeito ao seu governo e à formulação de suas leis. Essa contribuição, entretanto, mesmo fundamental no que diz respeito às atividades produtivas, ou foi ignorada ou vista como negativa.
Enquanto durou o sistema escravista os africanos e seus descendentes mesmo quando não eram propriedade de seus senhores e já haviam obtido a liberdade ou nascido livres em terras brasileiras, eram vistos como seres inferiores, pertencentes a culturas consideradas primitivas, portadoras de maus costumes e seguidores de crenças supersticiosas, destituídas de lógica racional. Tal percepção, tornou-se mais acentuada a partir do século XIX, quando as diferenças culturais entre europeus e africanos foram atribuídas a determinações biológicas. Se até então acreditava-se que a conversão ao catolicismo poderia conduzi-los ao estado civilizado, com a disseminação de um pensamento cientificista e a atribuição das diferenças entre os povos a fatores raciais e biológicos, aos olhos das classes dirigentes e dos produtores de conhecimento ficou mais acentuada a diferença entre brancos e negros, civilizados e primitivos. É nesse contexto ideológico que a escravidão foi abolida no Brasil e a população negra tornou-se um problema para o jovem país que desejava integrar-se ao conjunto das nações civilizadas.
Para os grupos dirigentes brasileiros, civilizar-se significava, entre outras coisas, branquear sua população, tendo havido uma política oficial voltada para este objetivo, com a criação de mecanismos de incentivo à imigração europeia, em detrimento da integração dos negros no mercado de trabalho por meio de sua qualificação e absorção nas atividades industriais então em pleno desenvolvimento. Na virada do século XIX para o XX as atividades rurais, até então centrais na economia do país, começaram a dividir sua importância com as atividades industriais, as cidades passaram a crescer em ritmo acelerado, e a população negra e mestiça que não permaneceu no campo, vivendo em uma economia de subsistência, passou a constituir uma massa de trabalhados sem qualificação e marginalizados.
Nas primeiras décadas do século XX, como os valores dominantes eram os de origem europeia, negros e mestiços que buscavam ascensão social adotaram esses valores, afastando-se das culturas africanas de seus antepassados à medida que galgavam degraus na hierarquia social. As tradições de matriz africanas, como danças, músicas, contos transmissores de padrões de comportamento e valores, religiões e mesmo atividades artesanais, como produção de objetos de cerâmica e cestaria, eram vistas como indicadores de atraso e mantiveram-se com mais vigor apenas entre as populações rurais. Mas como a natureza miscigenada da população brasileira não podia ser negada, a partir dos anos 1930, quando houve uma forte preocupação relativa à definição de uma identidade nacional, elementos derivados da influência africana na formação da cultura brasileira, como o carnaval, o samba, a capoeira, e o tipo físico da mulata, passam a ser enaltecidos como expressões da especificidade do Brasil. É nesse momento que se constituiu a ideia de que no Brasil existia uma democracia racial, ou seja, não havia preconceitos com base na cor da pele.
Essa ideologia, além de camuflar a marginalização dos negros e mestiços ao negar que houvesse diferença no tratamento de brancos e negros, justificava o afastamento de tudo que dissesse respeito diretamente à África - movimento em curso desde o fim do comércio de gente ocorrido em 1850. Pois se por três séculos Brasil e África mantiveram um estreito contato, as relações comerciais e políticas entre os dois continentes foram se tornando cada vez menos intensa, para o que o papel da Inglaterra não foi pequeno, pois havia interesse em eliminar o Brasil dos circuitos comerciais com aquele continente. Esse afastamento foi acentuado pela identificação das sociedades africanas com o atraso, na medida que o Brasil buscava civilizar-se conforme os padrões europeus.
A ideologia da democracia racial, que valorizava a mestiçagem no que dizia respeito a contribuições culturais de matrizes africanas, que se misturaram com contribuições europeias, especialmente portuguesas, e mesmo indígenas, serviu de estratégia para ocultar a marginalização econômica e política dos grupos que, se tinham algumas de suas manifestações culturais valorizadas, continuavam sem lugar no mercado de trabalho mais qualificado, sem acesso à educação e aprimoramento profissional, sem possibilidade de interferir nos rumos da política. No Brasil só foi permitido ao analfabeto votar em 1985 e os negros, geralmente pertencentes às classes economicamente menos favorecidas, frequentemente não tinham acesso à educação escolar.
Até os anos 1980 predominou no Brasil uma atitude de desconhecimento acerca do continente africano e a percepção geral de que os afrodescendentes estariam plenamente integrados à sociedade brasileira. Também contribuiu para isso a ideia de que as sociedades africanas seriam atrasadas, portanto a aceitação de qualquer proximidade cultural com elas poria em questão o grau de civilidade do país. A partir de então, ao sair de um período de 20 anos de ditadura militar, durante a qual houve uma violenta perseguição a opiniões contrárias ao governo e o questionamento acerca da existência da democracia racial era considerado um atentado à segurança nacional, houve uma eclosão de movimentos sociais reivindicatórios, inclusive de organizações de negros. O contexto internacional de então era bem diferente daquele da primeira metade do século XX, havendo a denúncia da opressão colonial sobre o continente africano e a independência dos seus países, além da contestação das ideias evolucionistas segundo as quais as sociedades africanas seriam atrasadas. No campo do conhecimento havia a disseminação de novas ideias sobre as sociedades e as culturas, que passaram a ser vistas conforme suas lógicas específicas e não avaliadas a partir de uma ideia de evolução orientada para uma única direção.
Desde então o movimento negro, ou seja, a atuação de grupos que se identificam como negros e denunciam a marginalização a eles imposta com base em preconceitos raciais, tem evocado sua diferença ao reivindicar e valorizar uma ancestralidade africana, que se tornou fator de orgulho. A busca por igualdade de direitos passou a ser feita não mais a partir da adoção dos valores da elite branca, mas fundada na defesa do respeito às diferenças e na valorização das matrizes culturais africanas. A influência de movimentos como o da Negritude na esfera cultural, e a luta pelos direitos civis na América do Norte na esfera política, fortaleceram essa postura dos grupos de negros que denunciavam o preconceito e buscavam igualdade de oportunidades e tratamento. Com a redemocratização do país a partir de 1985 e a nova constituição sancionada em 1988, a voz dos movimentos sociais passou a ser mais ouvida, entre elas a do movimento negro, que atuou junto aos legisladores para criar leis que defendessem a parcela negra da população brasileira, sempre marginalizada, sem representação política, e tendo que enfrentar enormes obstáculos para ter seus direitos reconhecidos. Uma das reivindicações, aceita pelos legisladores diante da pressão de grupos organizados, era a obrigatoriedade do ensino de história da África e cultura afro-brasileiras em todas as escolas. Em 2003 foi sancionada uma lei que estabeleceu esta obrigatoriedade, alterada em 2006 para incluir a história dos indígenas brasileiros. Desde então, tem sido feito um esforço por parte de alguns grupos para que a lei seja realmente cumprida, o que requer um investimento na formação de professores e na produção de material didático, uma vez que a história da África e dos indígenas e suas culturas nunca haviam sido objetos de atenção.
É fato que a aplicação da lei não foi imediata e mesmo hoje a maioria das escolas ainda não ensina história da África e da cultura afro-brasileira, ou o fazem de maneira bastante precária, mas nestes 13 anos muita coisa mudou. Cursos de formação de professores são cada vez mais frequentes por todo país, com vistas a prepará-los para ensinar assuntos desconhecidos até recentemente, e livros didáticos estão sendo publicados em quantidade crescente. Também é fato que nem sempre a qualidade desses cursos e livros é satisfatória, pois ao lado do grande despreparo para lidar com esses temas há um interesse do mercado na oferta de cursos e livros muitas vezes de qualidade duvidosa. Mas sem dúvida a questão do preconceito racial e da segregação dos negros ganhou um destaque inédito na história do Brasil, trazendo à tona algo que a sociedade como um todo fingia não existir.
O ensino de história da África apresenta o continente às crianças e jovens a partir de suas especificidades e não apenas de forma comparada e articulada com a história europeia. Suas sociedades e processos históricos são tratados de forma a inserir o continente na história da humanidade, o que não acontecia até recentemente em grande parte devido ao projeto dominante que almejava um branqueamento e disseminação de valores ocidentais, entendidos como os únicos pertinentes aos países civilizados. A valorização das heranças africanas, e a consideração das sociedades a partir de seus valores e processos internos, tem permitido que a população afrodescendente não seja mais identificada apenas com a escravização e com o atraso. Ao serem valorizadas enquanto portadoras de lógicas e valores próprios as histórias e culturas das sociedades de origem dos africanos escravizados tornaram-se fator de orgulho dos afrodescendentes e dos brasileiros em geral. Com um maior conhecimento sobre o continente e sobre as razões que levaram à escravização de muitos de seus habitantes, os negros e mestiços brasileiros começam a não ser mais identificados apenas aos escravos e a culturas consideradas atrasadas. Na medida que os estudantes, e as pessoas em geral, entram em contato com a riqueza das culturas do continente africano, de suas organizações sociais e políticas, com a natureza dos processos históricos vividos pelas suas sociedades, as heranças africanas passam a ser valorizadas. Se em um passado recente ser negro era no geral fator de vergonha e o branqueamento por meio da mestiçagem era visto como caminho para uma maior integração à ordem vigente, isso tem mudado bastante. Hoje a afirmação de uma especificidade nacional está associada à valorização das matrizes africanas, das contribuições que os africanos e seus descendentes deram à formação do Brasil, não só em termos culturais, como econômicos e tecnológicos.
Não há como negar que a sociedade brasileira ainda é predominantemente preconceituosa, que as oportunidades existentes para os negros são muitíssimo menores que as existentes para os brancos e mesmo mestiços, que a polícia mata muito mais negros do que brancos, que apesar de constituirem cerca de 50% da população os negros estão muito mais presentes nas periferias urbanas e nas atividades que requerem menos especialização, que quase não estão representados na esfera política. Mas agora a questão da segregação racial é tratada com mais franqueza, e é destacada a ligação histórica e cultural do Brasil com algumas regiões do continente africano. É mesmo possível dizer que a África está na moda e que lidar com temas ligados a ela dá prestígio. Melhor assim, do que a ignorância sobre o continente que predominou na maior parte do século XX.
No que diz respeito ao estudo de história da África é impressionante a rapidez com que o tema passou a ser tratado no nível da pós-graduação, com uma proliferação de pesquisas por todo país. Isso tem feito com que o ensino no nível básico também venha se consolidando e a sua qualidade melhorando. Mesmo assim, ainda hoje, 13 anos depois da promulgação da lei que tornou obrigatório seu ensino nas escolas, os alunos geralmente chegam à universidade sem terem tido contato anterior com a matéria. Mas é possível perceber que a parcela negra e mestiça do Brasil está sendo cada vez mais valorizada, mesmo que devido a uma pressão forte e contínua daqueles que militam pela causa dos negros. Exemplo disto é como nas telenovelas os personagens negros são mais frequentes, não mais apenas em lugares sociais subalternos.
Mas o exemplo maior de como o Brasil começa a assumir sua face negra foi dado recentemente, no espetáculo de abertura das Olimpíadas que ocorreram no Rio de Janeiro, quando foi mostrada uma síntese da sua história. Depois da origem da vida foram apresentados os índios, primeiros habitantes da terra, a chegada dos colonizadores portugueses, a força de trabalho dos africanos, e depois dos imigrantes. História clássica, há muito narrada, da formação do Brasil a partir da mistura de indígenas, africanos, europeus e asiáticos. Mas o que chamou a atenção foi a presença absolutamente predominante de negros e mestiços entre os que participaram das representações, seja nas cenas que envolveram grande quantidade de pessoas, seja nas apresentações individuais. Foram os artistas negros e mestiços que conduziram o espetáculo que mostrou a cara do Brasil para o mundo. Parece que o país finalmente começa a aceitar sua verdadeira natureza, não apenas de sociedade que congrega pessoas de diferentes ancestralidades, mas para a qual a contribuição negra, e portanto africana, é central.
Mas ainda é preciso trabalhar muito para que essa aceitação passe da esfera do discurso e da construção de uma identidade nacional para a esfera da cidadania, quando os direitos iguais de todos, independentemente da cor da pele, sejam realmente respeitados. Nesse percurso ainda por trilhar, no qual a cor negra da pele tem que ser dissociada de um passado escravista e de uma ideologia evolucionista, o ensino de história da África tem um papel de importância considerável, o que posso constatar por meio da minha experiência em sala de aula, ao perceber a transformação que o contato com a história do continente africano produz nos alunos. Ao desvendar a riqueza, a complexidade e as lógicas internas das diversas sociedades africanas, o maior conhecimento acerca da África está mexendo com a autoestima das pessoas, que adquirem instrumentos para deixar de se verem como inferiores. Ao conhecer melhor o continente de origem de seus antepassados, afirmam com orgulho sua diferença e clamam com mais segurança pela igualdade de direitos. Há ainda um longo caminho a trilhar para que essa igualdade seja realmente alcançada, e o maior conhecimento sobre os africanos e sobre sua contribuição para a construção do Brasil é parte importante desse trajeto.







1


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.