Ensino de teoria musical no contexto da música popular: busca de um referencial teórico

July 13, 2017 | Autor: R. Dourado Freire | Categoria: Music Education, Music Theory, Solfege, Solmization
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Artigo submetido ao I Encontro Brasileiro de Ensino da Música Popular - UFRGS- 2015

Ensino de teoria musical no contexto da música popular: busca de um referencial teórico Ricardo Dourado Freire - UnB [email protected]

Resumo: O ensino tradicional de teoria musical baseado em listas de exercícios e livros que explicam os elementos musicais apresenta vários elementos desmotivadores para estudantes de música popular. O questionamento de procedimentos tradicionais e a busca de novas possibilidades direcionaram esta pesquisa de um referencial teórico para ensino da teoria musical. A análise de propostas dos educadores musicais Edwin Gordon e Keith Swanwick estimularam um processo dialógico de tentativas e erros pedagógicos dentro de uma turma de teoria musical de um curso universitário. O resultado final foi a elaboração de uma Espiral de significação musical, na qual os processos e os conteúdos podem ser desenvolvidos a partir de uma transformação dos elementos teóricos. Palavras-chave: Teoria Musical, Gordon, Swanwick, Espiral de Significação Abstract: Music theory teaching is traditionally based on lists of exercises and books that explain the musical elements. The critique of procedures and the search for new possibilities directed this search towards a new theoretical framework for teaching of music theory. The analysis was based on the work of Edwin Gordon and Keith Swanwick. The result was the development of a musical meaning spiral, in which processes and content could be developed based on the transformation of theoretical elements. Keywords: Music Theory, Gordon, Swanwick, Popular Music

O ensino da música popular foi incluído no âmbito das universidades brasileiras desde o final da década de 1980. A criação do Bacharelado em Música Popular na Universidade de Campinas - UNICAMP, em 1989, iniciou a inserção da Música Popular dentro do contexto acadêmico brasileiro, seguido da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, em 1998. A proposta do MEC de ampliar a oferta de cursos de graduação no âmbito do REUNI, ofereceu as condições para a ampliação dos cursos de música com a inclusão da área de música popular. Desta maneira foram criados cursos na Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Pelotas e Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professores de música popular foram também contratados para trabalhar em cursos de licenciatura em Música na Universidade

Federal de Goiás, Universidade de Brasília, Universidade do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Paraná. A implementação dos cursos se deparou com um dilema estrutural. Quais deveriam ser as disciplinas comuns com os curso já existentes, e quais deveriam ser as disciplinas específicas da área de música popular? Na maioria das instituições, a contratação de professores de instrumento teve prioridade sobre a contratação de professores teóricos. Desta maneira, devido as limitações na capacidade de contratação de pessoal, muitas disciplinas de formação básica nas áreas de teoria da música, solfejo, ritmo e percepção ficaram sob responsabilidade de professores contratados anteriormente para trabalhar nos currículos dos cursos vinculados à música erudita. A minha experiência como professor de Linguagem e Estruturação Musical, em uma disciplina do primeiro semestre, ofereceu uma série de desafios para a adequação da estrutura existente às necessidades de formação de um músico da área de música popular. Surgiram várias questões: Como é realizada a aprendizagem na área de música popular? Como estruturar e organizar as experiências musicais para construir uma compreensão teórica da música? Como contextualizar os conteúdos musicais para motivar os alunos do perfil erudito e do perfil popular? Foram muitos questionamentos e poucas respostas. O processo de contextualização de estruturas musicais para diversas linguagens, gêneros e estilos musicais ofereceu uma motivação pessoal para eu poder rever as minhas próprias concepções pedagógicas. O objetivo deste artigo foi formalizar um processo de reflexão de propostas pedagógicas na busca de uma síntese conceitual para a abordagem do ensino de teoria da música em um ambiente que contemple tanto estudantes dos Cursos de Música Popular, quanto dos cursos regulares das universidades brasileiras. O processo de reflexão partiu da revisão bibliográfica das propostas pedagógicas de Gordon e Swanwick que abordam o ensino de música de maneira ampla e sem restrições de gênero. A análise das propostas e a implementação das experiências em sala de aula ofereceu os dados para a elaboração de critérios e referenciais teóricos para o ensino de teoria.

Teoria da Aprendizagem Musical de Edwin Gordon

Edwin Gordon organizou uma proposta de Teoria da Aprendizagem Musical (GORDON, 1997) a partir da sua experiência como contrabaixista na Gene Krupa´s Orchestra entre 1950 e 1953. Gordon iniciou teve uma formação na área de música erudita, mas durante o serviço militar, entre 1945 e 1946, ele teve a oportunidade de tocar em várias Jazz Bands no exército dos EUA. A partir de sua interação em um grupo de música popular, Gordon observa o processo de aprendizagem de outro ângulo: ritmo, melodia e harmonia adquirem um novo significado. Mais importante, a improvisação é vista como parte inerente ao processo de fazer música. A interação entre Gordon e Krupa reuniu um jovem acadêmico e um músico prático consagrado. Krupa teve uma grande influência na concepção de ritmo adotada por Gordon, e a terminologia micropulso, macropulso e ritmo métrico advém da maneira como Krupa intuitivamente estruturava o ritmo. Krupa também questionava a abordagem teórica que explica mas não é capaz de ouvir a música com compreensão. (GERHARDSTEIN, 2001) A proposta teórica de Gordon (1998) considera que o processo de aprendizagem deva ser direcionado para o desenvolvimento da audiação. (Audiation) definido como “processo de ouvir e compreender música quando os sons não estão fisicamente presente, audiação está para a música assim como o pensamento está para a linguagem” (GORDON: 1997, ). A fundamentação teórica oferece “uma descrição de caminhos pelos quais os tipos e estágios de audiação ocorrem a partir do modo como os estudantes são expostos e interagem com padrões tonais rítmicos e tonais em músicas familiares e não-familiares. Nesta proposta, a percepção torna-se o foco de todo o processo de construção do conhecimento. A partir da percepção é possível diferenciar, identificar e atribuir significado ao material percebido auditivamente. A interação entre ouvir, cantar, ler e escrever possibilita a compreensão da melodia e do ritmo dentro de vários contextos musicais. Gordon organizou sua estrutura de aprendizagem a partir de uma sequência de níveis e subníveis de competências. Gordon identifica dois processos de aprendizagem: aprendizagem por discriminação no qual a imitação é a principal ferramenta e aprendizagem por inferência, na qual os estudantes necessitam encontrar suas próprias respostas. (Quadro 1)

Quadro1- Níveis e Subníveis de Sequências de Competências Musicais O primeiro estágio de Gordon, 1- AURAL/ORAL representa a apresentação dos sons musicais, para serem percebidos (AURAL) e posteriormente reproduzidos com voz cantada e sílaba neutra (ORAL). Neste caso, é possível a interação musical com foco na produção sonora e na capacidade de imitação e criação de padrões melódicos e rítmicos. “o desempenho no nível auditivo/oral integra uma interação constante entre o auditivo e o oral, porque, quando os alunos ouvem padrões tonais e rítmicos e, em seguida, cantam ou entoam o que acabaram de ouvir, aprendem a escutar esses padrões com mais precisão e podem executá-los também com mais precisão. O contínuo vaivém da aprendizagem, que envolve mover-se do auditivo para o oral e vice e versa, é o modo como os alunos desenvolvem a sua competência de audiação”. (GORDON:126). Gordon usa o estágio 2- ASSOCIAÇÃO VERBAL para caracterizar e definir a natureza do vínculo entre sons musicais e o nome de cada nota. Gordon enfatiza que os sons da notas já foram previamente explorados no estágio anterior (Aural/Oral) e agora deverão ser associados a sílabas de solfejo, no estudo melódico, ou por sílabas métricas no estudo rítmico (Associação Verbal). Nas sequências de aprendizagem musical de Gordon, a associação de sílabas com as alturas e ritmos, ocorrem diferentemente da educação musical tradicional pois os sons são ensinados primeiro, e as sílabas servem apenas para identificar o que foi trabalhado anteriormente. No nível de associação verbal, além de atribuirmos um significado sintático interno, tal como tonalidade e métrica, conferimos-lhe igualmente um significado não-sintático externo. O significado externo pode relacionar-se, por exemplo, com a associação de nomes de letras, nomes de durações, classificação de intervalos, sílabas tonais e sílabas rítmicas com padrões (GORDON, 2000, 133).

O estágio 3- SÍNTESE PARCIAL estabelece a diferenciação entre estruturas em diferentes modos melódicos ou rítmicos. Neste estágio, um padrão musical trabalhado anteriormente nos níveis 1-Aural/Oral e 2- Associação Verbal deve ser contrastado com padrões que utilizam os mesmos graus da escala, mas que estejam no modo melódico contrastante (maior/menor) ou que tenham o mesmo número de tempos, mas que sejam divididos em modo rítmico contrastante (duplo/triplo) O processo de leitura e escrita musical trabalhado no estágio 4- ASSOCIAÇÃO SIMBÓLICA na qual os estudantes primeiro ouvem um padrão musical ou rítmico para depois lerem o que foi cantado. Aqui o processo focaliza primeiro o som, depois a leitura, em seguida o mesmo som é apresentado para que seja realizada a escrita. O estágio seguinte 5- SÍNTESE COMPOSTA aplica as competências trabalhadas nos estágios anteriores e promove a diferenciação entre modos e métricas contrastantes a partir da leitura e escrita. Os estudantes irão ouvir os mesmos padrões trabalhados no estágio 3, e agora deverão identificar os padrões escritos e também realizarem a identificação e notação musical de padrões cantados.

O sexto estágio – Generalização indica o processo de identificação dos nomes das notas com sílabas de solfejo ou sílabas métricas. Neste estágio, o estudante deve desenvolver a capacidade de ouvir uma sequência de sons e cantar, ler, escrever e transcrever os sons com os nomes das notas. O estágio de Improvisação/Criatividade apresenta a possibilidade de manipulação do material musical centrada no estudante. Azzara (2006) trabalhou com Gordon e desenvolveu uma abordagem para o processo de improvisação na aprendizagem musical. Azzara indica que existe uma relação entre audição, criação, leitura, escrita e análise musical e também considera que cada um destes aspectos pode contribuir para o processo de aprendizagem do outro. Desta maneira, torna-se possível aprender a ler e escrever música a partir do processo centrado na improvisação criada pelo estudante. O último estágio apresentado por Gordon é a Compreensão Teórica. A estrutura de aprendizagem proposta por Gordon considera o estágio de Compreensão Teórica como o resultado de uma sequência de aprendizagens e atribuição de significado às experiências musicais do músico. Neste contexto, a compreensão teórica vem a explicar o que o músico já é capaz de audiar, tocar, ler, escrever e improvisar. Nesta proposta, o ensino teórico não deveria ocorrer antes do domínio dos estágios anteriores. A compreensão teórica, neste caso, passa a ser a capacidade de identificar elementos formais da estrutura da música tradicionalmente ensinados como “teoria da música”.

Transformações metafóricas de Keith Swanwick Swanwick (2002) aborda a aprendizagem musical do ponto de vista da música enquanto metáfora. Neste processo a metáfora representa a significação atribuída ao discurso musical. A abordagem a partir de ilustrações da linguística oferecem recursos para ampliar as múltiplas possibilidades de uma proposta musical. Swanwick aborda principalmente as transformações e relações criadas no processo metafórico. A sua proposta de espiral de conhecimento é apresentada como uma série de transformações metafóricas da proposta musical. (Swanwick, 2002) Ele identifica três formas nas quais a música funciona metaforicamente. “Transformar notas em melodias, gestos; Transformar essas melodias, esses gestos, em estruturas; Transformar essas estruturas simbólicas em experiências significativas.” (Swanwick, 2002)

A abordagem de Swanwick focaliza no discurso musical, e não na gramática musical. O processo proposto visa a atribuição de significado a partir da transformação dos significados por meio da metáfora. A partir da manipulação e transformação das possibilidades do discurso musical, este discurso passa a ser internalizado pelo músico, e a internalização do discurso permite o desenvolvimento da aprendizagem musical. As abordagens de Gordon e Swanwick se diferenciam das abordagens tradicionais de ensino da teoria da música por focalizar na percepção e no discurso musical como referências para o processo de aprendizagem. Ambas as abordagens são aplicáveis no contexto da música popular por focarem no desenvolvimento do estudante, e não no conteúdo previamente estabelecido. Ambas as abordagens também focam no processo de aprendizagem e não no produto final acabado. No entanto, as abordagens não estabeleciam um referencial teórico para o ensino de teoria musical.

Espiral de significação musical A formação de um referencial teórico é um processo contínuo de busca de ações e resultados que favoreçam a aprendizagem. A estruturação de um conjunto de ações necessita de parâmetros para encontrar respostas efetivas que proporcionem o sucesso dos estudantes nas aulas de teoria musical. A influência de Gordon e Swanwick motivaram uma busca pessoal e um processo de tentativa e erro com várias turmas de

teoria da música. Afortunadamente, tive a oportunidade de reaprender a cada semestre, com cada turma nova ao manter algumas atividades que tiveram êxito e substituir e aperfeiçoar as atividades que não obtiveram o resultado esperado. A partir da proposta de transformação dos conteúdos por meio de metáforas foi possível estruturar uma Espiral de Significação Musical na qual os conteúdos musicais podem ser transformados em significados musicais. (Quadro 2) Som

transformação

Notas Musicais

Agrupamentos de notas

transformação

Padrões Musicais (intervalos. escalas e acordes)

Contextualização dos Agrupamentos

transformação

Estruturas (Tonalidades, Campo Harmônico)

Manipulação dos Contextos

transformação

Estilo Musical (Pessoal, local, nacional)

Compartilhamento coletivo dos contextos

transformação

Gênero Musical

Quadro 2- Espiral de Significação Musical Esta referencial teórico pode ser ilustrado a partir de exemplos práticos. O primeiro passo é tornar claro que um som somente adquire significado musical a partir da sua identificação enquanto nota musical. Um som sem nome fica perdido no universo sonoro e a maneira de incluí-lo no contexto musical ocorre por meio da transformação do som em nota musical. Neste contexto, o solfejo oral torna-se uma ferramenta prática de atribuição de nomes de nota para os sons apresentados. A capacidade de identificação das notas torna-se uma habilidade importante no processo de significação dos sons dentro de uma proposta musical. A segunda espiral será a transformação de um agrupamento de notas em uma estrutura significativa. Desta maneira, duas notas passam a representar um intervalo musical e três notas representam um acorde. O intervalo passa a significar um conjunto de duas notas e o acorde pode ser interpretado de diversas maneiras, de acordo com os intervalos que compõe o acorde. Duas notas são transformadas metaforicamente em

uma unidade que pode ter um significado musical – o intervalo. Três notas criam várias possibilidades de acordes que são as unidades significativa na estruturação da harmonia. Vários agrupamentos de notas, intervalos, escalas e acordes necessitam de um contexto para apresentar qualquer sentido musical. A terceira espiral transforma um conjunto de agrupamentos em uma tonalidade ou em um campo harmônico, no qual as relações entre o conjunto de acordes estabelece uma hierarquia funcional e estrutural. A identificação da tonalidade e compreensão das funções tonais servem de referência para a contextualização das notas, intervalos, acordes e escalas. A organização das três primeiras espirais seguem as mesmas regras seja para um estudante do curso de música popular quanto para o estudante de música erudita. Em ambas as situações torna-se necessário identificar as notas musicais, os intervalos, os acordes, as escalas e o ambiente tonal. No entanto, cada área da música lida com um contexto específico no qual a forma de manipulação dos conteúdos é realizado de acordo com parâmetros diferenciados. Neste sentido a quarta espiral buscar a compreensão do que é um estilo musical. Nesta espiral os conteúdos passam a ser trabalhados metaforicamente, ou seja o significado passa a ser atribuído a partir da compreensão do contexto musical e cada contexto poderá apresentar significados específicos.Considerando aqui estilo como uma abordagem específica do material musical, é possível partir do interesse e da motivação dos estudantes para trabalhar o estilo de improvisação de um guitarrista de rock, bandolinista de choro ou saxofonista de jazz. Da mesma maneira, é possível tentar identificar o estilo composicional de Bach, Mozart ou Debussy. Neste caso a maneira de transformação dos elementos musicais dentro de um contexto irá demonstrar um estilo. Esta espiral busca a forma como um indivíduo manipula e transforma metaforicamente os conteúdos musicais das notas, intervalos, acordes, escalas e contextos harmônicos. A última espiral aborda o compartilhamento coletivo de valores e abordagens dos contextos musicais. Neste caso, uma abordagem compartilhada coletivamente se transforma em um gênero musical que pode o jazz, o choro, o baião, o rock ou o barroco, o classicismo, o romantismo ou o nacionalismo brasileiro. Esta discussão permite o aprofundamento das abordagens estéticas dos diversos gêneros, pois são questionadas as metáforas e transformações aceitas e compartilhadas coletivamente que permitem a identificação de um gênero musical. A partir da compreensão dos valores

que estruturam um gênero é possível contextualizar as práticas musicais dos estudantes e valorizar o significado que as notas, intervalos, escalas e acordes podem ser atribuídos em cada gênero musical. A proposta de Espiral de significação musical apresenta-se como um referencial teórico focado na atribuição de significado para os conteúdos musicais que são apresentados dentro de um contexto musical. A proposta tradicional do estudo puro de notas, intervalos, acordes e escalas torna-se chato e desmotivador para a grande maioria dos estudantes. O processo tradicional de identificação de elementos teóricos não enriquece a experiência musical do estudante, sendo que a transformação do referencial teórico permite a mudança de foco para a compreensão dos conteúdos dentro dos contextos de interesse do estudante de música, seja ela popular ou erudita.

Referências AZZARA, C. D., & GRUNOW, R. F. Developing musicianship through improvisation. Chicago: GIA. 2006. GERHARDSTEIN, Ronald C. Edwin E. Gordon: A Biographical and Historical Account of an American Music Educator and Researcher. Tese de Doutorado, Temple University, 2001.

GORDON, E. Learning Sequences in Music: Skill, Content, and Patterns. Chicago: G.I.A. Publications. 1997

SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.

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