Ensino e aprendizado de pintura em Minas Gerais. In: 3º Encontro Internacional de História Colonial, Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE

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3º Encontro Internacional de História Colonial

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO – UFRPE UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE

3º E

NCONTRO

I

NTERNACIONAL DE

H C ISTÓRIA

OLONIAL:

CULTURA, PODERES E SOCIABILIDADES NO MUNDO ATLÂNTICO (SÉC. XV-XVIII)

04 a 07 de setembro de 2010 Recife, Pernambuco – Brasil 1

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COMISSÃO ORGANIZADORA Suely Creusa Cordeiro de Almeida – UFRPE (Presidente da Comissão Organizadora) Kalina Vanderlei Silva – UPE – PPGH/UFRPE Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE George Félix Cabral de Souza – UFPE Ricardo Pinto de Medeiros – UFPE COMISSÃO CIENTÍFICA Antônio Filipe Pereira Caetano - UFAL Carla Mary Oliveira - UFPB Carmela Velásquez Bonilla - Universidad de Costa Rica Carmem Alveal - UFRN Célia Nonata da Silva - UFAL Eduardo França Paiva -UFMG Everton Sales - UFBA Fátima Lopes - UFRN José Manuel Santos Perez - Universidad de Salamanca Juciene Ricarte Apolinário - UFCG Márcia Mello - UFAM Marco Nunes - UFRB Maria de Deus Beites Manso - Universidade de Évora Maria Emilia Porto - UFRN Paulo Possamai - UFPEL Pedro Cardim - Universidade Nova de Lisboa Rafael Chambouleyron - UFPA Regina Célia Gonçalves - UFPB Tanya Brandão - UFPE Virgínia Almoêdo - UFPE SECRETARIA DO EVENTO Gian Carlo de Melo Silva - UFPE e UFAL ANAIS ORGANIZAÇÃO E REVISÃO Gian Carlo de Melo Silva - UFPE e UFAL Gustavo Manoel da Silva Gomes - UFRPE Jacilene dos Santos Clemente - UFPE Vagne de Melo Oliveira - UFPE Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale Encontro Internacional de História Colonial (3 : 2010 : Recife, PE) Anais do 3º Encontro Internacional de História Colonial : cultura, poderes e sociabilidades no mundo atlântico (séc. XV-XVIII), Recife, setembro 07-11, 2010/ Universidade Federal de Pernambuco. Recife : UFPE, 2011. 1364 p. : il. Modo de acesso: internet. ISBN 978-85-7315-767-3 1. História – Encontro. 2. História colonial. I. Universidade Federal de Pernambuco. II. www.ufpe.br/anaiseihc2010. CDU: 94(100)”14/17” (063)

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ST 07 Educação na América Portuguesa. Maria Inês Sucupira Stamatto – UFRN [email protected] Thais Nivia de Lima e Fonseca – UFMG [email protected]

Embora ainda menos visível na historiografia que outros aspectos da sociedade brasileira no período colonial, a educação, em várias de suas dimensões, foi um elemento importante na vida das populações nas diversas capitanias da América portuguesa. O objetivo deste Simpósio é discutir os múltiplos processos e diferentes práticas educativas, nas suas relações com as instituições seculares e eclesiásticas, como elementos de mediação nas relações entre os indivíduos e entre eles e as instituições e na construção das sociabilidades, considerando-se o período do século XVI às primeiras décadas do século XIX. Alguns dos aspectos a serem considerados, no quadro de diversidade educacional no período estão: o processo de institucionalização da escolarização elementar; espaços da educação não escolar, voltados para a formação profissional, moral e cívica; os diversos processos de inserção dos indivíduos na cultura escrita; a produção e circulação de materiais impressos para as atividades educacionais e de instrução; o ideário pedagógico e os métodos circulantes entre os séculos XVI e XVIII; a legislação e as reformas educacionais empreendidas pelo estado; aspectos da vida e do trabalho dos mestres e professores nas diversas instâncias educacionais, estatais e privadas; a inserção dos diferentes segmentos da sociedade naquelas instâncias (elites, brancos pobres, mestiços, negros e escravos, mulheres, indígenas).

ARTIGOS

ENSINO E APRENDIZADO DE PINTURA EM MINAS GERAIS (SÉCULOS XVIII E XIX)2419

MATEUS ALVES SILVA MESTRANDO EM HISTÓRIA [email protected]

Introdução É já reconhecida a pintura produzida em Minas Gerais entre os séculos XVIII e XIX como constitutiva de uma linguagem típica. Alguns autores certamente observam essa singularidade como definição estilística específica, qual 2420 seja, a de “barroco mineiro” . Além do trabalho realizado por esses autores no que diz respeito à classificação das obras e a definição de tipologias, baseadas principalmente na comparação formal, tem-se também a série de pesquisas realizadas segundo a análise documental. Essa forma de análise vai de encontro aos documentos relativos aos contratos entre pintores e igrejas, irmandades e instituições particulares, fonte bastante rica no que diz respeito à 2421 atuação social dos pintores . São recentes, contudo, os trabalhos que buscarão entender a lógica da produção 2419

Este trabalho é fruto do desenvolvimento de pesquisa de mestrado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais, intitulada “O tratado de Andrea Pozzo e a pintura de perspectiva no Distrito Diamantino”, financiado pela CAPES. 2420 ÁVILA, Afonso. Barroco Mineiro. Glossário de arquitetura e ornamentação. Belo Horizonte, 1979. OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. A imagem religiosa no Brasil. São Paulo: Brasil 500 anos, 2000. 2421 ALVES, Célio Macedo. Artistas e irmãos: o fazer artístico no ciclo do ouro mineiro. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. Dissertação de mestrado, 1997.

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pictórica em território mineiro a partir do universo de referências particulares dos pintores (livros, gravuras, 2422 mestres) bem como a constituição social do ambiente da pintura, a partir das oficinas e do aprendizado. Nesta última referência têm-se a proposta de análise acerca do ensino e aprendizado da arte de pintar, realizados em diversos campos e que possibilitam a difusão da técnica, de elementos estilísticos, e do próprio gosto recorrente. Entende-se que a percepção do universo relacional dos pintores possibilita não só a compreensão dos mecanismos de transmissão do conhecimento, mas também a constituição fortalecida de um campo específico da pintura, no caso específico das Minas destituído de organizações tradicionais como escolas formais de pintura, academias ou irmandades de pintores. A capitania de Minas Gerais apresenta certa singularidade em sua organização social, fato esse que pode explicar a especificidade de suas práticas educativas, de qualquer natureza. Dois elementos que pretende-se citar aqui e que têm ligação direta com a produção artística estão ligados à proibição das ordens e a não regulamentação dos ofícios mecânicos. Segundo Fonseca, a proibição da instalação de ordens primeiras e segundas na Capitania impediu a 2423 constituição de um sistema de ensino formalizado, não obstante a existência de aulas particulares . De outro ponto de vista, a proibição das ordens teve grande peso no desenvolvimento da cultura artística na Capitania, uma vez que ficava ao encargo das ordens terceiras e irmandades a ereção das igrejas e sua consequente decoração. Haja visto que a maior parte do patrimônio pictórico existente nos dias atuais se encontra na produção de objetos de natureza religiosa (à exceção dos retratos e coleções particulares), faz-se necessário recorrer à documentação de igrejas, irmandades e ordens para se compreender os mecanismos de produção da pintura e os consequentes vestígios das práticas educativas. Outro ponto de grande relevância é a não definição e normatização dos ofícios, já outrora analisado por 2424 Meneses . Segundo o autor a complexidade das relações de trabalho sugere novas formas de organização a princípio consoantes e dissonantes da estrutura portuguesa. A pintura, oscilando entre ofício mecânico e arte liberal, não terá regulamentação determinada nas Minas, assim como demais ofícios. No que diz respeito à constituição das oficinas, portanto, não se tem expressiva documentação a respeito e a relação entre os mestres e aprendizes só pode ser vislumbrada a partir de documentos de outra natureza. Resumidamente temos a noção do processo de aprendizado das artes e ofícios da Capitania sintetizada por Jeaneth Araújo: No que diz respeito ao ensino das artes e ofícios nas Minas setecentistas, foi possível verificar a concretização do aprendizado no próprio canteiro de obras. Constata-se a atuação em parceria de artistas e artífices em uma mesma obra, e também e consequentemente, a criação de relações de parentesco favorecidas pela vivência profissional. Tem-se a comprovação, através dos testamentos, do legado de instrumentos de trabalho para escravos, quando considerados bons servos. Ou mencionou-se nos inventários e testamentos os moleques que haviam aprendido o mesmo ofício do 2425 dono, como também os processos-crime envolvendo artistas .

Portanto, a respeito das fontes sobre o ensino e aprendizado de pintura temos o escopo documental já trabalhado para a análise da produção artística geral. Outros documentos são de natureza cartorial, notadamente os inventários, que oferecem vestígios da condição social dos pintores, materiais de trabalho, posse de livros e até 2426 mesmo possíveis aprendizes. Os contratos de serviço, como trabalhado por Célio Alves , apresentam diversas relações entre os pintores e as irmandades e ordens terceiras, possibilitando a localização exata do trabalho com a pintura. Dentre esses pudemos localizar também o não cumprimento dos contratos e que, levados a instâncias superiores, desencadeou na elaboração das devassas e libelos cíveis contra irmandades. O documento, citado adiante, revela informações preciosas sobre o universo relacional dos pintores. E um último tipo de fonte, de grande expressividade, reflete a tentativa de constituição de aulas públicas de pintura e desenho, demonstrando a necessidade por parte dos pintores de uma maior institucionalização de sua atividade. É no debruçar sobre esses documentos que se puderam lançar algumas luzes a respeito do ensino da arte de pintar.

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SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de impressos europeus na configuração do universo pictórico mineiro (1777 – 1830). Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. Tese de doutoramento, 2009. ALVES, Célio. Op. cit. OLIVEIRA, Myrian Ribeiro de. O rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 2423 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Portugueses em Minas Gerais no século XVIII: Cultura escrita e práticas educativas. In: II ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL. Anais ... Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9 n. 24, set/out 2008. Ver também VILLALTA, Luiz Carlos. Ler, escrever, bibliotecas e estratificação social. In: VILLALTA, Luiz Carlos e RESENDE, Maria Efigênia Lage de. As minas setecentistas. vol. 2. Belo Horizonte: Autêntica, Companhia do Tempo, 2007. p. 289-312. 2424 MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e ofícios banais. Ofícios mecânicos e as câmaras no final do Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa 1750-1808. Universidade Federal Fluminense. Tese de Doutorado, 2003. 2425 ARAÚJO, Jeaneth Xavier. A pintura de Manoel da Costa Ataíde no contexto da época moderna. In: CAMPOS, Adalgisa Arantes (org). Manoel da Costa Ataíde. Aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos. Belo Horizonte: C/Arte, 2005. 2426 ALVES, Célio. Op. cit.

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Arte de pintar no mundo português O aprendizado de pintura em Portugal desde o período medieval era organizado segundo regras pertencentes também aos demais ofícios. A oficina era espaço privilegiado para a formação de novos pintores e seu regimento era específico. Além disso, a constituição de formações oficineiras baseadas nas relações familiares ampliava a reprodução e transmissão de conhecimento tradicional. A discussão, contudo, cara desde a Antiguidade às questões ligadas ao estatuto da pintura, oscilando entre ofício mecânico e arte liberal não passou desapercebida aos artistas lusitanos entre a segunda metade do século XVI e o primeiro terço do século XVII, como demonstrado por Jeaneth Xavier. Para esses, a rigorosa estrutura corporativa dos ofícios ligados às artes (sob a bandeira da Irmandade de São Jorge) impedia a atuação independente, mantendo sua estrutura servil. Com tal discussão pôde-se engendrar uma nova possibilidade aos pintores que, considerando-se como artistas liberais, puderam trabalhar de forma mais livre. Segundo Xavier, “essa liberalidade adquirida para a arte da pintura foi fruto de longas e sucessivas batalhas 2427 individuais e coletivas para o reconhecimento da arte desses pintores e desvinculação das obrigações mesterais” . Vê-se nesse momento uma mudança na estrutura da arte da pintura em solo português. Desobrigados das taxas e tributos oriundos da vinculação à Bandeira de São Jorge, os pintores fundaram em 1602 em Lisboa a Irmandade de São Lucas. Sob essa nova bandeira, os pintores poderiam trabalhar de forma independente e com relativa segurança segundo as normas da própria irmandade. Nota-se que essa irmandade não era unicamente reservada aos pintores mas “aos pintores todos assim de olio como de tempera, architectos, 2428 sculptores, illuminadores ou outras quaisquer pessoas que professarem debuxo que quizerem ser irmãos” , como é atestado no Compromisso da Irmandade. Essa organização funcionará de 1602 até 1808, quando da invasão francesa a Portugal, tendo, porém, momentos de inatividade sobretudo após o terremoto de 1755. Portanto, permanecia nas mãos das oficinas portuguesas o ensino e aprendizado da pintura, com a inexistência de uma academia formalizada. Esta só se constituiu no reinado de D. João V, porém na cidade de Roma. Ainda que por curto período de tempo (1720 – 1728) a Academia Portuguesa em Roma funcionou como um grande centro para a formação dos pintores lusitanos e promoveu significativa mudança no cenário da pintura, com a 2429 inclusão de novos modelos oriundos de Roma . A tentativa frustrada de se instaurar em solo português por volta de 1730 uma nova academia parece também sugerir a força das instituições locais avessas à modificação que a introdução de um centro institucionalizado de artes em Portugal poderia suscitar no cenário artístico do país. Inicialmente alheia ao universo acadêmico, a Irmandade de São Lucas funcionava, assim como as demais, como uma garantia para os praticantes da arte da pintura. Por seus termos, os irmãos deveriam ser socorridos em caso de emergências, de doença, de serem presos. Além disso em seu compromisso discorria-se sobre a situação da família quando da morte do irmão, bem como dos paramentos necessários para seu enterro. É portanto, como referido por Jeaneth Xavier, uma irmandade de caráter assistencialista e religioso. Ainda no próprio seio da irmandade se vê, com o passar do tempo e o desenvolvimento da instituição, a necessidade por parte dos pintores da constituição de uma academia específica para o ensino e discussão da pintura. Do ponto de visto da instrução, a Academia era o espaço privilegiado para o aprendizado de toda a estrutura da arte, assim como de elementos acessórios à pintura. Das academias de pintura a de melhor exemplo é a italiana Accademia di San Luca, fundada em 1593. Segundo André Dangelo, “em Roma, estudar na Accademia di San Luca não era só o sonho de qualquer jovem artista que ansiava seguir na profissão de arquitetura, mas principalmente era sinônimo de 2430 prestígio e de atualização artística. Era estar, em última instância, sob a orientação dos melhores mestres da Itália” . Ao retornar à Irmandade de São Lucas percebe-se, a partir da documentação, a constante necessidade por parte dos membros da constituição de uma Academia. Um exemplo disso são as petições enviadas para ampliar o estatuto tanto da irmandade quanto o ofício de pintura. Volkmar Machado (1748-1823), em nota a essas petições observa, ainda no final do século XVIII que Isto são rascunhos de petiçoens para que a Pintura, no seu exercicio fosse priviligiada como a Musica, e só concedida aos facultativos de profissão; mas isto hé cousa que se não usa em parte alguã do mundo civilizado: as Academias da Arte cohibem todos os abusos. Estabeleção pois os

2427

ARAÚJO, Jeaneth. Op. cit. COMPROMISSO da Irmandade de São Lucas. In: TEIXEIRA, Francisco Augusto Garcez. A irmandade de S. Lucas. Estudo do seu arquivo. Lisboa: 1931. p. 40. 2429 MELLO, Magno Moraes. Perspectiva pictorum. As arquitecturas ilusórias nos tectos pintados em Portugal no século XVIII. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Tese de Doutoramento, 2002. SOBRAL, Luís de Moura. “Non Mai Abbastanza: Desenho, Pintura e Prática Academica do Magnânimo”, in Cat. A Pintura em Portugal Ao Tempo de D. João V 1706 – 1750: Joanni V Magnifico. Lisboa, IPPAR, 1994. 2430 A Accademia di San Luca era referência para o ensino tanto de arquitetura quanto pintura e o aprendizado dessas disciplinas seguia uma estrutura básica inicial comum. DANGELO, André Guilherme Dornelles. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos, mestres-de-obras e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. Tese de doutoramento, 2006. 2428

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Pintores huã Academia (hé grande injuria sua, não a terem) e não requeirão privilegios que a 2431 confundão com os officios mecanicos .

Observe que Volkmar Machado faz expressiva a distinção entre a pintura e os ofícios mecânicos, o que denota assimilação geral dessa distinção no final do século XVIII. Este autor ainda demonstra que, na discussão entre os pintores reunidos na casa do Juiz da Irmandade em 1792, tentou-se estabelecer novas regras para o Compromisso. Figura-se entre essas novas regras a tentativa de constituição de uma nova Academia de pintura. O desenrolar destas discussões entre os pintores e aqueles que, pertencendo à Irmandade, exerciam ofícios de outra natureza desencadeou a reescrita dos compromissos por diversas vezes, na tentativa de atender a todos e ainda estabelecer a Academia. Nas palavras de Volkmar Machado, os intrusos [na Irmandade] que se intimidárão com estas disposiçoens [de fundar Academia] tratarão de as tornar infrutuosas, e facilmente, o conseguirão; aquelles mesmos que havião solicitado com maior fervor este novo regulamento [da Irmandade] forão os primeiros que se declararam contra elle e alguns forão pedir licença para riscarem os nomes que já haviam escrito em sinal de approvação. (...) Já dissemos que os intrusos nos caluniárão, dizendo que o nosso intento, ou pelo menos o de huns poucos, era formar huma sociedade para attrahirmos a nós a direcção de 2432 todas as grandes obras de Pintura que houvessem de se fazer .

Tal discussão perdurou e a Academia não foi instaurada. Na verdade a disposição contrária causou também problemas no regimento interno da Irmandade e que acabou, por falta de um Compromisso que servisse a todos, extinta no princípio do século XIX. Como todos os mal intencionados, e os seduzidos se oppuzerão, e os que estavão de boa fé se desgostarão, ficou a Irmandade deste então outra vez extinta. A retirada de S. A. R. para o Rio de 2433 Janeiro em 29 de 9bro. de 1807 acabou de a aniquilar .

Com a vinda da família real para o Brasil a situação institucional da pintura em Portugal praticamente iria se congelar com a extinção da organização dos pintores em torno à bandeira de São Lucas. Já no lado brasileiro se observaria a mudança geral no panorama das artes com a chegada da corte: em 1816 se fundaria no Rio de Janeiro a 2434 Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios que, se tornaria a Academia Imperial de Belas Artes em 1822 . É de observar, contudo, que o ambiente da pintura em Minas Gerais permaneceu alheio às grandes modificações ocorridas no Rio de Janeiro, mantendo-se fiel a uma estrutura que privilegiava um gosto específico e um modo peculiar da prática da pintura. Exceção a essa premissa será o estabelecimento de Aulas de Pintura na Capitania, que será analisado adiante. Arte de pintar na Capitania de Minas Gerais Entende-se que o ofício da pintura acompanha a trajetória da ereção dos primeiros arraiais e vilas na Capitania. Da mesma maneira, o trânsito de indivíduos para as Minas possibilitou também a vinda de alguns que exerciam em terras portuguesas o ofício de pintor, como o caso de José Soares de Araújo (1723-1799), português natural da cidade de Braga, que veio ao arraial do Tejuco para exercer o cargo de Guarda-mor. Segundo Santos, é possível aferir que o aprendizado de José Soares de Araújo nas artes da pintura tenha sido realizado anteriormente à 2435 vinda para as Minas . É a partir de 1765 que se tem notícia do trabalho exercido por José Soares de Araújo na igreja de Nossa Senhora do Carmo em Diamantina, momento em que já era reconhecido pela sociedade como pintor de 2436 grande habilidade, ou ainda “o mais perito na dita Arte que há neste continente” . Com esta pequena referência à figura de José Soares de Araújo podem-se presumir diversas questões. A primeira delas diz respeito à sobreposição de ocupações que parece ser característica dos grandes arrematadores nas Minas. José Soares, nomeado como guarda-mor, exerce o cargo concomitantemente ao ofício de pintor. Essa situação não é divergente de outros casos na Capitania, como o caso do Sargento-mor e pintor Caetano Luis de Miranda (c. 1760 – 1837) o qual, ao que tudo indica, trabalhou junto ao guarda-mor, sendo possível a hipótese

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Estes documentos estão citados no Livro original de todas as memorias da Irmandade de S. Lucas desde 1637 até 1790. Composto dos sete livros e acrescentado de hum Index copiozo ordenado por Cyrillo Volkmar Machado no anno de 1791, anno em que foi Juiz o Sr. Pedro Alexandrino de Carvalho, Lxa. Sua reprodução encontra-se em TEIXEIRA, Francisco. Op. cit. p. 9. 2432 TEIXEIRA, Francisco. Op. cit. p. 26. 2433 TEIXEIRA, Francisco. Op. cit. p. 30. 2434 FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperial das Belas Artes. In: 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. Disponível em: . Último acesso: 27/06/2010. 2435 SANTOS, Antônio Fernando Batista dos. A igreja de Nossa Senhora do Carmo de Diamantina e as pinturas ilusionistas de José Soares de Araújo: identificação e caracterização.. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes, UFMG. Dissertação de mestrado, 2002. 2436 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas Gerais. In: Revista Barroco, nº 10. Belo Horizonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1978-1979. p. 33.

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do seu aprendizado com José Soares de Araújo. Outro indivíduo bastante conhecido é o Alferes Manoel da Costa Ataíde (1762 – 1830) que, sendo nomeado, exercia também o ofício de pintor pelo qual ficou reconhecido no cenário da pintura mineira. Ainda sobre a documentação de José Soares de Araújo deve-se considerar que o reconhecimento público de suas habilidades como pintor sugere também a possibilidade de que tenha ensinado de forma particular os rudimentos de seu ofício. Sobre esse ensino é possível afirmar a partir do seu conjunto de escravos arrolados no testamento e inventário post-mortem, em que constam os nomes de João Camundongo e Vidal, como aprendizes ou já habilidosos 2437 na arte de pintar . A participação de escravos ou forros na prática da pintura, sobretudo naquelas que exigiam um grande número de indivíduos especializados como os forros e tetos das naves, sugere prática comum entre os pintores. Nos mesmos inventários em que se apresentam indícios da atuação dos pintores e seus aprendizes encontram-se também vestígios da prática a partir dos materiais utilizados na pintura. Destes serão elencados os materiais de pintura propriamente ditos (pincéis, quadros, pedras de moer tintas, etc.) e os livros e estampas. No que diz respeito aos materiais, temos que a prática da pintura se dava no mesmo ambiente: o pintor que executa as obras tinha também por vezes conhecimento sobre a manufatura das tintas e de outros materiais. Nesse sentido é possível encontrar nos inventários diversos materiais. Para se ter um exemplo notável, na posse de Caetano Luis de Miranda, em Diamantina, têm-se arrolado entre os bens: huma caixa de pintura com seus repartimentos e instrumentos de pintura huma caixa de pintura mais pequena uma pedra mármore de moer tintas 2438 trinta e seis ferrinhos de escultor e huma plaina pequena

Estes instrumentos denotam evidentemente o trabalho do artista, não só como pintor como também escultor. É já reconhecido o trabalho de Caetano Luis de Miranda no campo da pintura, como também na escultura com o oratório localizado no Museu do Diamante, em Diamantina. Outro tipo de material expressivo no que diz respeito à prática da pintura é a presença de gravuras. As gravuras serviam para a divulgação rápida de obras consagradas, bem como para a difusão de um gosto específico e de fácil assimilação. Giulio Argan já assinalava que “mais que contemplada e admirada, a gravura é lida e relida, sua mensagem se dirige ao indivíduo singular, e o fato culturalmente importante é que a própria mensagem é recebida 2439 singularmente por cada um” . Esse caráter pedagógico da gravura, amplamente utilizado na transmissão dos modelos, denota o valor da circularidade e a relação desta com as obras. O pintor Caetano Luis de Miranda possuía 2440 em seus bens 62 estampas, além de 36 desenhos para pintores . Os motivos das estampas são os mais variados, entre imagens religiosas, históricas, de batalhas, motivos pastoris. Hannah Levy, em artigo clássico sobre o tema, denota a importância da gravura no ambiente pictórico, tanto pela facilidade de reconhecimento como pela rápida e eficaz circulação de modelos. Neste artigo a autora revela a utilização por Manoel da Costa Ataíde de diversas referências da cultura europeia que circularam através de gravuras. Dessa forma apresenta tanto as gravuras utilizadas por Ataíde quanto as obras por ele realizadas. É de se notar a possibilidade de que as gravuras de referência de Ataíde, segundo Levy oriundas da edição ilustrada da Bíblia, podem 2441 ter origem na mesma Bíblia presente no Inventário do autor . Aqui têm-se posta a questão dos livros como fundamentais para o aprendizado da pintura. A cópia dos modelos (como já visto oriundos das gravuras) também poderia ser realizada a partir dos livros. Outra possibilidade concreta é a discussão e o conhecimento teórico da pintura. Os indivíduos que detinham livros em Minas Gerais, na sua maioria doutos, poderiam fazer usos diversos dos livros e, no caso específico, os livros teóricos e práticos de arte auxiliavam sobremaneira na produção pictórica. Para Luiz Villalta, “a disseminação das habilidades de ler e de escrever constitui um aspecto importante para melhor compreensão da história da educação, na medida em que permite

2437

Como consta na documentação: “João Camundongo com principio de pintar (..) Vidal mulato, pintor, e dourador”. In: ARQUIVO Histórico do Museu do Diamante - Biblioteca Antônio Torres, Diamantina. (doravante AHMD-BAT) Inventário de José Soares de Araújo. Cartório 1º Ofício, Maço 36. Ano 1799. 2438 AHMD-BAT. Inventário de Caetano Luis de Miranda. Cartório 2º Ofício, Maço 175. Ano 1837. 2439 ARGAN, Giulio Carlo. O valor crítico da gravura de tradução. In: _____. Imagem e Persuasão. Ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 18. 2440 Assim se apresentam no inventário: “três estampas, uma de Santa Rita, outra do Bom Pastor, outra do Redentor do Mundo; cinco estampas representando a vida de Napoleão; duas estampas grandes com vistas de Marinhas; oito estampas de países pequenos; duas estampas de santos; tres estampas coloridas representando batalhas; duas estampas já rotas sem valor; quatro estampas, de fumo; três estampas representando a tarde, a aurora e a noite; três estampas de Luis XVIII; três estampas de fumo; oito retratos de vários empregados; quatro estampas pastoris; quatro estampas da História de Dom Quixote; uma estampa de pescaria; cinco estampas pequenas velhas de Reis de Portugal; duas estampas de charlatões; tinta e seis exemplares de desenhos para pintores”. In: AHMD-BAT. Inventário de Caetano Luis de Miranda. Cartório 2º Ofício, Maço 175. Ano 1837. 2441 LEVY, Hannah. Modelos Europeus na Pintura Colonial. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 8. Rio de Janeiro, 1944. p. 7-65.

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apreender um de seus possíveis resultados” . A leitura é fundamental para a transmissão do conhecimento e, no caso das artes, importa também reconhecer a habilidade específica da leitura de textos e imagem e a relação entre os mesmos. Em trabalho recente, Camila Santiago propôs combinar os estudos da história da leitura com a história da arte, demonstrando como a posse de livros e suas possíveis leituras poderiam ter ampliado o universo pictórico nas 2443 Minas . Ao estudar as bibliotecas dos pintores, Camila Santiago não só apresenta os livros como possibilidade, mas de fato propõe uma real utilização na prática da pintura. E isso sugere dos seus possuidores um conhecimento expressivo da literatura de arte, bem como dos modelos que são passíveis de serem realizados. Francisco Xavier Carneiro possuía em seus bens a Ciência das sombras relativas ao desenho, de M. Dupain, além dos Segredos 2444 necessários para a arte da pintura e da Arte da pintura (do qual se depreendem quatro possibilidades de autoria) . O citado Caetano Luis de Miranda possuía, entre seus 109 títulos distribuídos em 351 volumes o tratado Perspectiva pictorum et architectorum, de Andrea Pozzo. Tais textos denotam o conhecimento teórico possível por parte de seus 2445 possuidores . Ataíde e a implantação de uma aula de pintura nas Minas Com relação à figura de Manoel da Costa Ataíde é possível se debruçar mais demoradamente sobretudo pela 2446 diversidade da documentação e de trabalhos publicados . É reconhecida e incontestável a sua atuação como pintor da Capitania, em diversas vilas e paróquias. Era apresentado na documentação sob o título de Alferes, Tenente e Sargento (segundo as nomeações de sua trajetória militar) e também, em alguns casos, com a titulação específica de seu ofício de pintor. Na documentação da Capela da Senhora Mãe dos Homens do Caraça, por exemplo figura como testemunha no processo contra o Pe. Sebastião José de Carvalho Pena, sendo apresentado como “o alferes Manoel da Costa Ataíde branco solteiro morador na cidade de Mariana que vive de sua Arte da pintura de idade de sessenta 2447 anos” . Além da notável capacidade do exercício da pintura apresentado nos vários contratos estabelecidos por Manoel da Costa Ataíde, interessa-nos apresentar aquele que seria caso bastante específico na história da pintura nas Minas, qual seja a solicitação e nomeação de Ataíde como professor nas artes de arquitetura e pintura. Em 1818 Ataíde se apresenta via seu procurador Manoel Roiz Franco ao rei com o intuito de estabelecer na capitania uma aula de desenho e pintura. Para que se possa melhor compreender o teor da solicitação transcrevemos o requerimento. Senhor - Ninguem milhor que Vossa Majestade Real sabe quanto he util a Arte do Desenho e Architetura Civil e Militar e da Pintura: e que haja neste novo Mundo principalmente nesta Capitania de Minas Geraes entre a mossidade homens habeis de admiravel esfera que desejaõ o Estudo e praxe do risco das Cartas Geograficas e Topograficas no Desenho e Pintura aos animaes, plantas, aves e outros productos da natureza: Por isso com a mais profunda humildade e Obediencia prostrado aos Augustos Pes de Vossa Magestade Real representa Manoel da Costa Athayde Professor, das Artes Sobreditas, e habitante da Cidade Mariana, e aqui Supplicante que dezejando muito e não tendo maiores possibilidades para saciar os seos proprios dezejos de ser util ao publico, e a sua Naçaõ e ainda a todo o Mundo, na instruçaõ, adiantamento, e aperfeiçoamento das sobreditas Artes para se colher o fructo dellas e das dispoziçoins do Throno, se digne Vossa Magestade Real criar este ramo de instruçaõ na sobredita Cidade Mariana mostrando cada vez mais Benefico, e liberalisimo para com a dita sua leal cidade, a quem tanto tem protegido com o seo Paternal amor, desterrando assim a ignorancia, e a Viciozidade, e promovendo as Artes e sciencias, e a instruçaõ popular, e geral dos Vassalos, contemplando ao Supplicante ha hipotheze, de que por 2448 hum Exame se mostre digno da graça, merce e liçaõ que aspira .

Como é possível observar da leitura deste documento, Ataíde já exercia o ensino de pintura antes mesmo da solicitação e a fez principalmente com o intuito e possibilidade de abertura de uma aula pública e, portanto, financiada. Cabe ressaltar também que em 1818 já havia sido criada há dois anos a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios no Rio de Janeiro, o que atesta a tentativa de se aproximar das investidas reais no que diz respeito à implantação de escolas de arte nas Capitanias.

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VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit. p. 289. SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Op. cit. 2444 ARQUIVO da Casa Setecentista de Mariana (doravante ACSM). Inventário de Francisco Xavier Carneiro. Cartório 2º Ofício, Códice 59, Auto 1346. 2445 AHMD-BAT. Inventário de Caetano Luis de Miranda. Cartório 2º Ofício, Maço 175. Ano 1837. 2446 Faz-se necessário arrolar principalmente os trabalhos do Prof. Dr. Ivo Porto de Menezes que suscitaram o levantamento documental ainda na década de 1960 e a publicação deste juntamente com a Prof. Dra. Adalgisa Campos, trabalhos que reuniram grande aparato documental e iconográfico. Ver: CAMPOS, Adalgisa Arantes (org). 2447 ACSM. Cartório 2º Ofício. Códice 328 Auto 7803. Transcrito também em CAMPOS, Adalgisa (org). Op. cit. doc. 27. 2448 ARQUIVO Público Mineiro (doravante APM). Seção Colonial, Códice 377, Maço 22. Citado em CAMPOS, Adalgisa (org). Op. cit. doc. 58. 2443

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Interessa também salientar que o conteúdo da própria aula é apresentado segundo sua utilidade, no que diz respeito ao ensino das artes do desenho, arquitetura civil e militar e pintura. Estas disciplinas também eram ministradas em Portugal, como nas Aulas de Fortificação e Arquitetura Militar (já estruturadas em 1647) e na aula de 2449 Arquitetura Civil (1594) , junto a outras disciplinas como a geometria e a perspectiva. O referido conhecimento de arquitetura possibilitou a Ataíde executar obras como o risco do altar mor da Capela de Nossa Senhora do Carmo de 2450 Ouro Preto, segundo o próprio “todo proporcionado em preceito da Ordem composita da Architetura” . É com o conhecimento das preceptivas de arquitetura que Ataíde parece se beneficiar para o estabelecimento das aulas de desenho. Além da utilidade das artes do desenho já reconhecidas, o pintor demonstra a viabilidade para o governo da Capitania e do Reino a partir da formação de uma juventude que se pressupõe interessada na representação tanto dos limites cartográficos do reino e da capitania em particular quanto no conhecimento específico da botânica. No que diz respeito à Cartografia parece ser o final do século XVIII e início do século XIX profícuo com relação à difusão da arte dos mapas na Capitania, representada, por exemplo, pelas cartas realizados por Joaquim José da Rocha e do já 2451 citado pintor Caetano Luis de Miranda . Já com relação ao desenho de “produtos da natureza”, é expressiva a variedade de tratados de botânica que surgem na primeira metade do século XIX, principalmente voltados para o conhecimento do exótico. O pintor só pôde ser atendido no seu requerimento após o processo de avaliação e reconhecimento das suas habilidades. Segundo o documento, é atestado que Manoel da Costa Ataíde hé Professor das Artes de Architetura e Pintura, tendo dado bastantes provas de que não só he capaz de por em praxe o risco das Cartas Geograficas dos animais, plantas, aves e outros produtos 2452 da natureza, como o explicar e instruir aos que quiseram approveitar .

Mais uma vez constata-se que Ataíde já exercia (e com qualidade) o ensino de pintura. Em Junho de 1818 receberá a permissão do Rei para atuar como professor de Desenho e Arquitetura. Infelizmente, são poucos os dados que nos permitem entrever a atuação desenvolvida por esse professor e seus alunos além das obras já atribuídas. Contudo é possível compreender a constituição de um campo da pintura e de redes sociais atreladas à atuação desse mestre. Quando Ataíde elabora em 1826 um libelo contra a Irmandade do Rosário dos Pretos em Mariana temos a exata constituição de uma rede de pintores, constituindo um campo específico da arte em Minas. O libelo consta da cobrança de trezentos mil réis pelos serviços prestados àquela irmandade. Neste documento provará ser o Autor muito perito na sua Arte de pintura, e como tal muito procurado para todas as obras de maior circunstancia, de que costuma dar enteira satisfasao, fasendo as emfim com aqueila 2453 percisão devida aos habeis Professores de semelhante Arte, como dirão as testemunhas .

Para que se procedesse às avaliações, Ataíde nomeia dois avaliadores, a saber: Francisco Xavier Carneiro e João Lopes Maciel. Esses dois indivíduos são artistas de pintura e se apresentam como grandes conhecedores das artes de Ataíde. Ao analisar esse mesmo processo, Adalgisa Campos nota que outros indivíduos participaram como testemunhas de Ataíde, sendo moradores da mesma região na Freguesia de Antônio Dias, em Ouro Preto e em 2454 Mariana. No total são 9 testemunhas, oito delas pintores e um entalhador . Em 1826 Ataíde já tinha 64 anos sendo, portanto, mais velho que todas as testemunhas. Supor que as mesmas eram seus aprendizes não é documentalmente possível mas, ao mesmo tempo, é viável supor as relações entre esses indivíduos. Todos, exceto Vicente Fernandes Pinto, declaram viver “de sua Arte de pintura” e atestam a habilidade de Ataíde na execução das obras. O que se depreende desse documento é que os pintores constituíram na então Cidade Imperial de Ouro Preto uma rede que os permitia auxiliar mutuamente. E deste modo, pode-se

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DANGELO, André. Op. cit. ARQUIVO da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto. Documento avulso. Citado em CAMPOS, Adalgisa (org). Op. cit. doc. 33. 2451 Joaquim José da Rocha elaborou a Geografia Histórica da Capitania de Minas Gerais em 1781, documento de grande importância para o conhecimento geográfico da Capitania, em edição facsimile pela Fundação João Pinheiro, 1995. Caetano Luis de Miranda elaborou também quatro mapas, a saber: Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes, 1804 (Arquivo Histórico do Exército, RJ), Vista do Serviço Diamantino no sítio do Monteiro no Rio Jequitinhonha..., 1803 (Museu do Ouro, Sabará, MG), Viagem de João Severiano Terrabuzi do Rio de Janeiro até a Villa do Bom Sucesso em Minas Novas, 1814 e Mappa da Freguezia da Villa do Príncipe que contém a Nordeste a aplicação do Rio Preto: no centro, a Demarcação Diamantina, encravada nesta, e em parte da Freguezia do Rio Vermelho ao Oriente e a Sueste o território da VIlla do Príncipe, Itambém, Rio do Peixe e Guanhães. 1820 (ambos do Arquivo Histórico do Exército). 2452 APM. Seção Colonial, Códice 377, Maço 22. Citado em CAMPOS, Adalgisa (org). Op. cit. doc. 58. 2453 ACSM. Cartório 2º Ofício. Códice 239 Auto 5972. Citado em CAMPOS, Adalgisa (org). Op. cit. doc. 59. 2454 Testemunha de Ouro Preto: Marcelino da Costa Pereira, pardo, casado, 36 anos; Agostinho Pio Pereira, pardo, solteiro, 26 anos; José dos Sanctos Abreu pardo solteiro, 23 anos; Manoel João Branco, casado, 48 anos, Raimundo Gomes Carneiro, pardo, casado, 25 anos; Francisco de Paula, pardo, solteiro 18 para 19 anos; Joaquim José do Couto, pardo, solteiro, 37 anos. Como testemunhas marianenses constam o entalhador Vicente Fernandes Pinto, pardo, casado, 48 anos e finalmente Francisco Justiniano Marques, pardo, de 60 anos. 2450

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comparar esta rede à estrutura portuguesa da Irmandade de São Lucas, ainda que na capitania fosse presente a informalidade das relações entre os pintores. Conclusão A análise da documentação aqui empreendida visa, sobretudo, lançar luzes sobre temas normalmente não relacionados na historiografia. O contato entre a história da arte e da educação possibilita compreender como determinadas práticas educativas e pedagógicas interferiam no processo de aprendizado e assimilação do gosto artístico, ao passo que as relações entre mestres e aprendizes denotam práticas educativas distintas e, no caso da Capitania, alheios a instituições formais de ensino. Apesar de privados das academias e das irmandades de pintores, os habitantes das Minas se expressaram artisticamente sem, contudo, estarem alheios à tradição e às preceptivas vigentes em solo europeu.

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