Ensinar e aprender: a experiência de estágio no curso de leitura e escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

June 8, 2017 | Autor: N. Gasparini | Categoria: Indigenous Knowledge, Teaching and Learning Writing and Reading
Share Embed


Descrição do Produto

Entrevista: Atravessando fronteiras: uma breve entrevista com Henry Giroux Marcia Moraes – Faculdade CCAA

ISSN 1982-2685

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra Cristina Mielczarski dos Santos – UFRGS Tragicidade na escrita de Clarice Lispector Angélica Castilho – Faculdade CCAA, Colégio Estadual Visconde de Cairu O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de. Daiane Crivelaro – UFRJ, Cap-UERJ A vida curta e conturbada de Raul Pompeia Magali Lippert da Silva – UFRGS, IFRS/Campus Porto Alegre Euclides da Cunha: um lapidador harmônico – Uma análise da construtividade autoral d’Os Sertões de Euclides da Cunha Lais Peres Rodrigues – UFRJ Linguística Formal, Enunciação e Discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase Matheus Silveira Hugo – UFRGS A intersubjetividade pela Teoria da Argumentação: uma influência benvenistiana Christiê Duarte Linhares – UFRGS, PUC-RS O processo de significação do item lexical catraia : do significado à experienciação linguística José Enildo Elias Bezerra – UERJ, IFAP/ Campus Laranjal do Jari Shirlei L. C. S. Pereira – PUC Minas Rejane Aparecida da Silva – PUC Minas Afeto e prática exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula Ruan Nunes – SME-RJ, Cultura Inglesa, Colégio pH Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever pelo erro? Heloana Cardoso Retondar – UERJ Ensinar e aprender: a experiência de estágio no curso de leitura e escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS Bruna Morelo – UFRGS Nathália Gasparini – UFRGS

www.faculdadeccaa.edu.br ISSN 1982-2685

9 771982 268450

REVISTA ACADÊMICA DO CURSO de Letras da Faculdade CCAA

ISSN 1982-2685

v. 7 n.1 outubro 2014

Rio de Janeiro

InterSignos

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA FACULDADE CCAA

Diretora Geral • Eliane Faial Superintendente • Daniel Hoorn Diretora Acadêmica • María Paz Pizarro Coordenadora de Graduação • Simone Meirelles Coordenação do Curso de Letras • Ricardo Teixeira

Editores

Ana Paula Botelho • Faculdade CCAA ([email protected]) Aytel Fonseca • Faculdade CCAA ([email protected])

Diretora Adjunta

Simone Meirelles • Faculdade CCAA ([email protected])

Conselho Consultivo

Peter McLaren • UCLA – EUA Henry Giroux • McMaster University – Canadá Marcia Paraquett • Universidade Federal da Bahia Gilda Santos • Universidade Federal do Rio de Janeiro

Conselho Editorial da Faculdade CCAA Anderson Souto André Scucato Carina Oliveira Lúcia Donato Maria Lúcia Monteiro María Paz Pizarro Renata Amaral Roberto Loureiro Solange Amaral Susan Kratochwill CCAA Editora Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA.

INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA v. 7, n.1, out. 2014, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2014. 180 p. Anual ISSN: 1982-2685 1. Literatura. 2. Linguística.

CDD 800

Esta obra segue as normas estabelecidas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que prevê a padronização do idioma nos países lusófonos.

Editoração e Impressão CCAA Editora Editora Gerencial Sylene Matturo Capa Bruno Gomes Projeto Gráfico Juliana Andrade Editoração Eletrônica Claudia Rocha e Edson Paula Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto Rita Cyntrão Revisão Editorial Luís Antônio Guimarães Revisão de Língua Inglesa (abstracts): Ana Paula Botelho Revisão de Língua Espanhola (resúmenes): María Paz Pizarro Faculdade CCAA Curso de Letras InterSignos Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA Periodicidade Anual Assinatura R$40,00 Endereço para correspondência Avenida Marechal Rondon, 1.460 • Riachuelo Rio de Janeiro – RJ • CEP 20950-202 Tel.: (21) 2156-5000 www.faculdadeccaa.edu.br Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial. Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. A revista InterSignos, publicação acadêmico-científica da Faculdade CCAA, tem como objetivo publicar trabalhos inéditos de docentes, discentes e pesquisadores na área de Letras e áreas correlatas. A proposta deste periódico é oferecer à comunidade acadêmica um espaço para compartilhar conhecimento, análises, informação e experiências. InterSignos procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da Língua Portuguesa, das Línguas Estrangeiras e de suas respectivas manifestações literárias. Esta publicação também objetiva apresentar trabalhos sobre licenciatura e estudos multiculturais, juntamente a investigações sobre a inserção de novas tecnologias no cenário linguístico-educacional, para fomentar novas reflexões nestas áreas. A revista InterSignos é uma publicação acadêmico-científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA, e publicada pela CCAA Editora.

9 1 1 1 9 3 9

Editorial Entrevista: Atravessando fronteiras: uma breve entrevista com Henry Giroux Marcia Moraes • Faculdade CCAA Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra Cristina Mielczarski dos Santos • UFRGS Tragicidade na escrita de Clarice Lispector Angélica Castilho • Faculdade CCAA, Colégio Estadual Visconde de Cairu O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de. Daiane Crivelaro • UFRJ, Cap-UERJ A vida curta e conturbada de Raul Pompeia Magali Lippert da Silva • UFRGS, IFRS/Campus Porto Alegre

5 1 6 5

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico – Uma análise da construtividade autoral d’Os Sertões de Euclides da Cunha Lais Peres Rodrigues • UFRJ

7 7

Linguística Formal, Enunciação e Discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase Matheus Silveira Hugo • UFRGS

91

A intersubjetividade pela Teoria da Argumentação: uma influência benvenistiana Christiê Duarte Linhares • UFRGS, PUC-RS

1 0 7

O processo de significação do item lexical catraia : do significado à experienciação linguística José Enildo Elias Bezerra • UERJ, IFAP/ Campus Laranjal do Jari Shirlei L. C. S. Pereira • PUC Minas Rejane Aparecida da Silva • PUC Minas

1 2 1

Afeto e prática exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula Ruan Nunes • SME-RJ, Cultura Inglesa, Colégio pH Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro? Heloana Cardoso Retondar • UERJ

1 3 7 1 5 3

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no curso de leitura e escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS Bruna Morelo • UFRGS Nathália Gasparini • UFRGS

1 6 7

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, out. 2014

EDITORIAL O presente volume da revista InterSignos, ligada ao curso de Letras da Faculdade CCAA, dá continuidade a um louvável trabalho de divulgação do saber e de troca de experiências. Dentre os pontos fortes deste volume, podemos destacar pelo menos dois: a abrangência temática, observada na entrevista e nos 11 artigos, que passam por áreas como Literatura, Linguística e Educação, e a abrangência geográfica, uma vez que os autores dos textos a seguir são filiados a conceituadas instituições de ensino de três regiões do Brasil: Norte, Sul e Sudeste. O texto que abre o volume é uma entrevista da professora Ph.D. Marcia Moraes com o pensador Henry Giroux, um dos fundadores da chamada Pedagogia Crítica e autor de diversas obras sobre a relação entre educação e sociedade, com destaque para o bem-sucedido Os professores como intelectuais (Artmed). Na entrevista, o estudioso fala sobre temas variados e relevantes, como a influência das novas mídias e do consumismo na formação das crianças da atualidade e a importância das escolas da rede pública e das universidades na formação de sujeitos pensantes. Na coletânea de artigos, ganham espaço reflexões sobre grandes nomes da literatura de todas as épocas. Cristina Mielczarski dos Santos, por exemplo, debruça-se, em seu texto, sobre o livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor moçambicano Mia Couto, estabelecendo uma relação entre os universos da ficção e da fotografia. Já a universal Clarice Lispector figura no centro de dois estudos. Em Tragicidade na escrita de Clarice Lispector, Angélica Castilho investiga como a autora transforma suas histórias em lugar privilegiado para questionamentos e descobertas sobre a existência humana. Daiane Crivelato, por sua vez, em um estudo comparativo, busca pontos de encontro entre a personagem clariceana Macabéa, de A hora da estrela, e Erasmo Wagner, que habita o romance O trabalho sujo dos outros, da carioca Ana Paula Maia. Outros dois escritores considerados são Raul Pompeia e Euclides da Cunha. O primeiro, autor de O Ateneu, tem sua vida e obra detalhadas e inter-relacionadas por Magali Lippert da Silva. Quanto ao criador de Os sertões, Laís Peres Rodrigues coloca em primeiro plano o trabalho meticuloso de Euclides com as palavras, verdadeiro “lapidador do verbo”.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 9-10, out. 2014     9

Este volume da InterSignos também nos contempla com trabalhos a respeito das diversificadas subáreas em que se desdobrou a Linguística nas últimas décadas. No artigo de Matheus Silveira Hugo, abre-se espaço para considerações da Linguística Formal, da Pragmática e da Análise do Discurso sobre o polêmico conceito de paráfrase. Encontramos outra abordagem comparativa no texto de Christiê Duarte Linhares, preocupada em analisar como a noção de intersubjetividade é considerada na Teoria da Argumentação e nos estudos sobre a Enunciação. Já a Semântica serve de base para uma curiosa investigação sobre o vocábulo “catraia”, feita por José Enildo Elias Bezerra, Shirlei Pereira e Rejane Aparecida da Silva com moradores de uma comunidade ribeirinha de Laranjal do Jari, no estado do Amapá. Por fim, podemos ler três artigos voltados para o fazer didático dos professores de línguas. Ruan Nunes focaliza como a afetividade contribui para um processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira muito mais significativo para o aluno. Em relação às práticas pedagógicas envolvendo a habilidade da escrita, Heloana Retondar defende uma metodologia que, em vez de penalizar os aprendizes pelos erros cometidos, valoriza os acertos, elogiandos as qualidades do texto. Já o último trabalho, das autoras Bruna Morelo e Nathália Gasparini, consiste em um relato de experiência sobre a inclusão do alunado indígena nas aulas regulares de uma universidade pública do sul do país, oferecendo-lhes mais oportunidades de se apropriar de práticas comunicativas básicas nesse domínio discursivo, como as habilidades da leitura e da escrita. Aos leitores, desejamos um excelente momento de aprendizagem. Aos autores dos textos, à Direção da Faculdade CCAA, ao Conselho Editorial e Consultivo da revista e à equipe responsável pela elaboração editorial, registramos nossos agradecimentos pela concretização de mais esta etapa para a InterSignos.

Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca Ana Paula Botelho Ferreira Os editores 10      InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 9-10, out. 2014

EDITORIAL O presente volume da revista InterSignos, ligada ao curso de Letras da Faculdade CCAA, dá continuidade a um louvável trabalho de divulgação do saber e de troca de experiências. Dentre os pontos fortes deste volume, podemos destacar pelo menos dois: a abrangência temática, observada na entrevista e nos 11 artigos, que passam por áreas como Literatura, Linguística e Educação, e a abrangência geográfica, uma vez que os autores dos textos a seguir são filiados a conceituadas instituições de ensino de três regiões do Brasil: Norte, Sul e Sudeste. O texto que abre o volume é uma entrevista da professora Ph.D. Marcia Moraes com o pensador Henry Giroux, um dos fundadores da chamada Pedagogia Crítica e autor de diversas obras sobre a relação entre educação e sociedade, com destaque para o bem-sucedido Os professores como intelectuais (Artmed). Na entrevista, o estudioso fala sobre temas variados e relevantes, como a influência das novas mídias e do consumismo na formação das crianças da atualidade e a importância das escolas da rede pública e das universidades na formação de sujeitos pensantes. Na coletânea de artigos, ganham espaço reflexões sobre grandes nomes da literatura de todas as épocas. Cristina Mielczarski dos Santos, por exemplo, debruça-se, em seu texto, sobre o livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor moçambicano Mia Couto, estabelecendo uma relação entre os universos da ficção e da fotografia. Já a universal Clarice Lispector figura no centro de dois estudos. Em Tragicidade na escrita de Clarice Lispector, Angélica Castilho investiga como a autora transforma suas histórias em lugar privilegiado para questionamentos e descobertas sobre a existência humana. Daiane Crivelato, por sua vez, em um estudo comparativo, busca pontos de encontro entre a personagem clariceana Macabéa, de A hora da estrela, e Erasmo Wagner, que habita o romance O trabalho sujo dos outros, da carioca Ana Paula Maia. Outros dois escritores considerados são Raul Pompeia e Euclides da Cunha. O primeiro, autor de O Ateneu, tem sua vida e obra detalhadas e inter-relacionadas por Magali Lippert da Silva. Quanto ao criador de Os sertões, Laís Peres Rodrigues coloca em primeiro plano o trabalho meticuloso de Euclides com as palavras, verdadeiro “lapidador do verbo”.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 9-10, out. 2014     9

Este volume da InterSignos também nos contempla com trabalhos a respeito das diversificadas subáreas em que se desdobrou a Linguística nas últimas décadas. No artigo de Matheus Silveira Hugo, abre-se espaço para considerações da Linguística Formal, da Pragmática e da Análise do Discurso sobre o polêmico conceito de paráfrase. Encontramos outra abordagem comparativa no texto de Christiê Duarte Linhares, preocupada em analisar como a noção de intersubjetividade é considerada na Teoria da Argumentação e nos estudos sobre a Enunciação. Já a Semântica serve de base para uma curiosa investigação sobre o vocábulo “catraia”, feita por José Enildo Elias Bezerra, Shirlei Pereira e Rejane Aparecida da Silva com moradores de uma comunidade ribeirinha de Laranjal do Jari, no estado do Amapá. Por fim, podemos ler três artigos voltados para o fazer didático dos professores de línguas. Ruan Nunes focaliza como a afetividade contribui para um processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira muito mais significativo para o aluno. Em relação às práticas pedagógicas envolvendo a habilidade da escrita, Heloana Retondar defende uma metodologia que, em vez de penalizar os aprendizes pelos erros cometidos, valoriza os acertos, elogiandos as qualidades do texto. Já o último trabalho, das autoras Bruna Morelo e Nathália Gasparini, consiste em um relato de experiência sobre a inclusão do alunado indígena nas aulas regulares de uma universidade pública do sul do país, oferecendo-lhes mais oportunidades de se apropriar de práticas comunicativas básicas nesse domínio discursivo, como as habilidades da leitura e da escrita. Aos leitores, desejamos um excelente momento de aprendizagem. Aos autores dos textos, à Direção da Faculdade CCAA, ao Conselho Editorial e Consultivo da revista e à equipe responsável pela elaboração editorial, registramos nossos agradecimentos pela concretização de mais esta etapa para a InterSignos.

Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca Ana Paula Botelho Ferreira Os editores 10      InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 9-10, out. 2014

ATRAVESSANDO FRONTEIRAS: uma breve entrevista com HENRY GIROUX Marcia Moraes Faculdade CCAA  Ph.D. em Educação pela Miami University, Oxford, Ohio – EUA Mestre em Avaliação Educacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ contato: [email protected]

Henry Giroux é, sem dúvida, um dos mais importantes intelectuais da nossa era, quer por sua influência na teoria crítica da educação, quer por ser um dos fundadores da Pedagogia Crítica, quer por suas análises político-sociais, quer pelo volume de obras que deram à educação uma nova forma, um novo olhar. Seu pensamento representa uma revolução, especialmente para docentes. Seu trabalho é capaz de levar todas as pessoas à reflexão e os temas que ele desenvolve em sua teoria atravessam inúmeras instâncias da sociedade: educação, política, diversão, mídia, economia etc. O olhar de Giroux sobre a sociedade é invejavelmente acurado e ele consegue articular sua crítica demonstrando, de forma muito perspicaz, como todas essas instâncias se interpenetram na organização social. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014     11

Marcia Moraes

Giroux elaborou um conjunto significativo de obras,1 e continua elaborando, que ultrapassa a mera crítica à sociedade, em termos gerais, e à educação, em particular, porque possibilitam a compreensão de inúmeros paradigmas e a apresentação de novas perspectivas quando tais paradigmas são analisados. Ele desvenda, em cada uma de suas obras, um universo político-temático sobre o qual temos muito a aprender. Por todos esses motivos, parte do título desta entrevista só poderia ser “atravessando fronteiras”, porque Henry Giroux, além de ter usado esse título para um de seus livros, é, efetivamente, um atravessador de fronteiras, não importando o quão difícil elas sejam para serem atravessadas. Sua vasta obra e o reconhecimento internacional do seu trabalho são provas disso. MM: Você é autor de inúmeros livros e artigos que foram traduzidos em muitas partes do mundo. Dentre essas obras, para qual você dá maior destaque e por quê? HG: Essa é uma pergunta difícil de responder, porque os meus livros cobrem um longo período histórico e, geralmente, cada um respondeu a uma questão teórica ou problema que era específico para o tempo em que cada um deles foi publicado. Em Theory and resistance [Teoria e resistência] destaca-se o período de início e em Border crossings [Cruzando Fronteiras] o período médio. The mouse that roared [O rato que rugiu] e Youth in a suspect society [Juventude numa sociedade suspeita] têm seus próprios gravitas, considerando os problemas com os quais eu estava lidando. Em educação pública e superior, acho que Schooling and the struggle for public life, Take back higher education [Escolaridade e luta pela vida pública, Retomando a educação superior (coautoria com Susan Searls Giroux)] são notáveis.

1 Giroux publicou, aproximadamente mais de 50 livros, 200 capítulos de livros, 400 artigos em periódicos etc. Seu trabalho tem sido traduzido para inúmeras línguas, como português, espanhol, francês, grego, alemão, dentre outras.

12

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

Atravessando fronteiras: uma breve entrevista com Henry Giroux

Sobre o neoliberalismo, particularmente gostei de Public spaces, Private lives, Against the terror of Neoliberalism [Espaços públicos, vidas privadas, Contra o terror do Neoliberalismo] e The educational deficit and the war on youth [O Déficit educacional e a guerra sobre a juventude]. MM: Suas críticas, especialmente no livro The mouse that roared: Disney and the end of innocence [O Rato que Rugiu: Disney e o fim da inocência], com relação ao mundo de Disney, sempre foram bastante fortes e servem de alerta às pessoas que tendem a ver esse mundo como algo puro e inofensivo. Considerando todos os tipos de sonhos fabricados, você ainda considera as produções de Disney as mais influentes? HG: Disney é, certamente, um jogador importante no que eu chamo de “máquina de desimaginação”, mas acho que o controle corporativo dos maiores aparatos culturais, juntamente às novas mídias e tecnologias digitais, intensificaram consideravelmente tanto o maciço bombardeio comercial que ocorre em todo o globo quanto o poder de vigilância do Estado, muitas vezes ilegal. Enquanto o “império do consumo” tem estado por perto há tempos, as sociedades globais nos últimos trinta anos passaram por um mar de mudança radical no cotidiano de crianças – marcada por uma grande transição de uma cultura da inocência e da proteção social, porém imperfeita, a uma cultura de mercantilização. A juventude, agora, é assaltada por uma proliferação interminável de estratégias de marketing que colonizam a sua consciência e sua vida diária. Sob a tutela da Disney e outras megacorporações, as crianças tornaram-se um público cativo não só das formas tradicionais de mídia, como cinema, televisão e impressos, mas ainda mais das novas mídias digitais prontamente acessíveis por meio de telefones celulares, PDAs [personal digital assistant – palmtop], laptops, notebooks e internet. A informação, o entretenimento e a pedagogia cultural disseminados por enormes corporações multimídia tornaram-se centrais em moldar e influenciar cada momento da vida InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

13

Marcia Moraes

cotidiana das crianças desde o despertar – tudo em direção a uma vida de consumo constante, irracional. A cultura de consumo nos Estados Unidos, e cada vez mais em todo o globo, faz mais do que minar os ideais de uma infância feliz: essa cultura exibe a má fé de uma sociedade na qual, para as crianças, como diz Grossberg,2 só pode existir um tipo de valor: o valor de mercado; um tipo de sucesso: o lucro; um tipo de existência: mercadorias; e um tipo de relacionamento: mercados. Mas a cultura corporativa controlada não só explora e distorce as esperanças e os desejos dos indivíduos: é fundamentalmente orientada para a exploração de bens públicos para fins privados, se não ainda mais ousadamente, busca privatizar tudo na esfera pública. Entre megacorporações multimídia dos Estados Unidos, a Disney parece uma das menos intimidadas em tentar dominar o discurso público e minar as capacidades críticas e políticas necessárias para que a próxima geração de jovens sustente até mesmo as instituições mais básicas da democracia. Junte isso a um aparato cultural que inclui jornais, TV, notícias, filmes e as novas tecnologias da cultura de tela digital e estamos enfrentando um aparato educacional que é extremamente poderoso na mobilização de subjetividades, desejos e sonhos no interesse dos valores de mercado direcionado. MM: No livro Atos impuros: a prática política dos estudos culturais (ARTMED), você argumenta que as disputas existentes pela cultura não são um substituto fraco para a política ‘‘verdadeira’’, mas que são centrais a qualquer luta disposta a construir relações de poder, teoria, prática, pedagogia e mudança social. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre isso.

2 GROSSBERG, Lawrence. Caught in the crossfire: kids, politics, and America’s future. Boulder: Paradigm Publishers, 2005. p. 264.

14

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

Atravessando fronteiras: uma breve entrevista com Henry Giroux

HG: Cultura é o lugar onde o poder é implantado através da força educativa de aparatos muito poderosos, que vão desde as escolas até os veículos de transmissão, da mídia impressa até as novas formas de cultura da tela. É crucial reconhecer a natureza educativa da política, a fim de reconhecer que as mais importantes formas de dominação não são apenas econômicas, mas também intelectuais e pedagógicas, e residem ao lado da crença e da persuasão. Pedagogia é central para qualquer noção viável de política, porque é o espaço no qual os sujeitos, desejos, valores e modos de identificação são produzidos. O que é a política, se, no fim, não é uma luta sobre agência, poder e um sentido de futuro? MM: No seu livro ainda não publicado no Brasil – The University in chains: confronting the military-industrial-academic complex [Universidade acorrentada: confrontando o complexo acadêmico-industrial-militar] – você argumenta que a universidade é um dos poucos espaços públicos capaz tanto de levantar questões importantes quanto de educar estudantes para tornarem-se agentes críticos. O que você acha que ainda é necessário com relação às formas de a universidade ver a educação para que ela consiga, efetivamente, essa capacidade? HG: Nos Estados Unidos e em muitos outros países, muitos dos problemas no ensino superior podem ser vinculados ao baixo financiamento, à dominação das universidades pelos mecanismos de mercado, ao aumento de faculdades com fins lucrativos, à intromissão do estado de segurança nacional e à falta de autogovernança de professores, os quais não só contradizem a cultura e o valor democrático da educação superior, mas também fazem uma paródia do próprio significado e da missão da universidade como uma esfera pública democrática. O decréscimo do apoio financeiro para o ensino superior está em nítido contraste com o aumento do apoio dos benefícios fiscais para os ricos, para os bancos grandes, para os orçamentos militares e para as megacorporações. Em lugar de ampliar InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

15

Marcia Moraes

a imaginação moral e a capacidade crítica dos/das estudantes, inúmeras universidades estão agora comprometidas a produzirem pretensos gerentes de fundos, estudantes despolitizados, e criando modos de educação que promovam a “docilidade tecnicamente treinada”. Precisando de dinheiro e cada vez mais definidas na linguagem da cultura corporativa, muitas universidades estão agora impulsionadas, principalmente, pelas considerações vocacionais, militares e econômicas, enquanto, cada vez mais, removem a produção do conhecimento acadêmico dos valores e projetos democráticos. O ideal da universidade como um lugar para pensar, para se envolver em consideração profunda e criativa, para promover o diálogo e aprender a manter o poder responsável é visto como uma ameaça para os modos de governança neoliberais. Ao mesmo tempo, a educação superior é vista pelos apóstolos do fundamentalismo de mercado como um espaço para produzir lucros, educando uma força de trabalho dócil, e como uma instituição poderosa para doutrinar os/as estudantes para aceitar a obediência exigida pela ordem corporativa. Em muitos casos, a educação superior tem participado de sua própria destruição, alinhando-se com os interesses e poder corporativos, servindo à pesquisa e às necessidades de inteligência do Estado, e travando guerra contra professores e estudantes, vendo ambos os grupos como simplesmente empresários e consumidores. Há também o problema da especialização, o refúgio em línguas misteriosas, e a recusa de muitos acadêmicos em tratar de questões sociais importantes com rigor e clareza. Cada vez mais, docentes sofrem, porque são removidos dos reinos da gestão de poder, reduzidos ao trabalho de tempo parcial, e impotentes no seu papel de integrantes do corpo docente. MM: Em seu livro mais famoso no Brasil – Os professores como intelectuais –, você escreve insights valiosos da Pedagogia Crítica na teoria mais ampla e prática da educação, que vê as escolas como esferas públicas democráticas comprometidas em educar os/as estudantes nas linguagens da crítica, 16

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

Atravessando fronteiras: uma breve entrevista com Henry Giroux

da possibilidade e da democracia. Como você analisa o poder na escola para fazer a diferença social? HG: Educação pública e educação superior devem ser entendidas como uma esfera pública democrática – um espaço no qual a educação permite que os/as estudantes desenvolvam um senso de justiça profética, reivindiquem sua agência moral e política, utilizem as habilidades analíticas críticas e cultivem uma sensibilidade ética por meio da qual eles/elas aprendem a respeitar os direitos dos outros. A educação superior tem a responsabilidade não só de procurar a verdade, independentemente de onde ela possa chegar, mas também de educar os/as estudantes para transformarem a autoridade e o poder politicamente e moralmente responsáveis e, ao mesmo tempo, sustentar e apoiar uma cultura pública democrática, formativa. A educação superior pode ser uma das poucas esferas públicas restantes na qual o conhecimento, os valores e a aprendizagem oferecem um vislumbre da promessa de educação para nutrir valores públicos, esperança crítica e uma democracia substantiva. A democracia aloca demandas cívicas sobre os seus cidadãos e cidadãs, e essas demandas apontam para a necessidade de uma educação que seja ampla, crítica e solidária dos valores cívicos significativos, participação na autogovernança e liderança democrática. Somente através dessa cultura educacional, formativa e crítica os/as estudantes podem aprender a se tornar agentes individuais e sociais, em lugar de meros espectadores desengajados, e ser capazes tanto de pensar de outra forma e agir de acordo com os compromissos cívicos que exigem um reordenamento das organizações básicas de poder fundamentais para a promoção do bem comum quanto produzirem uma democracia significativa. As escolas oferecem um espaço que pode educar os/as estudantes a pensarem criticamente, a se envolverem em trocas significativas e aprenderem como exercitar o poder responsável. É um espaço crucial para ensinar aos estudantes não apenas a usar as ferramentas de crítica, mas também a pensar criticamente sobre seu relacionamento com os outros e com o InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

17

Marcia Moraes

mundo mais amplo, sugerindo aos estudantes a necessidade de aprender a serem agentes socialmente responsáveis e criticamente engajados. MM: Agradeço por este momento e, principalmente, por você fazer parte do Conselho Consultivo da InterSignos. Sua colaboração tem sido inestimável.

LIVROS de Henry Giroux publicados no Brasil: •

OS PROFESSORES COMO INTELECTUAIS (Artmed)



PEDAGOGIA RADICAL (Cortez)



ATOS IMPUROS: A PRÁTICA POLÍTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS (Artmed)



ESCOLA CRÍTICA E POLÍTICA CULTURAL (Cortez)



TEORIA CRITICA E RESISTÊNCIA EM EDUCAÇÃO (Vozes)



CRUZANDO AS FRONTEIRAS DO DISCURSO EDUCACIONAL (Artmed)

Para conhecer mais sobre Henry Giroux e sua obra: .

18

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 11-18, out. 2014

ÁLBUM DE FAMÍLIA EM UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA Cristina Mielczarski dos Santos Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS Mestre em Letras pela UFRGS Doutoranda pela UFRGS contato: [email protected] Resumo: Este trabalho tem por objetivo principal a análise da obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor moçambicano Mia Couto. Destacando a representação da fotografia no romance. Para tanto, faz-se um breve percurso sobre o universo fotográfico, assim como dialoga-se com estudiosos como Nelson Schapochnik, Rosalind Krauss, entre outros. Palavras-chave: Mia Couto; fotografia; literatura luso-africana. Abstract: The present work aims at analysing the novel Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, by the Mozambican writer Mia Couto, highlighting the representation of photography in the novel. For this purpose, a short journey through the photographic universe is taken, and a dialogue with scholars like Nelson Schapochnik and Rosalind Krauss, among others, is conducted. Keywords: Mia Couto; photography; luso-african literature. Resumen: Este trabajo tiene como principal objetivo el análisis de la obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, del escritor InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014     19

Cristina Mielczarski dos Santos

mozambiqueño Mia Couto. Destacaremos la representación de la fotografía en la novela. Para ello, realizaremos un breve recorrido sobre el universo fotográfico al mismo tempo que dialogaremos con estudiosos tales como Nelson Schapochnik, Rosalind Krauss, entre otros. PALABrAs CLAVe: Mia Couto; fotografia; literatura luso-africana.

20

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

“As fotos são o contrário de nós: apagam-se quando recebem carícias.” (Mia Couto)

No mundo das ciências e das artes, as contribuições de certas invenções não só modificam o modo de vida das pessoas assim como o modo de ver a vida. O advento de um aparelho que captava imagens – o daguerreótipo – demonstrou ser um elemento muito enriquecedor para o ser humano, influenciando e ampliando horizontes nas mais variadas ciências e influenciando as artes. Dentro das inúmeras invenções efetuadas pelo homem, podemos citar, primeiramente, os barcos que encurtaram distâncias, permitindo o contato do homem com o outro – oriundo de um mundo desconhecido, introjetando o sabor da aventura e do descobrimento. Por outro lado, no campo das artes, a fotografia, além de contatar o homem com o próximo, ao mesmo tempo aproxima-o dele mesmo. A invenção da fotografia parte da ideia da “câmera escura”. O conhecimento de seus princípios óticos se atribui a Aristóteles. Já no século XIX, a fotografia vem a desenvolver-se com os estudos de Joseph Nicéphore Nièpce, cuja criação é conhecida como “Héliographie”, assim chamada por produzir uma imagem inalterável, produzida pela ação direta da luz; contudo, sua descoberta demonstrou impossibilidades para a fotografia comum. No entanto, quem colocou o nome na História foi Louis Jacques Mandé Daguerre, que aperfeiçoou a descoberta de Nièpce, criando o daguerreótipo, instrumento que produzia uma imagem fixa pela ação direta da luz em placa metálica. Por sua vez, o britânico William Henry Fox Talbot foi inventor da calotipia. Desse modo, a diferença entre a calotipia e a daguerreotipia é que a primeira produzia um número ilimitado de cópias sobre papel, a partir de um negativo igualmente de papel, enquanto a segunda gerava uma imagem única sobre uma placa de cobre revestida de prata InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

21

Cristina Mielczarski dos Santos

polida. A calotipia obedecia, portanto, à natureza intrínseca da fotografia, a reprodutibilidade, e a daguerreotipia aparentava-se conceitualmente à pintura, por seu caráter de imaginação única e, por conseguinte, singular. Consequentemente, Talbot foi o criador da técnica do positivo-negativo – princípio que se tornou a base da fotografia moderna. Enfim, realizou-se, através da fotografia, um grande sonho da humanidade: captar e afixar momentos da existência. Nas palavras de Rosalind Krauss, a fotografia engendra discussões sobre conceitos como representação e percepção, visto que “a percepção está diretamente em contato com o real, enquanto a representação está separada dele por um fosso intransponível, restituindo a presença da realidade apenas sob a forma de substitutos, quer dizer, por intermédio de signos” (KRAUSS, 1990, p.10). Com o advento da fotografia, instaura-se a ideia de que o real e o instante podem ser capturados, dando uma sensação de domínio sobre o tempo, que o homem, desde sempre, tenta dominar. Além da questão temporal, a invenção suscitou inúmeras discussões no meio artístico por parte de intelectuais de distintas áreas, como, por exemplo, no âmbito das artes, no qual a fotografia foi vista, a princípio, como uma mera técnica. Nas palavras de Cendrars: “A fotografia era boa moça, bem simpática; mas não era bela de uma beleza estética e museológica; não era A pintura nem A literatura; era apenas um artesanato; a prova disso era seu material técnico pesado, complicado e indispensável; o fotógrafo tinha a máquina, enquanto o escritor tinha o gênio” (CENDRARS apud SOULAGES, 2010, p. 265). O fotógrafo, na acepção de Bertolt Brecht, também era qualificado como um simples artesão e só permaneceria na técnica, a arte seria sempre falha em relação à tecnicidade. Já Charles Baudelaire criticou dois fatores na fotografia: sua indústria e seu realismo. Para o escritor francês, por um lado, devido ao realismo, a fotografia corria 22

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

o sério risco de transformar-se em modelo e em norma da arte; por outro lado, através da indústria, ela poderia tornar-se concorrente da arte, já que “a fotografia nada tem de uma arte, mas é uma simples técnica material de reprodução”; não compreender isso contribui “para o empobrecimento do gênio artístico” e desenvolve o “narcisismo da massa” (BAUDELAIRE apud SOULAGES, 2010, p. 266). Além das perspectivas mencionadas, vale destacar o fotógrafo Duane Michals. Em discussão acirrada sobre a questão do valor da arte fotográfica e da relação desta com a escrita, o fotógrafo americano assevera: Se eu lhes mostro a foto é uma experiência em duas dimensões; com o texto torna-se algo em três dimensões. (...) Para mim, as coisas mais importantes da vida são as coisas que não se podem ver. A fotografia lhes mostra as imagens dos fatos, mas dificilmente lhes mostra o invisível. (MICHALS apud SOULAGES, 2010, p. 262)

No que se refere ao invisível, pode-se refletir sobre o texto do professor alemão Thomas Sträter, para quem o oximoro “fotografia do invisível” poderia aplicar-se à obra de Machado de Assis, com seu “olhar fotográfico” focado na vida pública e, especialmente, no invisível da vida íntima carioca do século XIX, “fotografando” o invisível da psicologia humana. O olhar machadiano, qualificado por Sträter como um “olhar fotográfico”, casa o olhar com a imaginação, realizando, desse modo, uma fotografia literária, seja como tema, motivo ou elemento de composição. Frente ao artigo de Sträter e ao estudar a fotografia, surgiu a curiosidade de perscrutar como um escritor contemporâneo representaria a fotografia – um símbolo da modernidade – em sua narrativa, e no caso InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

23

Cristina Mielczarski dos Santos

de este escritor ser africano, mais precisamente moçambicano, preocupado com questões da identidade e também engajado em resgatar a memória da tradição. Coincidentemente, ao ler Mia Couto, mais especificamente Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), a fotografia surge no romance como uma estratégia da construção memorialística. Em entrevista concedida em dezembro de 2003, Mia Couto afirma: “É preciso fazer um bocadinho o caminho com duas pernas: tem que ter um pé na tradição e outro pé na modernidade. Só assim se chega a um retrato capaz de respeitar as dinâmicas e as relações complexas do corpo moçambicano”. A fotografia como representante da modernidade encaixou-se perfeitamente no retrato moçambicano que é o romance. Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, o jovem estudante Marianinho volta à terra natal, a Ilha de Luar-do-Chão, para o enterro de seu avô Dito Mariano, pois recebeu a incumbência de organizar as cerimônias fúnebres. Ele se descobre um estranho tanto entre os de sua família quanto entre os de sua raça, pois na cidade adquiriu hábitos divergentes da cultura de seus ancestrais africanos. Aos poucos, Marianinho percebe que voltou à ilha para um renascimento. O corpo de Dito Mariano é velado do começo ao fim da narrativa, sendo apenas enterrado por Marianinho quando todas as insolúveis questões pertinentes à família Mariano – os Malilanes – são resolvidas através das cartas enviadas pelo avô falecido ao neto. As cartas assinadas por seu avô são inusitadas para Marianinho. Somente o neto lê as cartas transmitidas pelo avô. Em tom confessional, Dito Mariano revela verdades sobre os familiares e verdades escondidas, inclusive, acerca das origens do neto e de seus familiares. Portanto, a tarefa de Marianinho é encontrar uma forma de levar adiante uma história que, além de pessoal e familiar, na África pós-colonial é também política. 24

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Assim, é no diálogo com a tia Admirança que o narrador, Marianinho, torna-se ciente do modo como seu avô ficou no estado em que se encontrava – estado cataléptico. Segundo o médico goês Amílcar Mascarenhas, “ele era portador assintomático de vida” (COUTO, 2003, p. 37): É Tia Admirança que chegou sem que me apercebesse. Gesto decidido, ela retira a moldura da parede. E explica: bolor dos retratos não se limpa com pano. Estende-se no sol, a luz é que limpa. (...) - Me custa olhar essa imagem. Pois foi assim que seu Avô se apagou. - Foi assim como? - Quando tirávamos um retrato. Me custa ainda recordar. Por fim, alguém me dizia como falecera o Avô. Acontecera do seguinte modo: a família se reunira para posar para uma fotografia. Alinharam todos no quintal, o Avô era o único sentado, bem no meio de todos. O velho Mariano, alegre, ditava ordens, distribuía uns e outros pelos devidos lugares, corrigia

sorrisos,

arrumava

Dispararam-se

as

os

flashes.

Depois,

se

recompuseram

alturas

máquinas, e

todos se

e

idades.

deflagraram risonhos, dispersaram.

Todos, menos o velho Mariano. Ele ficara, sentado, sorrindo. Chamaram-no. Nada. Ele permanecia como que congelado, o mesmo sorriso no rosto fixo. Quando o foram buscar notaram que não respirava. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

25

Cristina Mielczarski dos Santos

O seu coração se suspendera em definitivo retrato. (COUTO, 2003, p. 57, grifos do autor)

Uma das explicações para o estado do avô era sua exposição à fotografia. Para o escritor francês Honoré de Balzac, a câmara fotográfica não atingiria os corpos, mas a alma: no seu livro Teoria dos espectros, o fotógrafo francês Nadar escreve sobre a curiosa visão que o escritor francês tinha sobre o processo fotográfico e a relação que este estabelecia com o corpo do fotografado: [...] Ora, segundo Balzac, cada corpo na natureza se compõe de séries de espectros em camadas infinitamente superpostas, laminadas em películas infinitesimais em cada um dos sentidos em que a ótica percebe este corpo. [...] cada operação daguerreana vinha então surpreender, destacar e reter ao aplicar-se uma das camadas do corpo visado. De onde se conclui que o dito corpo, a cada nova operação, sofre a perda evidente de um espectro, ou seja, uma parte de sua essência constitutiva. (NADAR apud KRAUSS, 1990, p. 24)

No caso, o personagem Dito Mariano, em contato com os flashes fotográficos, permanece com um sorriso nos lábios como se estivesse congelado, e sua respiração suspende-se; no entanto, sua alma ainda habita o corpo que não foi enterrado e vai, ao longo da narrativa, comunicar-se, por intermédio das cartas, com o neto. Dito Mariano já pressentia esse momento, por conseguinte, preparou-se como em um ritual. Os trechos que seguem explicitam a argumentação, no diálogo entre Marianinho e o pai: 26

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

- O Avô é assim, o senhor já sabe. - Isso é verdade. Esse Mariano, ninguém aguenta zangar-se com ele. - O pai acredita que ele morreu ao tirar a fotografia? - Ora, ele morreu? - Bem, que tenha ficado assim, como está... (COUTO, 2003, p. 224)

Dito Mariano possuía apenas um único fato1 escuro, e não o guardava, usualmente, em um guarda-fato, deixava-o pendurado no gancho no teto, como é costume, no campo. Com tantos armários embutidos na parede, varões e cabides, a família não encontrava sentido para aquela roupa pendurada no teto. A esse questionamento o avô arguia: - É que, assim, evito dobra e previno amarrotos. - Ora, pai! - Além do mais, dessa maneira, o fato apanha as brisas. (COUTO, 2003, p. 224)

O avô, aos olhos do narrador, era um “homem desamarrado, gostoso de rir, falando e sentindo alto” (COUTO, 2003, p. 43), um contador de histórias e, além disso, segundo Marianinho, “ter um avô assim era para mim mais que um parentesco. Era um laço de orgulho nas raízes mais antigas” (COUTO, 2003, p. 43-4). Quando, em uma tarde, o velho Mariano quis tirar o fato do prego, a família assustou-se. O velho vestiu o fato e não mais o tirou:

1 Terno.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

27

Cristina Mielczarski dos Santos

- Então, pai, não se desabotoa? - Amanhã vamos tirar a fotografia, com a família toda. Assim, já se ganha tempo. E dormiu vestido. O arrepio cresceu pela casa inteira. Como se soubéssemos que ele se estava despedindo, já envergando suas indumentárias finais. Porque o usual nele, nestes últimos tempos, era o desleixo. Às vezes, até saía para a rua de pijama. A Avó muito se afligia. Mas ele respondia: - Se a morte é um sono então eu já vou trajado nas conveniências. (COUTO, 2003, p. 224/225)

E, logo após a fotografia, “o seu coração se suspendera em definitivo retrato” (COUTO, 2003, p. 57). Será o avô, nesse sentido, o transmissor das histórias de Luar-do-Chão. O velho resgatará a memória coletiva. Como afirma Benjamin, “é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo, sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem, pela primeira vez, uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1985, p. 207). Por isso, apenas Dito Mariano possui essa autoridade da palavra, e sua morte apenas se concretizará quando seu neto tiver resgatado todo esse aprendizado. Você não veio a esta Ilha para comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano. Você cruzou essas águas por motivo de um nascimento. Para colocar o nosso mundo no devido lugar. (...) Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e 28

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar onde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos. (COUTO, 2003, p. 64-5)

O álbum fotográfico de família Desde a sua invenção, a fotografia faz parte da vida moderna. Na atualidade, é muito difícil não encontrar fotografias dispostas sobre algum móvel, reunidas num álbum ou carregadas no compartimento interior da carteira, ou no celular. Em residências mais antigas, podem-se ver dependuradas nas paredes fotos que, aos olhos de um observador mais arguto, revelam uma verdadeira genealogia familiar. Na perspectiva de Nelson Schapochnik (1998), em História da vida privada no Brasil: As imagens fotográficas que remetem ao léxico familiar parecem estar revestidas de uma aura em que ainda prepondera um “valor de culto” (...) mesmo aos olhos de pessoas que não fazem parte do núcleo familiar, essas fotografias exalam um forte investimento emocional e afetivo. (...) Percorrer essas fotografias é como mergulhar no registro virtual da memória familiar. As fotografias são, pois, um recurso eminentemente moderno que possibilita a conservação e a permanência de uma continuidade visual do passado familiar. (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 457, grifos meus)

No romance, o narrador Marianinho encontra o álbum de família em cima de um móvel empoeirado. A fotografia afigura-se como um suporte da memória e, como bem afirma Schapochnick, ela representa “a história visual InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

29

Cristina Mielczarski dos Santos

da família em que se entrecruzam a celebração da vida e a entronização dos mortos”. Ainda na acepção do autor, “O ato de revisitar esse tipo de fotografia quase sempre desperta um irrecusável convite à especulação memorativa. (...) capacidade de ativar processos (...)” (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 457), como se percebe na leitura desse excerto: Um suspiro lhe remata a angústia. As memórias lhe fazem bem. A Avó afaga uma mão com a outra como se entendesse rectificar o seu destino, desenhado em seus entortados dedos. – Agora, meu neto, me chegue aquele álbum. Aponta um velho álbum de fotografia pousado na poeira do armário. Era ali que, às escondidas, ela vinha tirar vingança do tempo. Naquele livro a Avó visitava lembranças, doces revivências. (COUTO, 2003, p. 49)

Assim sendo, é no álbum de retratos que Dulcineusa, avó de Marianinho, vai visitar lembranças, nas palavras do narrador: “tirar vingança do tempo”. No entanto, para surpresa do neto, o dito álbum de fotografias encontra-se vazio, das fotos, apenas suas marcas, e, desse modo, dá-se o inusitado: avó e neto preenchem o álbum com imaginação e reminiscências do passado; passado este que irá, aos olhos do leitor, configurar-se lentamente na tessitura narrativa: Mas quando o álbum se abre em seu colo eu reparo que não há fotografia nenhuma. As páginas de desbotada cartolina estão vazias. Ainda se notam as marcas onde, antes, estiveram coladas as fotos. - Vá. Sente aqui que eu lhe mostro. (COUTO, 2003, p. 49) 30

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Denota-se, assim, surgir da imaginação do neto e da avó as imagens, num primeiro plano a do pai, Fulano Malta, consecutivamente a da mãe, Mariavilhosa. É da voz do neto que Dulcineusa recebe o consolo por se achar não correspondida em seu amor pelo marido, homem cujo desejo segredara ao neto: “não morreria antes de possuir a centésima mulher”: Finjo que acompanho, cúmplice da mentira. – Está ver aqui seu pai, tão novo, tão clarinho até parece mulato? E vai repassando as folhas vazias, com aqueles seus dedos sem aptidão, a voz num fio como se não quisesse despertar os fotografados. – Aqui, veja bem, aqui está sua mãe. E olhe nesta, você, tão pequeninho! Vê como está bonita consigo no colo? Me comovo, tal é a convicção que deitava em suas visões, a ponto de os meus dedos serem chamados a tocar o velho álbum. (COUTO, 2003, p. 49-50)

A avó Dulcineusa lamenta-se por não aparecer em nenhuma foto. O neto a incentiva em seu devaneio. E questiona o próprio ato fotográfico em relação à verdade: “A fotografia é sempre uma mentira. Tudo na vida está acontecendo por repetida vez” (COUTO, 2003, p. 51). Assim, na sequência do diálogo entre avó e neto: – Engano seu. Veja esta foto, aqui está a Avó. – Onde? Aqui no meio desta gente toda? – Sim, Avó. É a senhora aqui de vestido branco. – Era uma festa? Parece uma festa. – Era a festa de aniversário da Avó!

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

31

Cristina Mielczarski dos Santos

Vou ganhando coragem, quase acreditando naquela falsidade. – Não me lembro que me tivessem feito uma festa. – E aqui, veja aqui, é o Avô lhe entregando uma prenda. – Mostre! Que prenda é essa, afinal? – É um anel, Avó. Veja bem, como brilha esse anel! Dulcineusa fixa a inexistente foto de ângulos diversos. Depois, contempla longamente as mãos como se as comparasse com a imagem ou nelas se lembrasse de um outro tempo. – Pronto, agora vá. Me deixe aqui, sozinha. Vou saindo, com respeitosos vagares. Já no limiar da porta, a Avó me chama. Em seu rosto, adivinho um sorriso: – Obrigada, meu neto! – Obrigada por quê? – Você mente com tanta bondade que até Deus lhe ajuda a pecar. (COUTO, 2003, p. 51)

Marianinho, ao retornar a Luar-do-Chão, já não é o mesmo menino que foi estudar na cidade, o afastamento de sua família vai refletir também no afastamento de sua cultura. Quando retorna com a missão de proceder às cerimônias de sepultamento de Dito Mariano, volta também para reaprender as coisas de sua cultura. E o aprendizado se dará por intermédio das nove cartas recebidas de seu avô, intermediadas através de sua letra e, ainda, do contato com sua família: Fulano Malta, seu pai, seus tios Admirança, Abstênio e Ultímio, assim como Dulcineusa, sua avó. O vazio do álbum de família na primeira leitura causa um efeito surpresa, mas, assim como o escritor, em suas inúmeras intervenções, 32

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

assume seu papel de imaginar memórias para construir um país, o narrador vai incorporando essas memórias que ganharão imagens apenas no final da narrativa, portanto, o neto configura-se naquele que preservará a memória e a tradição, como ele mesmo afirma, “Porque essa casa sou eu mesmo” (COUTO, 2003, p. 249) – a Nyumba-Kaya. No já citado História da vida privada no Brasil, Nelson Schapochnik refere-se às fotografias isoladas ou reunidas num álbum que apresentam a qualidade de ser um dos mais preciosos “lugares da memória” familiar. A gestão dessa iconoteca tanto pode estar fundamentada por critérios subjetivos, quanto pode ser atribuída e sancionada pelo grupo. O fato é que, na maioria das vezes, “a fotografia existe e subiste por sua função familiar que é de solenizar e eternizar os grandes momentos da vida familiar e reforçar a integração do grupo, reafirmando o sentimento que ele tem de si mesmo e de sua unidade”. (SHAPOCHNIK, 1998, p. 460)

Dulcineusa, a avó de Marianinho, é a guardiã do álbum de fotografias, como se as imagens perpetuadas pelo álbum, por intermédio das fotografias, necessitassem ser tuteladas, Dulcineusa representa o “guardião da iconoteca familiar”, utilizando termo empregado por Schapochnik (1998): É de maneira consensual ou litigiosa, os despojos daquele que partiu são distribuídos entre os familiares. Inevitavelmente, alguns bens, por serem investidos de uma dimensão simbólica e afetiva, ficam sob a InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

33

Cristina Mielczarski dos Santos

tutela do guardião do “museu familiar”. Entre esses bens, fotografias isoladas ou reunidas num álbum apresentam a qualidade de ser um dos preciosos “lugares da memória” familiar. (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 460, grifos do autor)

Marianinho, ao passar pelo corredor da casa e ver uma fotografia na parede, questiona-se: toda a família cabe em retrato? (COUTO, 2002, p. 57). A interrogação leva-nos a refletir sobre a grande família moçambicana e também a família africana, mais especificamente o povo bantu,2 povo do qual muitas etnias moçambicanas derivam. (...) Vou pelo corredor, agora vazio. (...) Olho a fotografia na parede: toda a família cabe em retrato? Não as nossas, famílias africanas, que se estendem como túneis de formigueiro. Na imagem, são mais os ausentes que os estampados. Ali figura o Avô Mariano, brioso e rectilongo. Impressiona são os seus olhos, acesos, fosforeados. – Essa foto já está tão velha! (COUTO, 2003, p. 57)

2 O nome “bantu” não se refere a uma unidade racial. A sua formação e migração originou uma enorme variedade de cruzamentos. Existem aproximadamente 500 povos bantu. Assim, não podemos falar de uma raça bantu, mas sim de povo bantu. Isso significa uma comunidade cultural com uma civilização comum e linguagens similares. Depois de muitos séculos de movimentações, cruzamentos, guerras e doenças, os grupos bantu mantiveram as raízes da sua origem comum. A palavra bantu aplica-se a uma civilização que manteve a sua unidade e foi desenvolvida por pessoas de raça negra. O radical ntu, vulgar para a maioria das línguas bantu, significa homem, ser humano, e ba é o plural. Assim, bantu significa homens, seres humanos. Os dialetos bantu, e existem centenas, têm uma tal semelhança que só pode ser justificada por uma origem comum. Os povos bantu, além do semelhante nível linguístico, mantiveram uma base de crenças, rituais e costumes muito similares; uma cultura com características idênticas e específicas que os tornam semelhantes e agrupados. Disponível em:. Acesso em: 30 maio 2012.

34

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

O álbum de fotografias vazio encontrado pelo neto e pela avó, no início da narrativa, poderia representar a própria narrativa ainda em fase de composição, pois o importante para o autor que rememora não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o “trabalho de Penélope da reminiscência” (BENJAMIN, 1994, p. 37). Assim, conforme a tessitura narrativa constitui-se, o narrador configura o álbum até ele tornar-se totalmente preenchido, como se percebe na leitura desse excerto: Regresso a Nyumba-Kaya. A cozinha se enche de luminosidade e, junto ao fogão, estão sentadas a Avó Dulcineusa e a Tia Admirança. Estão contemplando o álbum de família. – Venha, Mariano, venha ver. Desta feita, o álbum está cheio de fotografias. E lá está o velho Mariano, lá está Dulcineusa recebendo prendas. E no meio de tudo, entre as tantíssimas imagens, consta uma fotografia minha nos braços de Admirança. – Olha nós dois, Mariano. Levanta o braço para me dar a mão. Quero falar mas reparo que não consigo chamá-la de “mãe”. Abraço-a como se fosse agora que eu chegasse a casa. A Avó nos interrompe: – Deixem-se disso, nem parecem tia e sobrinho. Mariano, veja mas é o que seu Avô Mariano me deixou. E estende a mão. Num dedo um anel ganha brilhos de astro. O anel é tão evidente que, por instante, seus dedos quase parecem recompostos, finos e completos. Dulcineusa sente que estou de partida e me ordena: – Não esqueça de regar a casa quando sair. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

35

Cristina Mielczarski dos Santos

A casa tinha reconquistado raízes. Fazia sentido, agora, aliviá-la das securas. Admirança se levanta, me segura as mãos e fala em suspiro como se estivesse em recinto sagrado. – Já falamos com Fulano, ele vai-se mudar para aqui, para Nyumba-Kaya. Ficamos guardadas, fique descansado. E a casa fica guardada também. Pega-me nas mãos e inspecciona-me as unhas. Nelas carrego terra, a areia escura do rio. Mesmo assim, Admirança me beija as mãos. Tento retirar os braços do seu alcance, salvando-a das sujidades. – Deixe, Mariano. Essa terra é abençoada. – Mãe? – Não, sua mãe morreu. Nunca esqueça. (COUTO, 2003, p. 246-7)

Walter Benjamin, no ensaio sobre Proust, escreveu que “um acontecimento vivido é finito, ou pelos menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1985, p.37). Frise-se que as histórias re(inventadas) pelo autor são frutos de memórias e experiências oriundas de vivências em sua terra natal – Moçambique. Conforme Mia Couto, em entrevista concedida para Vera Maquêa, em 2003, publicada na revista Via Atlântica, nº 8, em dezembro de 2005, ao ser questionado quanto ao tema da memória neste romance, o autor moçambicano lembra-se da mãe contando histórias e conclui: “Aprendi que a memória é realmente uma construção, que essa construção vive e convive com seu próprio retrospecto e que, por via do recontar e do seu próprio repassajar, a história ganhava mobilidade e se converte numa outra composição” (MAQUÊA, 2005, p. 207).

36

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Retomando Schapochnik (1998), o álbum de retratos possui como uma de suas características o fato de se apresentar como uma obra aberta. Apesar de o guardião da iconoteca familiar esforçar-se para preservar o acervo e imprimir uma lógica no seu ordenamento, “algumas peças podem ser perdidas, outras podem ser acrescentadas e, ao fim e a cabo, a sua própria morte propiciará uma redistribuição e a ‘invenção’ de uma nova crônica familiar” (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 463). Assim também acontece com o romance, o qual, aos olhos dos leitores, e frente às individuais bagagens pessoais, propicia leituras plurais. Para encerrar, como afirma Camille Paglia: “(...) a produção artística é sempre um re-ordenamento ritualístico da realidade” (PAGLIA, 1993, p. 28). Referências • BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ____. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. • __________. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987. • COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. • ___________. Entrevista com Mia Couto. In: MAQUÊA, Vera. Via Atlântica. São Paulo: USP, nº 8, p. 205-217, dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: maio 2012. • DUBOIS, Phillip. O ato fotográfico. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Papirus, 1993.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

37

Cristina Mielczarski dos Santos

• KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1990. • MACEDO, Tânia e Maquêa, Vera. Literaturas de língua portuguesa: Marcos e Marcas – Moçambique. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2007. • PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickson. São Paulo: Companhia das Letras: 1993. • SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada 3. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. • SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: SENAC, 2010. Capítulo: Cocriação. • STRÄTER, Thomas. Fotografia do invisível. A invenção de Daguerre na obra de Machado de Assis. In: A obra de Machado de Assis. [Brasília]: Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, 2006.

38

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 19-38, out. 2014

TRAGICIDADE NA ESCRITA DE CLARICE LISPECTOR Angélica Castilho Faculdade CCAA Colégio Estadual Visconde de Cairu Mestre em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ Doutora em Letras Vernáculas pela UFRJ contato: [email protected] Resumo: A escrita é apresentada como locus para questionamentos e descobertas. Ela amplia as indagações sobre a existência para o campo literário. O trágico estende-se dos personagens ao narrador-autor. O autor cria mundos por meio de palavras e cria personagens autônomos, arrebatando das mãos do autor o rumo da narrativa. Palavras-chave: tragicidade; escrita; Clarice Lispector. Abstract: Writing is presented as locus for questionings and discoveries. It enlarges the inquiries on existence for the literary field. The tragic extends from the characters to the narrator-author. The author makes up worlds through words and creates autonomous characters who take the course of the narrative from the hands of the author. Keywords: tragicity; writing; Clarice Lispector. Resumen: La escritura se presenta como locus para cuestionamientos y descubrimientos. Amplía las indagaciones sobre la existencia para el campo InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014     39

Angélica Castilho

literario. Lo trágico se extiende de los personajes al narrador-autor. El autor crea mundos por medio de palabras y crea personajes autónomos, arrebatando de las manos del autor el rumbo de la narrativa. PALABrAs CLAVe: lo trágico; escritura; Clarice Lispector.

40

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

Tragicidade na escrita de Clarice Lispector

Em algumas obras de Clarice Lispector (1920-1977), sobretudo A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978), é possível comparar a escrita da autora a um corpo vivo que se constrói e notar a tragicidade desse processo de criação. O ato criador estende-se à figura do narrador como narrador-autor e pondo em evidência conflitos presentes na construção literária. Não apenas os personagens mergulham em descobertas existenciais: a narrativa é elaborada a partir de questionamentos e descobertas, conferindo ao texto um aspecto vibrante. O corpo morto não é signo nem significante do eu interior que o preenche de significado. Apenas um corpo vivo forma um todo que comunica. Cada um é algo, profere algo, representa algo, o que mostra uma relação de semelhança entre o percurso do ser humano e o da escrita. Tal concepção de escrita está presente em Um sopro de vida. Ângela Pralini, narradora-personagem da obra, descobre-se aos poucos, completando seu corpo, significante, de sentido, significado, e passando assim a representar-se como um ser consciente de si, signo. Nessa obra, o “corpo informa muito” (LISPECTOR, 1994, p. 22), ele constrói paulatinamente sua história, adquirindo experiências, ao mesmo tempo em que é discutido o processo de criação do corpo literário. A construção da narrativa caminha com a elaboração da personagem, sendo cada criação um corpo que toma vida. O livro é sustentado por fragmentos que aludem a uma totalidade perdida que assombra autor-narrador e personagem. O texto figura-se como causa e consequência do processo de escrita. A obra de arte possui vida e morte: [Quando o olhar dele vai se distanciando de Ângela e ela fica pequena e desaparece, então o AUTOR diz:] — Quanto a mim também me distancio de mim. Se a voz de Deus se manifesta no silêncio, eu também me calo silencioso. Adeus. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

41

Angélica Castilho

Recuo meu olhar minha câmera e Ângela vai ficando pequena, pequena, menor — até que a perco de vista. E agora sou obrigado a me interromper porque Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive. Com chuva abundante nas florestas e o sussurro das ventanias. Quanto a mim, estou. Sim. “Eu... eu... não. Não posso acabar.” Eu acho que... (LISPECTOR, 1994, p. 167)

Existe um escritor acima do narrador-autor, revelando ser o próprio narrador-autor uma criação. Por essa constatação, observa-se que mesmo quem se considera criador parte de alguém que o cria e interrompe sua existência. A voz desse narrador que surge apenas nos poucos trechos entre colchetes. Trata-se de uma voz sem identidade. Ela assume a condição de maestro dos personagens e da narrativa. Ao finalizar o texto, expondo a angústia do narrador-autor diante da finitude, traz para o campo literário a angústia do homem diante da morte e o sentimento trágico que esta encerra. Os personagens aproximam-se do trágico quando acreditam ser capaz de controlar suas vidas, quando não compreendem a ordem da vida como se apresenta e acrescentam um dado novo: a indagação. Querem saber o porquê do estranhamento causado por estar no mundo, como aponta Jean-Marie Domenach (1968). As indagações permanentes sobre o ser humano manifestam-se nos textos, ratificando a visão sustentada tanto em um quanto em outro autor de que é “trágico viver” (LISPECTOR, 1995, p. 153), revelando o sentimento de pathos que arrebata o eu diante das decepções e buscando uma resposta lógica para dados subjetivos e singulares. 42

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

Tragicidade na escrita de Clarice Lispector

A reunião, no texto clariceano, de autor, narrador, personagem e leitor revela que a escrita é discutida a partir de seu próprio corpo. Qual é o limite entre personagem, narrador, autor, leitor? Tradicionalmente, os dois primeiros pertencem à esfera ficcional e os dois últimos, não. Entretanto, a obra clariceana transcende em sua discussão tais aspectos. Ficcionais ou não, a autora une elementos internos a externos no processo de escrita e de leitura. Segundo Vera Lúcia Follain de Figueiredo, na narrativa moderna: A enunciação passa, então, para o centro da cena, em detrimento do enunciado: dramatiza-se a própria perda da naturalidade de narrar, decorrente da diluição da identidade única e transparente do narrador. Este desdobra-se, multiplica-se, e sua palavra, não tendo um referencial fixo, partindo de um sujeito-autor que já é ele próprio ficção, é posta sob suspeita, ou autonomiza-se, deslizando de um lugar para outro no interior do universo ficcional, de tal forma que o “eu” que narra é, muitas vezes, um eu mutante, sem fixidez, sem contorno fixo. (FIGUEIREDO, 2003, p. 83)

Narrador e autor são instâncias postas em evidência e avaliadas: “[...] Eu que apareço nesse livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 25). Eis uma oportunidade para questionar Clarice Lispector autora e Clarice Lispector narradora. A partir do momento em que assume o papel de narrador, o autor não é mais ele próprio, empresta seu nome e algumas características suas a um personagem que surge e que é, portanto, ficcional e não possui compromisso algum com o que o autor vive ou sente. Ângela figura como alter ego da autora em Um sopro de vida. Ela surge como autora de livros de Clarice Lispector: “[...] No meu livro A cidade sitiada eu falo indiretamente no mistério da coisa. [...]” (LISPECTOR, 1994, InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

43

Angélica Castilho

p. 108). Outro trecho mostra que o cachorro de Ângela tem o mesmo nome que o de Clarice Lispector: “[...] Ulisses bebe cerveja gelada tão bonitinho. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 64). Em uma entrevista, a autora declara: “ele [Ulisses] gosta de uísque, de fumar, tem alguns vícios do homem além de todos, todos os de um cachorro.” (LISPECTOR apud COUTINHO, 1980, p. 167). O autor se desnuda e se esconde, utiliza dados de seu cotidiano para compor uma narrativa, mas também os altera de acordo com os perfis dos personagens que deseja construir. Escolher Ângela é expor um outro. A personagem, gradualmente, se torna autônoma e passa a agente de sua própria história: “[...] É preciso que me compreendam: eu tive que inventar um ser que fosse todo meu. Acontece, porém, que ela está ganhando força demais.” (LISPECTOR, 1994, p. 67). O livro Um sopro de vida abole parcialmente as categorias convencionais da estrutura narrativa, é um texto experimental, em que a personagem não está ciente da existência de um autor, todavia, mantém um diálogo com este. Estrutura-se como um teatro de fantoches: “[...] sinto de vez em quando que sou o personagem de alguém. É incomodo ser dois: eu para mim e eu para os outros. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 32) e “[...] Eu sou uma atriz para mim. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 43). O percurso trágico dos eus clariceanos configura-se nesse momento como o conflito entre o eu social e o eu interior. Nessa obra, o narrador-autor não suporta sozinho a complexidade da vida, por isso cria Ângela, narradora-personagem que “conversa” com ele sobre tais questões. O texto é formado por monólogos e diálogos. O discurso é instável e movimentado. Desse emaranhado de vozes, por vezes, o narrador dirige-se ao leitor e também é o leitor de seus próprios escritos. A narrativa mostra-se em suas entranhas: Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste começo. Quer dizer que o fim, que não deve ser lido antes, se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter lido o livro, cortei muito mais que a metade, só deixei o que me provoca 44

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

Tragicidade na escrita de Clarice Lispector

e inspira para a vida: estrela acesa ao entardecer. (LISPECTOR, 1994, p. 26)

O autor, no livro, é aquele que vive em suas obras, que se identifica com a escrita como outro que nasce e morre como ele. Personagem e narrador são escritores e igualam-se, apesar das diferenças, são questionadores da criação literária e da existência humana. A identificação entre criador e criatura rompe parcialmente com os limites entre um e outro: “[...] Eu te respiro-me” (LISPECTOR, 1994, p. 39), e entre o criador e a obra: “[...] e assim me livro de mim [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 26). Pode-se interpretar os fragmentos anteriores e os próximos como a exposição dos pensamentos do narrador-autor e a divisão de suas angústias com o leitor ou ainda como a transformação dele em escrita, tendo duas vidas: a empírica e a construída na obra: [...] eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma. (LISPECTOR, 1994, p. 22) “Há um livro em cada um de nós”, dizem. E talvez daí eu tenha querido expulsar de mim um livro que eu escreveria se para isso talento eu tivesse, e mais a perseverança. (LISPECTOR, 1994, p. 99)

Ângela é quem recebe o “sopro de vida” ofertado pelo autor, a fim de que este não fique mais só. Clarice Lispector utiliza o ato artístico como um meio de perpetuar a vida do autor em obra e expõe com esse procedimento uma fatalidade: a impossibilidade do homem de tornar-se eterno. Isso insere no plano da elaboração textual um questionamento inquietante para o ser humano e, consequentemente, atribui tragicidade ao processo de escrita. A escrita, como uma forma de consciência da morte, aponta para a vontade do homem ser eterno, mesmo que através da lembrança: Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

45

Angélica Castilho

espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. (LISPECTOR, 1994, p. 17) Todos nós estamos sob pena de morte. [...] (LISPECTOR, 1994, p. 30)

A obra eterniza o autor: “[...] depois que eu morrer Ângela continuará a vibrar. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 30). A vida pós-morte é ofertada à personagem e, consequentemente, o autor pela via da obra literária, ressuscita a cada leitura. O homem seria uma criatura ficcional que acaba igualmente como as de papel? Seria ele criado pela vontade de alguém, independente de desejar ou não existir? Não existem respostas. Pela visão do narrador-autor, a vida não apresenta verdades, mas sim, possibilidades múltiplas: “[...] Escolhi a mim e ao meu personagem — Ângela Pralini — para que talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida. Vida não tem adjetivo. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 24). O início da obra não promete respostas sobre a existência e o final oferece apenas a morte, um mistério ainda maior para o homem, como sugere a última epígrafe do livro Um sopro de vida, que é da própria autora: Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não-tempo sagrado da morte transfigurada. (LISPECTOR, 1994, não paginado)

Em A hora da estrela, o mesmo foco trágico sobre a existência que se estende ao fazer literário se evidencia: [...] existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico. 46

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

Tragicidade na escrita de Clarice Lispector

A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó. (LISPECTOR, 1996, p. 34-5)

Como salienta Emil Staiger (1975), não é apenas um desejo frustrado que constitui o trágico, mas o aniquilamento da lógica de uma visão de mundo ou mesmo de um mundo enquanto espaço geográfico. O narrador Rodrigo S.M. compara sua impossibilidade de fazer algo que mude o destino de Macabéa, ele não revela apenas a condição social dos retirantes nordestinos chegando ao Rio de Janeiro da década de 70 e a condição do homem moderno à mercê de acontecimentos históricos determinantes para suas jornadas individuais. O narrador transporta para o âmbito da construção da narrativa a incapacidade de preencher vidas vazias, mesmo sabendo que, no plano ficcional, seriam possíveis intervenções. Rodrigo S.M. estabelece um viés coerente e coeso entre o perfil da personagem e todo seu caminhar pela narrativa: [...] O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. [...] (LISPECTOR, 1996, p. 35)

A impotência vivida pelo narrador situa-se, também, no campo literário. Não se constrói uma narrativa com final feliz, porque essa não é a condição humana presente no texto. O narrador radicaliza a ideia de uma felicidade que só é possível se for “clandestina”: [...] A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

47

Angélica Castilho

– é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. (LISPECTOR, 1996, p. 25)

O sentimento de fracasso e de deslocamento anunciado em muitas narrativas, concentrado na figura de Macabéa, transfere-se, nesse instante, para o narrador-autor. O desejo dos personagens é de comunicar, extravasar-se em palavras, revelando o arrebatamento patético. Entretanto, o ato de escrever falha, escapa ao controle do criador – como Clarice também apresenta em contos de A via crucis do corpo (1974) – e torna-se um fardo doloroso. Nesse instante, o narrador-autor vivencia o trágico: Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra? Mas que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar. Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”. (LISPECTOR, 1996, p. 32)

Vida e escrita ocupam o mesmo espaço, portanto, é pertinente que nesse processo instale-se também o trágico: “[...] O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. [...]” (LISPECTOR, 1994, p. 21). A opção consciente pela escrita, mesmo sabendo que não conseguirá expressar tudo o que sente e pensa é trágica, tanto quanto a constatação de que a morte um dia virá repentinamente. Tanto o fracasso e as imitações na escrita quanto a morte apontam o fim de um processo e a limitação do homem: limitação 48

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

Tragicidade na escrita de Clarice Lispector

diante de sua sede por eternidade, limitação de sua linguagem. No exercício da vida, depara-se com a morte; na ânsia pela palavra total, depara-se com o silêncio. Clarice Lispector faz do silêncio a potencialidade máxima da palavra, o espaço de todas as possibilidades e da falência do discurso. Segundo José Guilherme Merquior: [...] a ficção moderna progrediu dentro de um milagre de autodestruição controlada. Todas as peças essenciais ao gênero – enredo, personagem, ponto de vista, linguagem – cederam pouco a pouco a uma vontade antificcional. [...] A verdadeira lição que a morte do romance nos oferece é a vitória do “valor” sobre todo “fato”, é o reconhecimento da impossibilidade de haver ficção quando todo espírito de autor e leitor se concentra na pesquisa ou na construção de um significado humano, ético por excelência. (MERQUIOR, 1963)

Não se está, entretanto, diante da “morte do romance” nem da “impossibilidade de haver ficção” nem da “pesquisa” do humano. Este é “ficcionalizado” juntamente a suas crises e indagações. A linguagem de instrumento passa a objeto de debate. Surge uma prosa diferente, tão ficcional quanto a anterior, reflexo da situação exposta na Modernidade, tendo em sua construção as marcas dos destroços da própria civilização e da alma humana. A tragicidade presente na apresentação dos temas escolhidos por Clarice Lispector passa a atingir a elaboração literária e os conflitos humanos. Os textos expõem as seguintes circunstâncias: a personagem que ora reconhece e ora não sua vida precária e finita; o narrador ora incapaz de criar, desprendendo-se da condição em que está inserido, ora assumindo o papel de criador absoluto; a obra literária que não possui mais as mesmas características de antes, a atualização do processo de escrita, fazendo desta InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

49

Angélica Castilho

o espaço para questionar inquietações contidas no processo de criação e na vida moderna. A linguagem passa a ser mais um espaço para o trágico, atenuando sua condição referencial, pois, para um mundo plural e relativizado, apenas uma nova elaboração da linguagem poderia buscar retratá-lo e, por meio da dificuldade em expressá-lo e mesmo do fracasso durante as muitas tentativas, ter êxito. Referências • COUTINHO, Edilberto. Uma mulher chamada Clarice Lispector. In: ___. Criaturas de papel: temas da literatura e sexo e folclore e carnaval e futebol e televisão e outros temas da vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 165-170. • DOMENACH, Jean-Marie. O retorno do trágico. Trad. M. B. Costa. Lisboa: Moraes, 1968. • FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto. Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. • LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 24. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996. • ______. A via crucis do corpo. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. • ______. O lustre. 9. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. • ______. Um sopro de vida. 10. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. • MERQUIOR, José Guilherme. Literatura – para onde vai, se for? In: Revista Perspectiva. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa Rui Barbosa, 1963. • STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 50

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 39-50, out. 2014

O SILÊNCIO DAS ENTRELINHAS E DAS ENTRE RINHAS: DE CLARICE LISPECTOR A ANA PAULA MAIA, AS PERSONAGENS NA IMINÊNCIA DE Daiane Crivelaro Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro / CAP-UERJ Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro / CAP-UFRJ Mestranda de Literatura Brasileira na UFRJ contato: [email protected] Resumo: Macabéa, personagem que protagoniza a história de uma imigrante na cidade grande, carregando consigo todo o peso de sua ancestralidade; Erasmo Wagner, personagem que se impõe como uma quase denúncia, em seu fardo cotidiano de ser esquecido sem se esquecer dos demais: por meio deles, e como ponto em comum que os liga, existe a voz que, em sua mudez, funciona como um grito, o silêncio. De Clarice Lispector, em A hora da estrela, a Ana Paula Maia, em O trabalho sujo dos outros, os seus personagens fazem nascer na narrativa o silêncio, um personagem das entrelinhas e das entre rinhas, que dá a Macabéa e a Erasmo Wagner a voz inaudível de personagens conjugados no futuro do pretérito, sempre na possibilidade de, na iminência de. Palavras-chave: silêncio; Macabéa; Erasmo Wagner. Abstract: Macabéa, the main character of a story about an immigrant in the big city, carries with herself all the weight of her own ancestry; Erasmo InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014     51

Daiane Crivelaro

Wagner, in his turn, is a character that imposes himself almost like a denunciation, and lives his daily burden of being forgotten by others without forgetting them: through these characters, and as a common ground that connects them, there is the voice that, in its muteness, works as a cry for help, the silence. From Clarice Linspector, in A hora da estrela, to Ana Paula Maia, in O trabalho sujo dos outros, Macabéa and Erasmo Wagner make the silence rise in the narrative, a character that is between the lines and that is between cockfights, giving them the inaudible voice of characters conjugated in the simple conditional, always in the possibility of, on the verge of. KEYWORDS: silence; Macabéa; Erasmo Wagner. Resumen: Macabéa, personaje que lleva la historia de una inmigrante en la ciudad grande, cargando consigo todo el peso de su ascendencia; Erasmo Wagner, personaje que se impone como una casi denuncia, en su fardo cotidiano de ser olvidado sin olvidarse de los otros: por medio de ellos, y como punto en común que los conecta, hay una voz que, en su mudez, trabaja como un grito, el silencio. Desde Clarice Lispector, en A hora da estrela, hasta Ana Paula Maia, en O trabalho sujo dos outros, sus personajes hacen nacer en la narrativa el silencio, un personaje de las entrelíneas y de las entre peleas, que les da a Macabéa y a Erasmo Wagner la voz inaudible de personajes conjugados en el condicional perfecto, siempre en la posibilidad de, en la inminencia de. PALABRAS CLAVE: silencio; Macabéa; Erasmo Wagner

52

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de

“Escolhe o teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio Mesmo no silêncio e com silêncio Dialogamos.” (Carlos Drummond de Andrade) Macabéa: personagem que narra a história de uma imigrante na cidade grande, carregando consigo todo o peso de sua ancestralidade; Erasmo Wagner: personagem que se impõe como uma (quase) denúncia, em seu fardo cotidiano de ser esquecido sem se esquecer dos demais: por meio deles, e como ponto em comum que os liga, existe a voz que, em sua mudez, funciona como um grito: o silêncio. Esse silêncio, nas tão intencionadas entrelinhas, ganha volume, mas um volume que não atenua a voz de seus personagens, e sim que faz engasgar a voz de quem os observa, como um nó na garganta. Em realidades distintas, do espaço ao tempo, o silêncio funciona como forma de ser e de estar, em verbos de ligação que estatizam os personagens da narrativa: por um lado, a hora da estrela que não brilha mais; por outro, o trabalho sujo dos outros que deixa opaco qualquer olhar. Esses dois personagens fazem nascer na narrativa o silêncio, um personagem das entrelinhas e das entre rinhas, que dá a Macabéa e a Erasmo Wagner a voz inaudível de personagens conjugados no futuro do pretérito, sempre na possibilidade de, na iminência de. Um silêncio sem gênero, sem sexo: de um lado, Erasmo Wagner é a voz masculina; de outro, Macabéa é a voz feminina – uma convenção social e não uma condição de vida. Experimentando, ambos, o gosto da inércia cotidiana, daquilo que se InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

53

Daiane Crivelaro

convencionou chamar de destino, esses dois personagens dão às novelas A hora da estrela e O trabalho sujo dos outros a necessidade do grito, como se eles pudessem, em uma mesma voz, insistir: “quero o desejo do grito humano, que é a única forma de ser escutado”.1 É, portanto, entretecendo esse silêncio que as escritoras Clarice Lispector e Ana Paula Maia falam daquilo que lhes pede silêncio. A semanticista Eni Orlandi (1995), que analisa não só o discurso como também o des-curso, procura trazer ao silêncio a sua possibilidade de significação, de modo que “o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é” (ORLANDI, 1995, p. 33). Nessa perspectiva, ao contrário do senso comum – que afirma ser um homem sem sentido aquele homem em silêncio –, essa analista do discurso encontra um novo espaço, ainda antes não sugerido pela Análise do Discurso, para o silêncio atuar: no significado. Em termos gerais, no momento em que se fala ou se escreve, faz-se a seleção de uma palavra em detrimento de outras, no eixo paradigmático, dando força a uma palavra e calando as tantas outras. O silêncio, então, estaria apenas no não-dito, no significado que se instaura na ausência de significante. Da mesma forma, quando se escolhe uma história para se contar – que irá se fixar na memória –, faz-se uma seleção, paradigmaticamente, entre todas as possibilidades. Tratando da memória e do esquecimento, o ensaísta Hugo Achugar (2006) afirma que: se contar a história, ou contar um conto, pressupõe que sempre opera uma escolha – escolha realizada por quem conta e por quem tem o poder de contar –, chega-se a uma verdade quase óbvia: nunca se

1 Fragmento da música “Cálice”, de Chico Buarque de Hollanda e Gilberto Gil. Nesse caso, é importante pensar que essa música foi produzida como uma resposta ao silêncio imposto pela ditadura militar no Brasil. Um homônimo homófono de “Cale-se”, o termo “Cálice” pode se remeter, portanto, à necessidade de se calar, do silêncio, das lacunas impostas pelo movimento ditador então vigente.

54

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de

conta tudo. E não pareceria ser possível contar tudo, pois, para poder contar uma história, alguém tem que realizar uma escolha e essa escolha pressupõe privilegiar, esquecer, silenciar. Escolha com múltiplos sentidos e, além disso, uma escolha significativa, pois, entre outras coisas, aquele que conta tem que escolher quando começa e quanto termina a sua história. Há uma espécie de lógica discursiva que torna impossível deixar fugir a escolha/seleção e, portanto, o silêncio ou o esquecimento. (ACHUGAR, 2006, p. 153)

Há de se notar, porém, que o silêncio tem outro espaço de atuação: ele está no entre palavras, visto que: o silêncio não se reduz à ausência de palavras. As palavras são cheias, ou melhor, são carregadas de silêncio. Não se pode excluí-lo das palavras assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do silêncio apenas pela verbalização. (ORLANDI, 1995, p. 69)

Assim, não é somente dando espaço a uma palavra que se silencia outra; mais do que isso, é a seleção de palavras que nos mostra, também, a possibilidade do silêncio – e não da mudez. Nas duas novelas encenadas ora por Macabéa ora por Erasmo Wagner, o silêncio não está apenas no que se cala, no não-dito ou no não-escrito: o silêncio ocupa o espaço de suas existências, nas entrelinhas do que foi escrito e no entredito de cada personagem. Em uma entrevista, Clarice Lispector afirma que “aquilo que eu não posso falar deve se calar”. Algumas décadas mais tarde, Ana Paula Maia, em uma palestra, afirma que, “se a gente não fala, a gente angustia muito”. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

55

Daiane Crivelaro

Aparentemente dialéticas, essas afirmações falam um pouco a respeito das narrativas em A hora da estrela e O trabalho sujo dos outros: em ambos, lê-se a angústia que se traduz, em um primeiro momento, em silêncio. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que Clarice Lispector cala aquilo que não pode ser dito e Ana Paula Maia angustia por não falar, as suas novelas têm temáticas que, por muito e por muitos, tentou ser silenciada: uma imigrante sem espaço na cidade voltada contra ela e um catador de lixo limitado a apenas um lugar em uma cidade que se volta para ele apenas com chorumes. Nesse entre-temas, está o que Jean-Paul Sartre, em seu livro O que é a literatura?, chamou de maus sentimentos, uma vez que, de modo geral, não se fazem bons livros com bons sentimentos. O que está, portanto, nas entrelinhas e nas entre rinhas é aquilo que deveria ser calado, mas que ganha uma voz: o silêncio angustiado, que, por estar angustiado, torna-se um mau sentimento. Ao abrirmos a novela de Clarice Lispector, deparamo-nos, antes mesmo de qualquer texto corrido, com a possibilidade de mais outros 13 títulos além daquele que a intitula. Entre tantos, percebem-se a adversidade, a concessão, a alternatividade marcadas pela conjunção coordenativa “ou”, que define ser um título em detrimento do outro, sem que, necessariamente, esteja negando-os. Na escolha de uma, calam-se, aparentemente, os demais. Há, no entanto, a enumeração das outras diversas possibilidades, o que funciona como uma dica do silêncio de um pelo outro que está por vir, sem negá-lo. Sem precisarmos folheá-la muito, encontramos esse silêncio não mais nas entrelinhas, e sim nas linhas: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta” (LISPECTOR, 2008, p. 17). É vivendo da incompletude pressuposta pela indagação que permeamos o silêncio que é esse livro: será que esta hora é a da estrela ou a da morte? Ou seria a da morte da estrela? Ou a da possibilidade de se estrelar no momento da morte? É dessa enumeração de perguntas que nasce a preocupação com questões humanas, 56

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de

uma marca de toda a trajetória de Clarice Lispector. Quando o narrador Rodrigo S.M., apresentando qual é a história que está sendo contada, declara que “essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu” (LISPECTOR, 2008, p. 19), percebe-se que Macabéa é tão humana quanto ele, que nasce experimentando o sentido de ver, tocar, ouvir, falar e cheirar toda a cidade ao seu redor – ainda que esses cinco sentidos sejam atrofiados pela sua não-existência. Disso, sobra “o que está apagado e o que mal vejo” (LISPECTOR, 2008, p. 63), uma história que (talvez) deixará nítido o que há de desumano na humanidade. Dessa novela, que funciona como a voz dada àquilo que pede silêncio à Clarice Lispector, nasce uma personagem que, ao ser indagada sobre a hora à qual pertence – a da vida ou a da morte –, torna-se suicida: em meio “às fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela” (LISPECTOR, 2008, p. 15), vive a economia do menos, em que viver menos é o sinônimo de morrer. Tornando-se capim, Macabéa é silenciada em meio à fragmentação do cenário urbano, já traduzida por Baudelaire quase um século antes, com suas buzinas e faróis capazes de invalidar os cinco sentidos que sistematizam a vitalidade humana. A imigrante nordestina, “então, defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar” (LISPECTOR, 2008, p. 32). A chuva, um recorrente fenômeno trazido às entrelinhas, surge como uma forma suicida de sobreviver: ela, que “só sabia mesmo era chover” (LISPECTOR, 2008, p. 82), torna-se lágrima, pingo, toda minimalização possível de chuva, lavando o seu silêncio, o seu estar no mundo sem viver nele e dele. Desse silêncio sugerido pela morte em vida, sem o brilho de uma estrela, as linhas se abrem ao direito ao grito, quase uma contradição com relação às vozes inaudíveis silenciadas nessa novela. Gradativa InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

57

Daiane Crivelaro

e metonimicamente, esse grito expande os seus campos de atuação: o de Macabéa, o de Rodrigo S.M. e o da classe a que ela pertence, “porque há o direito ao grito/ Então eu grito” (LISPECTOR, 2008, p. 13). Macabéa, uma personagem que, em vida, sobrevive “da iminência de” (LISPECTOR, 2008, p. 12), dialeticamente resiste, mas morre, e morre, mas resiste. Em sua morte, cabe a resistência de uma personagem suja pela inércia cotidiana de dias sempre conjugados no futuro do pretérito, que não chega a ter fome de nome – “até um ano de idade eu não era chamada porque não tinha nome” (LISPECTOR, 2008, p. 43). Consequentemente, em sua resistência, cabe a morte constante, na rotina de dias que ocorrem em meio ao nada, de uma personagem que “sinto que vivo para nada” (LISPECTOR, 2008, p. 32). Segundo Eni Orlandi (1995), nesse viés, o silêncio é a “iminência”, visto que “o silêncio do sentido torna presente não só a iminência do não-dito que se pode dizer, mas o indizível da presença: do sujeito e do sentido” (ORLANDI, 1995, p. 72). Macabéa, pois, experimenta estar presente sem dizer, sem ter nome, ao mesmo tempo em que se conjuga na manutenção do não-dito, que, nesse cenário, ganha sentido: o grito da morte resistente e da resistência morta. Nesse grito mudo, Macabéa não tem Deus, não conhece Deus, “não morava com Deus” (LISPECTOR, 2008, p. 63), de modo que esse “Deus dos outros” (LISPECTOR, 2008, p. 63) não lhe pertence. Segundo Eni Orlandi (1995), “Deus é o lugar da onipotência do silêncio” (ORLANDI, 1995, p. 30), o que possibilita sugerir que Deus é traduzido como a soma de todo o silêncio, a questão, a dúvida. A personagem de A hora da estrela, porém, cala-se por não o conhecer, dando-lhe um quinhão da soma final: mais um silêncio, mais um subproduto, mais um sujeito que, por não poder ter esperança, esvazia esse signo linguístico e vive apenas na espera de. Ensaiando a morte em vida, fazendo desta uma pré-morte, uma morte em silêncio, “ninguém percebia que ela ultrapassava com a sua existência a barreira do som” (LISPECTOR, 2008, p. 63). 58

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de

Não menos um subproduto, Erasmo Wagner aparece, na novela O trabalho sujo dos outros, de Ana Paula Maia, também como uma forma de silenciar a existência, sem anular, porém, o sentido desse silêncio. Um catador de lixo, destinado a des-cobrir todas as impurezas de uma cidade – assim como a de Macabéa – toda feita contra ele. Nesse espaço, o que lhe sobra é experimentar, diariamente, o cheiro que vem do lixo, objeto constantemente visitado pelas suas mãos. Erasmo Wagner, a personificação do estereótipo do lixo humano – sobretudo por conta de ter em seu histórico um homicídio –, enquadra-se no silêncio noturno de uma cidade na espera de ser resgatada: Esta cidade atinge a todos: aos meninos, às mulheres, aos órfãos, aos velhos. Esta cidade não faz acepção. Tudo se transforma em lixo. Os restos de comida, o colchão velho, a geladeira quebrada e um menino morto. Nesta cidade tenta-se disfarçar afastando para os cantos o que não é bonito de se olhar. Recolhendo os miseráveis e lançando-os às margens imundas bem distantes. (MAIA, 2009, p. 113)

É, pois, à margem que esse personagem das entre rinhas de Ana Paula Maia vai sentir, no silêncio, a necessidade da confissão e, na alma, o reconhecimento de sua humanidade. Bestializado, como já havia especulado Baudelaire quando se incumbiu de tratar da condição humana da modernidade, “Erasmo Wagner sabe que o animal lhe pertence e o carrega em si também: a maneira como o bode encara Erasmo Wagner lhe dá vontade de confessar seus pecados” (MAIA, 2009, p. 141), mas “ele nunca se confessou” (MAIA, 2009, p. 141). Essa não-confissão, então um silêncio mantido por tanto tempo, flagra a manutenção de uma mudez que o desumaniza, na medida em que cala a sua voz em meio aos chorumes cotidianos de sua profissão e de sua condição. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

59

Daiane Crivelaro

Investigando a alma humana, o que Ana Paula Maia chama de Polpa Humana, percebe-se, no personagem Erasmo Wagner, a presença de um silêncio que se instaura na ausência de ser, de estar, de querer estar no mundo em voz, em confissão. Tal silêncio, por isso, torna Erasmo Wagner “um homem silencioso”, que “sente-se capaz de digerir todas as imundícies e maravilhas ao seu redor” (MAIA, 2009, p. 158). Em meio a uma cidade projetada contra ele, bem como contra Macabéa, Erasmo Wagner “é um homem expurgado e permanecerá recolhendo o lixo dos outros, como uma besta de fardo, estéril, híbrida, que não questiona” (MAIA, 2009, p. 158). Sem morrer, ele é um personagem que resiste, em vida e em meio à iminência da morte, continuando a carregar seu fardo de experimentar o silêncio de uma cidade noturna. Zygmunt Bauman, em Vidas desperdiçadas, trata da temática do esquecimento como forma de manutenção do progresso econômico, de modo que a economia mundial, criada pelo homem e para ser controlada e administrada por ele, controla-o, ora desperdiçando-o ora reutilizando-o. Nesse sentido, o homem se torna uma espécie de peça de uma engrenagem que, precisando dela, conserva-a e, não precisando mais, desperdiça-a. Erasmo Wagner é um homem que vive subterraneamente em uma condição de subsolo, pois “é debaixo do tapete que moram esses homens” (MAIA, 2009, p. 139). Para Bauman, então, em sua forma original, nascida espontaneamente, o protótipo cósmico é o medo da força anônima e implacável. O universo assusta, mas não fala. Não exige nada. Não dá instruções sobre como proceder. Não dá a mínima para aquilo que os amedrontados e vulneráveis seres humanos possam fazer ou deixar de fazer. Não há sentido em falar com o céu estrelado, as montanhas ou o mar. Eles não iriam 60

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de

ouvir, e, se ouvissem, não iriam escutar, muito menos responder. Não há sentido em lhes pedir perdão ou favores. Eles não ligariam. Além disso, apesar de toda a sua força tremenda, eles não realizariam os desejos dos penitentes, ainda que ligassem – faltam-lhes não apenas olhos, ouvidos, mentes e corações, mas também a capacidade de escolha e o poder de arbítrio, e também a capacidade de agir segundo sua vontade e de acelerar ou abrandar a marcha, interromper ou reverter o que de qualquer modo ocorreria. (BAUMAN, 2004, p. 62, grifo do autor)

Em meio a esse não-cosmos, um universo que não fala, apenas escuta, ou a esse cosmos morto que chega à nossa visão como forma de estrela – após uma “(explosão!)”, signo diversas vezes recuperado na obra de Clarice Lispector em questão, ocorrida há tantos anos-luz e que vemos como astro, estrela –, Macabéa e Erasmo Wagner são personagens que apenas ganham voz quando a literatura destina-se a lhes dar espaço. Se o universo é mudo, como Bauman sugere, cabe à literatura tratar dessa mudez: para que ela exista, é preciso trazer o significante ao significado, mesmo que, a todo tempo, esteja esvaziando-os e, então, decifrando o mundo para cifrar a língua. Macabéa e Erasmo Wagner, decifrados por Clarice Lispector e Ana Paula Maia, são cifrados em A hora da estrela e O trabalho sujo dos outros. Em outros termos, esses dois personagens foram decifrados por suas escritoras, inicialmente, apenas como significados, para, depois, serem cifrados nessas duas novelas, ganhando significantes – enfim, um signo linguístico a ser novamente decifrado pelo seu leitor, em um eterno Anel de Moebius. Essas escritoras, então, ao escreverem, contaram duas histórias: a das trajetórias de seus personagens e a do silêncio nascido dessas mesmas trajetórias. Calados pelo universo, que nada espera deles, esses personagens, ainda em vida, perdem a maioria dos seus sentidos, do InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

61

Daiane Crivelaro

tato e do cheiro: a da escritora modernista sente a chuva descer pelo seu corpo, experimentando ousar por curvas nunca descobertas; o da escritora contemporânea sente o cheiro do chorume de tudo que é morto na cidade morta, sonegando-lhe as demais sensações olfativas. Tratando da violência e, também, do silêncio, o que não deixa de ser uma forma de se violentar, Ronaldo Lima Lins (1990) recupera Adorno e sugere que “a única forma realmente enfática de protesto seria o silêncio. É este um instante em que toda a racionalidade se deixou derrotar, de nada adiantando a ação e a militância para lutar a favor dela” (LINS, 1990, p. 32). É importante destacar, nesse sentido, que o silêncio funciona como um instrumento dialético: ao mesmo tempo em que serve como uma forma de protesto, serve como uma forma de mudez. Essa dialética, porém, não possui uma síntese, como é proposto por Hegel na relação tese – antítese – síntese. Pelo contrário, essa é uma dialética sem síntese, em que a mudez funciona como um protesto ao mesmo tempo em que o protesto funciona como uma mudez. Em meio a essa dupla possibilidade, a essa tautologia, Macabéa e Erasmo Wagner são duas formas de protesto mudo: a constante preterência de suas classes é vista na luta pela vitalidade de cada um deles, cabendo a Clarice Lispector e a Ana Paula Maia apresentar-lhes, ainda que sem voz, quase sem palavras. (...) se o último século assistiu à eclosão de uma literatura atenuante e perseverante (uma literatura que, aconteça o que acontecer, acredita na transformação do mundo), assistiu também a uma criação literária cada vez mais sufocada pelas próprias palavras e cada vez mais descrente das palavras – uma literatura, enfim, inclinada ao silêncio da abstração. (LINS, 1990, p. 32) 62

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de

Sufocada, então, pelas palavras ou pela limitação que cada palavra sugere, por calar as tantas outras possíveis e por ter o silêncio em seu próprio significado, como especula Eni Orlandi, a literatura inclina-se ao silêncio como forma de significar. Desse silêncio, nascem o sujeito e o sentido, bem como o sentido do sujeito em meio ao caos das limitações cotidianas: Macabéa, uma mulher que é relida pela sociedade como pertencente ao gênero feminino, e Erasmo Wagner, um homem que é relido pela sociedade como pertencente ao gênero masculino, perdem essa forma de releitura quando trazidos à literatura, pois passam apenas a ser lidos como os corpos que, desprovidos de gênero, são somente sexos lidos cotidianamente por inspirarem e expirarem silêncio. Em corpos físicos, esses personagens são silenciados pelas imposições diárias; em corpos escritos, eles são lidos como corpos que, estéreis, ganham palavras, ainda que mudas por excelência. Falando daquilo que estava engasgado, Clarice Lispector e Ana Paula Maia dão palavras ao silêncio da abstração. Subterrâneos, o silêncio de Erasmo Wagner é mantido pela sua não-confissão, por guardar em si o não-perdão de um homicídio, e o de Macabéa tem a sua manutenção na não-existência, na ausência do existir demais. É a pobreza, nesse contexto, que funciona como forma de censurar essa confissão e essa existência, visto que o silêncio apresenta-se como o resultado dessa censura, que, por sua vez, é uma forma de violência. Percorrendo esse silogismo, percebe-se que o silêncio se instaura nessas duas novelas como legitimação de toda a violência que envolve a pobreza e que, por ser uma forma de censurar o direito à confissão e à existência, é também uma forma de esquecimento desses tantos Erasmos Wagners, em seus nomes compostos, e Macabéas, tão estigmatizadas quanto os macabeus. Conjugados, por fim, em um tempo verbal que cogita a possibilidade de, a hipótese de, o futuro do pretérito, Macabéa e Erasmo Wagner têm, InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

63

Daiane Crivelaro

nas suas trajetórias, outros dois personagens que, ao flagrarem os seus silêncios, dão-lhes voz, dão-lhes a necessidade – e não mais a possibilidade – de confissão. Rodrigo S.M., ao ser invadido por uma personagem que lhe toma o espaço até ser ouvida, traz para as entrelinhas o silêncio de Macabéa, que, ao ter voz por meio das palavras que compõem A hora da estrela, faz do seu silêncio um grito flagrante. Tonhão, o bode que não é capaz de se ausentar em vida até dar a Erasmo Wagner a voz da confissão, insiste em trazer-lhe a necessidade e não mais a hipótese de se perdoar como forma de existir, em meio às entre rinhas de O trabalho sujo dos outros. Entre esses dois personagens, Rodrigo S.M. e Tonhão querem ser alto-falantes, mas são autofalantes, trazendo, com eles, as vozes antes inaudíveis de Macabéa e de Erasmo Wagner. Dessa vez, todavia, essas vozes ganham volume, pois, ouvidas por meio de estetoscópios por seus primeiros ouvintes, tornaram-se corpos escritos de corpos, antes, apenas físicos. O silêncio, uma metonímia às avessas da existência humana, recupera a sua audição: “mesmo no silêncio e com silêncio/ dialogamos”. Referências • ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. • BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. • LINS, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. • LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. • MAIA, Ana Paula. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro: Record, 2009. • ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: Editora UNICAMP, 1995. 64

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 51-64, out. 2014

A VIDA CURTA E CONTURBADA DE RAUL POMPEIA Magali Lippert da Silva Instituto Federal do Rio Grande do Sul / IFRS Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS contato: [email protected] Resumo: O ensaio trata da vida e da produção literária de Raul Pompeia, um dos principais escritores do fim do século XIX, cuja obra de destaque é O Ateneu. A vida de Pompeia tem sido constantemente confundida com a de sua principal personagem, Sérgio, personagem/narrador de O Ateneu. Neste texto atentamos para a vida real de Pompeia, sua impetuosidade e os embates intelectuais e políticos que o levaram à morte. Palavras-chave: Raul Pompeia; biografia; literatura brasileira Abstract: This essay deals with the life and literary production of Raul Pompeia, one of the leading writers of the late nineteenth century and whose masterpiece is O Ateneu. Pompeia’s life has been constantly confused with that of his main character, Sérgio, character/narrator of O Ateneu. Here, we focus on Pompeia’s real life, his impetuosity and intellectual and political conflicts that led him to death. Keywords: Raul Pompeia; biography; brazilian literature. Resumen: El ensayo trata de la vida y de la producción de Raul Pompeia, uno de los principales escritores de finales del siglo XIX, cuya principal obra es InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014     65

Magali Lippert da Silva

O Ateneu. La vida de Pompeia ha sido constantemente confundida con la de su personaje principal, Sérgio, personaje/narrador de O Ateneu. En este trabajo nos detendremos en la vida real de Pompéia, su impetuosidad y las luchas intelectuales y políticas que lo condujeron a su muerte. PALABrAs CLAVe: Raul Pompeia; biografía; literatura brasileña.

66

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

A vida curta e conturbada de Raul Pompeia

INTRODUÇÃO A obra mais importante escrita por Raul Pompeia foi O Ateneu, sendo assim, qualquer análise biográfica sobre o autor vincula o homem à obra: Raul ao personagem Sérgio. Muitos estudos foram realizados e muitos textos foram escritos sobre traços biográficos que evidenciariam a ligação entre o autor e o personagem criado por ele, de fato as semelhanças são inúmeras, mas o homem Raul Pompeia não acabou suas vivências com o incêndio do Ateneu ou a saída do Internato Abílio, colégio que teria inspirado o autor a escrever sua obra. Pompeia se tornou um homem da política, abolicionista, republicano radical, desenhista mordaz e, ainda, investiu seu conhecimento como professor e encerrou sua vida após uma malograda experiência como diretor da Biblioteca Nacional. A VIDA CURTA E CONTURBADA DE RAUL POMPEIA Raul d’Ávila Pompeia nasceu em 1863, no município de Angra dos Reis. O pai, bacharel em Direito, Dr. Antonio d’Ávila Pompeia, homem inacessível, sério e casmurro; a mãe, Rosa Teixeira Pompeia, descendente de uma tradicional família de Angra dos Reis, dedicada ao plantio da cana-de-açúcar, demonstrava traços de mãe superprotetora. Em 1873, a família Pompeia, vinda de Angra dos Reis, fixa residência na cidade do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, Raul Pompeia é matriculado no Colégio Abílio (uma das mais importantes instituições de ensino da época), instituição que teria inspirado o romance O Ateneu. [...] não se pode tomar ao pé da letra que o Ateneu seja o mesmo colégio Abílio. Na vida de Raul Pompeia, o diretor Abílio César Borges, barão de Macaúbas, gozou de uma lembrança bem contrária daquele ódio que Aristarco desperta em Sérgio, narrador e InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

67

Magali Lippert da Silva

protagonista. Em 1891, quando morreu o famoso barão, Pompeia dedicou-lhe verdadeira homenagem. (CURVELO, 1981, p. 3-4)

As características inquietas e combativas de Pompeia apareceram bem cedo: aos 15 anos ele já escrevia periodicamente o manuscrito O Archote, um “jornalzinho” em que fazia as mais diversas denúncias. Também foi nesse ano que escreveu a novela Uma tragédia no Amazonas, publicada dois anos mais tarde. A vida intensa, inquieta e ardorosa do jovem escritor foi marcada por fortes experiências. Durante seu curso de Direito, em Recife, por exemplo, enfrentou a epidemia de febre amarela que vitimou vários de seus colegas e alguns amigos, o que o abalou profundamente. Brito Broca (1960) afirma que é em função dessa experiência que o autor escreve “Alma Morta” (1888/ publicação incompleta na Gazeta da Tarde, à qual teve acesso Brito Broca), em que reflete sobre o estado de espírito naqueles tempos de estudo em Recife: “ ‘Eu vi o mundo’ – assim começa uma de suas páginas. E o sentira naturalmente, duro, mais negro, mais cruel do que aquele mundo com o qual entrara em contato, pela primeira vez, no Colégio Abílio.” (BROCA, 1960, p. 33). Na campanha abolicionista, Pompeia empenhou-se em denunciar os escravocratas e apoiar de todas as formas possíveis o líder abolicionista Luís Gama. Depois da morte de Luís Gama, o homem-referência em luta contra a escravidão passou a ser Antônio Bento que, além da discussão teórica e de pregação moral, tentava atingir materialmente as organizações escravocratas, facilitando fugas e rebeliões de negros. Segundo alguns especuladores, e nada se tem que prove isto, Pompeia estaria envolvido em todas essas ações. O artista sensível contrastava com o homem sectário/radical. Enquanto artista, Pompeia surpreendia, pois não era só o seu talento 68

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

A vida curta e conturbada de Raul Pompeia

literário que se destacava, mas seus desenhos e charges desconcertantes. Pompeia falava a amigos de projetos futuros, em que pretendia se dedicar ao trabalho com esculturas. Segundo Brito Broca (1960), despretensiosamente tomando um pouco de barro, à ponta do canivete, na madeira, Pompeia talhava o que bem queria. Em 1888, o autor publicou O Ateneu. o ambiente intelectual da época inspirava grandes obras, eram tempos de Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto, Aluísio de Azevedo, entre outros. Parecia haver uma convergência de fatores que aproximariam Raul Pompeia desse grupo de intelectuais, mas seu radicalismo político afastou seus pares, sendo que alguns, inclusive, se tornaram seus inimigos. A partir de 1891, o escritor Raul Pompeia cede espaço exclusivo para o político pró-Floriano Peixoto. Omisso quanto à violência da polícia florianista que prendia e torturava seus opositores, Pompeia dá apoio incondicional ao governo, sua única preocupação é a possível deposição do presidente republicano e o consequente enfraquecimento da República. Essa atitude gera desgastes irreversíveis na imagem de Pompeia frente à intelectualidade da época. Teixeira, em “Vida & Obra de Raul Pompeia: entre a arte e a política”, publicado em anexo na 15ª edição da obra O Ateneu (Editora Ática), chamou a atenção para o conflito no qual se envolveu Pompeia em sua empreitada política: Em 1892, Raul Pompeia passou por um incidente particularmente desagradável, de consequências desastrosas: no início do ano houve murmúrios de uma conspiração contra Floriano. O escritor saiu em defesa do Marechal de Ferro, agredindo genericamente os adversários do presidente, pelas colunas do Jornal do Comércio. Dois dias depois, o Jornal Combate revidou os ataques de Pompeia. O artigo InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

69

Magali Lippert da Silva

imputava-lhe servilismo e adulação, acrescentando que ele se masturbava de noite e se deixava estar na cama, contando as tábuas do teto de seu solitário quarto de solteiro. Havia nisso uma alusão ao suposto homossexualismo do autor de O Ateneu. A ofensa, assinada por um pseudônimo, mas atribuída a Olavo Bilac, quase levou a um duelo de espadas entre os escritores – duelo que foi evitado na última hora, quando os adversários já empunhavam armas (TEIXEIRA, 1994, p. 18).

Há controvérsias sobre o duelo entre Raul Pompeia e Olavo Bilac, e também sobre a autoria do texto atribuído a Bilac. De qualquer forma, o enfrentamento direto não chegou a acontecer: alguns biógrafos afirmam que eles não chegaram a um acordo sobre quais armas utilizariam, outros afirmam que amigos impediram o início do duelo. O que é relevante notar é que os escritores, de fato, se desentenderam e se ofenderam e o motivo foi a obsessão que Pompeia nutria pelo governo florianista. O ocorrido causou grande abatimento e depressão em Pompeia, mas sua convicção política seguia forte, e ele continuava não se intimidando quando o assunto eram os interesses do Marechal de Ferro. Ainda levando em consideração o texto de Teixeira, é sabido que Pompeia, embora formado em Direito, nunca exerceu a profissão de jurista, passou a vida sobrevivendo como jornalista e, mais tarde, em função de seu envolvimento político, ocupou cargos públicos como professor de Mitologia na Escola de Belas Artes e, depois, diretor da Biblioteca Nacional. Esses fatos serviram para dar “munição” a seus adversários, que o acusavam de servil e adulador. Para eles, os interesses de Pompeia estavam vinculados à manutenção de seu emprego público. 70

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

A vida curta e conturbada de Raul Pompeia

Mesmo diante da perseguição, Pompeia seguiu defendendo os interesses do governo, seu nacionalismo acentuou-se, passou a repelir tudo que era estrangeiro, especialmente de origem inglesa e portuguesa. Quando o Marechal falece, o autor de O Ateneu é tomado de intensa paranoia. Os florianistas temem Prudente de Moraes e, no funeral do Marechal Floriano Peixoto, Pompeia faz um discurso que é considerado um desacato ao novo presidente. Prudente de Moraes o demite do cargo de diretor da Biblioteca Nacional. Profundamente amargurado, ele sofre novo golpe com a publicação do artigo de Luiz Murat publicado no Jornal do Comércio de São Paulo, intitulado “Um louco no cemitério”, alusão ao seu comportamento e ao discurso arrebatado no funeral de Floriano. Sentindo-se desonrado e infeliz, Pompeia escreve um bilhete ao jornal A Notícia, periódico em que escrevia eventualmente, com a seguinte frase: “À Notícia e ao Brasil, declaro que sou um homem de honra”. O bilhete data de 25 de dezembro de 1895, dia em que comete o suicídio com um tiro no coração. Segundo Brito Broca (1960, p. 14): “Impelido à luta, provocando-a, por vezes, não possuía verdadeira fibra de lutador. Era demasiado sensível à menor ofensa, à mínima alfinetada no amor-próprio, de uma sensibilidade exasperada e doentia”. O bilhete suicida de Pompeia demonstra o caráter público de seu drama pessoal. O ato desesperado é a última tentativa em defesa de sua honra, já que não consegue mais se defender com palavras. A sensibilidade e o temor pela opinião pública chegaram a níveis extremos. Segundo Miskolci e Balieiro (2011, p. 3-4): “No caso de Pompeia ou, para fugirmos a qualquer personalismo enganador, no caso de seu drama público, a polêmica em que se envolveu tinha motivação política, mas – algo que pretendemos esclarecer – se desenvolveu na gramática da sexualidade e do gênero”. O que os autores acima querem elucidar são as suspeitas acerca da homossexualidade de Pompeia. O ataque de Bilac fazia menção à orientação InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

71

Magali Lippert da Silva

sexual do autor de O Ateneu. Existia algo de nebuloso e perturbador na conduta de Pompeia, homem reservado e de quem não se ouvia falar de aventuras românticas. No fim do século XIX, em uma época de disputas políticas e intelectuais, de discursos incisivos, combativos, em que a representação da virilidade se dava no terreno dos debates e duelos, alguém de quem não se sabia absolutamente nada da vida íntima causava não só curiosidade, mas também especulação. Os inimigos de Pompeia precisavam combatê-lo e, para isso, utilizaram recursos afetivos e sexuais, apoiados no homoerotismo presente em O Ateneu, sugerindo que o autor era homossexual, sugestão grave em uma época de preconceitos e hipocrisias. Machado de Assis, em uma crônica de 29 de dezembro de 1895, cujo texto foi transcrito por Curvelo em sua obra sobre a vida de Raul Pompeia, comenta: Estava na idade em que se pode e se trabalha muito. A política, é certo, veio ao seu caminho para lhe dar aquele rijo abraço que faz do descuidado transeunte ou do adventício namorado um amante perpétuo. A figura é manca; não diz esta outra parte da verdade, – que Raul Pompeia não seguiu a política por sedução de um partido, mas por força de uma situação. Como a situação ia com o sentimento e o temperamento do homem, achou-se ele partidário exaltado e sincero, com as ilusões todas – das quais se deve perder a metade para fazer a viagem mais leve – com as ilusões e os nervos. (CURVELO, 1981, p. 98).

No estudo psicoestílistico de Raul Pompeia escrito por Artur de Almeida Torres (1972) há muitas coisas curiosas relacionadas à vida de Raul Pompeia e à sua obra, por exemplo, a obsessão do escritor por olhos grandes e negros (muitas passagens citando olhos pretos, negros, grandes...), 72

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

A vida curta e conturbada de Raul Pompeia

o sangue e o vermelho, palavras utilizadas sempre no diminutivo, entre outras. Interessante, também, a análise sobre os melindres do escritor: Um dia, porque Coelho Neto lhe apontasse semelhança entre uma de suas canções e um fragmento de Schopenhauer, “franziu o sobrolho e, encarando-o ferrenho, rosnou em voz surda: ‘Pensa você, talvez, que eu plagiei, não é?’ ”. E em seguida, nervoso, aborrecido, rasgou o papel, atirando-o à rua com desprezo. (TORRES, 1972, p. 14).

Brito Broca (1960) afirma que era necessário o interlocutor estar precavido, pois uma palavra dita de mau jeito, uma brincadeira aparentemente inofensiva bastava para provocar uma reação inesperada e desconcertante por parte de Pompeia. Ele exaltava-se, discutia e, por fim, sofria com a própria reação desproporcional. Eloy Pontes, o mais importante biógrafo de Raul Pompeia e, por muito tempo, detentor de seus originais, documentos e acervo pessoal, afirma que o internato causou danos morais, provocando reações, influenciando de modo lastimável o espírito do escritor. Pontes acredita que a passagem pelo Colégio Abílio despertou em Pompeia o polemista prematuro, o caráter combativo, o homem feito de desconfianças, suspeitas infundadas e atitudes prevenidas que a idade madura acentuou com nitidez (PONTES, 1935). Homem sensível, reflexivo, contemplativo, com um refinado pensamento artístico, este era Raul Pompeia, o homem que se confunde com um personagem. Na biografia A vida inquieta de Raul Pompeia, escrita por Eloy Pontes, figuram diversos textos esparsos escritos por Pompeia ao longo de sua vida acadêmica (principalmente). O interessante na análise desses escritos é o tom: sempre de denúncia. Mesmo quando Pompeia está fazendo um discurso de homenagem a um professor, por exemplo, ele, de alguma forma, dá o tom da denúncia, seja contra outro professor (inferior ao InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

73

Magali Lippert da Silva

homenageado), seja contra o sistema educacional. Enfim, é impossível que todos saiam incólumes de um discurso proferido ou de um texto escrito por Pompeia. Seus pseudônimos foram inúmeros: Rapp, Lauro, Procópius, “Um moço do povo” etc. No entanto, sua verve polêmica e seu temperamento vivaz deixavam sempre registrado, de alguma forma, que o autor sagaz e impiedoso por trás de tais textos se chamava Raul Pompeia. Em pesquisa nos escritos inéditos de Pompeia, Eloy Pontes encontrou também esta advertência manuscrita por Pompeia: “O meio termo é o ‘status quo’ da covardia. Na lógica é o pavor da consequencia, desfiada em deduções pelo declive do argumento. Na vida commum é a duplicidade timida, ante as coherencias energicas do caracter.” (PONTES, 1935, p. 49). O espírito de luta e a vocação para a denúncia pública que aparecem em diversos textos de Pompeia, bem como o repúdio ao meio-termo, desagradavam muitas autoridades públicas e intelectuais que viam nele um sujeito “impulsivo”, incômodo e inconveniente. Uma das mais marcantes represálias sofridas por Pompeia aconteceu no período de conclusão do terceiro ano do curso de Direito, quando ele e Luiz Murat foram reprovados. Não havia razão aparente para a reprovação de ambos, sendo assim, é possível que o motivo fossem os textos polêmicos que os dois escritores publicavam nas colunas dos jornais da época. Reprovado pela academia paulista, Pompeia e outros colegas seguem para Recife, onde, como foi descrito anteriormente, o escritor se vê diante do surto de febre amarela. Apesar das dificuldades na capital pernambucana, o ano de Pompeia em Recife foi proveitoso. Neste período, fez inúmeras leituras e escreveu muitas das suas reflexões. Tudo indica que O Ateneu tenha sido arquitetado em Recife. Como leitor, Pompeia possuía interesses diversificados que influenciaram não só sua ação política, mas também sua literatura. A leitura de escritos de pensadores e políticos europeus, sem dúvida, interferiu em 74

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

A vida curta e conturbada de Raul Pompeia

suas percepções de mundo, e é provável que ele tenha utilizado esses conhecimentos para compor uma sociedade miniaturizada em seu romance, uma espécie de simulação da sociedade da época. Afirma Curvelo (1981, p. 104): Raul Pompeia não conheceu, provavelmente, os escritos de Marx, mas gostava de Proudhon. Dele retirou uma frase para epígrafe de um de seus poemas de Canções sem metro, que falava da superioridade do homem de ação sobre o homem de letras. Enquanto escritor, Pompeia era extremamente crítico consigo. Eloy Pontes (1935) examinou documentos que indicam várias reescrituras do mesmo texto, anotações, cortes e lapidação em muitos de seus escritos literários. As leituras de Flaubert, dos irmãos Goncourt, entre outros, acentuavam as exigências pessoais do jovem Pompeia, exemplo disso é que passou dez anos escrevendo, reescrevendo e revisando as Canções sem metro. Suas leituras também o levaram a uma visão pessimista do mundo. Seus autores favoritos – Baudelaire, Leopardi, Espronceda, Heine e Schopenhauer – acentuavam a melancolia e o dilaceramento diante da vida, bem como a revolta contra o poder instituído. A intoxicação literária agravou o temperamento polêmico e intolerante de Pompeia, a capacidade de perceber o que ninguém percebia inquietava seu espírito, a ansiedade e a impotência diante das mazelas da vida humana foram as possíveis causas de sua morte precoce. CONCLUSÃO O Ateneu foi a obra definitiva de um homem marcado por contradições, por uma vida pessoal reservada e solitária, por um radicalismo político cuja origem ninguém sabe referir ao certo e por um talento artístico marcante. Pompeia entrou para a história da literatura brasileira com uma obra-prima cujas análises são diversas e contraditórias, mas que sempre InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

75

Magali Lippert da Silva

citam a densidade e a emoção que emanam do texto. Em O Ateneu, o autor, o narrador e o personagem se fundem, se denunciam, se unem para se vingar não de um professor/diretor, de colegas ou de um colégio, mas da História. Referências • BROCA, Brito. Raul Pompeia. São Paulo: Melhoramentos, 1960. • CURVELO, Mário. Raul Pompeia. São Paulo: Abril Educação, 1981. • MISKOLCI, Richard; BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. O drama público de Raul Pompeia: sexualidade e política no Brasil finissecular. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 75, fev./2011. Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2012. • PONTES, Eloy. A vida inquieta de Raul Pompeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935. • TEIXEIRA, Ivan. Entre a arte e a política. In: POMPEIA, R. O Ateneu. 15. ed. São Paulo: Ática, 1994. • TORRES, Arthur de Almeida. Raul Pompeia: (Estudo Psicoestilístico). 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1972.

76

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 65-76, out. 2014

EUCLIDES DA CUNHA: UM LAPIDADOR HARMÔNICO UMA ANÁLISE DA CONSTRUTIVIDADE AUTORAL D’OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA Laís Peres Rodrigues Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ Mestranda em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro contato: [email protected] Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo discutir a forma polida de escritura de Euclides da Cunha, que exaustivamente trabalhou o plano sintático-semântico de seus textos, imaginando uma forma ideal de encaixar cada ideia, palavra, frase. Como um artesão das letras, Euclides molda a língua, fazendo das palavras seu grande instrumento de expressão. Apontamos um traço de composição muito destacado no escritor: o do “ourives da palavra” ou do “lapidador do verbo”. Esses adjetivos também se encaixam nas outras produções de destaque de Euclides, em que se pode comprovar o cuidado no manejo de cada palavra. Palavras-chave: Euclides da Cunha; Os sertões; narrador. Abstract: The main aim of this paper is the discussion of Euclides da Cunha’s courteous way of writing. He worked extensively on the syntactic-semantic perspective of his texts, imagining an ideal way to fit every InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014     77

Laís Peres Rodrigues

thought, word, clause. As a word craftsman, Euclides shapes language, making out of words his major tool of expression. We can highlight one more striking feature in the author: the of a “verb polisher”, comparing him to a “diamond cutter”. These characteristics also fit into other of Euclides’ main productions, in which we can prove the carefulness in the management of each word. KEYWORDS: Euclides da Cunha; Os sertões; storyteller. Resumen: Este trabajo tiene como objetivo principal discutir la elegancia de la obra de Euclides da Cunha. Trabajó sus textos exaustivamente desde las perspectivas sintáctico-semánticas, imaginando una forma ideal para adaptarse a cada idea, palabra o frase. Como un artesano de las letras, Euclides modela la lengua, hace de las palabras su gran instrumento de expresión. Una de sus características de escritura más destacadas es la de ser: «orfebre de la palabra» o «artesano del verbo.» Estos adjetivos están en varias producciones de Euclides, en las que se puede observar el cuidado que tuvo el autor en el manejo de cada palabra. PALABRAS CLAVE: Euclides da Cunha; Os sertões; narrador.

78

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico Uma análise da construtividade autoral d’Os sertões de Euclides da Cunha

INTRODUÇÃO Os sertões são uma obra nascida durante um período turbulento da política nacional. Nesses anos iniciais da República, há um esforço acentuado da elite agrária exportadora em afastar os intelectuais da atividade política, os mesmos intelectuais que se inflamaram com ideais positivistas revolucionários. Euclides era um desses intelectuais e, como eles, se inquietou com problemas da Monarquia que perduraram no novo regime, como, por exemplo, a corrupção e o poder político concentrado nas mãos de poucos. Em Os bestializados, José Murilo de Carvalho comenta que, naquela época, o povo raramente se pronunciava quanto à política e, quando o fazia, era fora das cenas oficiais, ou seja, através de greves e arruaças, ou mesmo em movimentos de natureza quase revolucionária, como a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro. Para o historiador, o povo assistiu ao advento da República sem ao menos sentir que algo havia mudado no regime político. Apesar de Euclides representar, naquele contexto, a parcela de intelectuais que inflamaram a revolução, viu, pouco a pouco, que no novo regime era preciso ter dinheiro ou prestar favores aos que tinham, se quisesse ocupar algum cargo político de destaque ou apenas fazer parte das decisões. Essa constatação o inflamou de forma negativa quanto ao posicionamento que o governo tomava no Brasil. Além da insatisfação com a política de troca de favores da recém-nascida República Brasileira, outro fator que influenciou Euclides a se desiludir com o novo sistema foi ter visto um exército republicano massacrar pobres sertanejos sob a legitimação caluniosa de que eles representavam uma ameaça ao novo regime. A República, ilustração máxima dos ideais de um Brasil moderno e alinhado com a Europa, caminhava na contramão do esperado processo civilizatório e mostrava-se bárbara, massacrando impiedosamente seus próprios cidadãos. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

79

Laís Peres Rodrigues

Nessa época, ocorreu também a difusão do “novo jornalismo”, que se deu graças ao desenvolvimento de novas técnicas industrializadas que permitiram o barateamento da imprensa. Com o grande consumo dos periódicos, os jornalistas passaram a formar opiniões e obtiveram o poder de ditar novas modas e hábitos. Os escritores, por falta de um mercado editorial desenvolvido, se viam na condição de produzir para o jornalismo ou se arrastar para o funcionalismo público, como procurou fazer Euclides, conciliando as duas carreiras. Escritores como Euclides acreditavam que, através da publicação de textos sobre a política brasileira, conseguiriam atingir o convencimento de alguma parcela da sociedade e, assim, alcançar qualquer mudança na estrutura do novo regime. Os intelectuais mais politizados visavam à proposta de uma ciência sobre o Brasil, já que só através do conhecimento poderiam modificá-lo e melhorá-lo; acreditavam também que, numa república ideal, os que detinham mais conhecimento ocupariam os cargos de liderança no país. Assim como Euclides, esses estudiosos se entregaram com afinco ao estudo de diversos aspectos brasileiros, com o intento de criar um saber próprio sobre a nação. Era preciso entender a nossa botânica, nossa história, nossa literatura, nossas fronteiras. Era preciso entender “A terra” e “O homem”. No Brasil, as Ciências Humanas e Sociais apareciam tardiamente como cursos universitários, e a literatura acabou por desempenhar uma função de registro e campo para debate dos problemas da sociedade. Nesse contexto, Euclides pôde entender a importância de Canudos e de como seria relevante ser personagem ativo na história do país, de modo a tentar estabelecer arquétipos para a ciência e para a cultura brasileiras. Esse pensamento do autor fica explícito no trecho a seguir, extraído de um caderno íntimo: “Escrevi este livro para o futuro. Levado, por um conjunto de circunstâncias a que não pude forrar-me, a assistir a um doloroso drama da nossa história” (CUNHA, 2002, p.136). 80

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico Uma análise da construtividade autoral d’Os sertões de Euclides da Cunha

UMA ANÁLISE DA CONSTRUTIVIDADE AUTORAL D’OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA Os sertões avançaram pela literatura como missão e revelaram a brutalidade do exército da República, que foi capaz de destruir centenas de brasileiros marginalizados. Em Literatura como missão, Nicolau Sevcenko escreve que “um texto neutro pode divulgar ideias, a literatura cria estados de espírito, desperta ou enseja desígnios éticos” (SEVCENKO, 2003, p. 284). Ainda nessa obra, o historiador cita uma crítica de Lima Barreto: “A arte literária se apresenta como um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar de simples capricho individual para traço-de-união, em força de ligação entre os homens” (apud SEVCENKO, 2003, p. 284). Ou seja, antes mesmo de denunciar o drama de Canudos, era preciso fazer dele, literatura. Ao defender o valor estético de Os sertões, Afrânio Coutinho escreve: Euclides era um artista, um ficcionista, um criador de tipos, tal qual um romancista. Via a realidade, diretamente

ou

através

de

documentos

ou

testemunhos, e construía o seu retrato de acordo com o seu temperamento, com uma visão transfiguradora. Há inúmeros episódios inteiramente deformados no livro. E os tipos não são reconhecíveis como reais, mas como personagens que figurariam de bom grado em um romance. Em tudo entrou o pincel do artista, ao qual não é possível, mesmo que seja um naturalista, uma absoluta fidelidade à realidade. E a modificação nos episódios, cenas e tipos favorece a obra, tornando-a obra de arte, fazendo-a atravessar o crivo do espírito criador do artista. (BERNUCCI, 2009, p. 57) InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

81

Laís Peres Rodrigues

Portanto, não se pode dizer que o livro Os sertões se limite a fomentar estruturas características dos cientificistas. Não é apenas uma ornamentação dentro de um texto científico. Ocorre uma relação de diferentes visões que se complementam: ciência e arte, objetivismo e subjetivismo. A relação dessas visões faz do narrador de Os sertões extremamente complexo, pois apresenta uma linguagem diretamente científica, mas, para que se enxergue seu enredo, é preciso que o leitor esteja atento ao elemento estético da obra. Os constantes choques narrados por Euclides, em virtude da sua vivência com a realidade da guerra, se tornam perceptíveis para o leitor, principalmente a partir da leitura de Canudos – Diário de uma expedição. Nessa obra, foram reunidas inúmeras correspondências e anotações escritas por Euclides, que deram conta de desempenhar o papel de matéria bruta para a confecção de sua obra-prima. Porém, ao fazer com que as surpresas da realidade da guerra também estivessem presentes n’Os sertões, Euclides criou uma estrutura narrativa em que o leitor vivenciasse como ele as mesmas surpresas ocorridas no decorrer da viagem. No trecho a seguir, percebe-se como Euclides retrata em Canudos – Diário de uma expedição a experiência modificadora da viagem: Quando eu voltei, percorrendo sob os ardores da canícula, o vale tortuoso e longo que leva ao acampamento, sentia um desapontamento doloroso e acreditei haver deixado muitas ideias, perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue... (CUNHA, 2002, p. 116)

Nesse trecho, Euclides explicita que muitas ideias suas haviam ficado para trás, mortas. Então, era necessário buscar fontes teóricas que 82

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico Uma análise da construtividade autoral d’Os sertões de Euclides da Cunha

servissem de alicerce para as novas ideias que gostaria de fundamentar, para as denúncias que empreenderia. Para legitimar sua voz, dar-lhe autenticidade, era necessário comprovar cientificamente o que denunciava. A denúncia era feita, mas como fazer com que o leitor acreditasse nela? Euclides une a verdade científica ao enredo para convencer o leitor de sua denúncia; acrescenta a emoção da situação social dos sertanejos para sair de um texto meramente descritivo e construir sua obra literária. Para Euclides, estava claro que seu livro não seria apenas um livro vingador, mas também uma obra literária que o marcaria para sempre na história da literatura brasileira, como esclarece em trecho a seguir: [...] quando o publiquei; depois, tive o pensamento capital de o subordinar à contraprova violentados protestos contra as falsidades ou acusações injustas que encerrasse. Atirei-o, por isso, seriamente à publicidade. Não lhe dei um prefácio, nem paraninfo, que o apresentasse à minha terra. Quis aparecer só, absolutamente isolado na grande fraqueza do meu nome obscuro diante dos que compartiram aquela luta. E apareci só. Não apareceram porém os protestos. Não podiam aparecer: desafiariam imprudentemente a réplica inflexível dos fatos. Não deviam aparecer: afrontariam inutilmente as energias triunfantes da verdade. (CUNHA, 2002, p. 137)

Euclides possuía suas anotações de campo, sua verdade, era preciso construir ainda sua obra literária. E assim, a partir da matéria bruta de suas notas de viagem, Euclides começou seu trabalho literário, criando, lapidando, moldando, polindo, estruturando as informações que já possuía. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

83

Laís Peres Rodrigues

Para Euclides, as sua obras deveriam ter mais de uma voz, deveriam associar vozes narrativas diferentes. A qualidade estética d’Os sertões não se centra em seu enredo, em sua denúncia, mas na maneira como estrutura sua narrativa de forma não linear. O escritor cria um narrador fragmentado, capaz de assumir múltiplas perspectivas que orientam a leitura para diversos pontos de vistas. Ronaldes de Melo e Souza, em A geopoética de Euclides da Cunha, defende que Euclides inventou um narrador que entra em intercâmbio com diversos outros dentro de discursos poéticos, filosóficos e científicos, construindo, na verdade, máscaras narrativas. O narrador d’Os sertões assume ora a perspectiva do soldado republicano, ora do sertanejo, ora do intelectual e, a cada uma, o leitor adquire possibilidades diferentes de leitura, recebendo a chance de movimentar-se através dos olhares distintos e compreendendo que a obra é feita de múltiplos olhares. Mesmo na primeira parte de Os sertões, “A terra”, que descreve detalhadamente todo o cenário sertanejo, acrescido de uma intermediação científica com tom predominantemente descritivo, é somado um movimento narrativo. Esse movimento narrativo se dá tanto pelo uso de um narrador observador em movimento, como também pela estratégia de intercalar cenas, como, por exemplo, a intermediação da cena de encontro de um cadáver de soldado morto debaixo de uma árvore. Nessa parte, o olhar predominante é o do próprio soldado, que cede às intempéries da viagem, não suportando o clima do sertão nordestino. O narrador-soldado é também uma espécie de personificação do governo republicano, que não vê salvação para um local de vida tão difícil. Aquele povo é condenado às próprias garras da natureza, ou figura uma salvação escapatória para o litoral, ou morre abandonado e esquecido. 84

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico Uma análise da construtividade autoral d’Os sertões de Euclides da Cunha

Observe-se o trecho a seguir: Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua. Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas. Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...(PIETRANI, 2010, p. 70)

Na passagem citada anteriormente, vemos que a natureza das veredas sertanejas é um obstáculo para “um viajante” e não para um sertanejo, já que este é adaptado às intempéries do local. Dessa forma, acreditamos que a perspectiva do narrador que se sobressai nessa primeira parte da obra seja a do soldado, de um visitante que vem de fora para atravessar as veredas do sertão. Em “O Homem”, os propósitos deterministas aparecem para explicar a vida do sertanejo. E é nessa parte que a voz narrativa dos intelectuais soa mais forte. A partir de uma visão distanciada do resto da população, o narrador-cientista elabora um perfil para a população brasileira, do sul ao norte, e desse traço tenta explicar o curso de toda nossa história. No trecho a seguir, o narrador explana a criação do mito “Antônio Conselheiro” nos sertões nordestinos. Das

palavras

desta

testemunha,

conclui

que

Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

85

Laís Peres Rodrigues

vivamente a imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude... Tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquela gente simples. Ao abeira-se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas. (PIETRANI, 2010, p. 195)

Na terceira e última parte, “A luta”, Euclides faz uso de diversos recursos literários para criar uma voz narrativa que tome parte dos sertanejos, a fim de justamente convencer o leitor do massacre ocorrido e chamar atenção para sua gravidade. Para dar destaque a todas as informações, as formas mais simples são apresentadas de maneira hiperbólica, tamanhos maiores, pesos mais graves, distâncias mais longas são as medidas encontradas por esse narrador-sertanejo que exagera seu próprio massacre como uma tentativa última de construção de um livro vingador: Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam

resistir

por

muitas

horas.

Alguns

soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados, rotos, medonhos 86

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico Uma análise da construtividade autoral d’Os sertões de Euclides da Cunha

de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o hospital de sangue dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército. E lutavam com relativa vantagem ainda. (PIETRANI, 2010, p. 596)

Essa análise apresentada de narradores sob múltiplas perspectivas não ocorre isoladamente nas três partes d’Os sertões. É claro que em cada uma existe o predomínio de um determinado tipo, mas eles não aparecem isolados, alguns parágrafos ainda obtêm mais de uma visão de um mesmo acontecimento do enredo. Nesse último trecho citado, de “A luta”, torna-se ambígua a análise sobre a perspectiva do narrador, porém sua frase final enlaça a visão sertaneja, já que sentencia a vantagem desse grupo, apesar dos caminhos que tomou a guerra até ali. Euclides, ciente do valor expressivo de algumas de suas frases, estrategicamente as colocava no final dos parágrafos, como se fossem um fecho de ouro que chamaria mais atenção do que o parágrafo anterior. E ainda, essa frase forte, em vez de fechar um período, ocupava um parágrafo isolado que anteriormente fora precedido de um parágrafo de muitas linhas, dando mais destaque ainda à frase. Esse contraste é denominado pelo professor Antonio Carlos Secchin de “tropel linguístico” e “clarim solitário”. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

87

Laís Peres Rodrigues

Observe-se um exemplo de como esse efeito ocorre n’Os sertões: O comandante do 2º distrito militar, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, convidado para assumir a direção da luta, aceitou-a tendo antes, numa proclamação pelo telégrafo, definido o seu pensar sobre as coisas: “Todas as grandes ideias têm os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada”. A mesma nota em tudo: era preciso salvar a República. (PIETRANI, 2010, p. 385)

Euclides ainda inverte seu esquema, fazendo com que seu “clarim solitário” apareça antes de seu “tropel linguístico”: Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas, um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. (PIETRANI, 2010, p. 597)

CONCLUSÃO Para Euclides, não importava só relatar a guerra, era preciso mostrar o drama da natureza e da desventura daquela gente. Dessa forma, a literatura esteve presente em toda a lapidação d’Os sertões, desde o momento de como contar, a partir da escolha de narradores multiperspectivados, até o 88

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

Euclides da Cunha: um lapidador harmônico Uma análise da construtividade autoral d’Os sertões de Euclides da Cunha

momento em que foi necessário criar, subverter a linguagem e o enredo. Mesmo depois de ter realizado inúmeras anotações sobre o que viu e vivenciou, foram necessários quase cinco anos após o término da guerra para que o livro chegasse ao seu estágio final. Esse fator denuncia a maneira apaixonada e dedicada com que Euclides se lançava a sua escrita, sempre se preocupando em polir arestas, acrescentar acabamentos, tal qual um verdadeiro arquiteto das letras. Referências • ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. • ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2003. • ARRUDA, Maria Olívia Ribeiro de. O mecanismo vitimário em “Judas Ahsverus”. In: Informativo técnico-científico Espaço. n. 32. Rio de Janeiro: INES, 2009. p. 29-33. • BACHELARD, Gaston. Nova Cultural, 1988.

A

poética

do

espaço.

São

Paulo:

• BERNUCCI, Leopoldo M.; HARDMAN, Francisco Foot (Org.). Euclides da Cunha: poesia reunida. São Paulo: Unesp, 2009. • BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. • BROCA, Brito. Vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. • CORREA, Nereu. A tapeçaria linguística de Os sertões e outros ensaios. São Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1978. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

89

Laís Peres Rodrigues

• CUNHA, Euclides. Canudos – Diário São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

de

uma

expedição.

• _____________. Os sertões – Campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. • FREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro: Record, 1987. • _____________ e VENTURA, Roberto (Org.). Cadernos de Literatura Brasileira – Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales, 2002. • LUCCHESI, Marco (Org.). Euclides da Cunha – coleção melhores crônicas. Rio de Janeiro: Global, 2011. • Montechiari. (Org.). Euclides da Cunha: presente e plural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 65-77. • PIETRANI, Anélia Montechiari (Org.). Euclides da Cunha: presente e plural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. • SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. • SOUZA, Ronaldes de Melo e. A geopoética de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. • VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha – esboço biográfico. In: CARVALHO, Mauro Cesar & SANTANA, José Carlos Barreto (Org.). Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

90

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 77-90, out. 2014

LINGUÍSTICA FORMAL, ENUNCIAÇÃO E DISCURSO: TRÊS DIFERENTES CONCEPÇÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE PARÁFRASE Matheus Silveira Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS contato: [email protected] Resumo: Este trabalho tem por objetivo investigar o conceito de paráfrase tendo por base diferentes teorias linguísticas e suas concepções de língua. Primeiramente, é feita uma análise de como a linguística de cunho mais formalista entende este fenômeno, passando por autores como Saussure e Chomsky. Após, é feito um estudo de como a teoria da enunciação concebe o processo parafrástico, com base no livro “Enunciação e pragmática” (1988), de Herman Parret. Por fim, analisa-se como a teoria da Análise de Discurso de linha francesa, iniciada com os estudos de Michel Pêcheux, entende a paráfrase. Palavras-chave: paráfrase; linguística; análise de discurso. Abstract: This work aims to investigate the concept of paraphrase based on different linguistic theories and their respective conceptions of language. First, an analysis of how the formal linguistics understands this phenomenon, through authors such as Saussure and Chomsky is conducted. After that, we study how the Theory of Enunciation conceives the paraphrasing process, based on the InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014     91

Matheus Silveira

book “Enunciation and pragmatic” (1988), written by Herman Parret. Finally, we analyze how the Theory of Discourse Analysis, beginning with the studies of Michel Pêcheux, understands the paraphrase. KEYWORDS: paraphrase; linguistic; discourse analysis. Resumen: Este trabajo tiene como objetivo investigar el concepto de paráfrasis basándose en las diferentes teorías lingüísticas y concepciones del lenguaje. En primer lugar, se analizará cómo la lingüística formal entiende este fenómeno, a través de autores como Saussure y Chomsky. Posteriormente se estudiará cómo la Teoría de la Enunciación concibe la paráfrasis, basándose en el libro «La enunciación y pragmática» (1988) de Herman Parret. Por último, se analizará cómo la Teoría del Análisis del Discurso, a partir de los estudios de Michel Pêcheux, entiende la paráfrasis. PALABRAS CLAVE: paráfrases; lingüística; análisis del discurso.

92

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

PARÁFRASE NA CONCEPÇÃO DE LÍNGUA SISTÊMICA Em 1916, ano de publicação do Curso de linguística geral, editado por Charles Bally e Albert Sechehaye com base nos cursos de linguística geral ministrados por Ferdinand de Saussure, se dá a fundação da linguística moderna, que define como seu objeto de estudo a língua. Saussure queria recolocar a língua sob as bases do positivismo, ou seja, transformar a ciência da linguagem em uma ciência autônoma e, por isso, coloca o objeto de estudo da Linguística como uma realidade prioritária para os estudos da linguagem, de modo independente das possíveis relações que poderiam ter sido estabelecidas entre sujeito e objeto. Com essa visão formalista, Saussure entende a língua como produto, estabelecendo relações dicotômicas, nas quais o fundamental encontra-se no interior da própria língua. Dessa forma, a dicotomia saussuriana produziu um objeto teórico idealizado do qual, segundo Indursky (2005, p. 15), “ficam excluídos o sujeito, suas marcas espaço-temporais e o sentido, que são relegados ao domínio residual da fala”. De acordo com essa concepção, a língua é um objeto transparente, de onde se exclui tudo o que for externo ao sistema e onde não há lugar para o equívoco, para a opacidade, para a ambiguidade, para os mal-entendidos. Segundo Ferreira (1996), em tal formulação, [...] a língua se apresenta como uma organização fechada,

autônoma,

transparente,

isenta

de

contradições, apoiada sobre os princípios da consistência e completude. Tudo o que se queira expressar é possível fazê-lo através de uma noção de língua assim concebida e idealizada. (FERREIRA, 1996, p. 39)

Sendo assim, a língua mostra-se como um objeto homogêneo e estabilizado. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

93

Matheus Silveira

A publicação do Curso de linguística geral, com sua concepção de língua sistêmica, influenciou os estudos linguísticos e possibilitou o surgimento do modelo estruturalista/distribucionalista nos Estados Unidos, desenvolvido por Bloomfield e, a seguir, por seu discípulo Zellig Harris. De acordo com Indursky (2005, p.16), “com esses estudos, fazia-se a descrição dos mecanismos da língua, buscando suas regularidades estruturais”, o que exigia um corpus de análise representativo e homogêneo. O distribucionalismo constituiu um método de análise aplicado à fonologia e à morfologia em que se buscavam unidades em função dos contextos em que elas ocorriam e de suas capacidades combinatórias. Dessa forma, a teoria distribucional, segundo Zandwais (1996), [...] postula que a descrição de uma língua comporta, como condição essencial, a construção de um algoritmo de paráfrase constituído por um processo regular de cálculos, o qual permite antever, para cada enunciado, o conjunto de suas possíveis paráfrases. (ZANDWAIS, 1996, p. 11)

Para essa teoria, então, toda língua comporta binômios que possuem equivalência semântica, o que faz com que o distribucionalismo identifique a paráfrase como um processo resultante de “transformações explicáveis pelas propriedades morfossintáticas que presidem as línguas” (ZANDWAIS, 1996, p. 11). Sendo assim, o fenômeno da paráfrase é visto como intrínseco às formas de organização das estruturas das línguas, noção essa que vai ao encontro da concepção de língua como sistema proposto por Saussure em 1916. Segundo os distribucionalistas, apagamentos ou acréscimos de itens lexicais e até mesmo transformações na ordem dos enunciados mantêm inalterados os seus sentidos, constituindo, assim, paráfrases. Vejamos alguns exemplos: 94

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

(1) O menino chutou a bola que estava no quintal. (1’) A bola que estava no quintal foi chutada pelo menino. Para os distribucionalistas, esses enunciados são parafrásticos, uma vez que mantêm o mesmo sentido, ou seja, há uma equivalência semântica entre eles, mesmo que haja alteração na ordem dos enunciados, um estando na voz ativa e outro, na voz passiva. Entretanto, não há os mesmo efeitos de sentidos entre (1) e (1’), pois os enunciados apontam para processos de topicalização distintos, dos quais poderiam ser feitos comentários diferentes. Dessa forma, o processo parafrástico é visto apenas no interior da própria língua, excluindo-se a relação desta com o que lhe é exterior. Essa exclusão desconsidera toda e qualquer intenção do sujeito falante, assim como as condições sócio-históricas em que os enunciados são produzidos, separando-se assim o que é individual (fala) do que é social (língua). De acordo com Saussure (2006), Com o separar a língua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1º, o que é social do que é individual; 2º, o que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental. A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo registra passivamente. (SAUSSURE, 2006, p. 22)

Mais tarde, essa divisão possibilitou que Chomsky (1978) – criador da teoria gerativa da linguagem e aluno de Harris – desenvolvesse a noção de falante-ouvinte-ideal, que seria um sujeito ideal, numa comunidade de fala homogênea, que conhece sua língua perfeitamente bem. Apesar de Chomsky questionar todo o fundamento da linguística estrutural desenvolvido por Boomfield, opondo-se à visão behaviorista proposta por este e postulando uma visão mentalista da língua, a teoria gerativista ainda InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

95

Matheus Silveira

considera a língua como um objeto fechado em si mesmo, excluindo a sua relação com o contexto exterior, assim como o sujeito, sua intenção e sua relação com o sentido atribuído às palavras. Para os gerativistas, o sentido é determinado pela estrutura profunda da língua e projeta-se na estrutura superficial, que é a representação do símbolo físico que produzimos e ouvimos. O mesmo acontece com a paráfrase que, para esses estudiosos, é um processo que pode ser explicado levando em consideração apenas as relações morfossintáticas específicas de cada língua. Tais considerações, dessa forma, permitem assegurar que uma noção de língua sistêmica, da qual seja excluído o sujeito falante e suas intenções, não dá conta de abordar o processo parafrástico de maneira adequada. A abordagem linguística, por si só, é ineficaz de dar conta de processos como este, uma vez que, segundo Zandwais (1996, p.12), “transformações ou apagamentos das estruturas oracionais nem sempre produzem resultados previsíveis e regulares sob o ponto de vista semântico”. Segundo Haroche, Pêcheux e Henry, [...] quando falamos em abordagem linguística, nós nos referimos, na verdade, a um conjunto de conceitos que foram produzidos por linguistas e a uma prática específica do linguista sobre a linguagem, estreitamente ligada a esses conceitos. Afirmamos que nem os conhecimentos que permitem produzir esses conceitos, nem essa prática em si podem recobrir completamente o atual campo da semântica. (HAROCHE, PÊCHEUX, HENRY, 2007, p. 15) [grifo meu] 96

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

OS ESTUDOS ENUNCIATIVOS E A PARÁFRASE Sabe-se que, desde os anos 40, algumas teorias – entre elas a teoria da enunciação – tentam recuperar o que o corte saussuriano deixou de fora, ao instituir a língua como seu objeto de estudo. Dessa forma, essas teorias tentam recuperar as marcas da subjetividade presentes na língua, ou seja, instituem um novo ponto de vista ao resgatarem elementos que haviam sido relegados por Saussure. Segundo Indursky (2005), os trabalhos de Benveniste – maior representante da teoria da enunciação, [...] evidenciaram que muitos aspectos, relegados por Saussure ao residual da fala, poderiam ser estudados em sua regularidade, permitindo examinar as marcas da atividade do homem na língua. (INDURSKY, 2005, p. 19)

Assim, Benveniste, ao estudar o par EU-TU, procura depreender deles as marcas da subjetividade e, dessa forma, a enunciação constitui-se por um processo que envolve a intersubjetividade e o contexto, ou seja, depende do locutor (EU) e do interlocutor (TU) para a determinação do significado. É a língua que possibilita a alguém assumir-se como locutor, ao apropriar-se da linguagem e, assim, constituir um interlocutor. Desse modo, é o enunciado que permite ao sujeito se constituir subjetivamente no seu dizer, a fim de produzir um discurso singular para o outro da sua alocação e, por isso, o significado do enunciado é tão amplo, pois as marcas enunciativas podem modificar o sentido das sentenças e das palavras. Logo, todo o processo de significação é afetado pela enunciação, o que significa dizer que o sentido é afetado por inúmeros fatores externos à língua e vai depender da relação que se estabelece entre locutor e interlocutor. Para Benveniste, InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

97

Matheus Silveira

[...] a questão – muito difícil e pouco estudada ainda – é ver como o “sentido” se forma em “palavras”, em que medida se pode distinguir entre as duas noções e em que termos descrever sua interação. É a semantização da língua que está no centro deste aspecto da enunciação, e ela conduz à teoria do signo e à análise da significância. (BENVENISTE, 1989, p. 83)

Teóricos como Benveniste consideram a enunciação como um processo que determina a multiplicidade de sentidos. Sendo assim, eles abandonam a noção de língua sistêmica e entendem que o processo parafrástico não pode ser estudado apenas pelo ponto de vista estritamente linguístico, mas depende de outras circunstâncias que vão para além da língua. De acordo com Zandwais (1996), A teoria da enunciação propõe-se a descrever os atos parafrásticos como práticas de transposição discursiva ou atos produtores, através dos quais os sujeitos realizam transposições de um nível de sentido em direção a outro. Dentro dessa ótica, a transposição do sentido pode ser considerada como uma condição de possibilidade do próprio sentido, cabendo, pois, à Semântica responsabilizar-se pela determinação de operações específicas de transposições parafrásticas. (ZANDWAIS, 1996, p. 14)

Assim, conforme Parret, autor do livro Enunciação e pragmática (1988, p. 223), “esta abordagem da paráfrase pressupõe [...] uma concepção transpositiva do sentido”. Sendo assim, Parret não aceita o tratamento da paráfrase como equivalência de sentido, como queriam os teóricos 98

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

distribucionalistas, por isso cria a noção de proximização, a qual postula que na paráfrase o sentido está próximo, mas não é equivalente. Parret entende a paráfrase como transposição de sentido, em que um enunciado x conduz a um enunciado y, ou seja, é uma relação que conduz a outra, e essa relação pressupõe a interpretação. De acordo com Parret (1988), [...] o sentido só é apreendido no seu “tratamento” no momento em que o sujeito falante é levado a operar uma transposição de um nível de sentido em direção a outro. É deste modo que parafrasear é um ato produtor. (PARRET, 1988, p. 223) [grifo do autor]

Estabelece-se um novo ponto de vista em relação ao funcionamento parafrástico, na medida em que não se restringe mais paráfrase a uma simples equivalência semântica, em que se analisavam apenas relações morfossintáticas para definir se dois ou mais enunciados possuíam o mesmo sentido ou não, ou seja, se eram parafrásticos ou não. Parret, ao afirmar que a interpretação é constitutiva do processo parafrástico, supõe a leitura e a compreensão do sujeito como fatores intrínsecos a esse processo. A paráfrase é vista, agora, como uma reconstrução semântica, em que se estabelece uma transposição do mesmo (sentido) para chegar ao outro. Logo, não há mais a possibilidade de a paráfrase ser considerada como equivalência semântica, já que não há mais uma “codificação” do sentido que, de acordo com Parret, tem como consequência a constituição de uma metalinguagem, o que existe agora é uma transposição de sentido. Vale lembrar que essa transposição não transforma o sentido em sentido “autêntico” e “final”, pois isso seria isolar, novamente, o processo parafrástico dentro da própria língua, sem haver possibilidade de novas leituras. Ao contrário, conforme Parret, a transposição é um processo InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

99

Matheus Silveira

infinito de articulação, e é esse o aspecto que deve ser acentuado. O que nos permite afirmar que o ato de parafrasear é um ato permanente, comum a toda e qualquer língua natural, e mais, é um ato produtor de sentidos. Parret entende as transposições parafrásticas como operações de tradução intralinguística, pois ambos os processos (parafrástico e tradutório) dependem da enunciação, das condições de uso da língua e das relações de subjetividade que neles estão implicadas; a paráfrase seria, também, “uma expansão que se apoia sobre a propriedade de elasticidade do discurso” (PARRET, 1988, p. 225). Apesar de Parret avançar consideravelmente em relação à visão formalista/lógica que os distribucionalistas propuseram para o tratamento da paráfrase, o autor não se afasta muito dessa visão ao afirmar que a paráfrase teria uma função desambiguadora. Segundo o autor, [...] a motivação do ato de parafrasear é o da desambiguação de

conteúdos

semânticos

pela

referência ao contexto ou à instância da enunciação [...] a paráfrase pressupõe uma ambiguidade na sequência parafraseada e o ato de parafrasear é

necessariamente um

ato

de

desambiguação

(PARRET, 1988, p. 226 e 231). [grifos meus]

Esta, então, seria a principal diferença entre o ato de parafrasear e o ato de traduzir, já que a tradução não pressupõe a ambiguidade, nem tem na ambiguidade a sua motivação. Ao delegar à paráfrase uma função desambiguadora, o autor aproxima-se de uma visão de língua transparente e homogênea, onde não há lugar para dúvidas, duplos sentidos, opacidade, ou seja, a paráfrase existiria para eliminar toda e qualquer ambiguidade que pudesse vir a “contaminar” a transparência da língua. 100

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

Entretanto, o tratamento enunciativo da paráfrase, como vimos, conseguiu transpor os limites impostos pela linguística formal, ao incluir elementos importantes na produção desse processo como a subjetividade do sujeito, assim como sua capacidade intrínseca de interpretação e compreensão, e a influência do contexto enunciativo no momento do ato de parafrasear. Tais formulações permitiram abarcar uma concepção de língua mais heterogênea, em que o sujeito falante não é idealizado, pertencente a uma comunidade de fala homogênea, mas é capaz de mostrar-se através da língua, constituindo-se como sujeito por meio da enunciação, podendo assim agir na e sobre a língua. PARÁFRASE E DISCURSO No início dos anos 60, a análise de discurso – teoria fundada por Michel Pêcheux – instaura um novo objeto de análise, o discurso. Essa disciplina, nas palavras de Orlandi (2007), surge como uma disciplina de entremeio, ou seja, a análise de discurso não acumula meramente conhecimentos, mas, ao contrário, discute seus pressupostos continuamente. Sendo assim, a análise de discurso se constitui na contradição da relação entre outras disciplinas. De início, essa contradição é questionada dentro das ciências da linguagem: as tendências formalista (gerativismo), sociologista (sociolinguística) e da fala (teoria da enunciação). Contudo, a análise de discurso não se apresenta como uma quarta tendência, mas se constitui no lugar produzido pela relação contraditória entre as três existentes. É preciso lembrar que disciplina de entremeio não é equivalente à interdisciplinaridade, uma vez que não se concebem uma disciplina fonte, principal, e disciplinas auxiliares – como acontece no processo interdisciplinar. As disciplinas de entremeio se formam nas suas contradições. Conforme Orlandi (2007), InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

101

Matheus Silveira

[...] a AD coloca uma relação crítica intrínseca, por trabalhar justamente a sua contradição. Se a linguística deixa para fora a exterioridade (que é objeto das ciências sociais) e as ciências sociais deixam para fora a linguagem (que é objeto da linguística), a AD coloca em questionamento justamente essa relação excludente, transformando, por isso mesmo, a própria noção de linguagem (em sua autonomia absoluta) e a de exterioridade (histórico-empírica). (ORLANDI, 2007, p. 26)

Dessa forma, vê-se que a análise de discurso articula de modo particular os conhecimentos do campo das ciências sociais e do campo da linguística, questionando suas relações de contradição. A análise de discurso produz, então, um outro lugar de conhecimento com sua especificidade, não é apenas a aplicação da Linguística nas Ciências Sociais ou vice-versa. A análise de discurso se forma justamente no lugar em que a língua tem de ser referida ao exterior, a fim de que seja apreendida a formação do sentido. Contudo, para que isso aconteça, é necessário o conhecimento da linguagem e a relação que essa estabelece com a exterioridade. A análise de discurso irá, dessa maneira, colocar questões para a Linguística, na medida em que esta apaga a historicidade no campo de sua constituição, e para as Ciências Sociais, “interrogando a transparência da linguagem sobre a qual elas se assentam” (ORLANDI, 2007, p. 25). Logo, a análise de discurso entende a língua sob outro ponto de vista, diferente dos linguistas formais e dos teóricos da enunciação. Para os analistas de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, “enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (ORLANDI, 2010, p. 15). A língua perde o caráter homogêneo e estável proposto pelos distribucionalistas e passa 102

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

a ser entendida como um objeto heterogêneo, não transparente, em que a opacidade é constitutiva da linguagem e onde a língua é constitutiva do sujeito e da sua subjetividade. A língua não é mais estável, estando sujeita à ambiguidade e à contradição, antes vistas como problemas a serem resolvidos pelos linguistas, em busca de uma língua previsível e transparente. Assim, o sentido passa a ser entendido de outra maneira, não há mais o sentido, único e estabilizado, há, conforme Orlandi (2010), um “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 2010, p. 21). A língua não é mais entendida como um código, em que se transmite um sentido de A (emissor) para B (receptor), pois ambos estão envolvidos no processo de significação. A análise de discurso trabalha com a língua no mundo, com suas maneiras de significar, em que o sentido sempre pode ser outro, dependendo das relações que se estabelecem com o contexto sócio-histórico, e não mais apenas com o contexto imediato (o aqui e agora) proposto pela teoria da enunciação. Tais considerações permitem à análise de discurso, e a seu maior representante, Pêcheux, entender a paráfrase como uma “matriz de sentido” (PÊCHEUX; FUCHS, 1975, p. 167), ou seja, para essa teoria a paráfrase está longe de representar apenas uma equivalência semântica. Dessa maneira, a produção de sentido é indissociável da relação de paráfrase e o processo parafrástico é entendido como um discurso que se cristaliza dentro de uma determinada formação discursiva e, assim, constitui a essência do ideológico. Em outras palavras, o discurso parafrástico é legitimado dentro de uma formação discursiva e estabelece as condições para que determinado significante seja significado. Diferentemente da linguística formal, que entende a paráfrase como uma equivalência de sentidos já cristalizada no interior da própria língua, as relações parafrásticas na análise de discurso tratam de relações InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

103

Matheus Silveira

de equivalência de sentidos que podem coocorrer (“família parafrástica”, segundo Pêcheux e Fuchs, 1975) no interior de uma formação discursiva. O que define, então, a paráfrase são os saberes de uma formação discursiva: só há paráfrase quando há identidade entre os itens lexicais e os saberes da formação discursiva. Logo, só será possível substituir um termo por outro equivalente quando este possuir o mesmo efeito de sentido em relação à formação discursiva que está sendo mobilizada. A noção de um sentido único, sem possibilidade de outras leituras – preconizada pela linguística formal – cai por terra. Agora, o sentido depende da formação discursiva em que o enunciado está inserido. De acordo com Pêcheux e Fuchs, [...] o sentido de uma sequência só é materialmente concebível na medida em que se concebe esta sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação discursiva (o que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos). (PÊCHEUX; FUCHS, 1975, p. 167) Isto equivale a dizer que as palavras adquirem sentido para além da língua e que os processos de interpelação dos indivíduos em sujeitos determinam os sentidos. Segundo Zandwais (1996), as produções parafrásticas se formam com base na interdependência entre fatos de ordem histórico-social e o funcionamento discursivo, logo, os processos parafrásticos não se originam apenas na materialidade da língua, mas fora dela. Diferentemente da linguística formal e da teoria da enunciação, a análise de discurso inclui o materialismo histórico, considerando-o essencial para a determinação do sentido, uma vez que considera os valores dos signos como anteriores e exteriores ao enunciado e não mais predeterminados pela língua ou apenas pelo momento da enunciação. 104

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

Linguística formal, enunciação e discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase

É no jogo entre o já-dito (memória discursiva) e o dito que se constituem e se movimentam os sentidos; essa relação é condição de existência dos sentidos e do próprio sujeito. Dessa maneira, pode-se concluir que a língua está sujeita à incompletude, e mais, conforme Orlandi (2010), essa incompletude é condição necessária da linguagem, uma vez que nem os sujeitos, nem os sentidos e, por isso, nem o discurso já estão prontos e acabados. Pelo contrário, eles estão sempre se fazendo – e se refazendo – havendo um trabalho contínuo, um movimento constante do simbólico e da história. Referências • BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. 2. ed. Campinas: Pontes, 1989. • CHOMSKY, Noam. Aspectos da teoria da sintaxe. 2. ed. Coimbra: A. Amado, 1978. • FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O estatuto da equivocidade da língua. In: LIMA, Marília dos Santos; GUEDES, Paulo Coimbra (Org.). Estudos da linguagem. Porto Alegre: Sagra – D. C. Luzatto, 1996, p. 39-50. • HAROCHE, Claudine; HENRY, Paul; PÊCHEUX, Michel. A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso. In: BARONAS, Roberto (Org.). Análise do discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. São Paulo: Pedro e João Editores, 2007, p. 13-31.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

105

Matheus Silveira

• INDURSKY, Freda. Os estudos da linguagem e suas diferentes concepções de língua. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar; SIMÕES, Darcilia (Orgs.). Língua portuguesa: reflexões sobre descrição, pesquisa e ensino. Rio de Janeiro: Europa, 2005, p. 15-37. • ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 9. ed. Campinas: pontes, 2010. • ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas: pontes, 2007. • PARRET, Herman. Enunciação e pragmática. Campinas: Editora da Unicamp, 1988. • PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine [1975]. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 4. ed. Campinas: Unicamp, 2010, p. 159-249. • SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. • ZANDWAIS, Ana. A heterogeneidade dos conceitos de paráfrase. In: LIMA, Marília dos Santos; GUEDES, Paulo Coimbra (Orgs.). Estudos da linguagem. Porto Alegre: Sagra – D. C. Luzatto, 1996, p. 11-18.

106

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 91-106, out. 2014

A INTERSUBJETIVIDADE PELA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA: UMA INFLUÊNCIA BENVENISTIANA Christiê Duarte Linhares Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS Mestra em Linguística pela PUCRS Doutoranda em Linguística pela UFRGS contato: [email protected] Resumo: Este artigo, de cunho teórico, tem como objetivo verificar o conceito de intersubjetividade descrito pela Teoria da Argumentação na Língua, de Oswald Ducrot e colaboradores, observando a relação entre tal conceito e a proposta de Benveniste. Partindo dessa ideia, verifica-se também a aproximação das Teorias, buscando suas semelhanças e influências, visto que a Teoria da Argumentação na Língua tem seus alicerces também firmados na Teoria da Enunciação, de Benveniste. Palavras-chave: argumentação; enunciação; relação; intersubjetividade. Abstract: This article, of theoretical character, aims to determine the concept of intersubjectivity described according to the Theory of Argumentation in Language, developed by Oswald Ducrot and collaborators, observing the relationship between this concept and the one proposed by Benveniste. Based on this idea, there is also the approximation of the aforementioned theories, seeking similarities and influences, as the Theory of Argumentation in Language has its roots in the Theory of Enunciation, by Benveniste. Keywords: argumentation; enunciation; relationship; intersubjectivity. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014     107

Christiê Duarte Linhares

Resumen: Este artículo, de naturaleza teórica, tiene como objetivo verificar el concepto de intersubjetividad de la Teoría de la Argumentación en la Lengua de Oswald Ducrot y sus colaboradores, observando la relación que existe entre tal concepto y el que propone Benveniste. Partiendo de esta idea, también se verifica la aproximación de las Teorías, buscando sus similitudes e influencias, puesto que la Teoría de la Argumentación en la Lengua tiene su fundamento en la Teoría de la Enunciación de Benveniste. PALABrAs CLAVe: argumentación; enunciación; relación; intersubjetividad.

108

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

A intersubjetividade pela teoria da argumentação na língua: uma influência benvenistiana

INTRODUÇÃO Este artigo de cunho teórico é apresentado com o objetivo de descrever o conceito de intersubjetividade descrito por Oswald Ducrot e colaboradores no que se refere à Teoria da Argumentação na Língua e assemelhar tal conceito ao proposto por Benveniste, quando descreveu a intersubjetividade pela Enunciação. Para isso, a pesquisa será realizada teoricamente, buscando as bases da ANL e suas raízes, que se mostram firmadas em Benveniste. Sabe-se, porém, que a ANL sofre também influência de Saussure, ao descrever a noção de relação e de valor, mas o foco desta pesquisa está na descrição da Teoria e sua relação com a Enunciação de Benveniste. O trabalho está estruturado da seguinte maneira: de início, apresentaremos a Teoria da Argumentação na Língua relacionada aos conceitos benvenistianos; depois, serão descritos os conceitos da ANL; por fim, discutiremos algumas conclusões sobre a proposta deste artigo, relacionando a noção da intersubjetividade para ambas as Teorias. 1. A ANL E SUA APROXIMAÇÃO COM BENVENISTE A Teoria da Argumentação na Língua apresenta-se como enunciativa por identificar uma relação dual, ou seja, a relação entre um locutor e um alocutário, em que o primeiro irá sempre argumentar sobre o que está sendo dito, enquanto o segundo fará as relações linguísticas necessárias para compreender o sentido do dito. Pretende-se, então, explicitar alguns conceitos propostos por Benveniste, para, em seguida, relacionar tais conceitos com os firmados por Ducrot na ANL. Benveniste afirma que a linguagem, antes de tudo, serve para significar. Para contextualizar a questão da significação e da relação entre signos, Benveniste conceitua forma e sentido, dizendo que ambos se articulam para constituir a significação na linguagem. Para Benveniste: InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

109

Christiê Duarte Linhares

A forma de uma unidade linguística define-se como sua capacidade de dissociar-se em constituintes de nível inferior. O sentido de uma unidade linguística define-se como a sua capacidade de integrar uma unidade de nível superior. (BENVENISTE, 2005, p. 135)

Benveniste leu os conceitos saussurianos de língua e fala a fim de ampliar os pensamentos sobre a perspectiva da linguagem em uso. Benveniste (2005) parte da noção de língua como forma e alicerça-se no método estruturalista de segmentação e substituição, chegando ao merisma, que é o limite do nível inferior. O merisma caracteriza-se como parte integrante, pois, ao se relacionar com outros elementos da língua, constitui um nível superior, podendo chegar ao limite do nível superior, que é a frase. Esta última é considerada o resultado da relação de unidades menores. Já o signo, lido por Benveniste, é intermediário ao merisma e à frase, pois pode ser integrante e também pode ter constituintes. A partir desses conceitos, o teórico entra em um novo universo, o do discurso. Benveniste diz ser esta relação entre palavras que origina a frase, a própria linguagem em uso. Para Benveniste (2005, p. 139), deixa-se com a frase o domínio da língua como sistema de signos e entra-se num outro universo, o da língua como instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso. A noção de discurso nos leva ao aparelho formal da enunciação, proposto por Benveniste (1989), o qual afirma que o sentido apreendido da relação existente entre as palavras que um sujeito põe em cena é particularizado no ato de enunciação. Para Benveniste (1989, p. 82), a enunciação é colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização. Ato este, considerado pelo autor, único e irrepetível. 110

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

A intersubjetividade pela teoria da argumentação na língua: uma influência benvenistiana

A enunciação, por sua vez, tem caráter intersubjetivo, pois apresenta uma inter-relação dual e indissolúvel entre locutor e interlocutor. Segundo o teórico, ao enunciar-se, o locutor se marca e marca o outro no seu discurso, constituindo a noção de pessoa, que caracteriza a relação “eu-tu”. Locutor e interlocutor são seres discursivos. Portanto, dizemos que o primeiro é o produtor do enunciado e o segundo é o receptor do enunciado. Além disso, o autor descreve o eu como o centro de referência do discurso na compreensão de uma enunciação. Além da relação “eu-tu”, a noção de pessoa proposta por Benveniste disserta sobre um centro de referência interna do discurso: o “ele”. O “ele” é a não-pessoa, descrita pelo “o que” ou “de quem” se fala no ato individual de comunicação. Benveniste ainda propõe as noções de espaço e tempo da enunciação, denominadas respectivamente como o “aqui” e o “agora”, visto que, para o autor, quando o sujeito se apropria da linguagem e se enuncia, estabelece, entre outras características, a noção de tempo, momento único e irrepetível da enunciação, e a noção de espaço, lugar em que o ato de fala é proferido. Com isso, Ducrot, na descrição da Teoria da Argumentação na Língua, adotou alguns conceitos do teórico acima mencionado com o intuito de firmar sua teoria em tal base, pois a ANL firmou conceitos de pessoa, tempo e espaço. Assim, A ANL se caracteriza como uma teoria enunciativa, pois identifica a relação entre um locutor e um alocutário, em que o primeiro irá sempre argumentar sobre o que está sendo dito. O conceito de enunciação, para a ANL, mesmo sem a presença do autor real do enunciado, ou seja, o sujeito empírico, envolve seres discursivos, que são o locutor (produtor da enunciação) e o alocutário (receptor da enunciação). Tal relação nos remete à noção de intersubjetividade, em que o sentido é construído pelas relações que o locutor faz e compreendido pelo alocutário. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

111

Christiê Duarte Linhares

Na ANL, o locutor, além de ser o responsável pelo discurso, também se marca ao produzir o ”aqui” e o “agora”, que correspondem, respectivamente, ao espaço e ao tempo da enunciação, influência marcante de Benveniste. Ducrot denomina enunciação como o surgimento de um enunciado. Para o autor (1987, p. 172), o enunciado descreve a enunciação, visto que o sentido do enunciado é a descrição da sua enunciação. Então, temos na ANL as pessoas (locutor e alocutário), o tempo, ou seja, o momento da enunciação, o tempo imediato em que o enunciado foi dito, que se refere ao agora, e, por fim, o espaço, que é o lugar do enunciado, o aqui em que o locutor está inserido. A partir das informações descritas, trataremos, então, de descrever e caracterizar a Teoria da Argumentação na Língua. 2. A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA A Teoria da Argumentação na Língua (ANL), de Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre, que começou a ser desenvolvida em 1983, tem base enunciativa e considera que o sentido, construído na e pela linguagem, é argumentativo. A ANL é uma teoria que está em constante atualização, pois é atualizada por autores (criadores) que ainda estão trabalhando sobre a sua utilização. Desse modo, ela conta com quatro fases no seu desenvolvimento: a primeira é a forma standard (1983), a segunda forma é a que compreende a Teoria dos Topoi e a Teoria Polifônica da Enunciação (1990), a terceira é a forma da Teoria dos Blocos Semânticos (TBS, 1992) e a quarta fase, que está atualmente sendo escrita e reelaborada por Oswald Ducrot e Marion Carel, é a que compreende a Teoria Argumentativa da Polifonia (TAP, 2010). A ANL é caracterizada como enunciativa, pois identifica um locutor, considerado produtor do discurso, referindo-se a um alocutário, receptor do mesmo discurso. Verifica-se, portanto, na relação locutor/alocutário, que o locutor argumenta em relação ao que está sendo dito. Por isso, a ANL é considerada uma teoria que analisa o dito, aquilo que é verbalizado 112

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

A intersubjetividade pela teoria da argumentação na língua: uma influência benvenistiana

pelo locutor, pois a análise tem como objeto a linguagem, que dá origem ao discurso, que é o objeto de estudo da Teoria. Tal relação intersubjetiva demonstra que o locutor argumenta a fim de deixar marcas linguísticas no discurso, orientando, assim, a compreensão do alocutário. Assim, a ANL considera argumentar como a função primeira da linguagem, ou seja, argumentar é expressar um ponto de vista sobre determinado tema ou sobre determinado acontecimento, relacionando linguisticamente palavras e enunciados para se chegar à compreensão do sentido. Desse modo, o referente do objeto em questão passa a ser não o objeto no mundo, mas um objeto cujo sentido é construído na e pela linguagem. Nessa abordagem semântico-argumentativa, o sentido não está pronto, mas é constituído pelas relações entre palavras e frases escolhidas pelo locutor. Tais relações, criadas por um falante em determinado momento e lugar, constroem o sentido e os pontos de vista sobre o objeto e, dessa forma, o sentido é visto como sendo sempre argumentativo. Verificamos, então, com as descrições mencionadas, que, ao criar a ANL, Ducrot formula conceitos e define termos utilizados em análise pela Teoria que levam ao seu entendimento. Duas das primeiras definições importantes que devem ser salientadas por este trabalho são as de significação e sentido. Assim, temos a significação como um conjunto de instruções que levam ao sentido, e o sentido como a realização das relações especificadas pelas instruções na significação. Desse modo, vemos que o sentido só é produzido no uso. Partindo desse princípio, concluímos que é através das relações entre palavras e enunciados do discurso que se constrói o sentido, pois este não vem da realidade, ele é construído pelas relações entre as palavras que o locutor escolhe para convencer seu alocutário sobre determinado tema. Partindo da significação e do sentido, a ANL tem como propriedade a terminologia de frase, enunciado, texto e discurso. Observa-se que o entendimento de tal terminologia é de extrema importância para a compreensão da Teoria. A partir disso, Ducrot (1984) conceitua frase como InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

113

Christiê Duarte Linhares

o material linguístico usado pelo locutor, um constructo teórico, e texto como um conjunto de frases, enquanto o enunciado é a realização da frase, ou seja, um objeto construído que foi efetivamente pronunciado ou escrito. Já o discurso é a concretização de um texto, visto que é um conjunto de enunciados relacionados entre si. Concluímos disso tudo que a frase está para a significação assim como o enunciado está para o sentido. Visualizando essas entidades, Ducrot afirma que o aparecimento do enunciado surge da enunciação, que é um acontecimento único e irrepetível constituído pelo aparecimento de um enunciado produzido por um locutor, designado por eu, ser discursivo responsável pelo enunciado, distinto do autor empírico de seu enunciado, para um alocutário, expresso pela segunda pessoa, também um ser discursivo. Podemos concluir que o processo enunciativo é sempre o mesmo, porém, o produto a que a enunciação dá origem é sempre único. Essas relações entre locutor e alocutário e locutor e outros discursos trazem a ideia de polifonia, que diz respeito à vinculação do locutor a seus enunciadores, ou seja, os pontos de vista apresentados pelo locutor e reconhecidos pelo alocutário. Porém, o objetivo deste artigo é verificar a compreensão do sentido pela noção da intersubjetividade e, por isso, não será necessário tratarmos desse tema. Retornando ao conceito de enunciado, percebemos, através do conhecimento da ANL, que o enunciado, em ato de análise, poderá ser segmentado e transformado em um argumento, que, através de um conector, se liga a uma conclusão, ou melhor, um suporte que se liga através de um conector a um aporte. Enfim, chegamos à terceira fase da ANL, que se denomina Teoria dos Blocos Semânticos (TBS). Tal fase foi desenvolvida com a colaboração de Marion Carel a partir de 1992, e tem como princípio que a unidade mínima de argumentação é uma relação entre dois segmentos e um conector. Partindo dessa ideia, usamos como exemplo o enunciado dado por Ducrot (A) Está calor, com o qual podemos definir dois segmentos distintos do tipo: (C) vamos ficar em casa ou (C) vamos passear. Com o exemplo 114

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

A intersubjetividade pela teoria da argumentação na língua: uma influência benvenistiana

citado, percebemos que A tem sentidos diferentes, pois um calor é bom para sair e o outro, para ficar em casa. Percebemos, assim, que o bloco semântico é o sentido resultante da interdependência entre os segmentos de um encadeamento argumentativo. A proposta, aqui, é a de que o encadeamento argumentativo é constituído de dois segmentos ligados por um conector, em que o primeiro segmento é denominado suporte e o segundo, aporte. É na relação de um segmento com o outro que o sentido será verificado no enunciado. Tal relação só será possível com a ajuda de um conector, que será o articulador dos segmentos, que, postos em relação, originarão o sentido. Esses conectores podem ser do tipo donc (simbolizado por DC e que pode ser traduzido por portanto), formando um encadeamento normativo ou pourtant (simbolizado por PT e que pode ser traduzido por no entanto), constituindo um encadeamento transgressivo. Vale destacarmos que DC e PT são conectores metalinguísticos, ou seja, podem ser utilizados em análise outros exemplos de conectores que tenham esses mesmos aspectos. Todavia, neste trabalho, optamos por utilizar apenas os aqui apresentados, com o objetivo de tornar menos complexa a compreensão de nosso alocutário em relação à ANL. Para ilustrar a explicação, utilizamos como exemplo o bloco semântico resultante da interdependência entre comer e ser saudável, formando os encadeamentos: (1) Ele como DC é saudável (2) Ele come PT neg é saudável Vemos que o aspecto normativo em DC seria a afirmação da norma e o transgressivo em PT, a sua negação e também em que “neg” representa a negação de um segmento. No âmbito da TBS, norma e transgressão são de caráter discursivo, isto é, inerentes ao próprio discurso, não apresentando, assim, ideologias, crenças, comportamentos etc., que são exteriores à língua. Digo isso porque a ANL, em sua totalidade, é uma teoria de caráter puramente linguístico, que busca a compreensão do linguístico na e somente na linguagem. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

115

Christiê Duarte Linhares

Buscando pistas linguísticas, o bloco semântico citado como exemplo nos dá diferentes encadeamentos que podem ser expressos da seguinte forma: (1) comer DC ser saudável (2) comer PT neg ser saudável (3) neg-comer DC neg ser saudável (4) neg-comer PT ser saudável Vimos, então, com o exemplo, que um bloco semântico é composto de quatro encadeamentos argumentativos, em que são observados ora aspectos normativos ora transgressivos. Tais aspectos podem ser ligados a uma entidade linguística por dois modos: pela argumentação externa (AE) e pela argumentação interna (AI). Para Ducrot (2005, p. 9), a AE de uma entidade é a pluralidade dos aspectos constitutivos de seu sentido na língua, e que estão ligados a ela de modo externo, ou, ainda, conforme Flores (2009, p. 50), a argumentação externa é considerada como uma pluralidade de discursos que podem seguir uma entidade lexical, enquanto a AI é relativa aos encadeamentos que parafraseiam a entidade ou são muito próximos a ela e, ainda, conforme Flores (2009, p. 51), a argumentação interna pode ser considerada como um encadeamento argumentativo que parafraseia uma entidade lexical. Para melhor explicar tais conceitos, Ducrot apresenta a AI de prudente como sendo perigo DC precaução, a partir da ideia de que, se alguém é prudente, então toma precaução diante do perigo. Já a AE possível de Pedro é prudente é Pedro é prudente DC não lhe ocorrerá nada de mal. Também é possível estabelecer argumentação interna ao enunciado. A AI de Pedro é prudente resulta em perigo DC precaução. Sendo assim, os blocos semânticos constituídos a partir dos enunciados de um discurso permitem que se explicite sua estrutura argumentativa, ou seja, o modo como a argumentação do discurso é produzida. 116

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

A intersubjetividade pela teoria da argumentação na língua: uma influência benvenistiana

Ducrot (2005) afirmou, na Conferência 1, que ambos os encadeamentos, normativo e transgressivo, são a manifestação de um eixo ideal, em que cada um dos encadeamentos constrói seu sentido somente na relação com o outro, ocorrendo interdependência semântica entre eles. Para verificar tal afirmação, utilizamos o exemplo Ele é responsável por isso dirige com cuidado, que constitui um encadeamento normativo, e um dos aspectos representativos desse encadeamento é: responsável DC cuidadoso no trânsito, e o enunciado Ele é responsável, mas não dirige com cuidado pode ser representado pelo aspecto: responsável PT neg cuidadoso no trânsito. Assim, o sentido de responsável somente pode ser construído em relação com o que se enuncia sobre responsável, e os aspectos normativo e transgressivo, que são interdependentes semanticamente, acabam, desse modo, fazendo parte de um mesmo bloco semântico. Outra convenção estabelecida por Ducrot (2005, p. 45), em sua Conferência 2, diz que CON designa um conector de certo tipo, seja normativo ou transgressivo, o CON’ designará um conector de outro tipo, por exemplo, se CON refere-se a um DC, CON’ será um PT. Partindo dessa ideia, verificamos que, a partir de A e B, é possível construir oito conjuntos de encadeamentos ou aspectos argumentativos. E esses aspectos podem ser agrupados em dois blocos de quatro aspectos cada. A interdependência semântica entre A e B é a mesma entre os quatro aspectos presentes num bloco (DUCROT, 2005, p. 15). Esses dois blocos semânticos são representados por: Bloco 1

Bloco 2

A CON B

A CON neg-B

A CON’ neg-B

A CON’ B

Neg-A CON’ B

Neg-A CON B

Neg-A CON neg-B

Neg-A CON’ neg-B

Quadro 1 – Blocos Semânticos InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

117

Christiê Duarte Linhares

Utilizando o enunciado dado por Ducrot João é rico, portanto é feliz, originaremos o bloco semântico 1, expresso por quatro aspectos argumentativos, através do sentido formado pelo encadeamento entre o segmento “rico” e o segmento “feliz”. Da mesma forma, originaremos as relações estabelecidas entre o encadeamento dos segmentos de outro enunciado João é rico, portanto não é feliz, construindo, por esses encadeamentos, um outro sentido, percebido no bloco semântico 2. Bloco 1 – João é rico, portanto é feliz.

Bloco 2 – João é rico, portanto não é feliz.

Rico DC feliz

Rico DC neg-feliz

Rico PT neg-feliz

Rico PT feliz

Neg-rico PT feliz

Neg-rico DC feliz

Neg-rico DC neg-feliz

Neg-rico PT neg-feliz

Quadro 2 – Exemplo de formalização Para Carel e Ducrot (2005, p. 40), devemos formalizar o bloco semântico e isso se dá por meio de um quadrado argumentativo. Os aspectos pertencentes a cada bloco e representados no quadrado argumentativo estabelecem, entre si, relações discursivas, denominadas conversas, recíprocas e transpostas. São conversos os encadeamentos A CON B e A CON’ neg-B, em que ocorre a troca dos conectores e a negação do segundo segmento; são recíprocos A CON B e neg-A CON neg-B, em que são mantidos os conectores e ambos os segmentos são negados; por fim são transpostos A CON B e neg A CON’ B, em que há alternância dos conectores e a negação do primeiro segmento. Notamos que todas as relações estabelecidas pela Teoria da Argumentação na Língua são possíveis graças ao ato de enunciação que é de responsabilidade do locutor quando se refere ao alocutário. Percebemos, assim, que a intersubjetividade é a base de qualquer conceito ou relação descritos pela Teoria. 118

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

A intersubjetividade pela teoria da argumentação na língua: uma influência benvenistiana

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da discussão teórica apresentada por esta pesquisa, verificamos que a ANL alicerça seus conceitos não só em Saussure, quando discute a noção de relação e valor, mas também em Benveniste, ao afirmar que todo ato enunciativo é determinado por um eu que se refere a um tu na construção do sentido do discurso. Além disso, a ANL retoma o conceito benvenistiano, ao afirmar que toda enunciação tem um determinado lugar e momento, denominados respectivamente por Benveniste como o aqui e o agora. Observa-se, pois, que esse ato enunciativo é único e irrepetível. Sendo assim, os teóricos afirmam que cada enunciação é única, assim como cada momento e lugar em que é proferida, porque o aqui não será o mesmo e o agora é o tempo presente. Tal noção de tempo traz uma discussão importante para as Teorias, visto que o tempo da enunciação é sempre presente – o que é dito agora, daqui a alguns segundos, já virou passado e, mesmo que se repita o mesmo dito, será em outro momento, ou seja, o outro agora, considerado o “novo presente”. Concluímos, então, que a intersubjetividade para a ANL é a relação existente entre um locutor e um alocutário, em que pode haver uma troca contínua de tais papéis na construção de um discurso. Portanto, o locutor é o responsável pela enunciação e é ele quem dá as pistas linguísticas, orientando seu alocutário à compreensão do discurso. Essa relação é a mesma que acontece na explicação de Benveniste sobre a enunciação, em que as pessoas são um eu e um tu, considerados como o locutor e o interlocutor da enunciação, que falam sobre um ele, que é a não-pessoa, visto que é o assunto da enunciação, podendo ser até mesmo um objeto. Porém, para Benveniste, o eu é o centro de referência interna do discurso, sendo, desse modo, a Enunciação centrada no eu. O mesmo não acontece com a ANL, porque esta última tem seu enfoque na construção do sentido como modo de argumentação do locutor e não no próprio locutor. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

119

Christiê Duarte Linhares

Portanto, descrevemos acima duas teorias linguísticas que têm como foco o uso da linguagem, mas que são diferentes, porque, mesmo que se assemelhem, cada uma tem a sua especificidade. Admitimos, porém, que este trabalho não pode se dar como encerrado, pois o objetivo deste artigo, de verificar as semelhanças entre as Teorias, foi apresentado aqui de forma breve, devendo ser ampliado por meio de novas pesquisas. Referências • BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989. • ______. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 2005. • DUCROT, Oswald. Enunciação. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984. • ______. Oswald. O dizer e o dito. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987. • ______. Oswald; CAREL, Marion. La semántica argumentativa: una introducción a la Teoría de los Bloques Semánticos. Buenos Aires: Colihue, 2005. • FLORES, Valdir do Nascimento; BARBISAN, Leci Borges; FINATTO, Maria José Bocorny; TEIXEIRA, Marlene. Dicionário de Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2009.

120

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 107-120, out. 2014

O PROCESSO DE SIGNIFICAÇÃO DO ITEM LEXICAL CATRAIA: do significado à experienciação linguística José Enildo Elias Bezerra Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Amapá / IFAP Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba / UFPB Doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ

Shirlei L.C.S. Pereira Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais / PUC-Minas Mestranda em Língua Portuguesa e Linguística na PUC-Minas

Rejane Aparecida da Silva Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais / PUC-Minas Mestranda em Língua Portuguesa e Linguística na PUC-Minas contatos: [email protected] / [email protected] / [email protected]

Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo demonstrar, através de pistas linguístico-textuais, o processo de significação do item lexical ‘catraia’ realizado pelos moradores de uma comunidade ribeirinha localizada na cidade de Laranjal do Jari, Amapá. Para tanto, faremos pequenas incursões em enunciados produzidos pelos moradores, referentes à seguinte pergunta: O que significa catraia para você? Veremos que o processo de significação está relacionado à identidade dos locutores e à experienciação com o objeto em questão. Palavras-chave: catraia; espacialização; significado. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014     121

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

Abstract: The main objective of this paper is to demonstrate, through linguistic and textual clues, the meaning given to the the lexical item ‘catraia’ by the inhabitants of a riverside community located in Laranjal do Jari, in the state of Amapá. For this purpose, we will make small incursions into utterances produced by these residents concerning the following question: What does ‘catraia’ mean to you? We will find out that the process of signification is related to the speakers’ identity and to their experience with the object in question. KEYWORDS: ‘catraia’; spatialization; meaning. Resumen: Este trabajo tiene como objetivo principal demostrar, a través de pistas lingüístico-textuales, el proceso de significación del ítem lexical ‘catraia’ hablado por habitantes de una comunidad ubicada en la proximidad del rio Jari, Amapá - Brasil. Para ello, realizaremos pequeñas incursiones en los enunciados producidos por los que viven allí sobre la siguiente pregunta: ¿Qué significa la palavra catraia para ti? Veremos que el proceso de significado está relacionado con la identidad de los locutores y com la experiência que poseen con el objeto en cuestión. PALABRAS CLAVE: catraia; espacialización; significado.

122

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

INTRODUÇÃO As discussões que se apresentam neste artigo mostram-se como uma reflexão em termos de categorização dos objetos1 no mundo. Seria impossível manter uma comunicação eficaz se todas as vezes que nos deparássemos com os objetos, reais ou abstratos, com os quais lidamos diariamente, tivéssemos que (re)categorizá-los. Cada indivíduo ou comunidade tende a determinar um significado para os objetos que se encontram presentes no seu cotidiano. Mas, quais seriam os critérios de que podemos nos valer no processo de categorização? As propriedades comuns aos objetos seriam suficientes para categorizá-los? A experienciação com os objetos por meio de capacidades humanas podem contribuir no processo de categorização? Enfim, são questões que perpassam os estudos da Semântica e temos o intento de colocá-las em discussão nesta proposta, que leva em consideração a categorização. Pensando em um processo de categorização que não se volte para uma relação direta entre objeto e significado, mas que suscite outras questões que perpassem não só o sistema linguístico, mas também a experienciação dos sujeitos com os objetos, é que propomos como objetivo demonstrar, através de pistas linguístico-textuais, o processo de significação do item lexical catraia realizado pelos moradores de uma comunidade ribeirinha localizada na cidade de Laranjal do Jari, sul do estado do Amapá,

1 Usamos o termo objeto para designar, de maneira ampla, objetos reais ou mesmo fatos, ações, emoções, sensações etc., ou seja, objetos tanto reais como abstratos.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

123

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

Amazônia Oriental. Para tanto, propomos identificar e analisar os diferentes significados que o item lexical pode assumir enquanto termo dicionarizado; analisar os diferentes significados que o item lexical pode assumir pelos moradores de Laranjal do Jari, nativos ou não da região; identificar e analisar elementos de ordem extralinguística que podem estar presentes nos relatos dos moradores e, por fim, compreender em que medida os elementos de ordem extralinguística podem contribuir no processo de significação do item lexical catraia. Dessa forma, para levar a efeito o que propomos neste trabalho, utilizamos como corpus de análise os enunciados produzidos pelos moradores frente à seguinte pergunta: O que significa catraia para você?.2 O corpus se constitui de seis respostas de pessoas nativas ou não de uma comunidade ribeirinha localizada na cidade amapaense de Laranjal do Jari; os dados foram quantificados e apresentados em um quadro-resumo abaixo. Para a análise mais detalhada, selecionamos três respostas, por considerarmos que estas alcançam os objetivos elencados por nós. 1. ANÁLISE DO CORPUS Antes de analisarmos, de fato, o processo de significação do item lexical catraia nos relatos dos sujeitos informantes,3 começaremos apontando para a dicionarização do termo. O verbete catraia

2 As respostas dos informantes podem ser lidas no Anexo I, ao final deste texto. 3 Usamos o termo informantes tendo em vista a natureza dos dados coletados para a análise em questão. No entanto, veremos na análise que o termo informantes é perfeitamente substituível pelo termo falantes, tendo em vista as ações engendradas pelos falantes no uso da linguagem.

124

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

encontra-se dicionarizado na língua portuguesa e, no dicionário Caldas Aulete,4 apresenta uma entrada com três significados diferentes. O primeiro a ser listado é uma significação retirada de termos marinheiros, destacando ser uma catraia um pequeno barco, geralmente com duas proas, bem resistente e que pode ser conduzido por uma só pessoa, usado para transporte e outros serviços em portos, baías etc.; outra derivação, de sentido figurado, trata o signo como uma construção pequena e pobre ou, ainda, listado em terceiro, um termo brasileiro significando prostituta reles.5 A Figura 1 ilustra a diversificação de significados (doravante Sos) do verbete catraia para um único significante (doravante Se).

[ pequeno barco ] [ construção com pouco valor ] [ prostituta ]

Figura 1: Diversificação dos significados do verbete catraia no dicionário on-line Caldas Aulete.

Na cidade de Laranjal do Jari, especialmente para nativos da região, como veremos a seguir, o Se catraia é So como um meio de transporte, uma embarcação. O So de prostituta é atribuído pelos sujeitos informantes

4 A escolha de um dicionário on-line, no caso o Caldas Aulete, se deu justamente para facilitar a consulta do verbete pelo leitor. 5 Consulta realizada no dicionário on-line Caldas Aulete, às 18h30 de 10/02/2013. Disponível em: .

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

125

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

que não são nativos da comunidade ribeirinha de Laranjal do Jari e o So dicionarizado, construção de pouco valor, não é mencionado pelos informantes. Um quadro-resumo das posições assumidas identificadas nos depoimentos pelos informantes em relação ao So de catraia está esquematizado na Figura 2.

Figura 2: Quadro-resumo dos significados de catraia identificados nos depoimentos dos informantes.

Dos seis informantes, três disseram conhecer o So de catraia como embarcação, os informantes 1, 2 e 3. Os informantes 1 e 2 nasceram na cidade de Laranjal do Jari e, pelo depoimento, reconhecem o So de catraia somente como embarcação;6 o informante 3 não era de Macapá e disse conhecer catraia como embarcação e prostituta. O informante 5, que também não era de Macapá, disse conhecer o So de catraia como prostituta, e os informantes 4 e 6, que também não eram de Macapá, disseram não conhecer o So de catraia, ou seja, dos quatro informantes que não eram de Macapá, dois reconheceram o So como prostituta e dois não conheciam o So da palavra.

6 Nos depoimentos não temos pistas suficientes para apresentarmos ao leitor que os informantes 1 e 2 são nascidos na cidade de Laranjal do Jari, porém, na coleta dos dados, tal informação nos foi dada.

126

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

Ainda fora do seu contexto de uso, podemos verificar, na Figura 3, duas matrizes de traços semânticos para o Se catraia.

Figura 3: Matriz de traços do Se catraia.

Temos, para o cálculo dos Sos de catraia, duas matrizes de traços com valores + ou -. O item lexical catraia foi decomposto em dois conjuntos de traços semânticos primitivos que se diferem. Portanto, as matrizes não compartilham os mesmos traços porque o Se em questão, apesar de ser o mesmo, encontra-se em campos lexicais distintos. De acordo com a abordagem sêmica, a combinação de semas de um item lexical nos permite encontrar os possíveis Sos de um signo. Assim, para a matriz do Se catraia cujo So é embarcação, temos traços como [-animado], [-natural], enquanto para uma matriz do Se cujo So é prostituta temos traços opostos [+animado], [+natural], [+humano] etc. Propondo uma análise componencial para o Se catraia, conseguimos, em um enunciado, estabelecer relações semânticas que nos possibilitam possíveis leituras, enquanto outras descartamos. Vejamos o exemplo seguinte: InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

127

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

(1) “Meu nome é M. e a palavra catraia pra mim significa eh... só um meio de transporte que não serve só como um meio de transporte mas também eh... pra levar pra banho essas coisas.”7 (Informante 1)

Acima, temos o item lexical catraia inscrito em um enunciado e elementos que contribuem para a significação desse item como um meio de transporte. Assim, em um processo de leitura, os traços de [+animado] e [+humano], que se referem ao item lexical catraia cujo So é prostituta são, automaticamente, descartados nesse enunciado. Os traços de [-animado], [+artefato], [+coletivo], [+tração motora] e [+fluvial] levantados na matriz de traços semânticos da Figura 3 são perfeitamente possíveis para a interpretação dessa proposição. Na tentativa de facilitar uma exposição mais clara dos apontamentos que gostaríamos de fazer, vamos separar o enunciado acima em duas proposições, a e b, e tentar detalhar o que o informante 1 faz no uso da linguagem ao significar catraia. (a) “a palavra catraia pra mim significa eh... só um meio de transporte.” (b) “não serve só como um meio de transporte mas também eh... pra levar pra banho.” Na proposição a, o informante 1 se vale do advérbio só para particularizar a finalidade do objeto catraia. Nessa proposição, o advérbio admite um traço semântico de particularidade muito forte, que denota uma finalidade única do objeto, a finalidade de transportar.

7 Optamos por não transcrever as falas usando os sinais de transcrição, isso porque não nos pareceu relevante para a análise que estamos propondo.

128

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

Na proposição b, o informante 1 agrega à função de transportar um uso mais específico do objeto catraia, o de levar pra banho. Para agregar tal uso à finalidade de transportar, finalidade esta atribuída na proposição a, inicialmente, o informante 1 se vale de duas expressões, não serve só e mas também para sinalizar um outro uso do objeto. Veja que dissemos um outro uso. Na proposição a fica claro que, para o informante 1, catraia significa um meio de transporte. Na proposição b, a finalidade de transportar, muito bem explícita pelo informante na proposição a, torna-se um pouco opaca pelo fato de o informante usar um verbo que, semanticamente, pode denotar uso, o verbo servir. Assim, quando o informante diz que catraia não serve só como um meio de transporte, sugere que outros usos podem ser atribuídos ao objeto. Podemos ver que o advérbio só, usado pelo informante na segunda proposição, é enfraquecido no que se refere ao traço de finalidade do objeto. Isso porque o informante recorre à negação no início da segunda proposição, que, somada aos outros elementos da expressão, contribui para agregar outro uso ao objeto catraia. A segunda expressão usada pelo informante, mas também, somada aos demais elementos da sentença, também contribui para agregar o uso de levar pra banho à finalidade de transporte. Assim, a expressão estabelece uma relação de adição. Dessa forma, finalidade e uso parecem se imbricar. O que parece garantir tal imbricamento da finalidade transporte do objeto catraia com um uso específico de levar pra banho é o traço semântico do verbo levar, usado pelo informante. Recorrendo a arranjos construídos por Hugo Mari (2012) em texto intitulado Espacialização Semântica, tentaremos expor uma descrição semântica do verbo levar com a noção de espacialização. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

129

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

Verbo: levar [+espacialização], [+deslocamento],[[+temporalidade], [maior]],[visual]. O verbo levar implica um deslocamento de A para B, sugerindo que A está mais próximo do locutor, traço de [+proximidade], e B mais distante do locutor, traço de [-proximidade]. Quanto ao traço de visualidade atribuído ao verbo, o marcamos assim devido ao uso atribuído ao objeto, levar pra banho. Outro exemplo que trazemos para análise é o enunciado do informante 2. (2) “A palavra catraia pra mim não significa apenas um meio de transporte, mas sim uma identidade cultural que o povo laranjalense é trouxe pra si (...)” (Informante 2)

Para o enunciado em questão, não vamos estabelecer relações sintagmáticas, como fizemos no enunciado 1. Aqui, o que queremos chamar a atenção no processo de significação é a relação que se estabelece entre o sujeito informante e sua comunidade local. De acordo com Zlatev (2002, apud MARI, 2012, p. 244), “significado (S) é a relação entre um organismo (O) e seu ambiente físico e cultural (A) determinado pelo valor (V) de A para O”. Ainda que não tenhamos pistas suficientes para descrever a percepção que o informante 2 tem a respeito do objeto catraia, podemos ver que ele aponta para algo que está além do campo semântico meio de transporte, abordado por nós até o momento. Ainda tentando rastrear algumas pistas no enunciado do informante 2 para tentar compreender o processo de significação que se dá entre o sujeito e seu ambiente cultural, podemos ressaltar alguns elementos aos quais ele recorre para significar 130

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

catraia. A expressão não significa apenas e o verbo trazer, por ora, nos parecem relevantes para a análise que propomos. O uso da expressão não significa apenas implica que o informante reconhece o signo catraia como um meio de transporte, como foi dito no enunciado, no entanto, outros traços semânticos podem emergir quando desconstruímos o signo catraia como uma embarcação para construí-lo de outra forma. Tal desconstrução se dá pelo fato de o informante 2 predicar catraia como identidade cultural. Assim, todos os traços semânticos levantados na Figura 3 para o signo catraia cujo significado é embarcação são descartados no processo de interpretação do enunciado, e, por exemplo, o traço de [+abstrato] seria incluído. Quanto ao verbo trazer, recorrendo novamente a Mari (2012), temos um traço semântico que denota um deslocamento de A para B, sendo A mais distante do locutor [-proximidade] e B mais próximo do locutor [+proximidade]. Assim, podemos descrever o verbo trazer com os seguintes traços semânticos: Verbo: trazer [+espacialização], [+deslocamento], [[+temporalidade],[maior]], [visual].8 Alguns pontos merecem destaque neste momento da análise. i)

A questão do deslocamento. Ao se mover, um objeto no espaço está deslocando um corpo, e aqui o verbo trazer desloca um objeto, ainda que abstrato. No enunciado do informante 2, além dos traços semânticos do verbo em questão, uma sugestão da trajetória do deslocamento

8 O arranjo proposto foi construído por Mari (2012) e encontra-se no texto Espacialização Semântica.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

131

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

é feita por ele ao dizer que trouxe para si, sugerindo o traço de [-proximidade] para [+proximidade]. ii)

A questão da espacialização e da temporalidade. Ainda que as duas dimensões estejam implicadas, chamamos a atenção para os traços que se estruturam internamente no verbo trazer. O próprio item lexical, semanticamente, carrega traços que implicam um deslocamento, logo, demandam tempo e espaço. Especificamente, com relação à temporalidade, foi sinalizada com o traço [maior]. Como parâmetro para tal sinalização, nos valemos do processo de internalização dos traços semânticos dos itens lexicais. Aqui, acreditamos que para o informante 2 dizer que catraia é uma identidade cultural que o povo trouxe para si demanda tempo razoável para o povo internalizar traços dessa identidade cultural. E, por último,

iii)

A questão da visão. Tendo como base a leitura realizada do texto Espacialização Semântica, de Hugo Mari, acreditamos que a dimensão da visão contribui no processo de significação do item lexical catraia. Ainda que não tenhamos dados suficientes para o momento, levantamos a hipótese de que o informante 2, ao interagir com seu ambiente cultural e perceber os diferentes usos do objeto catraia, o que é transportado, quando e como, tenha uma percepção que está para além do uso propriamente dito.

132

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

Para uma última análise, trazemos o enunciado do informante 3. (3) “A palavra catraia, bom, como não sou de Macapá e tô trabalhando aqui no Laranjal do Jari, (...) significa apenas um meio de transporte, segundo alguns colegas meus nordestinos né, catraia é aquela moça que se prostitui por dinheiro.” (Informante 3) Podemos perceber que, para o informante 3, a questão espacial é muito forte no processo de significação do item lexical catraia. Todo o processo de significação se dá em torno do dêitico aqui. De acordo com o informante 3, ele não é de Macapá e está trabalhando em Laranjal do Jari. Ainda que não tenhamos abordado a prosódia em nossa análise, aqui ela nos parece ser importante. Vemos que o informante 3 hesita após o início da descrição de catraia, valendo-se da expressão bom e, em seguida, se justifica, antes de significar o objeto, dizendo que não é de Macapá e só está trabalhando em Laranjal do Jari. Em seguida, o informante 3 significa o item lexical como meio de transporte. Podemos ainda pressupor que a comunidade de Laranjal do Jari não significa catraia como prostituta, mas somente como meio de transporte. Isso porque o informante, ao usar o advérbio apenas, restringe o So de catraia como meio de transporte e, justificando-se antes que está trabalhando em Laranjal do Jari, valendo-se do dêitico aqui, sugere que a comunidade também significa catraia como meio de transporte.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

133

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

Em seguida, o informante 3 aponta para sujeitos que não são laranjalenses e reconhece que catraia tem outra significação, porém não faz uso do So prostituta, porque a comunidade na qual está também não faz uso, uma vez que no enunciado do informante 3 o So catraia é apenas uma menção. O informante se apropria do léxico catraia conforme a comunidade faz uso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Procuramos explorar nos enunciados dos informantes pistas que pudessem contribuir no processo de significação do item lexical catraia. Assim, evitamos delimitar um quadro teórico específico para a análise dos dados. Certamente, muitos pontos que o leitor considerou importantes não foram explorados. Sabemos, também, que o corpus para análise se apresentou muito pequeno, e, ainda que nossa intenção não fosse abordar diferentes itens lexicais, reconhecemos a importância de um estudo mais amplo, principalmente no que se refere à questão da espacialização que, por ora, merece uma análise mais detalhada. Os dados aqui analisados sobre o item lexical catraia e outros itens que nos pareceram pertinentes para o processo de significação foram explorados na análise como uma forma de compreender novas discussões que surgem no cenário dos estudos da Semântica. Vimos que o processo de significação envolve não somente os diferentes significados atribuídos pelos sujeitos aos itens lexicais, mas também um processo de significação que perpassa pelos sentidos, pela experienciação dos sujeitos com o mundo. 134

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

O processo de significação do item lexical catraia: do significado à experienciação linguística

Referências • MARI, Hugo. Categorização. In: MARTINS, R. P. & MARI, H. Universos do conhecimento. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002, p. 67-90. • –––––––––––. Espacialização Semântica. Revista Estudos Linguísticos, Belo Horizonte. v. 20, n. 2, p . 241-267, jul/dez. 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 de julho de 2014. • RAPOSO, Kariny C. S. A composicionalidade do significado: entre enunciado, enunciação e experienciação linguística. 2011. 213f. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras. Belo Horizonte.

ANEXO I – Depoimentos dos informantes sobre o significado de catraia. Informante 1: Meu nome é M. e a palavra catraia pra mim significa é só um meio de transporte que não serve só como um meio de transporte mas também é pra levar pra banho essas coisas.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

135

José Enildo Elias Bezerra • Shirlei L.C.S. Pereira • Rejane Aparecida da Silva

Informante 2: A palavra catraia pra mim não significa apenas um meio de transporte, mas sim uma identidade cultural que o povo laranjalense é trouxe pra si como é deixa eu ver como se fosse o bode do nordeste que coisas assim do tipo virou uma identidade. Informante 3: A palavra catraia bom como não sou de Macapá e tô trabalhando aqui no Laranjal do Jari pra mim significa apenas um meio de transporte, segundo alguns colegas meus nordestinos né catraia é aquela moça que se prostitui por dinheiro.

136

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 121-136, out. 2014

AFETO E PRÁTICA EXPLORATÓRIA: BRINCANDO COM OS PAPÉIS FAMILIARES DENTRO DE SALA DE AULA Ruan Nunes Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro Cultura Inglesa Colégio pH Especialista em Língua Inglesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-Rio Mestrando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ contato: [email protected]

Resumo: O presente artigo tem como objetivo: a) tratar sobre o papel central que o afeto desempenha dentro de uma sala de aula de Inglês como Língua Estrangeira (EFL, English as a Foreign Language) e b) tratar do uso do afeto e da Prática Exploratória (EP) para melhorar a qualidade de vida em sala de aula. Para exemplificar a inextricável ligação entre os dois, focaremos uma atividade realizada com um grupo de estudantes no nível avançado. Para ilustrar o ponto principal sobre qualidade de vida em sala de aula, os resultados da atividade na qual os alunos deveriam escolher quem seria cada pessoa em uma família oferecem interessantes conclusões sobre quais papéis os alunos desempenham em sala de aula. Palavras-chave: prática exploratória; afeto; EFL.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014     137

Ruan Nunes

Abstract: This article deals primarily with a) how affect plays a central in an EFL classroom (Arnold, 1999) and b) how to use affect and Exploratory Practice (EP) to improve the quality of classroom life (Allwright, 2009). To exemplify how both are inextricably intertwined, we will focus on our own experience with a group of advanced learners. To illustrate the main point about quality of classroom life, results from an activity in which learners had to choose who each person in a family would be provide interesting insights into the roles students play in the classroom. KEYWORDS: Exploratory Practice; Affect; EFL Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo a) tratar del papel central que afecto tiene en las clases de inglés como lengua extranjera (EFL) y b) discurrir sobre el uso del afecto y de la Práctica Exploratoria (EP) para mejorar la calidad de vida en el salón de clase. Para ejemplificar el vínculo indisoluble que existe entre los dos, nos centraremos en nuestra experiencia con un grupo de estudiantes en el nivel avanzado. Para ilustrar el punto principal sobre la calidad de la vida en el salón de clase, los resultados de una actividad en que los alumnos deberian elegir quién sería cada persona en una familia generan interesantes conclusiones acerca de los papeles que los estudiantes desempeñan en el aula. PALABRAS CLAVE: práctica exploratoria; afecto; EFL.

138

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

INTRODUÇÃO Ensinar adolescentes nunca foi uma tarefa fácil. Podemos dizer que ensinar, em si, é uma tarefa difícil e, apesar de já estarmos no século XXI, o ensino e a aprendizagem ainda parecem ter um longo caminho pela frente. O mesmo se aplica ao trabalho com adolescentes, faixa etária que o presente trabalho foca. Trabalhei com um grupo de 18 alunos em 2012, no qual o mais jovem tinha 14 anos e o mais velho tinha 18. Não só seus interesses eram diversos, como também suas personalidades diferiam assustadoramente. Enquanto alguns deles eram reservados a ponto de me dizerem que não gostariam de participar de diversas atividades, outros eram mais abertos e preferiam participar em todos os momentos, estando sempre “sob os holofotes” da sala. As aulas de Inglês aconteciam semanalmente, às terças e quintas, e todos os alunos estudavam pela manhã na escola. Todos os estudantes eram de classe média/alta e tinham acesso a diversas opções culturais às quais os adolescentes brasileiros, em geral, não têm. Alguns dos pais eram divorciados, porém, todos viviam perto para manter contato; logo, podemos assumir que eles tinham familiares com quem podiam contar. Além disso, todos vinham de escolas de alto padrão, nas quais também tinham aulas de Inglês, e uma aluna já estava no primeiro período da graduação na PUC-Rio. Muitos deles já haviam visitado outros países, sendo que dois já tinham viajado sozinhos por um mês, na Europa. Definitivamente, esse grupo seria uma ótima oportunidade para iniciar carreira em uma nova instituição, que era o meu caso. Infelizmente, nada era tão bom como parecia: apesar de todas as vantagens mencionadas acima, a turma era difícil e complicada de diversas formas. Uma pergunta surgiu durante nossa primeira semana juntos: por que eles não achavam interessante ou agradável estudar Inglês? InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

139

Ruan Nunes

Como novo docente na instituição, eu não sabia muito sobre o grupo. Entretanto, duas semanas depois do início, diversos professores se aproximaram para contar detalhes sobre o grupo. Destes, ouvi diversas frases sobre a falta de interesse dos alunos, o comportamento ruim, o uso de português dentro de sala, apesar do nível avançado da turma, e outros comentários negativos. Por razões óbvias, esses alunos já tinham sido marcados por outros docentes como um grupo “muito ruim de se trabalhar”. Inicialmente, não apenas eram os alunos tudo o que os professores diziam nos comentários que ouvi, mas também eram extremamente desrespeitosos e desinteressados. Eles nem mesmo falavam entre si, o que tornava o trabalho em pares e em grupos uma tarefa quase hercúlea, tamanha a dificuldade. Quando eles decidiam falar, utilizavam o tempo para insultar e ofender na língua materna. Além disso, eles reclamavam sobre quão entediados estavam em sala. Como qualquer outro educador pode imaginar, esse desafio se tornou mais exaustivo do que deveria. Inicialmente, eu me senti perdido e não sabia o que fazer. Filmes e livros romantizam histórias envolvendo alunos e professores e eu pensei quão motivados esses docentes se tornam assim que superam não somente os obstáculos, mas também seus problemas e medos. Entretanto, tendo começado recentemente em uma nova empresa e não tendo sido treinado para lidar com esse tipo de situação, tive receio de “perder o respeito” perante meus alunos. Diversas questões povoaram meus pensamentos: seria eu capaz de lidar com todas essas questões? Como os alunos me viam ali na sala? Eles me viam como um amigo ou um inimigo? O que poderia ser feito para melhorar nosso ambiente? Será que eles entendem qual papel todos nós desempenhamos dentro de sala de aula? 140

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

Para conseguir lidar com as adversidades, decidi, inicialmente, trabalhar o senso de comunidade/integração (sense of community) da turma, pois não conseguiria realizar nada sem a ajuda dos alunos. O afeto era um fator-chave que eu precisava trabalhar para atingir qualquer objetivo. Depois disso, assim que existisse algum senso de integração na turma, eu poderia pensar e desenvolver atividades que me ajudariam a pensar mais sobre meus questionamentos iniciais. Na próxima parte do trabalho, focarei a questão do afeto em relação com a aprendizagem e logo depois tratarei da atividade desenvolvida com a turma supramencionada sob os princípios da Prática Exploratória, além de tocar superficialmente em alguns resultados.

1. O CASO DO AFETO E DA APRENDIZAGEM Aprender uma língua estrangeira apresenta desafios e demanda dedicação do aluno também. É comum pensarmos sobre o sucesso dos aprendizes enquanto estudantes de uma língua estrangeira. Gardner (2011) sugeriu que existem diversas inteligências e destacou o fato de que alguns alunos apresentam mais características de uma que de outras. Para ilustrar esse ponto, podemos sugerir que um aluno com habilidades linguísticas (termo utilizado por Gardner em sua teoria das múltiplas inteligências) pode achar mais fácil aprender através de leitura e de escrita, enquanto um aluno cujas maiores habilidades estão no campo da inteligência lógico-matemática pode não sentir a mesma facilidade. Logo, é mais que natural que todos nós tenhamos mais facilidade com certos tópicos e assuntos, o que não quer dizer que sejamos incapazes de aprender outros. Tal compreensão deveria facilitar e auxiliar o docente em seu trabalho, porém, com tantos currículos, objetivos e metas, nem sempre tal atenção é dada ao tópico. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

141

Ruan Nunes

Sempre que um novo semestre se inicia, dúvidas e perguntas parecem desabrochar nas salas de aula. Professores constantemente se perguntam o que eles devem e podem fazer para ensinar esses diferentes alunos e, talvez o mais importante, como não se sentirem assoberbados pelas demandas institucionais. Apesar dos diversos problemas e ranços que não serão discutidos aqui, gostaríamos de chamar atenção para a ligação entre a aprendizagem e o afeto. Essa conexão, que muito tem sido discutida em diversos artigos e estudos, vai ajudar e guiar o presente estudo. No que tange à aprendizagem de uma língua, sabemos que o afeto desempenha um papel fundamental, uma vez que pode tornar a experiência mais memorável e significativa. Como “a reação dos alunos para com outra língua ou cultura pode ser decisiva para o processo de aprendizagem” (KUMARAVADIVELU, 2008), os alunos devem entender quais estratégias podem ajudá-los a se tornar não só melhores falantes da língua, mas também mais experientes e competentes. Consequentemente, entender e dominar as regras de uma língua não é suficiente para tornar um aprendiz mais fluente. Um estudante pode saber todas as regras esperadas, porém, quando precisa interagir e não consegue estabelecer a comunicação, o mesmo se frustra ao não conseguir se fazer compreendido. Professores, constantemente, se perguntam o que fazer quando os alunos receiam se expor diante de seus colegas, especialmente quando eles não se sentem à vontade estando “sob os holofotes”. Ao tratar sobre o afeto, Kuschnir (2003) diz que: Diversos autores têm analisado os componentes afetivos da sala de aula, relacionando-os com a criação de uma aprendizagem mais significativa e verdadeira. Ao reconhecer os participantes do evento aula como agentes sociais que carregam para o ambiente 142

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

pedagógico experiências da vida e afetividades particulares, educadores e demais envolvidos na prática pedagógica acabam por ajudar a tornar o contexto da sala de aula mais concreto e real. (2003, p. 50)

Kuschnir (2003) diz que os alunos devem ser vistos como participantes ativos dentro da sala de aula para que eles possam se sentir ouvidos e vistos. Uma vez que se tornam participantes ativos, eles são capazes de trazer para a escola suas próprias experiências, transformando, assim, a sala em um ambiente mais concreto e real. Quando esse processo de troca de experiências assume um lugar central na sala, os professores abrem as portas para o afeto. Arnold & Brown (1999) vão além, ao dizerem que “o termo afeto tem a ver com aspectos do nosso ser emocional. Deveria ser notado que o lado afetivo da aprendizagem não é oposto ao lado cognitivo” (1999, p. 1). Arnold & Brown (1999) também demandam que um currículo centrado no aluno deveria privilegiar afeto em diferentes maneiras. Os participantes deveriam ser ativos nesse processo de tomar decisões, pois ele “oferece grandes possibilidades para os aprendizes desenvolverem seu potencial” (1999, p. 6-7). Uma vez que espaço é dado aos alunos, eles podem mostrar aos educadores, por exemplo, que o que está sendo feito não os leva a lugar algum e que há espaço para melhoras. A maneira encontrada pelos meus alunos para me mostrar que precisávamos mudar algo poderia ser interpretada como falta de interesse ou comportamento inadequado, porém, isso também me mostrou que precisávamos assumir certos riscos. Assumir riscos significava tentar trabalhar com o grupo e estabelecer um relacionamento (rapport) através de algumas atividades centradas no aluno, nas quais teríamos a chance de ouvir deles o que eles queriam. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

143

Ruan Nunes

Para oferecer essas atividades centradas no aprendiz, eu decidi oferecer aos alunos a oportunidade de trazer suas próprias ideias para a sala de aula ao final de cada aula durante um mês. Eles sugeriam vídeos, tópicos e canções e eu propus que falássemos sobre as escolhas, caso contrário, seria um processo sem sentido. Eu, então, levantava algumas questões sobre o porquê das escolhas, sobre o que poderia ser extraído desses momentos de troca etc. Meu objetivo principal, nesse momento, era estimular fatores emocionais para “facilitar o processo de aprendizagem da língua” (ARNOLD, 1999, p.2). Fatores emocionais positivos como autoestima, solidariedade e motivação podem fazer a diferença na sala de aula e, para criar o supracitado sentimento de comunidade (sense of community), os alunos precisavam se ver de uma maneira diferente. Resumindo, ao focar estabelecer relacionamento (rapport) com os alunos, não apenas foi o afeto trabalhado, mas os alunos também tentaram buscar alguma paixão para poder compartilhar suas ideias e opiniões. Finalmente, quando a hora para a atividade guiada pelos princípios da Prática Exploratória chegou, os alunos já estavam acostumados a falar mais que antes e o caminho para alguma melhora já havia sido, de certa forma, pavimentado. 2. PRÁTICA EXPLORATÓRIA: ATIVIDADE E RESULTADOS Como parte do programa de especialização em Língua Inglesa da PUC-Rio, fui aluno do módulo Prática Exploratória, no qual os alunos deveriam pensar sobre a ligação entre seus puzzles e uma pesquisa, isto é, estudar e (re)pensar suas questões, a fim de criar um projeto de pesquisa. A maioria dessas questões, chamadas de puzzles no contexto da Prática 144

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

Exploratória, envolvia os alunos, dado que a maioria dos integrantes da turma era composta de docentes. Por razões então óbvias para mim, minha questão inicial não poderia ser nada além daquele grupo de alunos com o qual eu ainda seguia tentando entender e trabalhar. No entanto, inicialmente, pesquisa e sala de aula me pareciam ambientes diferentes e não haveria espaço para o primeiro no segundo. A maioria dos professores tem calendários e prazos a cumprir. Caso não consigam cobrir alguns tópicos antes das provas, seus alunos podem não ser bem-sucedidos nas padronizadas avaliações e diversos problemas podem surgir. Essa camisa de força, certamente, representa um grande desafio, já que não há tempo para realizar pesquisa em sala de aula. Realizar uma pesquisa era muito mais uma ideia distante que um plano, uma vez que tentar realizá-la significaria ter trabalho extra e, talvez, utilizar precioso tempo de sala de aula. Além disso, existia minha preocupação em realizar algo que meus alunos pudessem não apreciar e desmontar todo o trabalho que estava sendo desenvolvido até então. Nesse momento, entra a Prática Exploratória (doravante PE) como uma nova forma de realizar pesquisa. Pesquisadores associados à PE trabalham para entender o que acontece dentro de sala de aula, “não necessariamente para trazer mudança” e “usando práticas pedagógicas regulares como práticas investigativas, para que o trabalho de compreensão seja parte da aula e não extra” (ALLWRIGHT, 2009, p. 166-167). Logo, realizar pesquisa em sala de aula não mais significa um questionário e perguntas de múltipla escolha. Tudo o que o docente precisa fazer é encontrar uma maneira de trabalhar com a sua questão (puzzle) enquanto segue com a aula, ou seja, tornando a InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

145

Ruan Nunes

atividade regular em uma ferramenta de investigação. Assim, a PE procura oferecer não uma solução, mas sim uma reflexão acerca das questões, de forma que o professor não precise estar fora de sala para realizar pesquisa. Como a PE “inicia com uma intenção de tentar entender em vez de tentar mudar” (ALLWRIGHT, 2009, p. 173), eu decidi utilizar uma oportunidade para realizar uma atividade que lançaria luz sobre meus questionamentos iniciais sobre como meus alunos se compreendiam dentro de sala de aula. Ainda de acordo com a PE, “pensar” juntamente a “fazer” é a chave para o entendimento. Eu já tinha pensado, então, era hora de fazer. Depois de seis meses, meus alunos estavam finalmente trabalhando juntos, em pares ou em grupos. Ainda existiam alguns problemas e, em certos momentos, eles se recusavam a trabalhar com alguém do grupo, porém, em geral, uma perceptível melhora estava presente, já que eles buscavam utilizar o inglês como seu meio de comunicação. Depois dessa notável melhora no ambiente, era hora de ir além com a atividade que poderia me auxiliar a pensar os questionamentos que geraram o estudo. Como a seguinte unidade do livro trabalharia com vocabulário sobre família, tentar fazer os alunos pensarem sobre quais papéis em uma família cada aluno desempenharia talvez descrevesse o papel deles em sala de aula. Como meu objetivo era analisar e comparar as escolhas lexicais e as justificativas de cada grupo, a atividade focaria principalmente esses aspectos. Antes da leitura de um texto, pedi que eles debatessem por um tempo a seguinte pergunta: Se esse grupo fosse uma família, quem seria quem?) (No original, If this group were a family, who would be who?) 146

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

Abaixo, seguem as tabelas com as ideias oferecidas pelos alunos durante a atividade. PAI

MÃE

- dá ordens. - tem que guiar.

IRMÃ/FILHA - nunca está em casa. - nunca está em sala. - não fala.

IRMÃO/FILHO

- tenta ajudar. - é brincalhão. - é séria. - é rebelde. - pede atenção. - não frequenta a aula. - é uma maçã podre. - é imaturo. - é jovem.

CACHORRO

AVÔ

- é preguiçoso. - é mais velho. - não gosta de - é mais responsável. fazer nada.

Tabela 1.1 – Descrição dos papéis

RE Professor G1 BR

GRUPO 1 Pai Mãe Filho -

GRUPO 2 Avô -

GRUPO 3 Pai Pai Cachorro

BE

-

Tio / Pai

-

G2 CA PR HU CL

-

Filho -

Filho Mãe -

GRUPO 4 Filho mais velho / Irmão Filho Mãe Pai Irmã / Filha

Tabela 1.2 – Papéis dos alunos e professor

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

147

Ruan Nunes

Infelizmente, por não ter criado expectativas em relação às escolhas lexicais dos alunos, uma oportunidade de investigar mais profundamente a produção deles comparada com as minhas previsões não pôde ser desenvolvida. Entretanto, isso não significa que devemos considerar as ideias recolhidas como fatos menores. Na realidade, é interessante notarmos como as visões dos alunos sobre eles mesmos estavam influenciadas pela compreensão de como funciona uma família e, chocante como pode parecer, a maioria dos alunos parecia ter a mesma visão e a mesma opinião enquanto escolhiam e justificavam os papéis de cada aluno na família que o grupo seria. Se não eram parecidas as ideias, ao menos as descrições e as linhas de raciocínio pareciam seguir o mesmo caminho. 3. ANALISANDO PAPÉIS: COMO OS ALUNOS SE VEEM? Conforme mencionado anteriormente, os grupos compartilhavam, na sua maioria, as mesmas ideias sobre quem desempenharia cada papel. Apesar desses não serem os mesmos em cada família, as descrições e escolhas lexicais rendem espaço para uma discussão sobre como os alunos se compreendiam naquele espaço e, consequentemente, como eles compreendiam seus colegas de sala. É interessante notar como três grupos mencionaram que G2, um garoto de 18 anos, era o filho. Ele foi descrito não só como imaturo e jovem, mas também como um rebelde e uma maçã podre por ele mesmo. Por mais perigosas que essas definições fossem, ele pareceu concordar com todas. Ele era, definitivamente, o aluno mais motivado em termos de participação, porém, ao mesmo tempo, sua atitude atrapalhava os colegas em momentos de concentração e durante a aula. É também válido chamar a atenção para o fato de que HE era o que os professores da instituição denominavam “um aluno muito fraco”. Ele sempre evitava participar de qualquer atividade na qual devesse assumir 148

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

uma posição de destaque e ser mais ativo. Entretanto, durante a atividade descrita no presente trabalho, HE foi o primeiro do seu grupo a expressar sua opinião e a dividir suas ideias. Definitivamente, tal comportamento era inesperado e um passo adiante, em especial quando percebemos que ele era descrito como um aluno desinteressado. Sua repentina participação não foi uma surpresa apenas para mim, mas também para seus colegas. Talvez a razão da mesma seja o desejo de falar sobre coisas que o incomodavam em seus colegas de classe de uma maneira leve, mas que transparecesse sua insatisfação de alguma forma. Os alunos ainda tiveram a chance de tratar abertamente sobre uma aluna que sempre estava ausente e que, quando em sala, não participava das atividades propostas. No início, CL não pareceu satisfeita ao ouvir que ela era a “filha não pródiga” por suas atitudes irracionais. Por se tratar de uma família imaginária, logo depois CL decidiu não levar a sério as ideias de seus colegas, porém, mais tarde, ela admitiu que deveria mudar sua atitude em sala – o que ela cumpriu parcialmente nas aulas seguintes. Outro aluno que surpreendeu seus colegas em sala foi aquele descrito como o cachorro da família, o que, certamente, atraiu a atenção da turma. Minha primeira ideia sobre cães era quão leais os mesmos são, porém, BR não era exatamente o que muitos docentes descreveriam como um aluno dedicado e “leal” aos estudos. Talvez ele realmente soubesse que era “preguiçoso” e “um cachorro não tão bom” (lazy e not a good dog, nas palavras do próprio aluno), porém, havia mais do que nossos olhos podiam ver: ele já havia começado a mudar sua atitude e tentava utilizar inglês sempre que se comunicava. Acredito que, depois de ouvir tantos e diversos professores dizerem que era um aluno ruim, BR realmente acreditava que não poderia fazer muito para melhorar. Outras duas alunas (PR e CA) foram escolhidas como mães, cada uma de um grupo. Enquanto a primeira foi descrita como uma mãe que InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

149

Ruan Nunes

pede que seus “filhos” prestem atenção, a segunda foi descrita como séria e responsável. As duas alunas eram excelentes e pareciam compartilhar da mesma opinião que seus colegas. Apesar de não ser uma surpresa, é importante notar que seus colegas não se referiram a elas com termos pejorativos, mas sim com um olhar de admiração e respeito, mesmo enquanto o tom era de brincadeira. 4. ANALISANDO PAPÉIS: COMO MEUS ALUNOS ME VIAM? Ao me descreverem, os grupos escolheram papéis inusitados como uma mãe e seguros como um pai e um avô. Discentes mencionaram que, como pai, era minha função dar ordens e guiá-los. Curiosamente, eles costumavam dizer que eles deveriam ter a chance de escolher os tópicos, porém, mesmo assim eles entendiam que era meu o papel de guiá-los e auxiliá-los. Também é interessante perceber que um grupo me escolheu como o pai, porém, por erro consciente ou não, escolheram outro aluno para sê-lo. Outro grupo me descreveu como a mãe e esse papel parece com o mencionado acima. A justificativa era que mães tentam ajudar seus filhos nas tarefas escolares e “coisas do tipo” (things like that, nos dados). Em geral, as pessoas tendem a pensar na figura da mãe como mais carinhosa e afetiva que a do pai, e eu questiono até que ponto isso foi considerado pelos alunos em sua escolha. O último grupo a me incluir na família decidiu que eu seria o avô. Notemos que eles optaram pela forma grandpa e não grandfather. Os alunos justificaram que eu seria o avô por ser mais velho e porque eu deveria ser respeitado. Tal afirmação me fez questionar se eles sempre pensaram em mim como alguém mais velho que precisava ser respeitado ou se isso era algo que tinha sido construído aos poucos, especialmente quando comparamos o início e o final do ano. 150

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

Afeto e Prática Exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula

CONCLUSÃO Esse artigo abordou primariamente: a) como o afeto tem um papel central em sala de aula e b) como a união da Prática Exploratória e do afeto foi utilizada para melhorar a qualidade da vida em sala de aula, não necessariamente mudar ou transformar, mas sim buscar entender o que acontecia. Como um professor “novo na casa” e um aprendiz extremamente curioso, meus questionamentos iniciais tematizavam a falta de interesse e a crescente desmotivação de meus alunos. Essas perguntas me levaram a iniciar minha própria pesquisa para investigar como meus alunos entendiam nossos (meu e deles) papéis dentro de sala de aula. Com a ajuda da Prática Exploratória, tive a oportunidade de desenvolver uma atividade cujo resultado gerou interessantes e importantes insights sobre a vida da minha sala de aula. No final do estudo, percebi que meus alunos sabiam exatamente o que eu pensava deles e que eles também estavam conscientes de tudo o que acontecia em sala de aula. É importante sinalizar que as mudanças já estavam ocorrendo de maneira gradativa e que não houve uma transformação da noite para o dia, porém, pouco a pouco, a relação dos alunos foi mudando e se adaptando ao “novo mundo” que eu propunha de vez em quando. Exemplos pequenos que ilustram essa mudança é a atitude da aluna CL que sempre chegava atrasada e mostrava seu desinteresse abertamente – depois da atividade, ela passou a se atrasar menos e tentou ser mais sociável durante as aulas. Outro aluno, G2, buscou tentar ouvir mais seus colegas e ser menos grosseiro em suas interrupções – coisas que o caracterizaram anteriormente como o filho. Logo, podemos concluir que a pesquisa deixou alguns frutos para futuros desdobramentos, afinal, depois de um ano, eu não mais trabalhei com a turma. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

151

Ruan Nunes

Esse estudo é um recorte de uma pesquisa maior que também tocou na questão de crenças na aprendizagem de uma segunda língua, porém, pela falta de espaço, o assunto foi deixado de lado para focar a pesquisa em si. Não é necessário reiterar que o tom extremamente pessoal do trabalho advém da proximidade do pesquisador com o objeto de pesquisa. Como funcionário de cursos livres e escolas, eu sempre me pergunto se novos docentes recebem o treinamento apropriado e como eles lidam com situações parecidas com a relatada nesse trabalho. Apesar de minha curiosidade e opção por ir além, nem sempre todos os educadores pensam da mesma maneira e decidem fazer o mesmo. Certamente, esse tipo de situação deveria ser trabalhado em cursos e treinamentos de professores para que eles possam ter a chance de ouvir e saber lidar com as mais diversas barreiras para melhorar a qualidade da vida em sala de aula. Afinal, tempos difíceis vêm e vão, tudo é uma questão de perspectiva, Referências • ALLWRIGHT, D. & HANKS, J. The developing language learner: an introduction to Exploratory Practice. Londres: Palgrave Macmillan, 2009. • ARNOLD, Jane; BROWN, D. H.. Affect in language learning. Cambridge: CUP, 1999. • GARDNER, Howard. Frames of mind: the Theory of Multiple Intelligences. Nova York: Basic Books, 2011. • KUMARAVADIVELU, B. Understanding language teaching: from method to postmethod. Nova York: Routledge, 2008. • KUSCHNIR, Adriana. O afeto e a socioconstrução do conhecimento na sala de aula e língua estrangeira. Cadernos IPEL, 2 (1), p. 47-60, 2003. 152

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 137-152, out. 2014

AVALIAÇÃO FORMATIVA: POR QUE NÃO ENSINAR A ESCREVER APENAS PELO ERRO? Heloana Cardoso Retondar Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ Mestre em Língua Portuguesa pela UERJ contato: [email protected]

Resumo: É comum, ao corrigir textos escritos pelos alunos, professores marcarem os erros e descontarem pontos por eles. Com essa atitude, o aluno pode observar o que não deve fazer, mas não é ensinado sobre suas qualidades como escritor. O objetivo deste artigo é demonstrar como utilizar o reforço positivo para a construção da identidade do aluno, o que pode melhorar os resultados no ensino da escrita. Os dados discutidos são parte de um estudo mais abrangente sobre a avaliação textual nas aulas de língua portuguesa. Quando o professor opta estrategicamente por elogiar qualidades do texto, ele ganha mais confiança da turma e suas interferências são mais respeitosas e significativas e, por outro lado, os alunos também melhoram como produtores de texto. Palavras-chave: avaliação de textos; técnicas de correção; elogio. Abstract: It is common for teachers to highlight mistakes and take points off because of them while correcting texts written by students. With this attitude, students can just observe what not to do, but they are not taught about their qualities as writers. The purpose of this article is to demonstrate how to use positive reinforcement to build students’ identity, which may improve the results regarding the teaching of writing.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014     153

Heloana Cardoso Retondar

The data discussed is part of a broader study about text assessment in Portuguese language classes. When teachers strategically decide to praise the qualities of the texts, they gain more confidence from their groups and their interferences are more respectful and meaningful. Students, on the other hand, also improve as text producers. KEYWORDS: texts assessment; correction techniques; praise. Resumen: Es común para corregir los textos escritos por los alumnos, los maestros señalan errores y deducir puntos para ellos. Con esta actitud, el estudiante puede observar sólo lo que no se debe hacer, pero no se enseña acerca de sus cualidades como escritor. El propósito de este artículo es demostrar cómo utilizar el refuerzo positivo para la construcción de la identidad de los estudiantes, lo que puede lograr mejores resultados en la enseñanza de la escritura. Los resultados discutidos son parte de un estudio más amplio sobre el texto de evaluación en las clases de lengua portuguesa. Cuando el profesor opta estratégicamente cualidades elogio del texto, gana más confianza en la clase y su interferencia es más respetuosa y significativa, por otro lado, los estudiantes también mejoran como productores de texto. PALABRAS CLAVE: evaluación de los textos; las técnicas de corrección; elogio.

154

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro?

INTRODUÇÃO Ao corrigir uma produção escrita, o professor pode tomar diferentes caminhos e sempre deixará alguma marca semiótica na folha, seja porque deixou um visto, uma alteração, um bilhete ou uma indicação, seja por meio da nota ou mesmo não tendo feito nenhuma marcação. Cada uma dessas atitudes é recebida pelos alunos de maneira simbólica, emanando a maneira como o professor concebe o aluno a partir do modo como escreve. Tais marcas constituem, portanto, representações do professor sobre a língua, a linguagem, o texto escrito e também sobre o escritor daquele texto. Este artigo tem por objetivo discutir como fazer interferências positivas que constituam uma ação didática no ensino da escrita dentro da perspectiva formativa de avaliar. O reforço positivo é importante na construção da identidade do aluno e, conforme resultados da minha pesquisa em nível de mestrado,1 traz melhores resultados no processo ensino-aprendizagem. Para chegar a esses resultados, foi feita uma pesquisa com professores-informantes que lecionam no segundo segmento do ensino fundamental das redes pública e particular da cidade do Rio de Janeiro. Eles corrigiram textos escritos por seus alunos e disponibilizaram para a análise. Além disso, participaram de uma entrevista semiestruturada. Por meio desses instrumentos, foi possível observar, qualitativamente, que a prática de correção de textos ainda não é amplamente compreendida como instrumento didático. O que vai de encontro às diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa, que preconizam a avaliação formativa (LUCKESI, 2011).

1 A dissertação “Avaliação de textos produzidos na aula de língua portuguesa: abordagens teóricas, questões didático-metodológicas e suas repercussões” foi apresentada em março de 2013 no Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ e encontra-se disponível para consulta na biblioteca do Instituto de Letras da instituição, bem como na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), no site .

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

155

Heloana Cardoso Retondar

Conforme Ferreira e Leal (2007), na avaliação formativa, a preocupação é regular e a prática pedagógica é adaptada à necessidade dos alunos, por isso é concebida mais como pesquisa e menos como medida. Diferentemente da avaliação classificatória, a formativa avalia não só o aluno (sua experiência histórica e sua experiência coletiva), mas também o professor, o processo, as práticas enunciativas, a mediação, a escola e a família. Dentre as mensagens simbólicas emanadas das marcas semióticas observadas no corpus da pesquisa, um dado singular apareceu: a prática do elogio. Para este estudo, optou-se por abordar tal singularidade. Calkins, Hartman e White (2008), quando falam sobre a arquitetura da interação, descrevem o papel do elogio não só por uma questão de estima do aluno, mas também como estratégia didática. Quando o professor conhece bem as dificuldades do aluno, quando opta por fazer da correção um instrumento didático de ensino da escrita, pode utilizar um acerto mínimo, como, por exemplo, o uso de pontuação correta, para dizer que aquela vírgula foi uma boa escolha, deixando claro que a aprendizagem está em processo. Segundo as autoras, indicar o caminho da solução por pequenos acertos é mais motivador do que reforçar o erro. Para Calkins, Hartman e White (2008), a primeira decisão, antes de uma intervenção significativa, deve ser pensar “O que esse aluno fez que eu possa elogiar, e portanto, reforçar?” (p. 77). As autoras desenvolveram, em suas oficinas da escrita, a técnica do elogio, apresentando cinco variações: “contraste”, “generalize”, “focalize o processo”, “focalize a identidade da escrita” e “combinação”. Por serem orientações muito específicas, nem todas foram observadas no corpus analisado, não obstante, se explica cada uma delas ao longo deste estudo como contribuição para o ensino da escrita numa perspectiva formativa. 156

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro?

TÉCNICA DE ELOGIO “CONTRASTE” O “contraste” consiste em dizer o que está bom, contrastando com algo inadequado, caso ocorra. Exemplo: “Ford, adorei a maneira pela qual você não escreveu ‘tudo sobre’ seu pai, mas, em vez disso, aproximou-se em um momento — quando ele lê pra você!” (p.77) (grifo das autoras). Essa técnica não foi observada de maneira tão pontual no corpus. No entanto, um professor fez uma interferência que consideramos a mais próxima do “contraste”. O exemplo serve de orientação para que se possam desdobrar outras interferências igualmente significativas. Nele, o professor percebe que, ao escrever uma crônica sobre o bairro onde morava, o aluno flutua entre as palavras “bairro” e “esse lugar”. No bilhete (Figura 1) que escreve ao corrigir, afirma:

Figura 1: Bilhete de um professor-informante. Técnica “contraste” focando o léxico.

Ainda que a opção do aluno não tenha sido proposital, a maneira como o professor interage pela escrita proporciona uma reflexão pontual sobre um aspecto importante do escrever: o uso adequado do léxico como recurso argumentativo. Interferências como essa podem levar o aprendiz a ficar mais atento para repetir o procedimento em outras produções. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

157

Heloana Cardoso Retondar

O fato de o professor dirigir a pergunta ao aluno o conscientiza do poder das palavras, valorizando o processo de criação. O que poderia ter sido uma simples relação entre hiperônimo e hipônimo se torna uma idiossincrasia que demonstra a força argumentativa do texto do aluno. A mudança é, de fato, pertinente, já que o aluno inicia sua crônica contestando “o meu bairro não é bem um bairro...” e, se não é um bairro, é um lugar qualquer, é “esse lugar” que chamam de bairro. A escolha do estudante foi, portanto, brilhante, ainda que menos racional ou talvez mais emotiva. A observação singular do professor ressalta esse aspecto positivo. TÉCNICA “GENERALIZE” Elogiar algo específico de tal maneira que se torne aplicável a outras situações corresponde à técnica “generalize”. Essa técnica pode ser visualizada nos bilhetes a seguir, quando, ao elogiar a escrita, o professor acaba também ensinando: (i) uma característica da crônica — criticidade (Figura 2); (ii) qualidades da escrita — clareza e objetividade (Figura 3) e (iii) um constituinte do tipo textual narrativo — desfecho (Figura 4).

Figura 2: Bilhete do professor que exemplifica a técnica “generalize” sobre o gênero crônica.

Figura 3: Exemplo da técnica de elogio “generalize”, o professor ressalta qualidades da escrita.

158

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro?

Figura 4: Aqui, o professor ressalta a qualidade do desfecho, um dos constituintes das narrativas. Técnica “generalize”, ensinando sobre a construção de narrativas.

Ao lançar mão dessa técnica, o professor motiva o aluno e, ao mesmo tempo, trabalha um conteúdo específico. Dos modelos desenvolvidos pelas autoras, esse é o que se apresentou como mais comum no corpus. Entretanto, no momento das entrevistas, os professores não o apontaram como estratégia didática. O que indica que elogiar ainda não aparece como um procedimento estratégico, mas apenas como um procedimento intuitivo. TÉCNICAS: “FOCALIZE O PROCESSO”, “FOCALIZE A IDENTIDADE DA ESCRITA” E “COMBINAÇÃO” Outras duas técnicas desenvolvidas e descritas por Calkins, Hartman e White (2008) são: “focalize o processo” e “focalize a identidade da escrita”. A primeira consiste em escrever elogios que ressaltem o trabalho provável do aluno para chegar ao produto escrito, como pode ser observado na Figura 5. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

159

Heloana Cardoso Retondar

Figura 5: Exemplo da técnica “focalize o processo”, o professor identifica o processo e criação por meio da opção do aluno pela linguagem coloquial.

Nesse trecho, é possível observar tanto a técnica “focalize o processo”, quando o professor destaca a opção pelo registro informal como estratégico, quanto a presença da técnica “generalize” (apresentada anteriormente), quando o professor ressalta a escolha do tema e o humor como pontos positivos, uma vez que “estão bem afinados com o gênero crônica”. Ou seja, o professor destacou o processo de escrita, o trabalho do escritor, para escolher determinado modo de organizar a mensagem que pretendeu transmitir e também ressaltou características de composição da crônica (escolha do tema, humor). A técnica “focalize a identidade da escrita” está relacionada a elogios que buscam desenvolver a identidade do aluno como escritor, sua capacidade de escrever. A aplicação da técnica foi observada nos bilhetes (Figuras 6 e 7) de um professor investigado. Ele consegue, por meio de suas palavras, ressaltar a qualidade da escrita do aluno. 160

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro?

Figura 6: Exemplo da técnica de elogio “focalize a identidade da escrita”.

Figura 7: Exemplo da técnica de elogio “focalize a identidade da escrita”.

A última técnica é a chamada “combinação”. Ocorre quando mais de uma técnica é utilizada, destacado de maneira mais pontual na Figura 5. Essa técnica foi observada em todos os exemplos citados anteriormente; além do trecho comentado e reproduzido, cada um deles focava também outro ponto. Segundo Bronckart (2007), é por meio das avaliações sociodiscursivas da atividade que as ações são delimitadas e os textos produzidos pelos seres humanos são singulares. Depois, é pela apropriação e interiorização das propriedades sociossemióticas resultantes das avaliações que as pessoas se (re)constroem capazes de agir e de representar contextos. Fazendo uma transposição dessa compreensão ampla de construção de linguagem e do sujeito para a sala de aula, será pelas avaliações sociodiscursivas (incluindo os movimentos avaliativos do professor como um todo) que a atividade de linguagem se delimitará e a produção escrita se dará. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

161

Heloana Cardoso Retondar

Uma vez que o aluno interioriza as propriedades sociossemióticas resultantes desse processo avaliativo, interferências como as apontadas nos exemplos anteriores contribuem para a construção da identidade do aluno como um produtor de linguagem, como alguém que está realmente aprendendo a escrever. Por outro lado, reafirmar sempre e/ou apenas o que falta no texto pode mesmo marcar o lugar onde o aluno não está (CORACINI, 2003). Na história de escrita do sujeito, ele se acostuma a ser avaliado pelo que faltou, pelo que errou. A qualidade da produção não é ressaltada, as boas escolhas, geralmente, não são sinalizadas, a manifestação da autoria não é indicada. Espera-se o eu-autor-ideal do aluno, mas jamais se fala o que ele deve repetir ou ampliar nas demais produções. Na verdade, marca-se o lugar do que não fazer, e, por exclusão, ao longo dos anos, ele pode (ou não) chegar à conclusão sobre o que fazer. Trata-se de inversão metodológica pouco ressaltada nos estudos que versam sobre a avaliação de textos. Diante dessa perspectiva, o aluno não conclui como fazer certo; ao contrário, conclui, pelas marcas semióticas que emanam mensagens simbólicas, que não sabe escrever. Os métodos de coleta de dados escolhidos para a pesquisa não permitiram comprovar cientificamente essa informação, mas basta perguntar a pelo menos três pessoas se elas se consideram boas escritoras e ter-se-á uma resposta empírica à questão. Provavelmente, a maior parte dirá que não sabe escrever bem por motivos diversos. Para que isso não ocorra, para que os alunos não sejam levados a pensar, cada vez mais, que erram tanto porque não sabem escrever, ressalta-se o papel do elogio fundamentado no texto do aluno como uma prática didática semiótica, simbólica e significativa. 162

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro?

CONCLUSÃO Comparando as Figuras 1, 2, 3, 4 e 5, percebe-se que os elogios podem abranger diversos níveis de linguagem. Os elogios das Figuras 3 e 5 tratam de toda a constituição textual, já que ressaltam, respectivamente, as qualidades da escrita (clareza e objetividade) e a escolha do registro (linguagem coloquial); os das Figuras 2, 4 e 5 comentam aspectos da teoria dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2010), tratando de elementos ligados à relativa estabilidade dos enunciados, seja na tipologia narrativa (Figura 4), seja relacionado a características do gênero crônica (Figuras 2 e 5). Com esses exemplos, pretende-se demonstrar que a apreciação do professor pode estar em vários níveis, até mesmo no da palavra, como foi demonstrado na Figura 1, em que o professor comenta a alternância entre as palavras “bairro” e “esse lugar”. Cabe ressaltar que cada uma das técnicas demonstradas pode ser aplicada nos diferentes níveis da linguagem, não há uma específica para cada objeto de ensino. Em outras palavras, o que se preconiza é o uso estratégico das técnicas, que podem ser descritas e demonstradas, como foi feito ao longo deste artigo. Sua aplicação dependerá das muitas possibilidades e singularidades deixadas nos textos que chegam para os professores corrigirem. Correção esta que deve ser reconhecida como uma prática dialógica e formativa e, por conseguinte, como estratégia didática. Segundo Morales (2011), “[...] essas pequenas e sutis condutas, relacionadas com nosso olhar, com nosso perguntar, com nossa utilização das respostas dos alunos, com nosso elogio, com nosso não ignorar... é o que temos de observar com todos os alunos” (MORALES, 2011, p. 96-97, grifos do autor). InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

163

Heloana Cardoso Retondar

Os PCN de Língua Portuguesa sugerem que a avaliação precisa ser compreendida na perspectiva formativa, pois não é apenas um ato de medir resultados, mas constitui um conjunto de ações organizadas com a finalidade de obter informações sobre o que o aluno aprendeu, de que forma e em quais condições. Para tanto, é preciso elaborar um conjunto de procedimentos investigativos que possibilitem o ajuste e a orientação da intervenção pedagógica para tornar possível o ensino e a aprendizagem de melhor qualidade. [A avaliação] Deve funcionar, por um lado, como instrumento que possibilite ao professor analisar criticamente sua prática educativa; e, por outro, como instrumento que apresente ao aluno a possibilidade de saber sobre seus avanços, dificuldades e possibilidades. (MORALES, 2011, p. 93, grifo do autor)

Com essa postura, os PCN indicam a abrangência do ato avaliativo, que funciona, ao mesmo tempo, para o professor e para o aluno; para este, é o meio de saber das conquistas, das dificuldades, dos avanços, das possibilidades, e, para aquele, é um mecanismo de autoavaliação, um aliado no planejado, uma maneira de ajudar o outro a se (re)construir. Atua como elo entre a atitude responsiva (BAKHTIN, 2010) da prática pedagógica e o processo interacional; como demonstrado, é também constitutivo do sujeito, pois, além lhe dar a medida das ações que podem ser feitas com a linguagem, sobretudo lhe diz que é. Ao escrever, o sujeito se inscreve na justa medida das representações que construiu junto aos demais pares, e, a cada novo texto, se (re)constrói. 164

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever apenas pelo erro?

Além disso, quando o aluno percebe que está sendo lido, ouvido, avaliado e não apenas medido, quando identifica uma crítica ou um elogio sincero vindo do professor, tende a se interessar por sua escrita, se sente valorizado, avaliado, lido. Sente, pois, a importância de fazer, de refazer seu texto. Sente-se um produtor de linguagem, um escritor. Por tudo isso, é importante não ensinar apenas pelo erro.

Referências • BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In BAKHTIN, Mikhail Estética da criação verbal. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 261-306. • BRASIL. MEC/SEMTEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF. Disponível em: . • BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. 2. ed. São Paulo: Educ, 2007. • CALKINS, L; HARTMAN, A.; WHITE, Z. Crianças produtoras de texto: a arte de interagir na sala de aula. Trad. Gisele Klein. Porto Alegre: Artmed, 2008. • CORACINI, Mª José. A celebração do outro. In CORACINI, M. J. (Org.) Identidade e discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: editora da UNICAMP; Chapecó, Argos Editora Universitária, 2003, p. 197-221. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

165

Heloana Cardoso Retondar

• FERREIRA, Andrea T. B.; LEAL, Telma F. A avaliação na escola e ensino da língua portuguesa: introdução ao tema. In MARCUSCHI, Beth; SUASSUNA, Livia (Orgs.) Avaliação em língua portuguesa: contribuições para a prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 11-26. • LUCKESI, Cipriano Carlos. A avaliação da aprendizagem: componente do ato pedagógico. São Paulo: Cortez, 2011. • MORALES, Pedro. A relação professor aluno: o que é, como se faz. Trad. Gilmar Saint’Calir Ribeiro, 9. ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2011.

166

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 153-166, out. 2014

EnsinaR e aprendER: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS Bruna Morelo Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS Escola CNA Bom Fim Mestre em Linguística Aplicada pela UFRGS

Nathália Gasparini Colégio João XXIII Mestranda em Linguística Aplicada pela UFRGS contatos: [email protected] / [email protected] Resumo: O presente trabalho apresenta um projeto de ensino e aprendizagem desenvolvido no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas. Esse curso é uma ação de permanência que faz parte da política de Ações Afirmativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e conta com a participação de professores em formação dessa mesma Universidade. São apresentados aqui reflexões e resultados acerca do projeto pedagógico realizado no segundo semestre de 2012, – que culminou em uma saída de campo pensada pelos alunos –, articulando-se a descrição do trabalho pedagógico desenvolvido às concepções de educação tradicional indígena e da pedagogia de projetos. Palavras-chave: estudantes indígenas; leitura e escrita; pedagogia de projetos. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014     167

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

Abstract: This paper presents a teaching and learning project developed in the Reading and Writing course at the University for Indigenous Students. This course is a permanence action and is part of the Affirmative Actions policy adopted by the Federal University of Rio Grande do Sul, counting on the participation of trainee teachers from this same University. Both reflections and the results obtained from the pedagogical project conducted in the second half of 2012 – which culminated in a field trip designed by the students – are presented here, articulating the pedagogical work developed with the concepts behind the traditional indigenous education and the project-based pedagogy. KEYWORDS: indigenous students; reading and writing; pedagogical projects. Resumen: El presente trabajo expone un proyecto de enseñanza y aprendizaje desarrollado en el Curso de Lectura y Escritura para Estudiantes Indígenas en la Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este curso es una acción de permanencia enmarcada en las políticas de Acciones Afirmativas de esta institución y cuenta con la participación de profesores que en ella se están formando. Aquí se presentan reflexiones y resultados acerca del proyecto pedagógico realizado en el segundo semestre de 2012 —que culminó con una salida de campo planeada por los alumnos—, donde se articuló el trabajo pedagógico con las concepciones de educación tradicional indígena y de pedagogía de proyectos. PALABRAS CLAVE: estudiantes indígenas; lectura y escritura; pedagogía de proyectos.

168

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

INTRODUÇÃO O professor é um profissional que está em constante formação. Cada realidade que a ele é apresentada, cada ambiente de trabalho, cada base curricular e cada turma têm suas particularidades, o que requer um trabalho intenso de pesquisa e reflexão acerca de sua prática. Entre as oportunidades iniciais de formação estão os estágios de docência, que nos permitem, em alguns casos, um primeiro encontro com o fazer docente. Narramos aqui uma experiência de formação durante o estágio de docência em inglês em que o contato com a educação indígena e, mais especificamente, com a tarefa de trabalhar com as demandas acadêmicas e políticas dos estudantes indígenas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foram os desafios a serem cumpridos. Observar os modos de aprender e viver dos alunos e enfocar as suas necessidades são prerrogativas de um projeto pedagógico que tem como meta constituir a aprendizagem de modo que envolva todos os participantes de uma sala de aula. Foi a partir desses pressupostos que o projeto de extensão Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas (LEUI) foi desenvolvido. Esse projeto de extensão visa a suprir uma importante demanda da universidade e, ainda, vem propiciando a alguns dos estudantes do curso de Letras da UFRGS uma oportunidade muito singular de formação. O objetivo do presente trabalho1 é apresentar um dos projetos pedagógicos desenvolvidos no âmbito do curso, relacionando a nossa prática de sala de aula com a educação indígena, bem como explicitando questões em relação à nossa formação como professoras, responsáveis pela elaboração de propostas pedagógicas

1 Agradecemos à professora Dr.ª Simone Sarmento pela leitura e revisão deste trabalho.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

169

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

condizentes com os princípios que orientam o desenho do curso2 LEUI, entre eles, concepções concernentes à pedagogia de projetos. O CURSO LEUI A necessidade de saber ler em inglês foi percebida pelos estudantes indígenas da Universidade e surgiu como uma condição para poder participar de algumas atividades das disciplinas dos cursos de graduação em que os estudantes estavam matriculados, sendo assim, foi isso que, inicialmente, orientou a criação do curso3 aqui apresentado. No entanto, ao longo do

2 Princípios para a construção de desenho de curso: a) interferir a favor da política de Ações Afirmativas criando espaços com práticas que sejam pedagógicas e prestigiem as minorias étnicas e suas demandas; b) promover a reflexão dos educandos sobre suas próprias realidades; c) oferecer oportunidades para reflexão e debate a respeito de representações identitárias e negociação de identidades; d) ampliar a participação dos estudantes em universos letrados e acadêmicos; e) dar condições para que os alunos tenham confiança para ler textos que circulam em seus contextos de atuação e participar criticamente do que se faz a partir desses textos; f ) incluir diferentes demandas de leitura e escrita, encontradas nos cursos de graduação para entender essas demandas e como lidar com elas; g) dar acesso a textos orais e escritos em português e inglês, orientados pelas práticas acadêmicas desta instituição; h) criar produtos finais em diferentes línguas para projetos desenvolvidos condizentes com as demandas dos cursos de graduação dos alunos e seus objetivos políticos; i) oferecer abertura para variações na produção de gêneros (forma, modalidade, temáticas de interesse para os alunos indígenas e suas demandas comunitárias),acompanhada de discussão sobre efeitos de sentido a partir de diferentes exemplos no gênero; j) fazer trabalho pedagógico multidisciplinar, considerando aspectos de uso da linguagem e letramento das disciplinas específicas dos cursos de graduação dos estudantes indígenas; l) não se ater somente às práticas das disciplinas de graduação observadas, além delas, desenvolver atividades pedagógicas de apoio linguístico, levando em conta os letramentos dos nossos alunos; m) considerar a grande diversidade de demandas envolvendo leitura e escrita já no primeiro semestre e, assim, oportunizar maior diversidade também no curso (MORELO; DILLI, 2013a). 3 Desde 2008, a UFRGS recebe estudantes indígenas através do sistema de abertura de dez vagas anuais em dez diferentes cursos da graduação. Para isso, a UFRGS passou a estabelecer uma política de acesso e permanência para os universitários indígenas. Uma das ações da política de permanência foi a criação, no segundo semestre de 2008, do projeto de extensão Curso de Inglês para Estudantes Indígenas da UFRGS (CIEI), agora Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas (LEUI). O projeto está em sua nona edição e já contou com a presença e colaboração de seis duplas de estágio: Bruna Morelo e Camila Dilli – que participaram da criação do projeto de extensão e seguem como coordenadoras do curso –; Ana Cristina Balestro e Roberta Rocha; Aline Rosa e Natália Gasparini; Ana Paula Scholl e Sofia Robin; Joana Luz e Natália Gasparini; Luana Campara Talasca e Luana Lamberti. Para saber mais sobre a criação e o desenvolvimento dos cursos, ver: Morelo (2010); Dilli e Morelo (2011); Morelo e Dilli (2013b).

170

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

seu desenvolvimento, muitas mudanças foram feitas para adequá-lo à realidade desses estudantes. Como defendem Schlatter e Garcez (2012), o ensino de língua portuguesa e línguas adicionais deve servir para ampliar o conhecimento sobre nós próprios e sobre o mundo, uma vez que, ao conhecer a língua, a cultura e os jeitos de ser do outro, a base de reflexão é sempre a nossa própria cultura e o nosso próprio jeito de ser. Nesse curso, temos, além das individualidades que florescem em todas as salas de aula, a presença de aspectos bastante distintos que precisam ser combinados para se constituir um ambiente educacional em que todos possam se engajar: as culturas e os modos de ensinar e aprender indígena, as demandas (de linguagem, leitura e escrita) que surgem a partir das práticas sociais acadêmicas dos alunos, o saber e os modos de aprender da academia e, ainda, a prática pedagógica de professores em formação. Foi por meio do diálogo e da pedagogia de projetos4 que foi possível combinar e aproveitar todas as peculiaridades do nosso ambiente de ensino e aprendizagem. PENSANDO A EDUCAÇÃO (UNIVERSITÁRIA) INDÍGENA Para estabelecer um diálogo com a formação de professores para educação indígena e com a própria educação indígena, existem alguns entendimentos que foram e são relevantes para propormos uma reflexão séria acerca do desafio de criar, na universidade, um espaço em que possamos, continuamente, criar momentos de ensino e aprendizagem significativos para os estudantes indígenas que passam a fazer parte do cenário acadêmico. Um dos objetivos do curso é também aproveitar os saberes tradicionais desses estudantes e não deixar de lado suas raízes culturais. Essa concepção se torna sobremaneira importante para o curso e para os estudantes, uma vez que os demais espaços acadêmicos nem sempre conseguem fazer esse movimento.

4 Para saber mais sobre a pedagogia de projetos, ver BARBOSA (2004); HERNÁNDEZ (2004); ANDRIGHETTI (2006).

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

171

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

Para isso, aprendemos que a educação indígena se dá a partir da vivência em comunidade, que oportuniza momentos de encontro com novas situações diárias, nas quais os participantes se engajam. É uma pedagogia da partilha do saber fazer, em que se aprende pela demonstração e pela tentativa e erro. A diferença entre o nosso modo de “fazer educação” e o modo indígena é salientada por Maher (2006): A relação entre tempo, espaço e aprendizagem também se mostram diferentes das nossas. Entre nós, o ensino e a aprendizagem se dão em momentos e contextos muitos específicos: “Está na hora de levar meu filho para a escola para que ele possa ser alfabetizado”; “Minha filha está fazendo um curso, em uma escola de informática, das 4:00 às 5:30 da tarde”. Nas sociedades indígenas, o ensinar e o aprender são ações mescladas, incorporadas à rotina do dia a dia, ao trabalho e ao lazer e não estão restritas a nenhum espaço específico. A escola é todo o espaço físico da comunidade. (MAHER, 2006, p. 17)

Na educação escolar indígena,5 a mediação pedagógica deveria ocorrer no sentido de ajudar a realizar as atividades necessárias à vida, de modo que o professor também assumiria o papel de resgatar os conhecimentos tradicionais e trazer para os alunos a sabedoria da comunidade: “Registrar os conhecimentos tradicionais indígenas, i.e., tornar-se ‘guardião da herança cultural’ de seu povo, além de ser considerado parte integrante da atividade do docente indígena, constitui-se, hoje, em uma de suas funções mais importantes.” (MAHER, 2006, p. 25) Aliado ao papel de ensinar a língua, por exemplo, está o papel de resgatar e valorizar a cultura local. A especialista em educação e professora Kaingang Andila Nivygsãnh Inácio (2010), discute o papel do professor Kaingang nas escolas:

5 Nos referimos à educação escolar indígena ao falar da educação nas escolas das terras indígenas, escolas essas que foram construídas nos moldes “ocidentais”.

172

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

O professor Kaingang precisa resgatar e valorizar as formas tradicionais Kaingang de repassar os conhecimentos para os jovens, porque essas formas não são meros métodos em fase de experimentação, mas sim metodologias aplicadas, avaliadas e aperfeiçoadas através dos tempos. Saberes estes não disponíveis em nenhuma universidade, mas, apenas, na memória dos nossos velhos, adormecida e anestesiada pelo sofrimento da discriminação e do preconceito de uma sociedade que não soube reconhecê-los. (INÁCIO, 2010, p. 23)

A utilidade do conhecimento é outra questão importante quando tratamos de educação indígena: a aprendizagem apresenta sempre um sentido comunitário. Sendo, em geral, as comunidades indígenas organismos pequenos, o fazer de cada um influi no fazer do outro, de modo que o conhecimento é considerado na sua contribuição para a vida em comunidade. Essa relação com o conhecimento pode ser aplicada também aos estudantes que saem de suas comunidades para estudar na UFRGS. O movimento, em princípio, é sair para voltar, ou seja, a busca de um conhecimento fora da aldeia está ligada à possibilidade de, mais tarde, levá-lo para a sua terra indígena, em benefício da comunidade. Historicamente, a constituição de 19886 consolida os movimentos em prol do direito de os indígenas manterem suas tradições, línguas e culturas dentro de suas escolas. À educação escolar indígena é garantido o direito de ser diferenciada, dentro de cada comunidade, com suas singularidades. Desse modo, acreditamos que seja importante respeitar e preservar esse direito também nas outras instituições de ensino às quais

6 § 2.º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. (...) Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (BRASIL, 1988)

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

173

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

os estudantes indígenas têm acesso. O curso LEUI, ao tentar priorizar essa formação e esse modo de ensinar, se insere nesse contexto, abrindo espaço para uma sala de aula diferenciada na universidade. Embora ainda não seja possível termos uma universidade indígena, essa instituição deveria servir a todos os modos de ser e fazer, inclusive os indígenas. O curso LEUI não quer ser um lugar de assimilação e integração e sim um espaço intercultural na UFRGS, de modo que os saberes tradicionais desses povos possam ser considerados na formulação do que eles querem aprender no âmbito de suas atividades. Ainda, mais do que isso, que esse conhecimento também seja considerado no que pode (e deve) contribuir para a construção do conhecimento acadêmico. Apesar de a escola, inicialmente e por um longo tempo, ter sido um meio de opressão e de aculturação das comunidades indígenas, o papel desse lugar foi sendo – e ainda é – ressignificado e reavaliado pelas próprias comunidades e suas lideranças. Nessas comunidades, o que se quer da escola hoje, é que seja um lugar em que a cultura tradicional seja reafirmada, de modo que possa oportunizar uma retomada às raízes para as novas gerações. Sendo assim, esperamos que as universidades, ao receberem estudantes de diferentes etnias, também sejam lugares que, além de transformadores, possam ser transformados por esses estudantes. Que sejam um lugar de busca por novos conhecimentos e que isso possa acontecer com respeito aos modos de ser, em um ambiente no qual as pessoas valorizem a diversidade e que a formação seja um processo não opressor. Nós, como professores, precisamos nos preparar e conhecer essas novas demandas, esses novos estudantes e essas novas culturas – que também são nossas – e trabalhar em favor de uma educação universitária que seja múltipla e para todos. 174

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

O PROJETO “SAÍDA DE CAMPO PARA A TERRA INDÍGENA DE PINHALZINHO” Foi a partir dessas considerações e estudos que chegamos ao projeto que realizamos no segundo semestre de 2012. Partindo da parceria do curso com as disciplinas de estágio obrigatório em língua inglesa do Instituto de Letras da UFRGS, as aulas contaram com, além das duas coordenadoras7 do curso, mais duas professoras em formação.8 Essa parceria possibilita a docência compartilhada e a pesquisa constante sobre o fazer docente, de modo que a aprendizagem é guiada e partilhada.9 A partir da concepção de desenvolvimento da educação linguística10 por meio de práticas de linguagem situadas e contextualizadas, e, ainda, considerando nossa concepção de que o curso está aliado à necessidade de os alunos indígenas se fazerem ver e ouvir na universidade, após conversas com os estudantes, propusemos um projeto sobre representações. Esse projeto culminaria na produção de um texto, em português e em inglês, que desse visibilidade aos pontos de vista desses estudantes e à presença deles na instituição. Tínhamos como ideia de suporte de veiculação o Jornal da Universidade e as redes sociais, frisando que esses meios já possuem discursos sobre essa temática, no entanto,

7 Bruna Morelo e Camila Dilli. 8 Joana Luz e Nathália Gasparini. 9 Agradecemos à Camila Dilli e Joana Luz pela parceria no desenvolvimento desse projeto. 10 Conforme Bagno e Rangel (2005, p. 63), entende-se “por educação linguística o conjunto de fatores socioculturais que, durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre outras línguas, sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos os demais sistemas semióticos. Desses saberes, evidentemente, também fazem parte as crenças, superstições, representações, mitos e preconceitos que circulam na sociedade em torno da língua/linguagem e que compõem o que se poderia chamar de imaginário linguístico ou, sob outra ótica, de ideologia linguística. Inclui-se também na educação linguística o aprendizado das normas de comportamento linguístico que regem a vida dos diversos grupos sociais, cada vez mais amplos e variados, em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir”.

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

175

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

raramente produzidos pelos próprios “assuntos”, isto é, pelos estudantes indígenas. Entretanto, depois de algumas aulas, os estudantes trouxeram uma contraproposta: a ideia de realizarmos juntos uma saída de campo para uma aldeia indígena para que eles pesquisassem na aldeia conhecimentos tradicionais a respeito de seus cursos de graduação – pedagogia (educação), agronomia (terra) e fisioterapia (saúde). A pedagogia de projetos permite que, durante o processo, o projeto sofra modificações e, como ainda estávamos no início do semestre, foi possível aceitar a proposta dos alunos. Como salienta Barbosa (2004), no trabalho com projetos “a aprendizagem acontece em situações concretas, de interação, como um processo contínuo e dinâmico em que se afirma, se constrói e desconstrói, se faz na incerteza, com flexibilidade, aceitando novas dúvidas, comportando a curiosidade, a criatividade que perturba, que levanta conflitos”. (BARBOSA, 2004, p. 11) Fizemos um longo trabalho com unidades didáticas sobre saída de campo e sobre noções de etnografia – observação participante, perguntas de pesquisa, anotações. Além disso, em uma das unidades, os estudantes escreveram um projeto solicitando recursos à universidade para a saída. Levamos o projeto aos setores responsáveis e, ao final, conseguimos transporte e recurso financeiro para a viagem à aldeia. Para finalizar, os estudantes produziram um texto para divulgar a saída de campo aos interessados em participar da atividade e esse texto circulou através de e-mails e da página11 de uma rede social em que informações sobre o curso e as produções dos alunos são divulgadas. A saída de campo aconteceu em janeiro de 2013, conforme previsto pelo projeto.

11

.

176

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência de desenvolver esse trabalho com os estudantes indígenas proporcionou diferentes situações de ensino e aprendizagem para os participantes envolvidos. O trabalho com a pedagogia de projetos permitiu que nos engajássemos em resolver uma situação verdadeira, em um projeto que culminou em um produto final que pôde ser concretizado. Sendo assim, o engajamento e a seriedade de todo o grupo foram essenciais para que o resultado fosse condizente com o que foi proposto. Para tanto, em cada aula, diferentes etapas foram cumpridas para que chegássemos ao objetivo final. Esse tipo de projeto mobiliza uma prática docente que é diferente da que é tradicionalmente encontrada nas escolas, uma vez que as professoras se tornam mediadoras para uma prática social em que determinado conhecimento de linguagem é requerido, sem que a autonomia de aprendizagem dos alunos seja prejudicada. Desse modo, essa prática na formação inicial do professor no LEUI é singular, na medida em que propicia a experiência de professor como agente do ensino, mas não como único detentor do conhecimento na sala de aula. Como aponta Kleiman (2006), ao descrever o agente de letramento, tornamo-nos “um mobilizador dos sistemas de conhecimento pertinentes, dos recursos, das capacidades dos membros da comunidade”. (KLEIMAN, 2006, p. 81) Assim, esse trabalho nos permitiu perceber que a pedagogia de projetos, de certo modo, assemelha-se à educação indígena, no que tange ao ato de fazer algo concreto, de se engajar na resolução de um problema que seja importante para o grupo. A cada aula, os estudantes tinham uma tarefa a ser realizada e, para chegar ao produto final, foi preciso experimentar, tentar e errar. Esperamos que mais projetos como esse possam ser realizados com esses estudantes (e com outros também), para InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

177

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

que apareçam na universidade mais oportunidades de participação em que as ideias e propostas significativas para os alunos possam ser concretizadas. Referências

• ANDRIGHETTI, G. H. Pedagogia de projetos: reflexão sobre a prática no ensino de Português como L2. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras. 2006.

• BAGNO, M; RANGEL. E. O. Tarefas da educação linguística no Brasil. In: Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 5, n. 1, 2005.

• BARBOSA, M. C. S. Por que voltamos a falar e a trabalhar com Pedagogias de Projetos? In: Projeto – Revista de Educação: projetos de trabalho. Porto Alegre, v. 3, n. 4, 2004. p 8-13.

• BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:

Acesso

em:

1º dez. 2009.

• Dilli, C. Morelo, B. Participar no mundo que se faz em inglês: uma aprendizagem intercultural. In: Revista Bem Legal, V.1 N. 1, Porto Alegre, 2011 (p.38-43) ISSN: 2237-4884. (). 178

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Ensinar e aprender: a experiência de estágio no Curso de Leitura e Escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS

• GRUPIONI, L. B. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. In: Coleção Educação para todos; 8. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006, p. 230.

• HERNÁNDEZ, F. Os projetos de trabalho: um mapa para navegantes em mares de incertezas. Projeto – Revista de Educação: projetos de trabalho. Porto Alegre, v. 3, n. 4. 2004, p. 2-7.

• INÁCIO, A. N. Venh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI, M. A.; VENZON, R. A. Pensando a educação Kaingang. Série: Caderno Proeja – Especialização – Rio Grande do Sul, VII. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010, p. 21-45.

• KLEIMAN, A. Processos identitários da formação profissional: o professor como agente de letramento. In: CORREA, M; BOCH, Françoise. Ensino de língua: representação e letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006, p. 75-91.

• MAHER, T. M. Formação de Professores Indígenas: uma discussão introdutória. In: GRUPIONI, L. B. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias – Coleção Educação para todos; 8. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006, p 11-37.

• MORELO, B. O curso de inglês para estudantes indígenas: contribuindo para a construção de uma política de permanência na UFRGS. Porto Alegre: UFRGS. Trabalho de Conclusão de Curso – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

179

Bruna Morelo • Nathália Gasparini

• MORELO, B.; DILLI, C. A constituição de uma ação de política linguística para universitários indígenas da UFRGS. In: FARENZENA, N. (Org.). VI Encontro Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas (Anais). Porto Alegre: UFRGS, 2013a, p. 153-159.

• MORELO, B.; DILLI, C. Diversidade, Letramento e Permanência: O Curso de Inglês para os Estudantes Indígenas da UFRGS. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Comissão de Acesso e Permanência Indígena. Estudantes indígenas no ensino superior: uma abordagem a partir da experiência na UFRGS. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013b, p. 59-68.

• SCHLATTER, M.; GARCEZ, P. M. Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. Erechim, RS: Edelbra, 2012, p. 176.

180

InterSignos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 167-180, out. 2014

Entrevista: Atravessando fronteiras: uma breve entrevista com Henry Giroux Marcia Moraes – Faculdade CCAA

ISSN 1982-2685

Álbum de família em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra Cristina Mielczarski dos Santos – UFRGS Tragicidade na escrita de Clarice Lispector Angélica Castilho – Faculdade CCAA, Colégio Estadual Visconde de Cairu O silêncio das entrelinhas e das entre rinhas: de Clarice Lispector a Ana Paula Maia, as personagens na iminência de. Daiane Crivelaro – UFRJ, Cap-UERJ A vida curta e conturbada de Raul Pompeia Magali Lippert da Silva – UFRGS, IFRS/Campus Porto Alegre Euclides da Cunha: um lapidador harmônico – Uma análise da construtividade autoral d’Os Sertões de Euclides da Cunha Lais Peres Rodrigues – UFRJ Linguística Formal, Enunciação e Discurso: três diferentes concepções a respeito do conceito de paráfrase Matheus Silveira Hugo – UFRGS A intersubjetividade pela Teoria da Argumentação: uma influência benvenistiana Christiê Duarte Linhares – UFRGS, PUC-RS O processo de significação do item lexical catraia : do significado à experienciação linguística José Enildo Elias Bezerra – UERJ, IFAP/ Campus Laranjal do Jari Shirlei L. C. S. Pereira – PUC Minas Rejane Aparecida da Silva – PUC Minas Afeto e prática exploratória: brincando com os papéis familiares dentro de sala de aula Ruan Nunes – SME-RJ, Cultura Inglesa, Colégio pH Avaliação formativa: por que não ensinar a escrever pelo erro? Heloana Cardoso Retondar – UERJ Ensinar e aprender: a experiência de estágio no curso de leitura e escrita na Universidade para Estudantes Indígenas da UFRGS Bruna Morelo – UFRGS Nathália Gasparini – UFRGS

www.faculdadeccaa.edu.br ISSN 1982-2685

9 771982 268450

REVISTA ACADÊMICA DO CURSO de Letras da Faculdade CCAA

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.