Então, o que os mata? A dialética trágica em três peças shakespearianas

July 1, 2017 | Autor: Luciano Cabral | Categoria: English Literature, Shakespearean Drama, Tragedy (Philosophy), Tragedy
Share Embed


Descrição do Produto

ENTÃO, O QUE OS MATA? A DIALÉTICA TRÁGICA EM TRÊS PEÇAS SHAKESPEARIANAS Luciano Cabral (mestre em Literaturas de Língua Inglesa/UERJ) [email protected]

INTRODUÇÃO No prólogo de Romeo e Juliet, há um resumo da ação dramática, que durará, segundo o próprio coro, duas horas. Nestas primeiras palavras, somos informados de que duas famílias da cidade de Verona, de igual poder econômico e político, cultivam um ódio antigo e desmedido. No entanto, também somos informados de que é deste mesmo contexto de ódio recíproco que, paradoxalmente, surgirá um casal apaixonado, Romeu Montéquio e Julieta Capuleto: Two households, both alike in dignity (In fair Verona, where we lay our scene), From ancient grudge break to new mutiny, Where civil blood makes civil hands unclean. From forth the fatal loins of these two foes, A pair of star-crossed lovers take their life: Whose misadventured piteous overthrows Doth with their death bury their parents´ strife. The fearful passage of their death-marked love, And the continuance of their parents´ rage, Which, but their children´s end, nought could remove, Is now the two hours´ traffic of our stage; The which, if you with patient ears attend, What here shall miss, our toil shall strive to mend1. (Prólogo)

É por este prólogo que sabemos que o jovem casal está fadado a amar e a morrer, e que o violento ódio entre os Montéquios e os Capuletos só terá fim por conta desta morte. Amor e ódio, então, não serão antíteses apenas pronunciadas pelo coro, mas sim elementos conflituosos que marcarão sua presença até o fim desta peça. Em Antony and Cleopatra, as primeiras palavras do personagem Filo também parecem funcionar como um resumo. Em tom nostálgico, ele reprova a frívola atitude de seu general Marco Antônio e pede que nós espectadores fiquemos de olhos bem abertos para o fato de que um dos pilares do mundo transformara-se em brinquedo de uma meretriz:

1

Duas casas, iguais em dignidade / (na formosa Verona vos dirão) / reativaram antiga inimizade / mãos fraternas, sangue irmão / Do fatal seio destes dois rivais / Um par nasceu de amantes desditosos / que em sua sepultura o ódio dos pais / depuseram na morte venturosos / Os lances deste amor fadado à morte / e a obstinação dos pais sempre exaltados / que teve fim naquela triste sorte / em duas horas vereis representados / Se emprestardes a tudo ouvido atento / supriremos as faltas a contento.

Nay, but this dotage of our General´s O´erflows the measure: those his goodly eyes, That o´er the files and musters of the war Have glowed like plated Mars, now bend, now turn The office and devotion of their view Upon a tawny front. His captain´s heart, Which in the scuffles of great fights hath burst The buckles on his breast, reneges all temper, And is become the bellows and the fan To cool a gypsy lust. […] Look where they come: Take but good note, and you shall see in him The triple pillar of the world transformed Into a strumpet´s fool. Behold and see2. (Ato I, Cena 1)

Ao longo da peça, notamos que os escassos momentos íntimos de Marco Antônio e Cleópatra são constantemente interrompidos por mensageiros e serviçais que não os deixam esquecer de que estes dois exercem, acima de tudo, funções políticas, pois eles são também: capitão e rainha, vitorioso e derrotada, Roma e Egito. Embora os protagonistas tentem separar suas funções públicas de seus interesses privados, eles não têm o poder de fazer com que as notícias vindas de Roma afundem por completo no rio Tibre. Eles querem conquistar o mundo e ao mesmo tempo querem afastá-lo de si. Mas estes desejos não parecem conciliáveis. Se o amor de Cleópatra e Marco Antônio surge deste paradoxo, sua morte parece ter origem na mesma fonte. The Tragedy of Macbeth, por sua vez, tem como resumo não um prólogo ou um personagem que nos dá instruções, mas uma sentença, pronunciada em uníssono pelas três bruxas na cena de abertura: “Fair is foul, and foul is fair / Hover through the fog and filthy air 3” (Ato I, Cena 1). O que será oferecido pela peça é um mundo caótico, de verdades aparentes, de definições imprecisas e posições invertidas. Um mundo onde a névoa e o ar imundo que o preenchem tornarão confusas diferenças que antes eram claras. Macbeth estará inteiramente envolvido neste mundo, sedento por fazer parte dele até a morte. Entretanto, ao mesmo tempo em

2

Não! Passa da medida essa loucura do nosso general. Aqueles olhos altivos que brilhavam como Marte com seu arnês chapeado, dominando multidões de soldados em revista, ora se abaixam, ora se desviam do ofício e devoção que lhes são próprios, para uma fronte escura. Aquele grande coração, que na grita das batalhas monumentais fazia que saltassem, partidas, as fivelas da couraça, agora renegou o autodomínio, para tornar-se a ventarola e o fole que acalmar tenta o ardor de uma cigana. Vede onde eles vêm vindo! [...] Tomai nota, e observareis como um dos três pilares do mundo no palhaço de uma simples rameira se mudou. Examinai-os! 3 O bem é o mal, o mal é o bem / O lusco-fusco não poupa ninguém.

que ele deseja que este caos se instaure, para cumprir com êxito seu intento, ele precisa também organizá-lo. Ele deseja e falha. E esta falha é paga com a vida. A morte recai, inevitavelmente, sobre todos estes protagonistas. Julieta suicida-se após Romeu, Cleópatra suicida-se após Antônio, e Macbeth é decapitado por Macduff. Venenos, adagas, serpentes e espadas combinam-se e fazem da trama uma tragédia. Mas eles são apenas instrumentos usados para matar, não são a causa da morte. Então, o que mata estes personagens?

A TRAGÉDIA SHAKESPEARIANA Se fizermos uma divisão conjectural das obras dramáticas de William Shakespeare em três categorias, notaremos que ele escreveu dezoito comédias (Comedies), dez peças históricas (History plays) e dez peças trágicas (Tragedies). Cronologicamente, as peças trágicas aparecem em maior número após o ano de 16004. A virada do século na Inglaterra shakespeariana, de fato, foi marcada por intensas perturbações políticas, econômicas, sociais, e religiosas. Para o historiador marxista Victor Kiernan, Shakespeare estava ciente delas, e sua dramaturgia trágica parece corroborar tal afirmação (cf. KIERNAN, 1996, pp.30-1). Uma cultura capitalista começava gradativamente a perturbar a rotina inglesa, até então calcada no feudalismo. Por causa dela, as características feudais que regiam este cotidiano perdiam força. Ainda que mais perceptível aos que ocupavam o topo e mais confuso aos relegados à parte inferior, um sentimento de classe crescia. Este sentimento afrouxava gradativamente os laços sociais e, sendo assim, deixava os indivíduos desprotegidos. Neste contexto, o nacionalismo e a religião despontavam como um porto onde os ingleses poderiam atracar com segurança. A instabilidade monárquica e as contestações religiosas, no entanto, deixavam este porto cada vez menos seguro. A morte da rainha Elizabeth I foi uma das contribuições para este cenário de insegurança. Elizabeth governou por quarenta e cinco anos e, por conta de seu longo reinado, muitos ingleses (e isso inclui Shakespeare) desconheciam o que era viver sob outra monarquia. Embora tivesse havido sucessivas ameaças de invasão por parte da Espanha e da França, o período elisabetano foi marcado por expansões marítimas e comerciais, vitória sobre a Armada espanhola e valorização artística (especialmente do teatro e da música). Com o fim desta “era de ouro” em

4

Esta informação pode ser encontrada no capítulo “Cronologia da Obra Shakespeariana”, no livro Shakespeare, sua época e sua obra (2008), organizado por Marlene Soares dos Santos e Liana de Camargo Leão.

1603, sobe ao trono o rei escocês Jaime VI. Caracterizado como um monarca mais pacífico que seus antecessores, ele não foi capaz de evitar revoltas, como a conspiração católica de Guy Fawkes e seus barris de pólvora. Fawkes planejava explodir o parlamento e matar o novo rei, mas foi descoberto e condenado à morte. Jaime tentou por um fim à guerra entre Inglaterra e Espanha e abriu caminho para uma amizade entre os dois reinos. A paz que procurava finalmente veio em 1605, mas ela não foi suficiente para confortar os ingleses. A iminência de novos ataques católicos estava na ordem do dia e uma inquietante sensação de insegurança pairava no ar. As contestações religiosas levantadas pelas noventa e cinco teses de Martinho Lutero e as interpretações pelagianistas do pecado original também haviam causado grande alarde na mente dos ingleses. Em 1517, Lutero publicou uma série de perguntas provocativas que mostravam sua insatisfação em relação à conduta dos clérigos católicos. Ele pedia o fim da venda de indulgências e defendia que a fé, e não as ações, era o que conduzia o ser humano à salvação. Por sua vez, praticar o bem ou o mal passou a ser visto pelos seguidores de Pelágio como uma questão de escolha individual, e não uma vontade divina. O monge afirmava que a natureza humana não havia sido afetada pela transgressão ocorrida no Éden. O pecado original, segundo Pelágio, afetara apenas Adão e Eva e ninguém mais. Com isso, o poder de ganhar acesso ao paraíso saía das mãos de Deus e passava para as mãos dos fiéis. O aspecto chocante das interpretações de Pelágio para os contemporâneos de Shakespeare era a possibilidade de salvação para todos, e não apenas para os “escolhidos”, como pregava a doutrina católica (cf. KIERNAN, 1996, p. 22). Mas este livre arbítrio, ao mesmo tempo em que libertava o sujeito de um destino fixo, colocava-o em uma desconfortável posição pelo fato de este se achar agora inteiramente entregue a si mesmo. O indivíduo havia adquirido um poder cujos efeitos, ainda que positivos, eram perturbadores. Estas perturbações por que passava a Inglaterra, ao longo de todo o século XVI e início do XVII, suscitaram diversas incertezas nos cidadãos da época de Shakespeare. Cada nova conquista da expansão marítima provocava mudanças significativas no cotidiano inglês. Cada novo monarca que recebia a coroa instituía uma nova direção religiosa. Cada nova interpretação dos preceitos divinos rachava uma igreja que parecia irrepreensível. A era shakespeariana foi marcada pelo fim de uma ordem e o início de outra, um tempo de sérias e conturbadas mudanças. Os dogmas do catolicismo foram contestados a ponto de o ateísmo tornar-se um assunto frequentemente discutido (cf. p. 23). As fundações que sustentavam a sociedade inglesa dos

séculos XVI e XVII, principalmente com relação à religião, foram danificadas de maneira irreparável. Martinho Lutero e Pelágio contribuíram para que os indivíduos percebessem que, mesmo que Deus estivesse presente, caberia a eles conduzir o destino de suas almas. Um pensamento dominado menos por preceitos de ordem divina do que de ordem subjetiva, então, ganhava espaço. O individualismo começava a enfraquecer os laços sociais, permitindo que o ser humano voltasse os olhos para si mesmo. Começava a nascer daí um sujeito que, por sua crescente individualidade, seria mais tarde chamado de moderno. De acordo com a primeira compilação das peças shakespearianas, o Primeiro Fólio, publicada por John Heminges e Henry Condell em 1623, tragédia é a categoria em que estão inseridas Romeo and Juliet, Antony and Cleopatra e The Tragedy of Macbeth. Obviamente, para cumprir tal categorização, estes compiladores tinham uma noção de tragédia em mente. Qual seria ela então? Uma das influências nas obras trágicas de Shakespeare, segundo Tom McAlindon, foram os versos de Fall of Princes (1431-38), do monge beneditino John Lydgate, que contam a trajetória de quase quinhentas personalidades históricas e mitológicas. Estas narrativas enfatizam a perigosa fascinação pelo poder e seu inconsequente abuso ao contar como estas personalidades ‘caíram’ de suas posições de destaque para a obscuridade e a miséria: a primeira queda trágica narrada é a de Adão e Eva. McAlindon declara que a noção de tragédia nos contos de Lydgate resume-se a essas quedas catastróficas, e a reviravolta do destino é explicada em termos cristãos (cf. McALINDON, 2002, p. 4), em razão da desobediência do casal edênico ao morder a maçã. Dante Alighieri havia notado esta mesma característica já no início do século XIV. Entendendo tragédia como um movimento descendente, percebeu que seu poema religioso, por oposição, só poderia chamar-se Commedia (STEINER, 2006, p. 7). Sua caminhada do inferno ao paraíso representava uma ascensão, uma subida, um alcance da fortuna e da graça, e não uma queda catastrófica. Se Virgílio e Beatriz tivessem-no conduzido do céu para as profundezas dantescas, esta descida obrigaria Dante a dar outro título a seus versos. Citando um escritor de 1574, Kiernan (1996, p. 30) afirma que, para os leitores ingleses do século XVI, eventos trágicos eram motivados pela ganância, ambição excessiva e desejos pessoais. Estas motivações fazem parte daquilo que os gregos, diante de uma atitude desmedida, autoritária e presunçosa, chamavam de hubris, ou hybris. Muitos personagens das tragédias de Sófocles, Eurípides e Ésquilo são autoritários e insolentes, não só com seus próximos, mas

também com os deuses. Na tragédia sofocliana, por exemplo, um furioso Ájax não admite de forma alguma que as armas de Aquiles, recém-morto, sejam dadas a Ulisses como espólio de guerra. Sua fúria cega leva-o a uma tentativa, malsucedida, de assassinar, além de Ulisses, Menelau e Agamêmnon. Para punir este excesso, Atena ilude Ájax e o faz dizimar o rebanho conquistado nas batalhas quando o herói pensava estar assassinando seus chefes. Profundamente envergonhado, o herói suicida-se. As divindades olímpicas não toleram hubris, daí atitudes desmedidas como a de Ájax serem castigadas. Mas, apesar de haver personagens gananciosos, ambiciosos e movidos por desejos pessoais nas tragédias de Shakespeare, o modelo de dramaturgia trágica que o influenciou não foi a grega. As tragédias do romano Sêneca foram o que lhe serviu de base. Ainda que Shakespeare tenha, em certos aspectos, se distanciado do modelo senequiano de tragédia – como quando insere diálogos cômicos e personagens burlescos, por exemplo (cf. McALINDON, 2002, p. 5), pontos de contato entre os dois dramaturgos podem ser encontrados. Alguns deles são: (1) uso de elementos sobrenaturais, (2) cenas violentas, e (3) fatalismo estoico, pensamento filosófico defendido por Sêneca. Elementos sobrenaturais, de fato, aproximam os dois tragediógrafos. A personagem Medeia, da peça senequiana, convoca poderes infernais e pede auxílio a serpentes venenosas para cometer seus crimes: diante do altar de Hécate, ela diz que seus feitiços fazem o dia desaparecer (Ato IV, Cena II). Ademais, logo após matar seus próprios filhos, ela sai de cena levada por dragões. Do mesmo modo, o monólogo de Lady Macbeth, após ler a carta do marido, também evoca criaturas sobrenaturais: ela deseja que espíritos criminosos, ao mesmo tempo em que a esvaziem de remorso, encham-na de crueldade. Em Medeia e The Tragedy of Macbeth, não só as evocações de Medeia e Lady Macbeth, mas principalmente as serpentes, as três bruxas e as aparições são componentes fundamentais, pois interferem na trama. As serpentes são cúmplices de Medeia; as bruxas e suas premonições atiçam a ambição de Macbeth pelo trono escocês; por fim, o fantasma de Banquo atordoa Macbeth profundamente. O uso de elementos sobrenaturais não apenas comprova a proximidade entre Sêneca e Shakespeare, mas, para além disso, mostra que este recurso é indispensável para as suas tramas. As cenas violentas também aproximam Sêneca e Shakespeare. E pelo mesmo motivo, estas exibições os distanciam do teatro ático. Horácio, em sua Arte Poética, admite que as ações que são representadas possuem maior apelo sentimental do que as que são narradas. Mas o poeta não admite que ações violentas sejam mostradas no palco:

As ações ou se representam em cena ou se narram. Quando recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do que quando, apresentadas à fidelidade dos olhos, o espectador mesmo as testemunha; contudo, não se mostrem em cena ações que convém se passem dentro e furtem-se muitas aos olhos, para as relatar logo mais uma testemunha eloquente. Não vá Medeia trucidar os filhos à vista do público; nem o abominável Atreu cozer vísceras humanas, nem se transmudará Procne em ave ou Cadmo em serpente diante de todos. Descreio e abomino tudo o que for mostrado assim. (HORÁCIO, 2005, p. 60)

Evidentemente, Horácio tem como referência a tragédia Medeia de Eurípides, e não a versão latina de Sêneca. Na peça senequiana, para que sua vingança seja mais terrível, Medeia trucida os dois filhos à vista de Jasão. Sem qualquer remorso, a mãe assassina as crianças e, quando Jasão (já que percebe que não há como evitar) implora para que ela seja rápida ao matar seu segundo filho, ela responde: “Desfruta do delito com vagar, não te apresses, angústia. / O dia é meu; estou a servir-me do tempo que me foi concedido” (Ato V, Cena III). Mais um exemplo de violência encenada é a morte de Jocasta em Édipo. Na versão senequiana da peça, Jocasta suicida-se bem diante de Édipo após falar consigo mesma e decidir o melhor local para fincar a espada: [Para si] Apanhe-se a espada; por causa desse ferro jaz meu esposo — por que o chamas desse nome mentiroso? Sogro ele é! No meu peito encravarei a arma ou no pescoço patente a afundarei? Não sabes escolher o golpe: este, destra, este ventre fecundo atinge, ele que portou o marido e os filhos! [Ela se mata] (Quinto Ato)

Shakespeare segue os passos de Sêneca ao fazer Macduff entrar em cena carregando a cabeça decepada de Macbeth. Após tantos crimes, a narração da morte de Macbeth parece não ser suficiente, foi preciso uma cena brutal para que a vingança extirpasse a ambição pelo trono. Shakespeare também lança mão de espadas e serpentes como meios para exibir a violência em Antony and Cleopatra. Eros e Marco Antônio suicidam-se a golpes de espada; uma após a outra, Iras, Cleópatra e Charmian morrem ao serem mordidas por serpentes trazidas em um cesto de figos. Em Romeo and Juliet, por sua vez, a violência está nas ruas, nas adagas, no encontro entre as famílias rivais. Tebaldo mata Mercúcio e Romeu mata Tebaldo. No fim da peça, Romeo assassina Páris. Contrariando Horácio, nenhuma destas mortes é narrada. Ao contrário do que prescreve o poeta latino, elas ocorrem perante o público, são representadas diante de seus olhos. A influência senequiana em Shakespeare fez com que suas tragédias ganhassem violência visual.

Por fim, o fatalismo estoico também aparece como um ponto de contato entre as tragédias senequianas e shakespearianas. A filosofia estoica era defendida por Sêneca e incorporada por seus personagens trágicos. Para os estoicos, alcança a sabedoria aquele que permanece impassível diante das adversidades, pois sabe que o ser humano faz parte da natureza e mudanças são características da ordem universal do cosmos. Se o autocontrole é o melhor meio de superar emoções destrutivas, parece estar neste comportamento a resposta para a resignação que certos personagens demonstram. Édipo compartilha de um pensamento estoico ao se mostrar calmo em face de seu destino: [...] Todo aquele que se acabrunha com a fadiga do corpo e a doença e que traz semimorto o peito, olhe, fujo, parto: erguei a cabeça. Uma atmosfera mais saudável segue atrás: todo aquele que, jazendo, retém ainda o debilitado hálito, infle-se, aliviado, de ar vivificante. Ide, levai socorro aos desesperados: os mortíferos vícios da terra carrego comigo. Violento Fado, hórrido tremor da Doença, Debilidade, negra Peste, raivosa Dor, comigo ide, comigo. Convém-me usar de tais guias. (Quinto Ato)

Em Medeia, Jasão pede para que sua esposa seja rápida no infanticídio, que não faça o filho sofrer ao matá-lo. Seu pedido, que é na verdade uma atitude resignada, corrobora o comportamento estoico: o ser humano, como parte da natureza, é incapaz de fugir de seu destino. Dotada de razão, a natureza determina a sorte de todos e, por isso, tentar escapar é tarefa inglória. A atitude sábia, para os estoicos, é aceitar a vontade do destino. Contra a vingança de Medeia, não há nada que Jasão possa fazer. Conformado, ele deseja apenas que o filho morra rapidamente. Macbeth comporta-se como Édipo e Jasão ao receber a notícia da morte de Lady Macbeth. Seu diálogo com Seyton (que soa como um monólogo) denuncia uma postura impassível em relação a um destino cujo curso não é possível mudar. Macbeth reclama que, por ter causado o horror, já esqueceu como é sentir medo e, assim, nada mais o surpreende. Ironicamente, é através desse horror que ele atinge a tranquilidade estoica. Quando Seyton retorna para informá-lo de que sua esposa está morta, Macbeth apenas diz, resignadamente, que Lady Macbeth poderia ter escolhido outra ocasião para morrer: She should have died hereafter; There would have been a time for such a word: To-morrow, and to-morrow, and to-morrow, Creeps in this petty pace from day to day,

To the last syllable of recorded time: And all our yesterdays, have lighted fools The way to dusty death. Out, out, brief candle, Life´s but a walking shadow, a poor player, That struts and frets his hour upon the stage, And then is heard no more. It is a tale Told by an idiot, full of sound and fury Signifying nothing5. (Ato V, Cena 5)

Ele observa a má ocasião, mas de forma alguma contesta a morte da esposa porque parece compreender todo o vão esforço pela coroa. O único desfecho que se pode vislumbrar agora é a morte. A percepção de um destino inescapável é o que faz Macbeth apontar o vazio do mundo. A natureza e seu caráter inflexível levam-no a comparar a vida a uma história contada por um idiota e, apesar de sonora e furiosa, estes adjetivos nada acrescentam a ela. Esse destino inescapável a que todos são submetidos parece ter sido percebido também por Frei Lourenço: “[...] A greater power than we can contradict / Hath thwarted our intents.6” (Ato V, Cena 3). Diante da falha em unir Romeu e Julieta (e assim unir duas famílias inimigas), o Frei conclui que a vida segue um caminho imutável, previamente determinado por algo maior do que o ser humano. Em palavras senequianas, a natureza segue seu próprio curso; tentar dobrá-lo é inútil. Na Inglaterra do período elisabetano-jaimesco, a dramaturgia de Sêneca e as narrativas dos príncipes caídos de Lydgate transformaram-se em preceitos largamente adotados pelos escritores de tragédias. Embora tenha conseguido desviar-se consideravelmente destas regras, Shakespeare também as seguiu. Tom McAlindon (2002, pp. 4-5) afirma que regras também foram apontadas por críticos como Sir Phillip Sidney e George Puttenham, contemporâneos de Shakespeare. Estes entendiam a tragédia como um gênero de tema e estilo superiores, cuja trama não poderia conter assuntos plebeus. Além disso, na visão dos dois escritores, reis e bobos da corte (ou nobres e plebeus) não pertenciam à mesma esfera dramática: a presença de um significava a ausência do outro. Tal princípio assemelha-se às prescrições de Aristóteles. Para o filósofo grego, a representação de seres inferiores ficava a cargo da comédia, enquanto a de seres superiores era incumbência da tragédia.

5

Ela deveria ter morrido mais tarde / Haveria um tempo para uma tal palavra / Amanhã, e amanhã, e amanhã / Arrastam-se nesse passo miúdo dia após dia / Para a última sílaba do tempo narrado / A nós tolos, todos esses ontens iluminaram / O caminho para o pó da morte. Apaga, apaga lume passageiro / A vida não é mais que uma sombra errante, um mau ator / Que se pavoneia e se aflige no seu momento sobre o palco / E então nada mais se ouve. É uma história / Contada por um idiota, cheia de som e fúria / Significando nada. 6 [...] Uma potência por demais forte para que a vençamos frustrou nossos intentos.

Em sua Poética, admitindo que imitar é inerente ao ser humano, Aristóteles define a tragédia como a imitação de pessoas superiores em ação. O problema é que, se tomada deste modo, a definição mostra-se falha, pois incluiria tanto as obras de Sófocles quanto as de Homero, ou seja, não haveria distinção entre um texto trágico e um épico. Por isso, para Aristóteles, não é a imitação de pessoas superiores que determina a tragédia, mas a imitação da ação destas pessoas: [...] a tragédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade. Segundo o caráter, as pessoas são tais e tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa. (ARISTÓTELES, 2005, p. 25)

Notemos que a boa ou má índole dos personagens trágicos por si só não garante a inserção de uma peça na categoria tragédia. No trágico aristotélico, não é o caráter que provoca a ação dos personagens, mas o contrário. É necessário que suas ações graves (graves porque se movem da felicidade à desventura7) produzam determinado caráter. Na peça sofocliana Édipo Rei, por exemplo, Édipo torna-se um parricida não por possuir uma índole má, mas por conta de uma boa ação: ele foge de Corinto para não assassinar o pai e, por conta disso, assassina-o. Aristóteles afirma que as ações graves são o cerne do drama trágico porque é devido à maneira como elas são engendradas, provocando piedade e medo, que a catarse se instala. Este efeito de purgação e alívio parece ser a mola mestra da tragédia aristotélica: “É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções” (p. 24). Além disso, para que este efeito seja intenso, Aristóteles ensina que a catarse deve originar-se de eventos imprevisíveis e extraordinários, em que os atores dramatizam ações que, embora pareçam casuais, são, na verdade, propositais: [...] estas emoções são tanto mais fortes quando, decorrendo uns dos outros, são, não obstante, fatos inesperados, pois assim terão mais aspecto de maravilha do que se brotassem do acaso e da sorte; com efeito, mesmo dentre os fortuitos, despertam a maior admiração os que aparentam ocorrer, por assim dizer, de propósito; por exemplo, a estátua de Mítis em Argos matou o culpado da morte de Mítis, tombando sobre ele,

7

É válido notar aqui a semelhança entre o preceito aristotélico e as narrativas de Lydgate, pois ambos enfatizam a queda catastrófica como regra para a tragédia. Ou seja, ambos admitem que a trajetória de um indivíduo da felicidade (ou de uma posição de destaque) para a desventura (ou para a miséria) impõe-se como um elemento indispensável para o evento trágico.

quando assistia a um festejo; ocorrências semelhantes não se afiguram casuais; segue-se necessariamente que as fábulas dessa natureza são mais belas. (p. 29)

Sem dúvida, as peças de Sêneca e os versos de Fall of Princes são pertinentes e influentes obras para a tragédia shakespeariana. Elas indicam a direção que, por longos anos, serviram de horizonte para onde os tragediógrafos elisabetano-jaimescos deveriam rumar. Violência, vingança e quedas catastróficas definem-se como componentes vitais para o gênero. No entanto, quando se procura uma razão para a morte dos personagens Romeo, Julieta, Marco Antônio, Cleópatra e Macbeth, as direções deixadas por Lydgate e Sêneca parecem insuficientes. Ainda que ganância, ambição e desejos pessoais sejam elementos da tragédia, elas por si só não fornecem uma resposta convincente para a ruína destes protagonistas. O suicídio de Romeu e Julieta surpreende, mas o que os motiva a cometê-lo? A poética aristotélica, por exemplo, estabelece as normas para a tragédia, mas não está interessada em discorrer sobre a ideia do que seria um evento trágico. A Aristóteles importa apenas dar instruções para se melhor alcançar dramaticamente uma emoção, e não buscar uma concepção do trágico. Em outras palavras, é o efeito e não o conceito que o interessa. Por isso, a chave para uma resposta adequada da derrocada destes personagens pode estar, não em poéticas da tragédia, mas na dialética trágica.

A DIALÉTICA TRÁGICA O que chamo de dialética trágica baseia-se na filosofia do trágico que, segundo o teórico húngaro Peter Szondi, tem início com Friedrich Schelling. Em seu livro Ensaio sobre o Trágico (1964), Szondi percebe que um elemento, um fator, tem atravessado as várias concepções do trágico. Para tanto, ele se vale dos escritos de doze filósofos e poetas. Calcados no pensamento idealista alemão, estes doze pensadores negam a poética aristotélica em favor de uma compreensão do evento trágico. Assim, Szondi conclui que o trágico é uma maneira de apresentar um paradoxo. O trágico é, na verdade, uma dialética – e possui modos particulares de apresentála: “É esse fator dialético que expõe o denominador comum das diversas definições idealistas e pós-idealistas do trágico e, com isso, constitui uma possível base para o seu conceito geral” (SZONDI, 2004, p. 81). Para que o fenômeno trágico aconteça, é preciso haver uma oposição que cause uma derrocada, uma queda, uma destruição. O trágico estaria na necessidade de se destruir algo que, embora indispensável, deve ser destruído, estaria na obrigação de aniquilar algo mesmo que sua ausência traga sofrimento:

O trágico é um modus, um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, é justamente o modo dialético. É trágico apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir da transformação de algo em seu oposto, a partir da autodivisão. Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável. (pp. 84-5)

Szondi explica que o conceito do trágico muitas vezes escapa à compreensão porque, embora possa ser reconhecido por sua dialética, deve ser analisado dentro de um determinado tempo e espaço, historicamente delineado. Por isso, não é qualquer dialética que pode ser considerada trágica, já que o conceito do trágico deve ser “constantemente redefinido na análise das tragédias singulares” (p. 84). É por esta razão que Szondi conclui que o mais acertado seria tratar da tragicidade shakespeariana a partir de suas obras ao invés de buscar uma definição de trágico para aplicar nas peças de Shakespeare. O que Szondi apresenta é justamente uma outra direção metodológica. Sua proposta é deixar de lado as poéticas sobre a tragédia em prol de uma filosofia do trágico. O horizonte então passa a ser uma ideia do evento trágico, ou seja, a busca por um conceito a partir da identificação de uma dialética. Esta é a metodologia que tentarei seguir para responder a pergunta que motiva a análise destes protagonistas, já que acredito que Romeu, Julieta, Marco Antônio, Cleópatra e Macbeth enfrentam dialéticas que os levam à morte.

A DIALÉTICA TRÁGICA NAS PEÇAS No baile de máscaras oferecido pelos Capuletos, Romeu avista Julieta pela primeira vez. A visão de beleza tão rara é devastadora e ele se apaixona imediatamente. Romeu compara sua amada ao fogo que ilumina a noite, a joias que adornam uma orelha etíope e a um pombo branco rodeado de corvos. Estas imagens antitéticas fazem com que nós espectadores tenhamos a impressão de que Romeo esteja vendo Julieta sob as luzes do palco, em destaque, como se ela estivesse sozinha ali, encenando um monólogo. No momento em que ele a vê, tudo ao redor de Julieta enegrece e torna-se irrelevante. A luz que a realça é a mesma que põe os outros personagens na penumbra: O, she doth teach the torches to burn bright: It seems she hangs upon the cheek of night As a rich jewel in an Ethiop´s ear – Beauty too rich for use, for earth too dear! So shows a snowy dove trooping with crows, As yonder lady o´er her fellow shows. The measure done, I´ll watch her place of stand, And, touching hers, make blessed my rude hand.

Did my heart love till now? Forswear it, sight, For I ne´er saw true beauty till this night8. (Ato I, Cena 5)

Nada mais importa para Romeu. Em meio a um salão repleto de convidados, o chiaroscuro é o efeito que destaca Julieta. No decorrer da peça, Verona e seus habitantes terão cada vez menos importância para o casal, como se a luz estivesse sobre os dois apenas e a sombra tivesse tomado o resto da cidade. Todos os outros devem desaparecer para que Romeu e Julieta se destaquem. Um Montéquio deveria naturalmente odiar uma Capuleto, pois estes são sobrenomes antagônicos em Verona. Mas o amor aproxima-os. Este mesmo amor, no entanto, exige que a dupla se afaste de suas identidades familiares, pois, se há algum laço que os une, este deve ser o ódio. Por carregar um sobrenome inimigo, Julieta deseja que Romeu remova-o, livre-se dele e esqueça-o de uma vez por todas: ‘Tis but thy name that is my enemy; Thou art thyself though, not a Montague. What´s Montague? It is nor hand, nor foot, nor arm, nor face, nor any other part Belonging to a man. O, be some other name! What´s in a name! That which we call a rose By any other name would smell as sweet; So Romeo would, were he not Romeo call´d, Without that title: - Romeo, doff thy name; And for that name, which is no part of thee, Take all myself9. (Ato II, Cena 2)

Sobrenomes são tão relevantes para os Montéquios e os Capuletos, tão identificados com os membros destas famílias, que Romeu e Julieta reconhecem que só conseguirão unir-se de fato quando se separarem deles completamente – sobrenome e família agora têm de ser deixados para trás. Romeu e Julieta são amantes sem seus sobrenomes, mas são inimigos por causa deles. A inexperiência da dupla, no entanto, impede que se perceba que tanto suas famílias quanto a cidade de Verona ainda não estão preparadas para esta cisão. O que acontece quando um desejo pessoal entra em choque com uma ordem social há muito estabelecida? A percepção de um amor 8

Oh! Ela ensina a tocha a ser luzente / Dir-se-ia que da face está pendente / da noite, tal qual joia mui preciosa / da orelha de uma etíope mimosa / Bela demais para o uso / muito cara para a vida eterna / Como clara pomba ao lado de gralhas tagarelas / anda no meio das demais donzelas / Vou procurá-la, ao terminar a dança / para que a esta rude mão possa dar ansa / de toca nela, e assim ficar bendita / Meu coração até hoje teve a dita / de conhecer o amor? / Oh! que simpleza / Nunca soube até agora o que é beleza. 9 Meu inimigo é apenas o teu nome / continuarias sendo o que és, se acaso Montéquio tu não fosses / Que é um Montéquio? / Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto / nem parte alguma que pertença ao corpo / Sê outro nome / Que há num simples nome? / O que chamamos rosa / sob outra designação, teria igual perfume / Assim Romeu, se não tivesse nome de Romeu / conservaria a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título / Romeu, risca teu nome / e, em troca dele / que não é parte alguma de ti mesmo / fica comigo inteira.

genuíno que exige uma separação impossível passa a ser, então, a dialética trágica da peça. É com um amor adolescente que o casal busca extinguir um ódio antigo. Mas é na morte de Romeu e Julieta, ao que tudo indica, que essa guerra entre Montéquios e Capuletos terá fim: CAPULET O brother Mountague, give me thy hand. This is my daughter´s jointure, for no more Can I demand. MOUNT. But I can give thee more; For I will raise her statue in pure gold, That, whiles Verona by that name is known, There shall no figure at such rate be set As that of true and faithful Juliet. CAPULET As rich shall Romeo´s by his lady´s lie, Poor sacrifices of our enmity! 10 (Ato V, Cena 3)

Se para Romeu e Julieta basta ter um ao outro, para Marco Antônio e Cleópatra, isso não parece ser suficiente. O crítico Jan Kott (1966, p. 172) afirma que Antony and Cleopatra é uma tragédia sobre um mundo pequeno demais para abrigar um triunvirato. E mesmo quando Lépido sai de cena, ele continua pequeno para Marco Antônio e Otávio César. Marco Antônio quer governar o mundo inteiro, e isso inclui Cleópatra, que para ele encarna o próprio Egito: “O, whither hast thou led me, Egypt?11” (Ato III, Cena 11). Para outros personagens da peça, como César e Filo, Cleópatra não passa de uma meretriz12, mas, para Marco Antônio, ela é uma rainha. Por sua vez, para Cleópatra, Marco Antônio é um dos três pilares do mundo. Não é o tolo que Filo afirma ser, mas sim aquele bravo general de que Filo lembra nostalgicamente. Cleópatra precisa de Marco Antônio e, por isso, ela o aceita mesmo depois de seu casamento com Otávia. Cleópatra, cuja astúcia (como o próprio Marco Antônio observa) ultrapassa a compreensão humana13, entende que, para manter-se rainha, seu amante precisa fortalecer alianças. Enquanto Marco Antônio puder dizer que é um governante romano, ela poderá dizer que é uma rainha egípcia. Os amantes sabem que devem conservar suas funções políticas tanto para garantir suas conquistas quanto para afirmar seu amor. Ainda que Marco Antônio queira afundar Roma no rio Tibre (Ato I, Cena 1) e Cleópatra queira que a língua dos romanos apodreça (Ato III, Cena 7), 10

CAPULETO: Dá-me tua mão irmão, irmão Montéquio; é o dote de minha filha. Mais pedir não posso / MONTÉQUIO: Mas eu posso dar mais, pois hei de a estátua dela mandar fazer do mais puro ouro. Enquanto for Verona conhecida, nenhuma imagem terá tanto preço com a da fiel e mui veraz Julieta. / CAPULETO: Romeu fama também dará à cidade; vítimas são de nossa inimizade. 11 Para onde, Egito, me conduziste? 12 Palavras como strumpet, trull, lust e whore são usadas por estes personagens para se referir à Cleopatra. 13 “She is cunning past man´s thought.” (Ato I, Cena 2)

eles também desejam que Roma e os romanos mantenham-se atrelados aos dois. O trágico nesta peça está na constatação de que o pequeno mundo que tanto anseiam conquistar não comporta suas grandiosas ambições, mas mesmo assim é este o mundo a ser conquistado. Cleópatra quer Marco Antônio como amante e como general. Marco Antônio quer Cleópatra como amante e como rainha. Não há como abrir mão de uma posição em favor da outra. Os dois cobiçam o que é privado e o que é público, e esta cobiça torna-se sua dialética trágica. Victor Kiernan (1996, p. 32) admite que as tragédias shakespearianas são o entrelaçamento entre duas esferas: a pública e a privada. Em Antony and Cleopatra, não há espaço para um amor que exija a separação do casal de seus sobrenomes, como em Romeo and Juliet. Para cumprir esta exigência, Marco Antônio e Cleópatra teriam que abdicar de suas funções de general e rainha. O amor entre os dois está presente, mas o desejo de cisão que encontramos em Romeo e Julieta não tem vez com Marco Antônio e Cleópatra. Talvez isso não aconteça porque a juventude tenha dado lugar à maturidade. Se Marco Antônio e Cleópatra fossem tão jovens quanto Romeu e Julieta, eles teriam desejado o mesmo? Lembremos que, no início da peça, Cleópatra tem vinte e nove anos de idade e Antônio quarenta e quatro. Ao fim, eles estão dez anos mais velhos (KOTT, 1966, p. 175). O amor desta dupla não pode ser incondicional, pois há outros interesses em jogo. Grandes interesses também regem as ações em The Tragedy of Macbeth. Eles permitem que o mal se oculte no bem, que a noite substitua o dia e que a esposa adquira a virilidade do marido. O general que havia sido ovacionado por sua bravura é o assassino do rei que jurou proteger. As habilidades bélicas de Macbeth são usadas para vencer batalhas em favor da Escócia. Mas são estas mesmas habilidades que matam o monarca escocês. Nesta peça, as palavras das três feiticeiras parecem ressoar do início ao fim porque a desordem que se faz necessária aos planos de Macbeth não se desfaz após sua coroação. O desejado caos torna-se fatalmente indesejado. A previsão das bruxas motiva Macbeth a matar Duncan. Um regicídio, contudo, elimina a ordem que se sustentava na figura do monarca e faz com que o caos se instale. Para controlá-lo, ou eliminá-lo, é preciso que um novo rei seja coroado. Este mundo desordenado e caótico está expresso, por exemplo, no diálogo entre Ross e o Velho. Este lembra já ter experimentado ocasiões terríveis, mas nada comparado ao momento em que vive. Aquele percebe que o sol já deveria ter raiado, mas a noite tornou-se estranhamente onipresente: OLD MAN: Threescore and ten I can remember well, Within the volume of which time, I have seen,

Hours dreadful, and things strange: but this sore night Hath trifled former knowings. ROSS: Ha, good father, Thou seest the Heavens, as troubled with man´s act, Threatens his bloody stage: by th’ clock ‘tis day, And yet dark Night’s strangles the travelling lamp: Is’t Night’s predominance, or the Day’s shame, That Darkness does the face of Earth entomb, When living Light should kiss it?14 (Ato II, Cena 4)

Após vencer uma grande batalha, Macbeth recebe a visita de Duncan, Malcolm, Donalbain e seus soldados para parabenizá-lo e festejar sua bravura. Duncan descreve o castelo de Macbeth como agradável e elogia Lady Macbeth. No entanto, é neste ambiente aprazível que o rei será morto por seus anfitriões. Duncan e sua comitiva não sabem que a emboscada foi planejada antes de sua chegada e só consegue enxergar bondade em Macbeth e sua esposa. Mas por trás de um rosto benévolo mascara-se o desejo pelo trono e, para conseguir a coroa, Macbeth compreende que um falso rosto deve ocultar o que se passa em um falso coração (Ato I, Cena 7). Lady Macbeth, por sua vez, exige que o marido engane e dissimule, do contrário, não terão êxito no crime. Ela o instiga a ser assassino, mas nunca mostrar-se como tal: “[...] look like th’ innocent flower, / But be the serpent under ‘t15” (Ato I, cena 5). Macbeth e sua esposa ocultam seu intento criminoso na aparente benevolência de suas fisionomias para enganar seus convidados e assassinar o rei. Não só um falso rosto, mas também a noite oculta os atos de Lady Macbeth. A carta que recebe do marido, relatando o encontro com as feiticeiras, impele Lady Macbeth a evocar a presença da noite para encobrir as feridas que sua faca causará ao rei (Ato I, Cena 5). Por sua vez, Macbeth mata Duncan à noite, durante seu sono. Como observa Ross, a escuridão não parece querer dar lugar à luz. Logo após cometer regicídio, Macbeth ouve uma voz que o proíbe de dormir (Ato II, Cena 2). Lady Macbeth não ouve vozes, mas inexplicavelmente torna-se sonâmbula: “DOCTOR: Not so sick my Lord, / As she is troubled with thick-coming fancies /

14

VELHO: Tenho setenta anos, mas me lembro bem: Dentro do volume deste tempos já vi horas medonhas e coisas estranhas, mas esta única noite superou meus conhecimentos anteriores. / ROSS: Vês como o céu, perturbado com os atos humanos, ameaça este palco sangrento: pelo relógio é dia, mas a noite escura ainda sufoca a lâmpada ambulante. É a predominância da noite ou a vergonha do dia que sepulta a face da terra na escuridão, quando a vívida luz deveria beijá-la? 15 [...] pareça uma inocente flor / Mas seja a serpente escondida nela.

That keep her from her rest 16” (Ato V, cena 3). Os dois trazem tantas vezes a noite para suas ações que esta passa a substituir o dia. Esta ligação com a noite parece unir os dois personagens de maneira simbiótica. Tanto que Lady Macbeth toma as rédeas do conluio e passa a exercer o papel que caberia ao marido: “Only look up clear: / To alter favour, ever is to fear / Leave all the rest to me 17” (Ato I, cena 5). Ela acredita que deve guiar Macbeth, que tem boa índole, pelo caminho mais curto a fim de conseguirem a coroa: “[...] yet do I fear they nature / It is too full o’ th’ milk of humane kindness, / To catch the nearest way18” (Ato I, cena 5). Além disso, ela o ensina a dissimular e, quando Macbeth vacila, ela é quem o convence de continuar o plano. A dependência que Macbeth tem de sua esposa é tão excessiva que ele busca nela o estímulo para uma coragem que reconhece não possuir: MACBETH: [...] I have no spur To prick the sides of my intent, by only Vaulting Ambition, which o’erleaps itself And falls on th’ other19. (Ato I, Cena 7)

Lady Macbeth responde prontamente aos anseios do marido. A coragem que lhe escapa é resgatada por ela, inclusive por imagens que negam a própria condição feminina da personagem20. Uma promessa, ela declara, não deve ser quebrada em hipótese alguma, ainda que, para mantê-la, seja preciso matar um filho (Ato I, Cena 7). Atitudes tão viris têm em Lady Macbeth, mais do que em seu marido, sua cruel personificação. O desejo pela coroa escocesa obriga a dupla a admitir a desordem. O bem, na verdade, é mal, a noite sobrepõe-se ao dia e a virilidade não está no homem. Quando Macbeth e Lady Macbeth, no entanto, são coroados, o mal deveria extinguir-se, a noite dissipar-se e os papéis eram para ser recompostos. Em outras palavras, a ordem deveria ser restaurada. Para que a ordem retorne, os dois precisariam destruir os elementos que evocaram para tornar o mundo caótico. Mas já não há como fazê-lo. A dialética trágica desta peça reside em desejar o caos que, no

16

MÉDICO: Não tão doente meu Senhor / Como perturbada com uma profusão de fantasias / Que a impedem de repousar. 17 Encare com serenidade / Não demonstre iniquidade / Deixe o resto comigo. 18 [...] mas temo tua natureza, / Que é tão cheia do leite da bondade humana / Para perceber o caminho mais curto. 19 [...] Não tenho espora / Para aferroar os flancos do meu intento, mas só / Esta confiante ambição que ao superar-se / Cai longe demais, no outro... 20 Uma das mais famosas frases da peça é “unsex me here”, proclamada por Lady Macbeth.

entanto, não cessa: uma vez instaurado, nada pode ser feito para que o mundo organize-se novamente.

CONCLUSÃO A tragicidade em Romeu and Juliet, Antony and Cleopatra e The Tragedy of Macbeth encontra-se, respectivamente, na impossível negação de sobrenomes, na inconciliável cobiça pelo privado e pelo público, e no caos desejado e indesejado. Por conta disso, seus protagonistas vivem conflitos bem particulares. Todavia, se estas diferentes dialéticas apartam as três peças, há uma dialética que as iguala: estes personagens são trágicos também por serem casais. O choque entre ser único e desejar ser duplo entra em cena como extremos opostos de um cabo de guerra. Estes pares afiguram-se como unidades que se duplicam. Em outras palavras, eles são sujeitos modernos que, cada vez mais mergulhados em si mesmos, devem manter-se únicos e individuais. Entretanto, exercem esta unidade como casal, ao lado de outro sujeito que também precisa ser igualmente único e individual. Romeu e Julieta, Antônio e Cleópatra, e Macbeth e Lady Macbeth são indivíduos que exercem suas ações em conjunto, em dupla, como pares. Assim, do embate entre ser único e ser duplo, irrompe outra dialética que parece somar-se à causa mortis dos protagonistas destas peças shakespearianas. O que mata estes personagens são dialéticas trágicas. O conflito experimentado por eles é insolúvel. Ou admitamos talvez que a única solução oferecida seja a morte. Além disso, uma vez iniciado o pathos trágico, nada pode fazê-lo retroceder. O que regem as ações destes pares são hubris. Iludidos por um cego desejo, eles passam a querer o que não têm o direito de querer. No longo poema Don Juan, de Lord Byron, o narrador reconhece que, enquanto as comédias sempre terminam em casamento, as tragédias sempre terminam em morte (cf. BYRON, 2004, canto 3). Mas isto não significa que a tragédia seja um gênero previsível porque, ainda que saibamos o desfecho, precisamos identificar a dialética trágica que compõe cada obra.

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão e tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005. BYRON, Lord. Don Juan. London: Penguin Popular Classics, 2004.

KIERNAN, Victor. Eight Tragedies of Shakespeare. London and New York: Verso, 1996. KLEIN, Giovani Roberto. O Édipo de Sêneca: tradução e estudo crítico. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas: Biblioteca do IEL - Unicamp, 2005. KOTT, Jan. Shakespeare Our Contemporary. Translated by Boleslaw Taborski. Garden City, New York: Anchor Books, 1966. McALINDON, Tom. “What is a Shakespearean Tragedy?”. In: The Cambridge Companion to Shakespearean Tragedy, edited by Claire McEachern. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. SANTOS, Marlene Soares dos & LEÃO, Liana de Camargo (Orgs.). “Cronologia da Obra Shakespeariana”. In: Shakespeare, sua época e sua obra. Curitiba: Beatrice, 2008 SENECA. Medeia. Tradução do latim, introdução e notas de Ana Alexandra Alves de Sousa. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Lisboa, 2011. SHAKESPEARE, William. The Tragedy of Macbeth. London: Penguin Popular Classics, 1994. _______ . Romeo and Juliet. London: Wordsworth Edition Limited, 2000. _______ . Antony and Cleopatra. London: Wordsworth Edition Limited, 2006. _______ . Macbeth. Tradução comentada e edição de Rafael Rafaelli. Rio de Janeiro: Cadernos de

Pesquisa

Interdisciplinar

em

Ciências

Humanas,

2006.

Disponível

em:

https://periodicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/5245 SÓFOCLES. Ájax. Tradução do grego de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Expresso Zahar, 1999. STEINER, George. A Morte da Tragédia. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Tradução de Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.