Ensino e aprendizagem de grego antigo: novos gêneros de escrita nas letras clássicas digitais?

May 26, 2017 | Autor: Alexandre Trindade | Categoria: Digital Humanities, Academic Writing, Ancient Greek Language, Digital Classics, Genre Analysis
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Ensino e aprendizagem de grego antigo: novos gêneros de escrita nas letras clássicas digitais? Ancient Greek teaching and learning: new genres in digital classics writing? Anise D’Orange Ferreira & Alexandre Wesley Trindade Professora da Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Araraquara) Doutorando do PPG em Linguística e Língua Portuguesa (UNESP/Araraquara) [email protected] [email protected]

Resumo Neste artigo pretendemos demonstrar que a escrita acadêmica para a área de línguas clássicas, no contexto digital, pode ser mais complexa do que a esperada nas práticas convencionais disseminadas nas línguas modernas como gênero digital adaptado. Pois tem como ponto de partida o pensamento e a prática do trabalho do filólogo clássico, ou classicista tradicional, adaptando-se a uma infraestrutura digital, outrora não acessível. Assim, essa escrita é transformada pelos meios e expande a prática social acadêmica por pretender envolver ativa e coletivamente um público mais amplo. Nesse sentido, é preciso entender a transformação da prática acadêmica em termos de função, funcionalidade, conteúdo, forma e propriedades linguísticodiscursivas, ocorrendo simultaneamente às produções escritas no meio digital para, a partir daí, sermos capazes de buscar elementos visuais e linguístico-discursivos constantes que possam remeter a um padrão, e verificar suas implicações no ensino como trabalho: estaria emergindo um modelo para a escrita nos estudos clássicos digitais e, neste, nas letras clássicas digitais? Examinaremos tendências e padrões de produção escrita do classicista tradicional, gênero de escrita reconhecido na área, e como tais tendências e padrões podem se transformar no meio digital, ou seja, como o classicista da era digital pode produzir essas escritas. Palavras-chave: Estudos clássicos digitais; Gênero emergente; Escrita acadêmica.

Abstract This paper aims at demonstrating that academic writing for classics, in the digital environment, may be more complex than those found in conventional practices for modern languages academic studies, and its adapted digital genres. Because, it starts from the thought and practice of the classical philologist or traditional classicist, being adapted to an entire digital infrastructure formerly not accessible. Thus, this writing is transformed by the media. Finally, it expands academic social practice of the area by actively and collaboratively engaging a wider audience and participants.

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In this sense, one must understand the transformation of academic practice in terms of function, functionality, content, form and linguistic-discursive properties, occurring simultaneously to written productions in the digital environment. From that we can obtain visual and linguistic-discursive constants which can refer to a standard, and then verify their implications in teaching as work. Could this result in a model for writing in digital classics? We will examine trends and standards of traditional classicist writings, in recognized written genres, and how such trends and patterns can be transformed on digital media, i.e., how the classicist in the digital age can produce such writings. Keywords: Digital classics; Emerging genre; Academic writing.

1. Introdução A preocupação com o ensino da língua grega antiga se dá em virtude de obstáculos preestabelecidos, que se constituem em reais barreiras, e demandas que devem satisfazer a esferas diversas (Ferreira, 2015). As barreiras surgem logo no início do aprendizado, que ocorre, predominantemente, na universidade, tornando-se uma língua de “minoria”; ao mesmo tempo, esse aprendizado requer um longo período de formação; há uma competição com as demais áreas por alunos e recursos e, além disso, a carreira profissional incerta. As demandas são de natureza social, na obrigatoriedade de dar à comunidade acesso ao conhecimento e obter reconhecimento da sociedade; acadêmica, na necessidade de ampliação da produção do corpus traduzido para a língua portuguesa com acesso irrestrito; e didático-pedagógicas específicas, na permanência de alunos no curso com melhoria de desenvolvimento das capacidades de alunos e professores, visando ao exercício profissional dentro da área, com o aumento das possibilidades de atuação. Contudo, com a experiência da prática local e de grupos estrangeiros (Ferreira, 2014a, 2014b; Berti, 2015; Crane, 2014, 2015), pressupomos que as letras clássicas digitais ou o chamado classicismo da era digital ajuda a superar algumas barreiras, contemplar as demandas e ampliar o engajamento da comunidade. O classicismo da era digital tem algumas características (Crane et al., 2012; Ferreira, 2015) explicitadas por um dos seus pioneiros, o editor-chefe da Perseus Digital Library (PDL), da Tufts University, Gregory Crane, também chefe da cadeira Alexander von Humboldt em Digital Humanities da Universität Leipzig. Uma das principais características do classicismo digital é a abertura dos dados; depois, há o acesso para participação coletiva e de estudantes na produção de dados; ainda, o estabelecimento de padrões de formatação do corpus que atenda a multiplataformas e serviços digitais (TEI P5 XML EpiDoc); os corpora são anotados de modo manual, semiautomático e automático, e traduções paralelas e alinhadas são inseridas; ferramentas e recursos são desenvolvidos para essas finalidades, mantendo uma ligação estreita entre a filologia clássica, linguística de corpus e linguística computacional, exigindo que profissionais de humanas e de computação trabalhem

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juntos, em equipe e colaboração. Os desafios do classicismo digital encontram-se na natureza dos dados, no rigor de padronização e no desenvolvimento de equipe. Os dados vão desde manuscritos até edições impressas não digitalizadas, bem como edições digitais não anotadas e não traduzidas. É necessário rigor nos padrões para compartilhamento de dados, interligação dos gêneros e instrumentos. Exige-se, portanto, que a equipe desenvolva novas capacidades, adapte-se a projetos e tenha suporte computacional. A discussão aqui colocada é a crença de que o reconhecimento de gêneros de escrita acadêmica nas letras clássicas seja relevante, para fins educacionais, no desenvolvimento da capacidade de transformar as novas escritas dentro do ambiente digital. Para o levantamento de características, possivelmente genéricas, partimos de alguns elementos de análise do interacionismo sociodiscursivo (ISD) (Bronckart, 1999/2003), bem como nos instrumentalizamos de elementos de análise de texto multimodal para web (Baldry & Thibault, 2010), indicada, doravante, como ‘análise TMMW’. O fato de reconhecermos a existência de gêneros de escrita remete-nos, também, à constatação de que o conceito de gênero não é estável e restrito, mas é mobilizado pelos princípios derivados de uma teoria. Por esta razão, consideramos que gêneros textuais são socialmente indexados, provendo modelos dinâmicos de linguagem usados em determinados contextos comunicativos ou discursivos. Dos pressupostos teóricos, assumimos que sua importância decorre de que o reconhecimento eles têm um papel na semiotização do psiquismo, promovendo o desenvolvimento, ou seja, na mediação das relações entre as dimensões psicológicas, linguísticas e sociais (Bronckart, 2007). Destarte, capacidades e práticas de linguagem sendo associadas ao reconhecimento de gêneros (Schneuwly & Dolz, 2004), consequentemente, podem ser um instrumento de desenvolvimento no trabalho docente (Machado & Cristóvão, 2009). Assim, para o levantamento das características acima mencionadas, optamos por trabalhar com os supostos gêneros tradicionais, realizando o exame de edições comentadas e traduções com estudo. Além desses gêneros, elencamos textos digitais, procedendo ao exame de dois projetos com textos históricos.

2. Gêneros tradicionais de escrita acadêmica atual nas letras clássicas Não estamos falando aqui de gêneros literários, ou seja, os gêneros das escritas históricas registrados pelos autores clássicos do passado. Segundo o cânone de autores e obras gregas do Thesaurus Linguae Graecae (Berkowitz & Squitier, 1990), no escopo da prosa, há dez categorias, entre texto religioso e não religioso, que vão dos encômios à história, da geografia à música, das ciências e pseudociências a gramáticas. No escopo da poesia, do hexâmetro a dramas trágicos, cômicos e satíricos, da mitologia e oráculos à história natural. São empregados no referido Thesaurus, setenta e seis etiquetas de classificação de obras gregas. Os assuntos do corpus do grego antigo são, portanto, vastíssimos. Embora seja perfeitamente possível realizar estudos linguísticos sobre gêneros científicos e/ou acadêmicos da

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antiguidade, nosso interesse são os gêneros acadêmicos de escrita atuais sobre textos históricos de língua grega antiga. Os leitores de textos clássicos e de seus estudos, quer estejam no original grego quer estejam eles traduzidos para uma língua vernácula, raramente têm contato com os documentos originais, ou seja, os manuscritos, pois referem-se a textos históricos, com um grande distanciamento temporal entre sua produção e a transmissão de edições subsequentes. Acrescente-se a isso que muitos textos se perderam ao longo do caminho e do tempo, restando apenas fragmentos ou, nem isso, às vezes, somente testemunhos e notícias. Os editores de textos clássicos preservados em manuscritos têm, portanto, o trabalho de recuperar o percurso da transmissão dos textos, com sua fortuna crítica e histórica. As bibliotecas oferecem as edições em um padrão editorial moderno, cujo corpo da obra pode trazer: uma edição crítica do texto grego sem tradução, com aparato crítico e capítulos iniciais sobre os textos originais que serviram de base para as escolhas do editor do texto; uma edição comentada acompanhada do texto grego e notas de comentário; edições bilíngues, contendo o texto grego e uma tradução; traduções sem o texto original grego; estudos sobre uma determinada obra, autor ou tema. Além dessas edições, outras publicações já foram comuns na produção acadêmica da área: livros impressos de Concordances, obras que contêm o vocabulário e a localização de cada palavra em um determinado texto. No universo da língua portuguesa das letras clássicas no Brasil, a produção textual acadêmica predominante nas Letras está voltada para as traduções em edições monolíngues ou bilíngues, bem como aos estudos ou teses sobre uma determinada obra, autor ou tema, diferentemente dos estudos arqueológicos e históricos que se voltam para descrição, classificação e contextualização dos registros materiais. Para a realização de ambos os tipos nas Letras, as edições comentadas são fundamentais, proporcionando sustentação quer a uma tradução quer a um estudo. O que examinaremos a seguir dos gêneros tradicionais da escrita acadêmica é largamente conhecido dos especialistas dos estudos clássicos, mas, menos, por outros profissionais da linguagem. Todavia, são necessárias para a compreensão das mudanças que ocorrerão no contexto digital.

2.1. Examinando a edição comentada Seguindo os itens da análise propostos pelo ISD, em uma primeira observação, podemos dizer que o contexto de produção de uma edição comentada, tanto físico quanto social, não diferem substancialmente de outras produções acadêmicas. Os lugares físicos de produção são centros de pesquisa, museus e universidades. Os enunciadores, autores e editores que incluem filólogos, classicistas; os destinatários são os estudantes, professores e leitores da antiguidade clássica. O principal objetivo é registrar e disseminar conhecimento sobre um texto ou documento histórico, ou, ainda, dissertar sobre um tema com base em vários documentos históricos. O ambiente acadêmico das bibliotecas, universidades e salas de aula e de estudo são seu lugar social.

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Interessa-nos, particularmente, o plano global do texto. Podemos notar as seguintes seções: uma introdução, cujo conteúdo aponta para questões de autoria e datação, estudos específicos sobre algum aspecto da obra e decisões técnicas. Na seção principal, o texto grego e o comentário aparecem em partes separadas. Como exemplos, temos na Fig. 1, ao lado esquerdo, a edição comentada do diálogo Íon, de Platão, realizada por Rijksbaron (2007), da coleção de Amsterdam Studies in Classical Philology. Ao lado direito, o sumário da edição comentada da Medeia, de Eurípides, realizada por Mastronarde (2002), uma edição da coleção da Cambridge. É curioso termos uma introdução composta por várias partes. Rijksbaron apresenta cinco itens introdutórios, antes do texto e do comentário. Mastronarde apresenta sete. As seções principais são duas para o primeiro editor: Chapters, com Introduction, Plato’s Ion e Appendices. Para o segundo, temos, além de General Introduction, e do texto e comentário em Medea e Commentary, quatro capítulos apresentados antes do texto e do comentário: Structural elements of Greek tragedy, Introduction to language and style, Introduction to prosody and meter e A note on critical apparatus; sem contar os índices. Distinguem-se de outros tipos de produção escrita acadêmica, o fato de que, neles, a chamada “Introdução” seria mais reduzida e voltada para questões específicas de investigação, e suas partes constituiriam outros capítulos de suporte a uma tese. Aqui, temos, em desdobramentos da introdução, seções independentes que dizem respeito a características da obra de forma descritiva ou analítica, nas quais pode haver discussão de pesquisas independentes sobre o tópico da seção. Modernamente, diríamos que a introdução neste gênero, comporta-se mais ou menos como uma coleção de “metadados”, i.e., de informações sobre a obra como um todo. Tais dados, no entanto, podem ter caráter mais geral: cultural, histórico, social e linguístico, ou trazer algo mais específico, como aspectos da prosódia e métrica, por exemplo. E a fundamentação textual da edição está baseada em fontes primárias, com referências a papiros e manuscritos, e fontes secundárias, ou seja, outras edições, traduções e citações. Convenções tipográficas também acompanham o trabalho.

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Figura 1. Sumários das edições de Plato, Ion (Rijksbaron, 2007) e Eurípides, Medea (Mastronarde, 2002) A página do texto grego contém a edição escolhida pelo editor com meia página de notas de rodapé ou notas no final do texto. Tais notas referem-se às fontes textuais. A página de comentário é numerada pela linha dos versos, quando se trata de poesia, ou numeração de seção, quando se trata de prosa. Como se sabe, qualquer referência que se faça a uma obra clássica, não se indica a página da edição moderna, mas a seção, verso ou linha da edição do texto antigo. Os comentários podem conter explicações, interpretações e discussão de ordem linguística, hermenêutica ou histórica. Suas notas, aqui, mostram fontes para sustentar ou refutar essas interpretações expostas pelo editor. Os tipos de discurso seguem basicamente os demais gêneros acadêmicos, com discurso teórico, na ordem do expor; narração, na ordem do narrar e sequências argumentativas e explicativas. As modalizações predominantes são: (i) a epistêmica ou lógica, à medida que fazem afirmações relativas às possibilidades do real: “Eurípides nasceu provavelmente em alguma data na década de 480 e não depois…” (Mastronarde, 2002, p. 95); (ii) a pragmática, à medida que comentam capacidades

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de ação: “Tudo isso é importante para a história de publicação da Aldus, pois Aldus e seus associados não devem ter tido acesso fácil à biblioteca Bessarion.” (Rijksbaron, 2007, p. 54); e (iii) deôntica, à medida que indicam normas: “O artigo com nome próprio em Platão é comum somente nas cenas de troca de turno…” (Rijksbaron, 2007, p. 97); o próprio aparato crítico pode ser considerado como uma expressão de modalização deôntica, pois estabelece a norma de leitura do texto. Sobre os mecanismos de textualização, veem-se a coesão nominal e verbal típicas do discurso teórico e de textos acadêmicos, com operadores lógicos, atemporalidade verbal e anáforas nominais.

Figuras 2 e 3. Página de texto grego com notas (à esquerda) e página de comentários com notas (à direita) (Rijksbaron, 2007) Uma característica da edição comentada é, também, a multiplicidade de vozes oriundas de fontes com materiais diversos: referências a papiros, manuscritos, registros materiais como vasos, moedas etc. Além disso, algo que pode ser aplicado a todos os gêneros ligados à escrita acadêmica dos textos clássicos é a multiplicidade de idiomas nas vozes. A Fig. 4 mostra como as fontes são multilíngues. Podem, ainda, como ocorre na ilustração, ser classificadas por tipos: edições, edições com

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tradução, textos com comentário, texto com tradução e comentário, tradução latina, traduções em inglês, outras traduções, e um tópico misto: “gramáticas, monografias, dicionários, artigos; edições de outras obras platônicas” (Rijksbaron, 2007, p. 271272).

Figura 4. Bibliografia de Rijksbaron (2007, p. 271)

2.1. Examinando textos de tradução e outros estudos Dando continuidade ao exame de gêneros acadêmicos, passamos a tratar de textos de tradução e outros estudos, colocando em relevo aquilo que se distingue em relação ao gênero da edição comentada. Para essa tarefa, selecionamos as seguintes obras: (i) as traduções da comédia As Rãs, de Aristófanes, traduzida por Maria de Fátima Silva (2015), em uma edição da Universidade de Coimbra; (ii) o diálogo Mênon, de Platão, traduzido por Maura Iglésias (2001), em uma edição da PUC do Rio, e (iii) História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, traduzida por Mário da Gama Kury (1987), em uma edição da Universidade de Brasília. Esses textos são dedicados a uma obra específica e podem ser edições bilíngues ou apenas conter a tradução.

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Ao compararmos os respectivos sumários, presente na Fig. 5, vemos, no caso da edição portuguesa de Coimbra, As Rãs, os tópicos com informações sobre a obra reunidas sob a Introdução, assim como encontramos nas edições comentadas. As traduções de Tucídides e de Platão acompanham textos sobre a obra, mas não subdivididos em muitos tópicos. A primeira, sob os títulos genéricos “Prefácio” e “Apresentação do tradutor”, recebemos informações sobre o autor, a obra e o contexto histórico, e em sequência, a tradução. A obra do historiador, sendo extensa, é contemplada com um sumário mais detalhado, informando os tópicos dos capítulos do texto clássico. Por seu turno, a tradução de Platão apresenta os capítulos com dados da obra em títulos individuais e não agrupados sob a “Introdução”.

Figura 5. Sumários de traduções: [α] Rãs, de Aristófanes; [β] História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides; e [γ] Mênon, de Platão (alguns números das páginas foram propositadamente cortados)

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Figura 6. Excertos das introduções da tradução de As Rãs (Silva, 2015) e de Íon (Rijksbaron, 2007) O texto introdutório de Silva (2015), transcrito na coluna esquerda da Fig. 6, indica que há mais narrativa no corpo do texto: a interpretação do autor apresentase com sequência explicativa (“porque…”), argumentativa (“se…”), modalização apreciativa (“estranhamente…”) e as notas podem trazer fontes primárias (outras obras do autor) e muitas secundárias (vozes de Whitman e Segal), uma vez que sustentam os argumentos contidos no corpo. Nota-se, na introdução da edição comentada, em um dos tópicos de Rijksbaron (2007), na coluna direita da Fig. 6, que o corpo do texto é mais técnico, trazendo referências a fontes primárias para sustentar o argumento e notas com fontes secundárias com quem o tradutor dialoga. O autor também se coloca com “I suppose”, na nota de rodapé 17. Em termos de tipos de discurso, sequências, modalizações e vozes, há semelhanças entre a edição comentada e as traduções com estudos, em virtude da predominância do discurso teórico e do contexto de produção acadêmica (“There is, in fact…”; “if the noun…, etc.”; “also relevant is…”). Nos estudos de tradução, como o ilustrado, parece haver mais inserção de narrativas e paráfrases do texto original.

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A questão ora premente é como esses gêneros se apresentam e se reconfiguram no contexto de produção digital, dentro do conceito de classicismo da era digital, uma vez que não é constituído por essas produções típicas do meio impresso, transformadas em arquivos digitais apropriados para dispositivos eletrônicos de leitura, tais como e-books, e-readers (Kindle, Kobo), nos mais variados formatos: pdf, mobi, etc.

3. A escrita acadêmica no contexto digital Veremos aqui que o contexto físico de produção de uma edição digital prevê um sujeito ou mais sujeitos mediados por computadores ligados em rede. Os enunciadores não são apenas autores, estudantes ou profissionais, editores, mas curadores de conteúdo e cientistas da computação, em construção coletiva e colaborativa de conteúdo digital. Os destinatários podem ser um público específico: estudantes de antiguidade clássica, pesquisadores da comunidade científica, profissionais e leitores da antiguidade clássica, mas também podem alcançar um público menos especializado pela capacidade de disseminação do meio em que se encontra. O objetivo não está apenas em recuperar e registrar dados, mas em preservar, atualizar e fornecer dados relacionados com larga distribuição do conhecimento de corpus histórico. Nesse contexto digital, é fundamental fornecer dados relacionados. O lugar social podem ser os meios digitais disponíveis de compartilhamento de informação acadêmica. Trazemos para exemplo, o Hellespont Project, que faz a integração das bases de dados Arachne (desenvolvida pelos institutos alemães DAI e CoDArchLab) e Perseus (Tufts University). A função do projeto é “combinar coleções digitais de estudos clássicos de ambas as instituições” a fim de disponibilizar aos pesquisadores e público em geral “uma das coleções da antiguidade romana e grega mais abrangentes e disponíveis online” (cf. http://hellespont.dainst.org/startpage/index.html#description). O corpus alvo do projeto é a seção Pentekontaetia, da obra do historiador Tucídides (Thuc. 1,89 a 1,118) e sua interface gráfica, GapVis, faz a integração de entidade nomeadas, localização em mapa, informação linguística, anotação de eventos e bibliografia sobre o corpus (http://gapvis.hellespont.dainst.org/#index). A home page, como de padrão, tem barra de navegação e corpo com índice de conteúdo, cuja disposição pode variar entre os sites, conforme análise TMMW. Aqui, temos: a) uma barra de navegação superior contendo identidade, campo de busca, itens de conteúdo, downloads, link para a instituição; b) um corpo, com banner, itens do conteúdo, descrição do projeto (contexto de produção), rodapé (com fundação patrocinadora) (http://hellespont.dainst.org/startpage/index.html#). Neste caso, não cabem todos os elementos em uma tela. Como o projeto permite diferentes visualizações do conteúdo, como é explicado no índice do GapVis (http://gapvis.hellespont.dainst. org/#index), trazemos a Fig. 7 que exibe a página que reúne a visualização do texto, mapa, entidades nomeadas e eventos.

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Figura 7. Página web do Hellespont Project na visualização de leitura: reading view Do ponto de vista do plano global do texto, podemos dizer que a edição digital pode conter os mesmos conteúdos e informações de edições impressas. Mas não há capítulos com indicação de sumário. A página index apresenta os tópicos na forma de clusters (TMMW), com indicadores de navegação, que corresponderiam ao plano global do texto dentro do ISD. Os fragmentos de informações ficam justapostos. Para a análise TMMW, são observadas, então, as trajetórias ou trilhas de hipertexto, com seus clusters e subclusters e sistema temático, pois não há um padrão previsível para essa organização temática. Em relação aos actantes da infraestrutura textual do ISD, temos os mesmos das edições impressas, tanto no texto comentado, que podem variar em relação ao gênero literário, tanto nos comentários, com vários autores (biografia relacionada ao conteúdo). Adiciona-se aqui uma multiplicidade de editores, curadores e anotadores. Quanto às modalizações predominantes, dentro dos mecanismos enunciativos, encontramos preponderante a modalização epistêmica, pela justaposição de afirmações apresentadas como dados. Não há modalização apreciativa ou deôntica, uma vez que não há elementos linguístico-discursivos, nem texto verbal em que esses aparecem. O único texto é o corpus na língua original nessa página; aparecem nomes de lugares, e frases identificando eventos. A literatura secundária é exibida como um link, um elo catafórico (Fig. 7) no canto inferior direito da tela. Em relação às vozes, vemos a contribuição de muitos autores (antigos e modernos) e conjugação de fontes e registros diversificados: mapas, imagens, objetos etc. Trata-se de uma contribuição coletiva, não só na reunião das fontes pelo autor, mas no processo de edição. Todos os participantes estão indicados no arquivo fonte e nas páginas digitais. Essa contribuição múltipla está explicitada na página de downloads, em que o usuário

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pode ter acesso aos arquivos fontes que compõem o site, para reutilização em outros serviços ou aplicativos. Os dados que fazem parte do projeto são redistribuídos, portanto (cf. http://hellespont.dainst.org/startpage/downloads.html). No que tange aos mecanismos de textualização, com suas sequências e tipos de discurso, é preciso voltar-nos à análise TMMW, uma vez que não estamos lidando com textos verbais. Como as edições digitais diferem entre si na sua apresentação ao usuário que consulta o material (o leitor), a análise TMMW avalia as relações de significado entre os elos de variação, relações de transitividade, a ação potencial dos objetos no hipertexto com a participação do usuário e se os elos são anafóricos, catafóricos ou covariados. Neste caso, predominam os elos covariados, em que as mudanças de dados dinâmicos “compartilham características comuns como uma classe mais geral de objetos clicáveis com potencial interativo e temático e catafóricos em que imagens transformadas mais a legenda verbal conduzem a domínios temáticos novos” (Baldry & Thibault, 2010, p. 156).

Figura 8. Home page do Projeto The Revolt of Samos

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Outra edição digital, sob a direção de Monica Berti (no link dos créditos), tem como título The Revolt of Samos, um importante evento histórico da Grécia clássica. Essa edição tem como objetivo realizar a conexão entre dados e estudos acadêmicos, com foco nas citações de vários tipos, registrando os textos fragmentários que documentam um tema e subtemas. Na sua home page, encontramos o texto de definição: “um caso teste de representação sinóptica de fontes primárias” (http://demo.fragmentarytexts. org/en/revolt-of-samos.html). Do ponto de vista do plano global, vemos os clusters típicos: o título, a barra horizontal de navegação com os tópicos principais, campo do mecanismo de busca, texto explicativo, os tópicos e um rodapé (Fig. 8). Ao escolher um dos tópicos, Expenses of war (Fig. 9), a página traz um texto com descrição da organização da produção fornecida, com explicação das fontes e, por fim, as próprias fontes que podem ter passagens correspondentes destacadas em vermelho, se o ícone do lápis for ativado. Essa edição digital é temática como os estudos temáticos, mas traz ao leitor uma forma reconfigurada e justaposta de ler as fontes primárias que, geralmente, são apenas indicadas em notas de rodapé ou estão no corpo do texto de acordo com outros movimentos nos mecanismos de textualização. Na continuação da mesma página, são exibidas as respectivas traduções para a língua inglesa. Estamos ainda no universo da escrita acadêmica de gêneros observando apenas o resultado da produção escrita. No âmbito do contexto de produção, os destinatários, participantes e objetivos das edições digitais são similares entre si e entre estes e os gêneros impressos, havendo uma ampliação para o digital. Dentro da infraestrutura textual, a grande mudança está na disposição conteúdo temático e sequências, que são referentes ao plano global, bem como nos meios de produção. Os gêneros de escrita tradicionais, como a edição comentada e as traduções com estudo são previsíveis na infraestrutura textual, nos mecanismos de textualização e enunciação. Também, sua autoria é identificada com poucos autores; em geral, uma única pessoa. As edições digitais observadas apresentam a congregação de fontes variadas de informação de forma também mais variada. O que ambos os tipos de edições têm em comum é a recuperação de uma diversidade de fontes primárias que são articuladas, mas não necessariamente com mecanismos de textualização, mas na forma de clusters e subclusters, e de elos covariados ou catafóricos. As modalizações são apagadas, exceto na apresentação dos dados, que dizem respeito mais à modalização epistêmica ou lógica. As modalizações apreciativas e deônticas ficariam a cargo do leitor em sua análise dos dados. No Hellespont Project, há fontes geográficas, fonte textual primária, anotação destacada de eventos e nomes de lugares e pessoas. O estudo apresentado é uma análise linguística da visualização do texto em árvore sintática. As edições digitais, portanto, trazem uma reorganização e uma seleção de fontes primárias e secundárias que não se acham nos gêneros tradicionais de edições acadêmicas impressas.

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Figura 9. Fontes primárias sobre as despesas de guerra com destaque das passagens correspondentes. Topo da página: http://demo.fragmentarytexts.org/en/revolt-ofsamos/expenses-of-the-war.html Em relação à produção, há uma diferença necessária entre os participantes. A autoria da edição digital depende de produções escritas em formato digital de outras pessoas, ou projetos, como no Hellespont Project, ou pode receber contribuições inéditas de forma fragmentária, por exemplo, em relação a recuperação e edição das fontes. Para a realização das edições digitais, haverá outras normas de escrita que obedecem a regras de codificação para compartilhamento de dados. Dissemos que uma característica importante da era digital era o relacionamento dos dados não restritos. Enquanto o autor de textos acadêmicos na área de clássicas hoje usa basicamente um editor de texto, os editores de textos digitais usam múltiplos recursos, tais como planilhas, plataformas, plugins. As planilhas, plataformas e plugins exigem que o editor fragmente suas informações ou seu texto em categorias e os coloque em campos, colunas ou linhas específicas. O TimeMapper, por exemplo, é uma ferramenta gratuita online que constrói linhas do tempo com textos e imagens. Sua edição é feita em uma planilha do Google (Fig. 10a e 10b).

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Figura 10a. Aparência do TimeMapper com eventos na linha do tempo da biografia de Tucídides associados ao mapa

Figura 10b. A planilha-fonte onde são inseridos os textos ou dados para o TimeMapper A Plataforma Perseids, por outro lado, também de acesso gratuito e irrestrito, possibilita a anotação de dados morfossintáticos para a construção de árvores sintáticas (Fig. 11). Nelas são feitas análises de natureza linguística que podem orientar traduções. Essa plataforma também fornece campos para anotações relacionais (Fig.12), tais como, associação de nomes de pessoas e lugares com seus códigos de identidades, comentários, traduções, etc.

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Figura 11. A plataforma Perseids em seu modo de edição de anotações sintáticas em árvore

Figura 12. Plataforma Perseids no modo de edição de anotações relacionais com fontes, identidade de nomes, traduções, comentários, etc.

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Até o momento, não reconhecemos gêneros acadêmicos digitais com características plenas e previsíveis como os gêneros acadêmicos tradicionais observados. Compartilham similaridades no contexto de produção, conteúdos e temas semelhantes, mecanismos enunciativos próprios do discurso teórico e científico, mas não planos seus globais. Os conteúdos podem estar distribuídos em diferentes serviços pois os dados podem estar relacionados. O que há de comum entre os gêneros digitais acadêmicos de estudos clássicos e é particular desses, parece ser a ampliação dos destinatários e participantes, a diversidade de planos globais, o foco na integração de diversas fontes primárias e secundárias e a apresentação de representações gráficas de relações entre dados e fontes. Quanto ao processo de produção escrita, os textos, de forma fragmentada, transformam-se em dados, e são editados em planilhas, plugins e plataformas específicas. O resultado é, geralmente, um produto coletivo e participativo. À medida que o gênero de texto está indexado a uma prática comunicativa e social, o gênero digital acadêmico da área de clássicas, reconfigurando a escrita como uma atividade, em sua ação individual e coletiva, parece ser um gênero emergente. Referências bibliográficas Baldry, A., & Thibault, P. J. (2010). Multimodal transcription and text analysis. London: Equinox. Berti, M. (2015). Sunoikisis Digital Classics: an International Consortium of Digital Classics Programs. Retrieved from http://www.dh.uni-leipzig.de/wo/sunoikisisdc/. Bronckart, J.-P. (2003). Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sóciodiscursivo. São Paulo: EDUC. (Obra original publicada em 1999). Bronckart, J.-P. (2007). Le langage au coeur du fonctionnement humain: un essai d’intégration des apports de Voloshinov, Vygotski et Saussure. Conferência proferida em Lisboa. Bronckart, J.-P. (2003). Gêneros textuais, tipos de discursos e operações psicolingüísticas. Revista de Estudos da Linguagem, 11(1), 49-69. Crane, G. (2014-2015). Essays on Digital Classics and Digital Humanities. Publicação aberta online. Tufts University e University of Leipzig. Retrieved from http://sites.tufts.edu/ perseusupdates/2015/07/28/essays-on-digital-classics-and-digital-humanities/. Crane, G., Almas, B., Babeu, A., Cerrato L., Harrington, M., Bamman, D., & Diakoff, H. (2012). Student Researchers, Citizen Scholars and the Trillion Word Library. In Proceedings of the 12th ACM/IEEE-CS Joint Conference on Digital libraries (JCDL 2012) (p. 213-222). Washington, D.C.: ACM Digital Library. Ferreira, A. D’O. (Org.). (2015). Introdução aos textos clássicos na era digital do terceiro milênio. Araraquara: Letraria. Ferreira, A. D’O. (2014a). Applied linguistics, digital instructional design and teaching Greek with tools from PDL/Open Philology Projects para o Workshop Classics in Brazil. Teaching the classics in Brazil in the digital age. Oral presentation at Center for Hellenic Studies, Harvard University. Ferreira, A. D’O., Reis, M., Boschiero, P., Stamberk, K., & Masotti, M. (2014b). From classroom to labs: contributing to open data through teaching and learning Greek with Alpheios tools. Comunicação apresentada no workshop Greek and Latin in the Age of Open Data. Humboldt Chair Digital Humanities, Leipzig University.

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