Ensinar Física sem mitificar o cientista (Slides/apresentação) II Semana de Física do IFMG - Campus Ouro Preto

September 8, 2017 | Autor: Luiz Abrahão | Categoria: Science Education, History of Science
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Ensinar Física sem mitificar o cientista: premissas e riscos de uma hagiografia da ciência Luiz Henrique de Lacerda Abrahão – CEFET-MG

Sir Isaac Newton, Óptica (Livro III), pp. 402-403

• “O episódio da queda da maça, que teria desencadeado os estudos de Newton sobre a gravitação, aparece com frequência no ensino. A anedota da maça é relatada por quase todos os professores de física e foi incorporada à cultura científica contemporânea. Ela aparece em grande número de textos didáticos e de divulgação científica. (p. 167) • “Introduzir anedotas como esta, no ensino, parece ser uma atitude extremamente comum por parte dos professores, provavelmente para aumentar a motivação ou o interesse dos estudantes. (p. 168) • “Devemos, no entanto, ter uma atitude mais crítica e profissional. E quisermos nos referir a algum episódio histórico, devemos procurar nos informar sobre se ele realmente ocorreu – e como ocorreu.” (p. 175) • “Newton deixou, ao morrer, uma vasta quantidade de manuscritos. No entanto, jamais foi encontrada qualquer descrição sua a respeito da queda da maçã [...] Sabemos, no entanto, que Newton descreveu esse episódio para algumas pessoas, quando já era idoso” (Id. Ibid.). • “Nenhum desses relatos mais antigos diz que a maçã teria caído na cabeça de Newton, nem que ele estava deitado ou adormecido” (p. 176) • “Os professores que contam essa anedota ... estão prestando um desserviço à educação” (p. 186). (Fonte: Martins, R. A. A Maçã de Newton: História, Lendas e Tolices. In: Silva, C. C. (Org.). Estudos de História e filosofia das Ciências: Subsídios para Aplicação no Ensino. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006, pp. 167-189.)

No Jardim Botânico da Universidade de Tokyo, no Japão, há uma descendente (quarta geração) da suposta ‘macieira de Newton’, original de Woolsthorpe, Inglaterra.

Como explicar o ‘analfabetismo científico’ dos cientistas?

Ensino de Física no pós-2ª Guerra Mundial • Valores pedagógicos: eficácia e eficiência - Acurácia técnica (aplicação e efeitos práticos) - Desqualificação humanista: Filosofia, História, Literatura, Sociologia etc.

• Formação ‘humana’ dos cientistas e engenheiros se transforma em um gesto individual, deixa de ser parte de um projeto político-pedagógico • Ideologia tecnicista: ciência como atividade neutra, objetiva e prática • Descolamento da pesquisa científica das questões históricas e sociais • Descompromisso ético da produção do conhecimento e tecnologia (Fonte: Ponczek, R. L. Da Bíblia a Newton: uma visão humanística da Mecânica. In: José Fernando M. Rocha (org.). Origens e evolução das ideias da física. Salvador: EDITORA DA UFBA, 2011, pp. 13-189)

Ambivalência da educação científica tecnicista • Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (1962) “[...] ‘ciência normal’ significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior” (p.29).

Aprendizado técnico eficiente repousa no contato com problemas específicos da área, sem questionar criticamente teorias aceitas

Objetivos e funções dos manuais científicos • Deturpa o efetivo desenvolvimento da ciência: processo linear e progressivo em direção a teorias ‘mais próximas’ da realidade • Oculta a complexa dinâmica subjacente aos processos histórico-sociais que abarcam a ciência “Os manuais, por visarem familiarizar rapidamente o estudante com o que a comunidade científica contemporânea julga conhecer, examinam as várias experiências, conceitos, leis e teorias da ciência normal em vigor tão isolada e sucessivamente quanto possível. Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica. Mas, quando combinada com a atmosfera geralmente ahistórica dos escritos científicos e com as distorções ocasionais ou sistemáticas examinadas acima, existem grandes possibilidades de que essa técnica cause a seguinte impressão: a ciência alcançou seu estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, às quais, uma vez reunidas, constituem a coleção moderna dos conhecimentos técnicos. O manual sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros empreendimentos científicos, os objetivos particulares presentes nos paradigmas atuais. Num processo frequentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado pelo manual científico contemporâneo. Mas não é assim que a ciência se desenvolve” (Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, 1962, p. 178).

O que seria uma ‘hagiografia da ciência’? • Grego: hagios, santo/sagrado; graphía, escrever O substantivo hagiografia (neologismo do século XI) se refere, de forma geral, à descrição/reunião de feitos excepcionais atribuídos a santos, especialmente os ‘milagres’. • Contraste entre pesquisa histórica e hagiografia heroica Fatos, documentos, testemunhos // lendas de êxito, narrativas incríveis • Cientista como ‘gênio’ (em vez de ‘santo’) • Ideias científicas como ‘verdades’ (em vez de ‘milagres’) • Imagem completamente mitificada da ciência

Educadores científicos e a história mitificada da ciência “Histórias de descobertas científicas permeiam nossa cultura e o currículo científico” (p. 329). “...histórias populares da ciência que romantizam os cientistas, inflam o drama das descobertas deles e retrata os cientistas e processos da ciência de maneira monumental. Elas distorcem a história da ciência e nutrem estereótipos sem fundamento sobre a natureza da ciência... Pensadas como baseadas em eventos autênticos, essas histórias são profundamente equivocadas” (Id. Ibid.)

“Educadores científicos, em especial, tendem a perpetuar tais concepções míticas” (Id. Ibid).

Como não perpetuar a mitificação da ciência ? • -

Pseudo-história da Ciência (estereótipos/responsabilidade) Romantizar o cientista Inflar o drama da ‘descoberta’ científica Simplificar o processo da pesquisa

• Arquitetura retórica dos ‘mitos’ da ciência - Feitos monumentais - Idealização - Drama afetivo - Narrativa explicativa e justificatória (Fonte: ALLCHIN, D. Pseudohistory and Pseudoscience, 2004)

Id., p. 193

Iconografia hagiográfica do ‘Julgamento de Galileu’

Procurador do Tribunal do Santo Ofício, Vincent Maculano, lê para Galileu as acusações que conduziram ao julgamento de 1633

Galileu encarando a Inquisição (1857) Cristiano Banti (1824-1904)

Condenação de Galileu, por ter defendido a teoria astronômica de Copérnico

Galileo Galilei frente aos Membros do Santo Ofício no Vaticano (séc. XIX) Joseph Nicolas Robert-Fleury (1797-1890)

“A partir do século das Luzes e até os nossos dias, o caso Galileu tem sido uma espécie de mito, no qual a imagem que se quer fabricar está muito longe da realidade”. (Papa João Paulo II, Catedral de Colônia – 15/11/ 1980)

Visão Popular da relação ciência e religião • “ações melodramáticas” • “excelente exemplo histórico para engajar os estudantes na descoberta da natureza da ciência e seus contextos culturais” • “Galilei é o herói da ciência, confrontando corajosamente a Igreja, o vilão anti-ciência” • Igreja: interpretação literal do geocentrismo bíblico (fé/tradição) • Galilei: defensor do heliocentrismo (Razão/evidências empíricas) • Moral da história ‘popular’: a Razão vence o obscurantismo da Fé (Fonte: ALLCHIN, D. Teaching the Nature of Science, p. 202)

O ‘caso Galileu’

Para autoridades da Igreja, o trecho das Sagradas Escrituras, contido no livro de Josué, confirmava que a Terra: a) É estática b) Ocupa o centro do Universo

Jacques Courtois (“O Borgonhês“) (1621-1665) O Milagre de Josué interrompendo o movimento do Sol (c. 1650)

Bíblia, Josué: 10:13-14

“O sol parou, e a lua se deteve, até a nação vingar-se dos seus inimigos, como está escrito no Livro de Jasar.

O sol parou no meio do céu e por quase um dia inteiro não se pôs.”

Segundo autoridades eclesiásticas, a defesa do modelo astronômico de Copérnico, por parte de Galileu, contestava afirmações referentes à imobilidade da Terra contidas nas Sagradas Escrituras. O que o modelo heliocêntrico de Copérnico afirmava?

As Revoluções dos Orbes Celestes (1543) Duas teses básicas que rejeitam qualquer estatuto privilegiado e hierarquizado da Terra no Cosmos: • Movimento da Terra – contra a tese geoestática • Centralidade do Sol – contra a tese geocêntrica

“...novidade das hipóteses dessa obra, onde se afirma que a Terra se move e o Sol está imóvel no centro do Universo” Em 1616, o livro de Copérnico foi incluído no Index Librorum Prohibitorum (Papa Pio IV)

Roma, 05 de março de 1616 A Congregação do Index decide proibir o livro de Copérnico

• Reprodução da tradução do Decreto da Santa Igreja Romana, de 1616, que suspende o ensino e divulgação da doutrina copernicana da mobilidade da Terra

O ‘caso’ Galileu: fase I – 1610 a 1616 • 1606 - Anuncia a descoberta da estrela Nova Serpentarii (sustenta o heliocentrismo) • Debates abertos sobre o Heliocentrismo • 1610 - publicação de Sidereus Nuncius (telescópio como instrumento astronômico/satélites de Júpiter/variação do brilho de astros/rugosidade da superfície da Lua) • 1611: Inquisidor florentino Cardeal Bellarmino elogia os achados do Sidereus Nuncius • Aumenta a hostilidade dos Jesuítas com o modelo de Copérnico (ataques do padre Orazio Grassi) • Polêmicas teológico-cosmológicas (Cartas com Castelli) • 1615 - Tribunal da Inquisição iniciou o processo contra Galileu: acúmulo de denúncias e acusação por parte do frade dominicano Tommaso Caccini e do padre Lorini (07 fevereiro de 1615) • 1616 - Tribunal da Santa Inquisição (encontro informal e indefinido com Bellarmino, em 26/02/ 1616): advertência amistosa para não propalar o modelo heliocêntrico

Galileu e a Bíblia: interpretação literária, compatibilismo e o princípio de autoridade “a Escritura ... necessita necessariamente de exposições diferentes do significado aparente das palavras” (#282-283) “...esta passagem [do livro de Josué da Bíblia] nos mostra manifestamente a falsidade e a impossibilidade do sistema de mundo aristotélico e ptolomaico e, ao contrário, se acomoda muitíssimo bem com o copernicano” (#286) Carta de Galileu a Dom Benedetto Castelli (1615) “...procuram proibir um livro aceito tantos anos pela Santa Igreja sem o terem não só jamais visto como também nem lido ou entendido” (#292) “...harmonizar passagens sagradas com doutrinas novas e nada comuns sobre a Natureza, é necessário ter inteiro conhecimento de tais doutrinas...” (#301) Carta de Galileu a Monsenhor Piero Dini (1615)

Sentença do Santo Ofício (1616) 25/02/1616: Cardeal Bellarmino recebe a ordem de convocar Galileu (comunicação reservada)

Objetivo: exortação a abandonar o ensino do modelo de Copérnico como verdade, e tratá-lo como hipótese “...et si recusaverit, P. Commissarius, coram notário et testibus, faciat illi praeceptum ut omnino absteneat huiusmodi doctrinam et opinionem docere aut defendere , seu de ea tractare... si vero non acquivecerit, carceretur [...] et supradictus P. Commissarius... ordinavit ut supradicam opinionem... omnio reliquant, nec eam caetero quovis modo teneat, doceat aut defendat, verba aut scriptis” (XIX, 321-322) Roberto Francesco Romolo Bellarmino (1542-1621)

(Fonte: GEYMONAT, L. Galileu Galilei, p. 118-119)

O ‘caso’ Galileu: fase II – 1616 a 1632 • 1618: aparição de cometas no céu da Europa reacende a discussão acerca do heliocentrismo • Publica com Mario Guiducci o Discorso sule Comete: polêmica com Lotário Sarsi , pseudônimo de Orazio Grassi , influente membro da Companhia de Jesus • 1623: o Saggiatore responde consistentemente a críticos sobre a questão dos cometas • 18/04/1625: Galileu é informado da denúncia referente ao Saggiatore • Galileu defende a autonomia na busca do conhecimento (tradição filosófica ou teológica) • Simpatia do Cardeal Maffeo Barberini, o Papa Urbano VIII (a quem dedica o livro de 1623), e concessão presumida do Imprimatur • 1632: Publicação dos Dialogo Sopra i due Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano: acusação de heresia e exigência de abjuração frente aos Inquisidores • Prisão domicilar em Florença, Itália • 1938: Publica o último livro, Discorsi e dimostrazioni matematiche, intorno à due nuove scienze (mecânica: teoria do movimento natural e resistência dos materiais)

O ‘caso’ Galileu: fase II – 1616 a 1632 (cont.) • • • •

Censura do título original: Discorso del Flusso e Riflusso Del Mare (Nicolau Ricardi) Título sugerido: Dialogo sui Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano Papa Urbano VIII não objeta o livro Processo de 1633: 23/09/1632 - convocação para interrogatório 15/01/1633 – apresentação de Galileu (problemas de saúde)

• Acusações: Violação da advertência de 1616 (não defender ou ensinar o heliocentrismo) Obtenção fraudulenta do Imprimatur com o padre Ricardi (ocultou haver o preceito de 1616)

• Intrigas e descontentamento do Papa Urbano VIII: traição e ridicularização

Parte final do documento de retratação de Galileu (22 de junho, 1633)

O ‘caso’ Galileu: desdobramentos • • • •

Documentos do ‘caso’ Galileu foram ocultados pelo Vaticano até 1810 Napoleão Bonaparte pressiona a Santa Sé para mostrar o material do pontifício 1843: 3 mil caixas de documentos em Versalhes Reação à condenação de Galileu Galilei foi de indignação e assinalou a degradação da Igreja • 1822: Santo Ofício retira as obras de Copérnico, Galileu e Kepler do Index • 1992: Comissão instituída pelo Papa João Paulo II reconhece erro na condenação de Galileu

Considerações finais • Transmitir concepções falsas, distorcidas ou questionáveis sobre a história e a natureza do trabalho científico: Ciência é fruto do acaso Ciência é resultado do trabalho individual Ciência é feita por gênios Ciência é puramente racional Ciência descobre verdades da natureza Ciência e fé são essencialmente inconciliáveis Ciência traz verdades evidentes Ciência tem datas/personagens/locais específicos e definidos

Indicações Bibliográficas ALCCHIN, Douglas. Scientific Mith-Conceptions. Science Education. v.87, n.3, p.329-351, 2003. BLACKWELL, R. J. Science, religion and authority: lessons from the Galileo’s affair. Ashland: Marquette University Press, 1999 FANTOLI, A. Galileu – Pelo copernicanismo e pela Igreja. Loyola, 2008. FELDHAY, R Galileo and the Church: Political Inquisition or Critical Dialogue? Tel-Aviv: Tel-Aviv University, 1995. LONCHAMP, J.P. L’affaire Galilée. Paris: Cerf/Fides, 1988 MARICONDA, P. R. O Diálogo de Galileu e a condenação. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, v.10, n.1, jan.-jun., 2000. ____. Galileu e a Teoria das Marés. Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Série 3, v.9, n.1/2, jan.-dez., 1999.

MATTHEWS, M. R. História, Filosofia e Ensino de Ciências: a Tendência Atual de Reaproximação. Tradução de Claudia Mesquita de Andrade. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v.12, n.3, p. 164-214, Florianópolis,1995. PAGANI, S.M.e LUCIANI, A. Os documentos do processo de Galileu Galilei. Perópolis: Vozes Editora, 1994. REDONDI, P. Galileu Herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SILVA, C. C. (Org.) Estudos de história e filosofia das ciências: subsídios para aplicação no ensino. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006.

TERRA, P. Os Papas e Galileu (I): João Paulo II e o Galileu Hermeneuta Bíblico. AQUINATE, n. 18 (2012), 41-84. ____. Os Papas e Galileu (II): Bento XVI e o Galileu Filósofo da Natureza. AQUINATE, n. 19 (2012), 30-72.

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