ENSINO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIAL

July 6, 2017 | Autor: Fabrício Amorim | Categoria: Applied Linguistics
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Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 14 • novembro 2014

ENSINO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIAL Fabrício da Silva Amorim (UNESP-SJRP/IFBA)1 [email protected]

RESUMO: O presente artigo discute a noção de colonialidade e sua relação com questões de natureza linguística. Para tanto, mostra como o processo de definição da língua nacional do Brasil esteve atrelado ao colonialismo na forma da colonialidade. Com o intuito de suscitar uma reflexão sobre a necessidade de retirar as raízes da colonialidade do imaginário linguístico brasileiro, defende-se que a escola, por meio de um ensino pluralista e democrático de língua portuguesa, pode garantir a legitimação do português brasileiro, em sua diversidade, como a língua materna e nacional do país. PALAVRAS-CHAVE: Colonialidade; Língua Nacional; Ensino de Português.

ABSTRACT: This paper discusses the notion of coloniality and its relation to linguistic issues. For this purpose, it shows how the process of Brazilian national language establishment was related to the colonialism under the coloniality form. To encourage a reflection on the need for decolonizing the Brazilian linguistic imaginary, it advocated that the school, from a pluralistic and democratic teaching of Portuguese language, can provide the legitimization of Brazilian Portuguese language and its diversity as the native and national language of Brazil. KEYWORDS: Coloniality; National Language; Teaching of Portuguese.

1 APRESENTAÇÃO

Desde a década de 1960, com o estabelecimento da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 1994), tem-se admitido que toda língua natural é, sincrônica e diacronicamente, constituída de maneira heterogênea. Mais recentemente, o princípio da variação/mutabilidade linguística tem sido largamente aceito em diferentes vertentes dos estudos linguísticos, até mesmo nas de caráter mais formal. No entanto, o reconhecimento do caráter variável da língua parece ainda insuficiente para superar, no caso do ensino de língua portuguesa, a tradição gramatical que se impõe nas escolas do 

Dedico este texto às professoras Rute Paranhos Mendes, Edivalda Alves Araújo e Maria Lúcia Souza Castro, que, no decorrer do meu curso de graduação, na UNEB/Câmpus V, foram responsáveis por descolonializar a minha visão sobre o (meu) português brasileiro. 1 Doutorando em Estudos Linguísticos (UNESP/São José do Rio Preto); Mestre em Língua e Cultura (UFBA); Professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal da Bahia/Câmpus Valença.

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Brasil (BAGNO, 2007, 2012; ANTUNES, 2012). Essa tradição, fundada em um modelo de língua portuguesa delineado por padrões da escrita literária canônica e lusitanizante, aponta uma única variedade – a norma-padrão – como responsável pela boa expressão oral e escrita, estigmatizando as demais variedades, que, vale dizer, representam as normas reais do português do Brasil. Assim, é possível observar, no ensino de língua portuguesa, um cenário paradoxal: enquanto os professores, em sua maioria, se “esforçam” para ensinar a norma-padrão, os alunos falam (e escrevem!) variedades do português que, em muito, se diferenciam das regras gramaticais que lhes são apresentadas. Não parece haver, portanto, o devido reconhecimento de que “convivem, no Brasil, as „normas vernáculas‟ ou o „português popular brasileiro‟; as „normas cultas‟ ou o „português culto brasileiro‟ e, no horizonte, paira ou pára a ‘norma padrão’” (MATTOS E SILVA, 2006, p. 230 – grifo acrescido). Esse não reconhecimento se deve, em parte, a razões mais profundas de natureza política e ideológica, que dizem respeito à construção histórica da identidade linguística da nação brasileira sob a diligência ideológica do colonialismo e, mais recentemente, da colonialidade (OLIVEIRA E CANDAU, 2005). Desse modo, a escolha e valorização de uma variedade lusitanizante do português como língua nacional do Brasil – e, por conseguinte, como a língua que a escola deve ensinar –, em detrimento daquelas que se formaram sob a influência do contato entre línguas de povos subalternizados (africanos e indígenas), traduz o reflexo da colonialidade no cenário linguístico brasileiro. De acordo com Oliveira e Candau (2005), a colonialidade é responsável por manter, em grande parte das nações que foram colonizadas pelos europeus, uma cosmovisão eurocêntrica, que se reflete em relações políticas, culturais, linguísticas, de construção de saberes etc.: Assim, o colonialismo é mais do que uma imposição política, militar, jurídica ou administrativa. Na forma da colonialidade, ele chega às raízes mais profundas de um povo e sobrevive apesar da descolonização ou da emancipação das colônias latino-americanas, asiáticas e africanas nos séculos XIX e XX. (OLIVEIRA e CANDAU, 2005, p.17)

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Dado o exposto, o presente artigo discute a noção de colonialidade e sua relação com questões de natureza linguística. Para tanto, mostra como o processo de definição da língua nacional do Brasil esteve atrelado ao colonialismo na forma da colonialidade. Com o intuito de suscitar uma reflexão sobre a necessidade de retirar as raízes da colonialidade do imaginário linguístico brasileiro, defende-se que a escola, por meio de um ensino de português pluralista e democrático, pode garantir a legitimação do português brasileiro, em sua diversidade, como língua materna e nacional. Dessa forma, sugere-se, para o ensino de português, a adoção da pedagogia descolonial, que se caracteriza como “um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade” (OLIVEIRA e CANDAU, 2005, p. 26). O texto se organiza da seguinte maneira: na próxima seção, discute-se o conceito de colonialidade e seus principais efeitos em termos políticos e ideológicos; apresenta-se, também, uma breve discussão sobre a necessidade de enfrentá-lo, pela Educação, a partir da pedagogia descolonial. Na seção 3, evidencia-se como, no Brasil, o processo de definição da língua nacional esteve sob influência da colonialidade; para isso, aborda-se, de um lado, o processo de formação do português do Brasil a partir da perspectiva da Transmissão linguística irregular (LUCCHESI, 2009, 2012) e, de outro, a implementação/imposição do português, em sua variedade lusitanizante, como língua nacional (GUIMARÃES, 2005). Na seção 4, apresenta-se uma proposta didática, em defesa do ensino da gramática do português brasileiro como uma forma de legitimar as variedades que, de fato, estão em uso no cenário linguístico brasileiro, de modo a refutar as proposições da tradição gramatical, responsáveis por disseminar a crença de que apenas a norma- padrão é capaz de garantir a comunicabilidade ideal2. Apresentam-se, para tanto, sugestões didáticas de análise linguística, seguindo atentamente as 2

É importante explicitar que o objetivo de “refutar as proposições da tradição gramatical” diz respeito às crenças assentadas nessa tradição. Nesse sentido, defende-se que o ensino da norma-padrão não deve ser banido da escola, haja vista a diversidade de textos “normativizados”, cuja compreensão requer o conhecimento de construções dessa variedade. Contudo, é preciso que se reflita sobre o caráter abstrato (tomada em oposição à norma culta) e político dessa norma, de modo a combater a crença de que só é possível falar e escrever bem por meio do seu uso. Nesse sentido, deve-se promover um trato simétrico, e não hierarquizado, entre as variedades linguísticas do português.

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recomendações dos PCN. Assim, a partir de um aspecto morfossintático, a saber, o emprego dos pronomes pessoais, busca-se mostrar que o português brasileiro, em suas diferentes normas, pode representar um importante material de análise nas aulas de português, visando a um ensino mais descritivo e menos prescritivo. Por fim, seguem as Considerações Finais.

2 A (DES)COLONIALIDADE

Na historiografia tradicional, é quase unânime a aceitação de que o processo de independência política do Brasil concretizou-se em 07 de setembro de 1822. Há um caloroso debate em torno dessa independência, na medida em que se questionam, para além do que se vê nos livros didáticos de história, as razões que a motivaram e os que por ela são, de fato, responsáveis. Contudo, o certo é que a independência política não determinou a independência no plano ideológico e cultural da nação. Como se observa nas diversas ex-colônias europeias, ainda há, em graus diferentes, uma fragilidade da identidade nacional dessas nações, em virtude da supervalorização de elementos que representam herança do colonizador em detrimento de elementos nativos. Dessa forma, no caso do Brasil, elementos de uma identidade genuinamente brasileira são subalternizados sob a perspectiva eurocêntrica: seja em relação a padrões estéticos, seja em relação a modos de religiosidade. Por exemplo, é sempre mais aceitável e admirável o que apresenta, em si, mais traços eurocêntricos. Define-se como colonialidade esse processo de valorização cultural e ideológica de elementos característicos do colonizador em detrimento dos elementos locais, resultante de outro processo, de caráter político-econômico, qual seja, o colonialismo (OLIVEIRA E CANDAU, 2010, p.18). Com efeito, a colonialidade, sustentada por firmes raízes na história política e cultural de uma nação, afeta todo o imaginário de povos que foram submetidos ao colonialismo. No Brasil e no mundo, a colonialidade ainda silencia vozes, práticas culturais, saberes e línguas:

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Assim, apesar de o colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (TORRES, 2007, apud OLIVEIRA e CADAU, 2010, p. 18)

Estudos mostram que a produção de conhecimentos, sobretudo nas Ciências Humanas, é danosamente afetada pela colonialidade, de modo que, nos países que foram colonizados pelos europeus, se estabeleceu a Colonialidade do Saber (OLIVEIRA E CANDAU, 2010; MIGNOLO 2005; PORTO-GONÇALVES, 2005), que reprime formas de conhecimento não-europeias, negando outros legados epistêmicos, de origem africana e indígena, por exemplo, o que resulta em uma epistemologia eurocêntrica. Em síntese: A Colonialidade do Saber nos revela, ainda, que, para além do legado de desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, já assinalados pela teoria da dependência e outras, há um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias. Como nos disse Walter Mignolo, o fato de os gregos terem inventado o pensamento filosófico não quer dizer que tenham inventado O Pensamento. O pensamento está em todos os lugares onde os diferentes povos e suas culturas se desenvolveram e, assim, são múltiplas as epistemes com seus muitos mundos de vida. Há, assim, uma diversidade epistêmica que comporta todo o patrimônio da humanidade acerca da vida, das águas, da terra, do fogo, do ar, dos homens. (PORTO-GONÇALVES, 2005, p.3)

No cenário brasileiro, pensar nas consequências da colonialidade é uma tarefa importante para a compreensão histórica e ideológica de muitos fenômenos sociais do país. Entre tantas outras consequências da colonialidade, responsáveis por corroborar o complexo vira-lata que acomete grande parte dos brasileiros, pode-se citar o currículo eurocêntrico que compõe o projeto político-pedagógico da maioria das escolas do país. É muito comum, por exemplo, que um aluno brasileiro do Ensino Médio tenha um conhecimento razoável e, em alguns casos, até acadêmico, sobre a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, mas nada conheça sobre a história da cidade onde mora. Como afirma Mignolo (2005, p. 37), “O imaginário do mundo moderno/colonial surgiu da complexa articulação de forças, de vozes escutadas ou

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apagadas, de memórias compactas ou fraturadas, de histórias contadas de um só lado, que suprimiram outras memórias” (grifo acrescido). Reafirmando o papel transformador da Educação, é possível defender uma política de combate à colonialidade a partir da escola, com o objetivo de promover a (re)construção de uma identidade nacional constituída a partir de uma relação mais simétrica entre as heranças culturais que a compõem. Nesse sentido, é preciso que se desenvolva uma pedagogia descolonial, destinada a “visibilizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas” (OLIVEIRA e CANDAU, 2010, p.24). Um exemplo bastante ilustrativo de ações pautadas por uma pedagogia descolonial faz parte das políticas voltadas para o fortalecimento de elementos da identidade afro-brasileira, ou seja, uma identidade escamoteada pela colonialidade, com o objetivo de combater o preconceito racial e promover a reparação dos danos sociais causados à população negra e indígena na história do país. Desse modo, a lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, alterada pela lei 11.645, de 10 de março de 2008, regulamenta a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas, visando a atender a uma demanda de comunidades histórica e socialmente subalternizadas por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos (OLIVEIRA e CANDAU , 2010, p. 31). Caracteriza-se, portanto, como uma tentativa de questionar a colonialidade do saber e do ser, visto que ensinar história e cultura afro-brasileira e Indígena significa trazer para a sala de aula fatos históricos que, há muito, não foram noticiados e legitimados, assim como o foram a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos. O reconhecimento da cultura afro-brasileira, por exemplo, conforme destacam Oliveira e Cadau (2010), ...passa pela ressignificação de termos como negro e raça, pela superação do etnocentrismo e das perspectivas eurocêntricas de interpretação da realidade brasileira e pela desconstrução de mentalidades e visões sobre a história da África e dos afro-brasileiros. Nos debates em torno da Lei 10.639/03, podemos observar algumas semelhanças com as reflexões sobre a colonialidade do poder, do saber e do ser e a possibilidade de novas construções teóricas para a emergência da diferença colonial no Brasil e de uma proposta de interculturalidade crítica e de uma pedagogia descolonial. (OLIVEIRA e CANDAU , 2010, p. 31)

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Assim, a colonialidade pode ser enfrentada por meio de uma pedagogia que privilegia a interculturalidade em oposição a uma abordagem “monocultural” assentada em valores eurocêntricos. E, como assinalado, grande parte dessas ações deve ser pensada na/para a Escola, na medida em que, a partir dela, mudanças sociais são efetivadas e propagadas para outros setores da sociedade. Como parte da cultura de um povo, a língua de uma nação também não se isenta das influências da colonialidade. No Brasil, a escolha de uma variedade linguística lusitanizante como a norma-padrão e língua nacional denuncia a vassalagem linguística em relação à metrópole, consequência direta da colonialidade no plano linguístico, conforme se discute na seção a seguir.

3 A COLONIALIDADE NO PLANO LINGUÍSTICO Segundo Oliveira e Candau (2010), o plano linguístico também é afetado pela colonialidade por meio de uma geopolítica caracterizada por eleger a língua do colonizador como a variedade de prestígio em detrimento do uso das línguas nativas. Destacam os autores que os processos de colonialidade do saber ...marcados por uma violência epistêmica, conduziram também a uma geopolítica linguística, já que as línguas coloniais ou imperiais, cronologicamente identificadas no grego e no latim na Antiguidade, e no italiano, no português, no castelhano, no francês, no inglês e no alemão na modernidade, estabeleceram o monopólio linguístico, desprezando as línguas nativas e, como consequência, subvertendo ideias, imaginários e as próprias cosmovisões nativas fora da Europa. (OLIVEIRA e CANDAU , 2010, p. 21 – grifos acrescidos)

Essa geopolítica foi responsável, no cenário brasileiro, por silenciar milhares de línguas indígenas e centenas de línguas africanas que eram faladas no país, principalmente, no período da colonização. Hoje, considerando que a língua de maior prestígio social é a norma-padrão, fundada em padrões lusitanos e sacramentada pelas gramáticas normativas, não é exagero dizer que a geopolítica linguística resultante da colonialidade silencia o português brasileiro, variedade que se distanciou do português

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europeu em vários aspectos, em virtude de ter surgido do intenso contato entre línguas, ocorrido nos primeiros séculos de formação da sociedade brasileira (LUCCHESI, 2012, p. 50).

Para uma compreensão mais ampla dos efeitos da colonialidade no cenário

linguístico brasileiro, é necessário abordar, de um lado, o processo de formação do português do Brasil e, de outro, a implementação/imposição do português, na variedade mais europeizada, como língua nacional. Uma via possível para explicar a formação do português brasileiro encontra-se no processo de Transmissão linguística irregular3, defendida por Lucchesi (2008, 2009, 2012), comum em contextos sócio-históricos específicos, em que houve intenso contato entre línguas. O cenário histórico e sociolinguístico que caracterizou o Brasil entre os séculos XVI e XVIII foi propício para que o português sofresse um processo de semicrioulização4. O regime escravocrata a que foram submetidos africanos e indígenas criou um contexto favorável ao contato maciço entre línguas e a formação de uma língua franca que pode ter se aproximado aos padrões de um crioulo de base lexical portuguesa: como não compartilhavam de uma mesma língua, africanos e indígenas tiveram de suprir suas necessidades comunicativas, desenvolvendo um código linguístico emergencial. Desse modo, à medida que esses povos passavam por uma radical submissão cultural e ideológica, as suas línguas eram silenciadas e, para substituí-las, tiveram que aprender, forçosa e irregularmente, a língua do colonizador. Essa aprendizagem, que, como se vê, acontecia em condições bastante adversas, era precária, dando origem a uma variedade defectiva da língua-alvo. Em outras palavras, A aquisição precária do português pelos escravos trazidos da África e pelos índios integrados na sociedade brasileira e a nativização desse modelo defectivo de português como língua segunda nas gerações seguintes de seus descendentes endógamos e mestiços desencadearam um processo de transmissão linguística irregular que teve importantes consequências para a formação da atual realidade linguística brasileira, nomeadamente para as suas variedades populares. (LUCCHESI, 2009, p. 71)

3

Abordagem bastante diferente da Transmissão linguística irregular é apresentada em Naro e Scherre (2007), que se fundamentam na ideia de deriva secular para explicar a formação do português brasileiro. 4 Para mais informações sobre os conceitos de crioulização e pidginização, consultar Lucchesi (2009).

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Indícios do uso desse modelo defectivo do português pelos escravos, no século XIX, podem ser encontrados na obra As vítimas algozes, de Joaquim Manuel de Macedo, publicada em 1869, como se observa no trecho a seguir:

Depois de breve silêncio, o Pai-Raiol falou. Por negação, incapacidade ou enfim por amor de sua língua ou dialeto selvagem, mas pátrio, o rancoroso escravo apesar de trazido ao Brasil há cerca de vinte anos, exprimia-se mal e deformemente em português, introduzindo muitas vezes na sua agreste conversação juras e frases africanas. O leitor deve ser poupado à interpretação dessa algaravia bárbara. (MACEDO, 2012 [1869], p. 103 – grifos acrescidos)

A descrição da variedade linguística utilizada pelo personagem Pai-Raiol, um escravo, denominada pelo narrador de “algaravia bárbara”, corrobora a ideia de que o português falado pelos escravos era resultado da transmissão linguística irregular, representando uma variedade defectiva do português europeu. No entanto, é importante ressaltar que, como não se observou na realidade brasileira o desenvolvimento efetivo de uma língua crioula, o mais adequado é afirmar que o português brasileiro, principalmente nas suas variedades populares, sofreu um processo de transmissão linguística irregular do tipo leve (LUCCHESI, 2009, p. 77). Segundo Lucchesi (2012, p.58), o reflexo mais notável de tal processo se dá na variação das regras de concordância nominal e verbal5, que se observam hoje nas variedades rurais e populares do português brasileiro: “As variedades que hoje exibem um grau maior de variação são aquelas que historicamente foram afetadas mais diretamente pelo contato entre línguas” (LUCCHESI, 2012, p. 58). Ainda que os traços mais notáveis do processo de transmissão linguística irregular estejam presentes nas variedades populares, é importante ressaltar que muitos deles também se manifestam na norma culta brasileira, o que explica o seu 5

Essa variação se refere à simplificação morfológica observada, por exemplo, nos sintagmas nominais em que a marca de plural aparece apenas no primeiro elemento (“os menino esperto”) e no paradigma de conjunção verbal (“eu canto; tu/você/ele/ela/a gente/nós/eles canta”). Em relação a esse último aspecto, Lucchesi (2009, p. 92) mostra que, em uma comunidade quilombola – Helvécia –, localizada no sul da Bahia, foi possível encontrar dados em que a variação atinge a primeira pessoa do singular (“eu sabe”), ocorrência bastante comum em línguas crioulas prototípicas.

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distanciamento, em muitos aspectos, da norma lusitanizante prescrita pelas gramáticas tradicionais. Mattos e Silva (2006), com base em dados históricos e demográficos, esclarece como as variedades do português resultantes do contato entre línguas se tornaram comuns em todo o território brasileiro, de modo a exercer influências, inclusive, nas variedades cultas. Segundo a autora, até o século XIX, a parcela da população que representava uma forte candidata a usar o português europeu – portugueses e lusodescendentes – era de apenas 30%, enquanto as demais etnias (africanos e afrodescendentes, principalmente), falantes das normas populares, perfaziam 70% (MATTOS e SILVA, 2006, p. 239). A autora destaca, ainda, que, até o século XIX, os brasileiros letrados não ultrapassariam 0,5%, dado que evidencia a ausência da pressão normativo-prescritiva da escola, para “corrigir” a variedade defectiva do português falada pela grande maioria da população6. Vale chamar a atenção para o fato de a abordagem apresentada para explicar a constituição linguística e sócio-histórica do português brasileiro, pautada por uma visão que reconhece o papel de povos não-europeus e de suas línguas na formação de um aspecto tão importante de uma cultura, nem sempre foi – e, em alguns casos, não é – aceita como a mais consistente para esclarecer a diversidade de suas normas. Nesse sentido, torna-se pertinente a retomada da noção de Colonialidade do Saber, que, como já se afirmou, impede que a produção de conhecimentos se firme sobre bases interculturalizadas e não-europeias. Lucchesi (2012), em outras palavras, trata da Colonialidade do Saber em Linguística, afirmando que

...qualquer hipótese que integre o contato entre línguas na formação histórica das variedades do português brasileiro tem de enfrentar uma forte resistência subjetiva que se desdobra, tanto no plano da ideologia, quanto no plano da própria teoria linguística. Até meados do século XX, grandes filólogos brasileiros que se debruçaram sobre o tema, imbuídos da visão conservadora e preconceituosa de superioridade cultural e linguística do colonizador europeu frente às populações indígenas e africanas, procuraram minimizar qualquer interferência desses povos na formação 6

Segundo Lucchesi (2012, p. 61), à medida que a população tem acesso a um sistema educacional de qualidade e as diferenças sociais sejam diminuídas, é possível que haja uma atenuação nas diferenças verificadas entre as normas linguísticas do país, favorecendo a assimilação cada vez maior dos modelos da norma culta.

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da realidade linguística brasileira. Por outro lado, a forte tradição imanentista que se estabeleceu na Linguística Moderna desde que Saussure decretou que a língua é uma estrutura que se move em função de sua lógica interna tem-se renovado, muitas vezes, de forma surpreendente, como no caso dos sociolinguistas Anthony Naro e Marta Scherre (1993 e 2007), que, resgatando o conceito sapiriano de deriva linguística, têm refutado qualquer proeminência do contato entre línguas na formação do português brasileiro, afirmando que o contato linguístico teria apenas acelerado tendências já presentes na evolução da língua portuguesa desde suas origens latinas. (LUCCHESI, 2012, p.47 – grifo acrescido)

Em geral, as práticas de ensino de língua portuguesa como língua materna não incorporaram a análise de normas reais do português brasileiro: privilegia-se a normapadrão, variedade idealizada que se materializa, ainda assim parcialmente, em textos escritos com alto grau de monitoramento7. A valorização dessa norma em detrimento das variedades que se formaram a partir de uma miscigenação linguística demonstra, portanto, a colonialidade no estabelecimento da língua nacional do Brasil, que, nessa perspectiva, deveria ser a língua “pura” herdada da Metrópole – país europeu –, e não aquelas que, tendo sido afetadas (para não dizer “infectadas”) por povos outros, não dispunham do mesmo nível de civilidade. Nesse sentido, Mercer e Foltran (1993) ratificam que

No caso do Brasil, a norma escolar ainda soma o defeito de sua subserviência à norma prescritiva portuguesa. É por essa espécie de colonialismo normativo auto-imposto que se explica a razão de até hoje se preconizar a colocação dos pronomes pessoais átonos ao estilo português, em completa desconformidade com o que a elite brasileira pratica mesmo nas situações mais formais. (MERCER e FOLTRAN, 1993, p. 201 – grifos

acrescidos)

Como se disse mais acima, para compreender as manifestações da colonialidade no plano linguístico brasileiro, além de conhecer a sócio-história do português 7

Amorim e Silva (2011), após acompanharem, por duas semanas, as atividades de 10 professores de português de duas escolas públicas (uma municipal e outra estadual) da cidade de Muritiba – BA, constataram que, embora se reconheça a diversidade linguística do português e, em alguns casos, haja certo conhecimento teórico sobre a interface Sociolinguística/Ensino, o ensino de gramática normativa ainda é privilegiado em detrimento, inclusive, de atividades de leitura e produção de texto. Os professores que participaram da pesquisa alegaram que, por não disporem de tempo e material didático adequado para planejarem “aulas mais linguísticas”, mantêm-se focados na tradição gramatical.

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brasileiro, é necessário entender o processo político para a definição da língua nacional8 do Brasil. De acordo com Guimarães (2005), esse processo tem início quando Marquês de Pombal, através do Diretório dos Índios, proíbe, em 1757, o uso de línguas indígenas e gerais no país, o que implicou o uso extensivo do português, já estabelecida como língua oficial9. No início do século XIX, a vinda da Família Real para o Rio de Janeiro (1808), cidade que se tornou sede do Império, contribuiu para acentuar a valoração do português como língua de prestígio. Além disso, com o Rei, vieram para o país milhares de portugueses, aumentando o número de falantes nativos da língua europeia. Nesse período, houve, ainda, a criação de duas instituições culturais importantes para a “consagração” do português no território brasileiro: a Biblioteca Nacional e a Imprensa. No entanto, foi a partir da Independência (1822) que, de fato, se observaram discussões mais patentes sobre a escolha da língua que deveria representar a língua do povo brasileiro – língua nacional. Na época, já se reconheciam diferenças entre o português considerado a língua oficial e a sua variedade mais falada pelos brasileiros, a qual, no ardume do entusiasmo pela Independência, era chamada de “língua nacional”, para fugir do termo “português”, denominação da língua do antigo colonizador (GUIMARÃES, 2005, p. 15). Ainda nesse período, havia o embate entre adoção de outras denominações para referir-se à língua da nação brasileira, a saber, Língua Portuguesa e Língua Brasileira. A questão da “nomeação” da língua nacional se estende até o século XX, quando aparece na Constituição de 1946, ano em que foi criada uma comissão para definir a denominação mais adequada para a língua nacional. Segundo parecer da comissão, ficou estabelecido que a língua nacional do Brasil é a Língua Portuguesa – e não a Língua Brasileira, já reconhecida, na modalidade falada, como uma língua de gramática diferente da variedade europeia –, escolha que, segundo Guimarães (2005, p.16), garantia aos brasileiros o caráter de povo “civilizado”, pela adoção de uma língua de origem europeia como língua nacional (GUIMARÃES, 2005, p. 17). É válido salientar 8

“Língua nacional é a língua de um povo, enquanto língua que o caracteriza, que dá a seus falantes uma relação de pertencimento a esse povo” (GUIMARÃES, 2005, p. 11) 9 A língua oficial, por sua vez, “é a língua do Estado, aquela que é obrigatória nas ações formais do Estado, nos atos legais.” (GUIMARÃES, 2005, p. 11)

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que toda a discussão em torno da definição terminológica da língua nacional não tem efeitos apenas em termos de denominação. Subjaz a essa discussão a ideologia da colonialidade que se materializa em políticas voltadas para corroborar o processo de formação de uma nação numa cosmovisão eurocêntrica, mantida à custa do silenciamento e aniquilação de perspectivas locais e nativas: nessa perspectiva, a língua portuguesa do colonizador, legitimada por ações políticas e respaldada ideologicamente pela colonialidade, silencia a língua portuguesa do povo brasileiro. A identificação da Língua Portuguesa, como língua nacional, decalcada em padrões lusitanos, tem hoje, como resultado mais direto, a manutenção do discurso de que a grande maioria dos brasileiros não sabe falar a própria língua. A língua nacional é, nesse caso, danosamente identificada com a língua materna:

Essa divisão, que elege um falar (ou falares) em detrimento de outro ou outros, assume maior gravidade se observarmos que a hierarquia traz consigo, além da sobreposição da língua oficial e da língua nacional, a sobreposição destas à língua materna (...). Com essa sobreposição, o português não é só a língua nacional e oficial, mas também a língua materna de todos os brasileiros. Desse modo, se um falar regional é identificado com o registro coloquial do português, então essa língua regional (toda ela) está fora da língua nacional e oficial. E, ao mesmo tempo, sendo a língua materna dos seus falantes, não é a língua materna deles enquanto brasileiros (é como se eles nunca falassem certo – ou, pior, como se nunca falassem). (GUIMARÃES, 2005, p. 24 – grifos acrescidos).

Considerando a relação um povo/uma nação/uma língua, constitutiva da noção de nacionalidade (GUIMARÃES, 2005, p.15), não seria exagero afirmar que, ainda hoje, falta à nacionalidade brasileira o reconhecimento político e cultural da verdadeira língua do Brasil. Por tudo isso, torna-se urgente que, no ensino de língua portuguesa, haja um crescente esforço pela descolonialização da ideia de língua nacional baseada na normapadrão do português, modelo idealizado e lusitanizante, o que, há séculos, tem causado impactos bastante negativos à autoestima do povo brasileiro. Nesse sentido, assumir uma pedagogia descolonial no ensino de português significa promover a legitimação das

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normas do português brasileiro, através de um trabalho descritivo e reflexivo: descritivo no sentido de analisar a sua estrutura e as suas regras de usos, assim como se faz com a norma-padrão, mas sem orientações normativas; e reflexivo com o intuito de discutir as relações entre essas normas e os aspectos socioculturais que subjazem a elas. Vale lembrar que os PCN, documento de grande relevância política e pedagógica e publicado há mais de uma década (1998), respaldam a necessidade da adoção de uma pedagogia descolonial, na medida em que condena o ensino estritamente baseado na norma-padrão, apresentando inúmeras diretrizes para a abordagem da variação linguística na sala de aula, a partir de uma descrição linguístico-reflexiva (“uso-reflexão-uso”) das normas cultas e populares do português do Brasil. As implicações da adoção de um ensino de língua materna sob essas diretrizes são de grande relevância para a construção de uma escola democrática e inclusiva, conforme explica Lucchesi (2011): Informar ao aluno que a língua é plural e admite formas variantes de expressão, cada uma legítima em seu universo cultural específico, não é apenas a forma mais adequada de fazer com que o aluno conheça a realidade de sua língua, mas um preceito essencial de uma educação cidadã, fundada nos princípios democráticos do reconhecimento da diferença como parte integrante do respeito à dignidade da pessoa humana (...). O reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser prejudicial, é uma condição sine qua non para uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem menosprezar sua bagagem cultural. (LUCHESI, 2011, p. 167)

A seção a seguir apresenta uma proposta didática para o ensino do português brasileiro. Sem a pretensão de se caracterizar como uma receita, trata-se de uma proposta que objetiva mostrar, em termos práticos, como se pode adotar a pedagogia descolonial nas aulas de português.

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4 O PORTUGUÊS BRASILEIRO NA SALA DE AULA: PROPOSTA DIDÁTICA

Desde que as pesquisas sociolinguísticas começaram a ser tratadas na perspectiva dos estudos aplicados da linguagem, surgiram muitos trabalhos com o objetivo de orientar o professor da Educação Básica a tratar de fenômenos de variação e mudança nas aulas de língua materna. Entre esses trabalhos, no cenário brasileiro, destaca-se a publicação de um considerável número de artigos assentados na interface Sociolinguística/Ensino: Mercer e Foltran (1993), Guy e Zilles (2006), Callou (2008), Coan e Freitag (2010), Baronas (2011), Berlinck (2012), Lucchesi (2011), Duarte (2013), para citar alguns. Vale salientar que esses textos são bastante didáticos e têm em comum

o

fato

de

apresentarem

uma

revisão

teórica

da

Sociolinguística

Variacionista/Quantitativa e suas implicações para o ensino de português como língua materna. Além dos artigos, identificam-se muitos livros que podem representar um valioso material para o professor de português e de áreas afins que, alinhado às diretrizes dos PCN, busca embasamento para trabalhar com a descrição linguística sob o eixo USO – REFLEXÃO – USO (MATTOS e SILVA, 2006 [2004]; BAGNO, 2007; ANTUNES, 2011 [2003]; POSSENTI, 2012 [1996]; GERALDI, 2012[1984]; BORTONI-RICARDO et al, 2014). Com o objetivo de evidenciar, na prática, algumas das questões teóricas defendidas nas seções anteriores, apresenta-se esta proposta didática10, que deve representar uma sugestão, bastante simples e flexível, de ensino de gramática, no Ensino Médio, pautado por uma abordagem descritiva em defesa do português brasileiro como língua nacional. O aspecto morfossintático selecionado para a elaboração da proposta é o emprego dos pronomes pessoais, “conteúdo” geralmente previsto, no Ensino Médio, para a 2ª série. Utilizam-se, para o planejamento e execução das atividades sugeridas, a Pequena Gramática do Português Brasileiro (CASTILHO e ELIAS, 2012) e a 10

As atividades descritas a seguir foram executadas pelo autor deste artigo, no Instituto Federal da Bahia/Câmpus Valença, em turmas do segundo ano do Ensino Médio. Vale salientar que, em virtude das características específicas de cada turma e da realidade sócio-regional que caracteriza o ambiente escolar onde se deseja aplicar essas atividades, é preciso que o professor fique atento ao caráter flexível do planejamento, de modo que proceda às adaptações que se fizerem necessárias para atender à sua realidade escolar.

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Gramática de Bolso do Português Brasileiro (BAGNO, 2013), gramáticas que representam versões sintéticas da Gramática do Português Brasileiro (CASTILHO, 2010) e da Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (BAGNO, 2012), respectivamente11. Para o trabalho com os usos prescritos pela norma-padrão, utiliza-se o Curso Prático de Gramática (TERRA, 2003), uma típica gramática didáticotradicional. O objetivo geral da atividade é o de analisar o quadro dos pronomes pessoais do português brasileiro, comparando-o com o quadro fornecido pela norma-padrão, a fim de discutir os seus usos numa perspectiva de variação e mudança linguística. No primeiro momento, a turma deve ser refletir sobre a noção de “pessoas do discurso”, para, em seguida, ser capaz de reconhecer a sua relação com os pronomes pessoais. É possível apresentar a própria aula como uma situação discursiva, em um jogo bastante metalinguístico, em que o professor, ao assumir a fala, representa a primeira pessoa do discurso; enquanto os alunos, como ouvintes, representam a 2a pessoa. A 3a pessoa, nesse caso, seriam as pessoas do discurso, ou seja, o assunto em questão – elas. Na sequência, destaca-se que os pronomes pessoais referem-se diretamente a cada uma das pessoas do discurso, sendo, por isso, classificados como pronomes de primeira, segunda ou terceira pessoa. Dada as bases da definição de pronomes pessoais, em dupla, o aluno deve entrevistar o colega, a partir das seguintes perguntas:

a) Que forma você mais utiliza em referência à 1ª pessoa do plural: nós ou a gente? b) Que forma você mais utiliza para se referir à 2ª pessoa do singular e do plural: tu, você(s), (o)cê(s) ou vós?

11

A escolha pelas versões sintéticas de gramáticas descritivas do português brasileiro se deve à preocupação de que o professor interessado em aplicar as atividades sugeridas em suas aulas não dispusesse de tempo e, talvez, formação suficientemente consistente para consultar compêndios mais extensos e “acadêmicos” sobre o português brasileiro. No entanto, não sendo o caso – e ainda que seja! – fica o convite para a consulta às versões originais das gramáticas sugeridas.

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c) O uso dessas formas, no seu dia a dia, varia de acordo com a situação em que você está? Apresente exemplos.

É preciso orientar os alunos a responder a essas perguntas, esclarecendo que devem pensar nas mais diversas situações comunicativas, considerando as formas pronominais que efetivamente utilizam, mesmo que sejam socialmente estigmatizadas, como é o caso da forma “ocê”, apontada como típica de variedades mais populares. Em grupos, os alunos deverão sistematizar as respostas apresentadas às questões da atividade anterior no quadro a seguir, de modo que cada equipe apresente um quadro geral dos usos dos pronomes entre seus componentes:

PRONOMES PESSOAIS

1ª pessoa

Situação de uso

Quant.

2ª pessoa

Situação de uso

Quant.

Sistematizados os resultados em cada grupo, os quadros deverão ser socializados, a fim de que se chegue a um panorama geral das principais formas pronominais de 1ª e 2ª pessoas mais usadas entre os alunos da turma. Veja-se que, até este ponto, a proposta envolve um trabalho com a oralidade que, num primeiro momento, é exercitada por meio do gênero textual entrevista e, na sequência, pela

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discussão em grupo e exposição dos resultados, o que evidencia o seu alinhamento com os PCN:

A produção oral pode acontecer nas mais diversas circunstâncias, dentro dos mais diversos projetos: • atividades em grupo que envolvam o planejamento e realização de pesquisas e requeiram a definição de temas, a tomada de decisões sobre encaminhamentos, a divisão de tarefas, a apresentação de resultados; • atividades de resolução de problemas que exijam estimativa de resultados possíveis, verbalização, comparação e confronto de procedimentos empregados; (PCN/português, 1998, p. 39).

Após elencar no quadro as formas pronominais mais frequentes entre os alunos, chega o momento em que o professor deve comparar, de um lado, o quadro pronominal da norma culta e popular do português brasileiro e, de outro, o quadro apresentado pela tradição, representando a norma-padrão. Como sugestão, podem-se exibir os quadros a seguir: Quadro 1: Pronomes pessoais do português brasileiro (Fonte: Castilho e Elias (2012), p. 87)

Pessoa

12

Português brasileiro culto

Português popular brasileiro

Sujeito

Complemento

Sujeito

Complemento

1ª pessoa singular

do

Eu

Me, mim, comigo

Eu, a gente

Eu, me, mim, (preposição +) eu, mim

2ª pessoa singular

do

Tu, você, o senhor, a senhora

Te, ti, contigo, (Preposição +) o senhor, com a senhora

Você/ocê, tu

Você/ocê/cê, te, ti, (Preposição +)você/ocê (=doce/cocê)

3ª pessoa singular

do

Ele, ela

O/a (em desaparecimento), lhe, se, si, consigo

Ele/ei, ela

Ele, ela, lhe, (Preposição +) ele, ela

12

No quadro original, Castilho e Elias (2012) utilizam as expressões “português brasileiro formal” e “português brasileiro informal” para apresentar a distribuição dos pronomes pessoais. Entretanto, ainda que se mantenha uma dicotomia – o que não parece adequado para tratar de usos da língua, que sempre se distribuem em continua –, consideram-se mais adequadas as denominações “português brasileiro culto” e “português popular brasileiro”.

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1ª pessoa plural

do

Nós/a gente13

Nos, conosco

A gente

A gente, (Preposição +) a gente

2ª pessoa plural

do

Vós (de uso muito restrito), os senhores, as senhoras, vocês

(Preposição +) os senhores, as senhores

Vocês/ocês/cês

Vocês/ocês/cês, (Preposição +)vocês/ocês

3ª pessoa plural

do

Eles, elas

Os/as (em desaparecimento), lhes, se, si, consigo

Eles/eis, elas

Eles/eis, elas, (Preposição +)eles/eis, elas

Quadro 2: Pronomes Pessoais do português, de acordo com a Gramática Tradicional (Fonte: de Terra (2003), p. 132). número

Pessoa

Pronomes retos

Pronomes oblíquos

singular

primeira

Eu

me, mim, comigo

segunda

Tu

te, ti, contigo

terceira

ele/ela

se, si, consigo, o, a, lhe

primeira

nós

nos, conosco

segunda

vós

vos, convosco

terceira

eles/elas

se, si, consigo, os, as, lhes

plural

A comparação adequada entre os dois quadros, a princípio, é possível mediante a distinção entre as abordagens descritiva e prescritiva/normativa da língua. Dessa forma, sendo esta uma aula destinada à descrição linguística, a qual não deve se restringir à exposição dos aspectos apenas formais dos pronomes, seria pertinente discutir as concepções de língua que nortearam a construção de cada quadro, cabendo, também, introduzir/revisar as noções de norma linguística, numa perspectiva – para ser mais

13

No quadro originalmente apresentado pelos autores, a forma a gente aparece apenas como uma forma do “português brasileiro informal”. A opção por incluir o a gente no rol de formas pertencentes ao português formal encontra respaldo em vários estudos que mostram que esta forma apresenta largo uso na norma culta brasileira (Cf. LOPES, 2004)

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didático – tripartida: norma-padrão, norma culta e norma popular (Cf. MATTOS e SILVA, 2006). Nesse sentido, vale ressalvar que, no quadro 01, observa-se que as expressões “português brasileiro culto” e “português popular brasileiro” constituem denominações genéricas que representam uma “síntese de normas”, já que mesmo o português brasileiro culto pode apresentar variações, dependendo do nível de monitoramento exigido pela situação, e é imprescindível que isso fique bem claro para os alunos. A partir da análise desses quadros, o aluno tem a oportunidade de tomar consciência sobre inovações linguísticas já implementadas no português do Brasil, como é o caso da inserção da forma a gente no paradigma pronominal (Cf. LOPES, 2004). Essa conscientização linguística sobre a variação e mudança não seria possível se o professor adotasse apenas a abordagem tradicional: note-se que a forma a gente não aparece no quadro 02, representativo da norma-padrão. Finalizada a etapa de comparação entre os quadros, pode-se tratar dos empregos dos pronomes, estabelecendo um contraste entre o que a norma padrão impõe e o que se observa nos usos reais do português brasileiro culto e popular. Esses usos – tanto os reais quanto os impostos pela norma-padrão – referem a aspectos morfológicos e sintáticos. Dada à extensão limitada deste texto, a morfossintaxe dos pronomes pessoais é abordada em dois aspectos: i) a sintaxe dos pronomes pessoais usados como complementos e ii) a simplificação das regras de concordância verbal em virtude da reorganização do quadro de pronomes pessoais. Contudo, é possível que o professor, dispondo, por exemplo, de três ou quatro aulas semanais, consiga abordar outros aspectos atinentes à morfossintaxe dos pronomes, com o cuidado de não concentrar a sua exposição em uma única aula, a fim evitar uma “overdose” de descrição linguística. Sobre o primeiro aspecto, a gramática tradicional prescreve que apenas os pronomes pessoais do caso oblíquo devem ser utilizados como complemento verbal, estabelecendo “funções fixas” para alguns deles, como as formas o(s)/a(s), que devem ser empregadas como complementos de verbos transitivos diretos, e lhe(s), que deve(m) completar apenas verbos transitivos indiretos (BECHARA, 2009 [1999]; TERRA,

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2003). No entanto, qualquer ouvido (des)atento é capaz de perceber que, no português brasileiro falado, mesmo na norma culta, em situações mais monitoradas, o uso dos pronomes como complementos é variável. Assim, é comum, por exemplo, o uso do lhe como objeto direto (“Eu nunca lhe vi antes por aqui!”) e, em vez das formas o(s)/a(s)14, o uso de ele(s)/ela(s) também como complementos de verbos transitivos diretos (“Júlio expulsou eles aos gritos.”). Para trazer dados empíricos a essa exposição, seria interessante que o professor exibisse vídeos com trechos de discursos ou entrevistas dadas por autores da literatura contemporânea ou mesmo por jornalistas e consultores gramaticais: não seria tarefa difícil flagrar, na fala desses indivíduos, empregos de ele(s)/ela(s) como objeto direto, o que legitimaria a afirmação de que esses usos já se infiltraram largamente na norma culta brasileira15. Quanto à simplificação das regras de concordância verbal, em virtude da reorganização do quadro de pronomes pessoais, destaca-se que i) o favorecimento crescente da forma a gente para se referir à 1ª pessoa do plural; ii) o uso bastante restrito e regional do pronome tu e iii) o desaparecimento, na modalidade falada e escrita16, do vós representam fenômenos responsáveis por alterar o paradigma da conjugação verbal do português brasileiro, havendo, na grande maioria de suas variedades, quatro formas para o verbo (“Eu falo; você/ele/a gente fala; nós falamos; vocês/eles falam”), e não mais seis formas, conforme prescreve a norma padrão (BAGNO, 2007, p. 149). Nesse aspecto, considerando-se o português popular brasileiro, observa-se que a simplificação é ainda mais intensa, como mostra o quadro a seguir:

14

Bagno (2007) destaca que o uso das formas o(s)/(as) tem se restringido a sentenças estereotipadas (“Eu a vi na festa”) em virtude do patrulhamento gramatical. O uso dos demais pronomes retos, como eu, tu e nós, em função de complemento (“Leva nós também”), apresenta baixa frequência na norma culta, sendo comum apenas em variedades populares. 15 O professor não pode deixar, no entanto, de tratar, nesse ponto, do caráter conservador da escrita que, nos gêneros mais formais, resistem a esses usos. 16 Na escrita, o pronome vós está restrito a certas tradições textuais, mais formulaicas, como as que pertencem ao domínio religioso.

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Quadro 03: Paradigmas de conjugação verbal do português brasileiro (BAGNO, 2007, p. 133) Variedades + estigmatizadas

Variedades + prestigiadas

Norma-padrão

Eu

FALO

eu

FALO

eu

FALO

você [tu]

FALA

você

FALA

tu

FALAS

ele

FALA

ele

FALA

ele

FALA

a gente [nós]

FALA

a gente

FALA

nós

FALAMOS

eles

FALA

nós

FALAMOS

vós

FALAIS

vocês

FALAM

eles

FALAM

eles

FALAM

Mais uma vez, com vistas a suscitar reflexões para além dos aspectos estritamente formais da análise linguística, pode o professor comparar o paradigma de conjugação verbal do português popular brasileiro ao inglês padrão, que também apresenta um quadro bastante simplificado de concordância: “I speak; you speak; He/she/it speaks; we speak; you speak”. O objetivo dessa comparação é conduzir o aluno à compreensão de que a valoração de uma variedade linguística é de natureza sociopolítica. Como afirma Lucchesi (2011, p.173):

Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe marca específica, mas o inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar. Fica evidente que o valor das formas linguísticas não é intrínseco a elas, mas o resultado da avaliação social impingida aos seus usuários.

Com isso, “compreendendo a natureza da variação linguística, espera-se do aluno uma postura respeitosa no trato das diferenças sociolinguísticas, a valorização da pluralidade sociocultural e consciência acerca da avaliação social das variantes” (COAN e FREITAG, 2010, p. 192).

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Por fim, como forma de avaliação, pode-se solicitar que os alunos se reúnam em grupos, que, dispondo de coletânea de textos composta de diferentes gêneros textuais, devem analisar empregos de diferentes pronomes. Para que seja possível a identificação de formas variadas de pronomes, deve o professor prover cada grupo de gêneros textuais escritos com diferentes graus de formalidade; assim será possível encontrar, por exemplo, ocorrências de vós em textos bíblicos e jurídicos, ou de a gente em blogs e crônicas. Visando à sistematização da pesquisa, de modo que haja a compreensão das formas linguísticas nos seus usos interacionais e sociais, conforme recomendam os PCN, sugere-se a organização dos dados na tabela a seguir, que poderá servir ao professor, se julgar necessário, como um registro escrito para atribuição de nota qualitativo-quantitativa:

Forma Pronominal

Função sintática (Sujeito/Compl.)

Gênero Textual

Função comunicativa do texto

Contexto de ocorrência

Essa atividade pode ser acrescida da apresentação de uma questão discursiva, conforme fez o autor deste texto numa escola pública localizada no interior da Bahia. Segue a questão e a transcrição da resposta dada pelas alunas L. e L.17, da 2ª série do Ensino Médio.

17

A atividade foi realizada em dupla.

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QUESTÃO Observe a sentença a seguir: – Onde você viu Silvio? – Vi ele na sala da diretora. A construção em destaque é aceita pela norma padrão? Na língua falada, “vi ele” seria uma construção identificada como “errada” pela grande maioria dos falantes do português brasileiro? Com base nas ideias suscitadas por esses questionamentos, elabore um pequeno texto em que você se posicione acerca do contraste existente entre o padrão de língua proposto pela gramática normativa e o português do Brasil.

R: A tendência proclítica do português brasileiro é um exemplo de como as regras gramaticais são desconhecidas ou ignoradas pelos seus falantes em geral. Além disso, a existência da variação linguística, em um mesmo idioma, nunca será extinta, ainda que as desigualdades sociais sejam reduzidas. A língua falada tende a optar por expressões menos complexas (sic). Logo, se tal contraste é inevitável deve haver discernimento dos interlocutores para adequar a linguagem à ocasião. Todavia, quando o falante domina apenas a variedade oral e de cunho popular (menos prestigiada) é imprescindível a consciência de que toda forma de comunicação é digna de respeito.

Note-se que a resposta dada pelas alunas evidencia a sua compreensão sobre os aspectos mais gerais do fenômeno da variação linguística e do contraste entre os usos reais da língua e aqueles recomendados pela norma-padrão. Espera-se que a aplicação dessas atividades em outras instituições possa resultar em respostas tão animadoras quanto a que se transcreve acima para os professores comprometidos com um ensino de língua portuguesa baseado em valores pluralistas e cidadãos. A proposta descrita, ao considerar usos variáveis dos pronomes pessoais e discutir aspectos socioculturais atrelados a esses usos, insere-se na pedagogia descolonial, definida por estratégias didáticas destinadas a valorizar, no âmbito escolar, saberes e práticas silenciados pela colonialidade. Nesse sentido, essa proposta considera não apenas os usos dos pronomes pessoais licenciados pela norma-padrão, mas aqueles que caracterizam outras variedades, justamente as que, genuinamente, representam as línguas do Brasil. Com isso, desconstrói-se, em sala de aula, a hierarquização social da

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variação linguística, suscitando o respeito às variedades estigmatizadas e o reconhecimento do seu lugar no processo de adequação linguística. Assim, por meio de um ensino de português pautado pela pedagogia descolonial, é possível combater a vassalagem à norma lusitanizante e fazer emergir, em seu lugar, o empoderamento linguístico do aluno, fortalecendo a sua autoestima linguística e pessoal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do ponto de vista linguístico, o colonialismo, que, na modernidade, persiste sob a forma da colonialidade, deixou aos brasileiros um legado ideológico materializado, entre outros aspectos, no discurso de que não sabem falar a própria língua. Mesmo com as notáveis contribuições de pesquisas sociolinguísticas para o ensino de língua portuguesa, a partir do reconhecimento da variação e do combate ao preconceito linguístico, a escola ainda não se mostra capaz de fortalecer a autoestima linguística de milhões de brasileiros que, apesar de “nunca desistirem”, frustram-se por não conseguirem falar como manda a gramática normativa. Se, muito antes, tivesse havido uma política de reconhecimento do português brasileiro como língua nacional, ainda que se tratasse apenas da variedade culta, mas real, o imaginário linguístico do povo brasileiro seria hoje menos submisso à norma-padrão lusitanizante. É importante lembrar que o português brasileiro, nos termos aqui definidos, não dispõe de mecanismos que o legitimem, tal qual a norma-padrão:

...a norma chamada padrão difere da norma de cada variedade no sentido de apoiar-se num conjunto de procedimentos de fixação e de instrumentos de legitimação que constituem o processo de padronização: confecção de dicionários e gramáticas; aprovação de leis e decretos fixando as formas corretas, especialmente na ortografia; instituição de órgãos consultivos e de fiscalização; legitimação pela literatura escrita, pela mídia e pelos concursos públicos. (GUY e ZILLES, 2006, p. 47)

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Dessa maneira, não contando com nenhum desses elementos – embora tenha havido tentativas de sistematizá-lo em gramáticas descritivas e pedagógicas – e sob a influência histórico-ideológica da colonialidade, o português brasileiro se torna marginalizado (“errado”) no imaginário social e, por conseguinte, nas práticas escolares. A possibilidade de mudança desse quadro está na adoção da pedagogia descolonial que, no âmbito do ensino de português, alinha-se às práticas pautadas pela sociolinguística e respaldadas nos PCN. Assim, a inclusão do português brasileiro nas atividades de análise linguística, mediadas por reflexões acerca dos aspectos sociopolíticos ligados à língua, representa um passo importante na busca por sua legitimação, de modo que as suas regras sejam ensinadas e discutidas, paralelamente (sem hierarquização!) à normapadrão, que, inegavelmente, ocupa um lugar que já não pode mais ser extinto. Fica, então, a esperança de que, parafraseando Manuel Bandeira, em vez de macaquear a sintaxe lusíada, o povo brasileiro adote, com orgulho, a língua certa do povo, que, ao longo da história do país, foi construída e propagada, majoritariamente, pelos afro-brasileiros (cf. MATTOS e SILVA, 2006; LUCCHESI, 2012). Dessa forma, é preciso que o nosso imaginário sobre a língua seja reconstruído, promovendo, no cenário linguístico nacional, um reencontro do país consigo mesmo e a superação de uma noção de língua nacional que se delineou como parte de um projeto anacrônico de sociedade apenas branca e europeizada (FARACO, 2006, p. 25).

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Recebido Para Publicação em 19 de outubro de 2014. Aprovado Para Publicação em 26 de novembro de 2014.

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