Entendendo um pouco sobre o islã, ou o islã paralisa as sociedades?

May 18, 2017 | Autor: Joao Marinho | Categoria: Religion, History, Islamic Law, Politics, Islamic History, Islam
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Entendendo um pouco sobre o islã, ou o islã paralisa as sociedades?
Por João Marinho
P
ara responder esta pergunta, é preciso olhar com mais afinco a história. Vejam, até antes do islã, o mundo árabe era essencialmente tribal, com guerreiros que se matavam entre si em uma disputa fratricida interminável mediada pela guerra e pelo saque. Eles também conviviam com práticas cruéis, como o assassinato sistemático de meninas, muito similar ao que vimos na China em tempos recentes.
Em termos de organização política, os árabes estavam muito aquém dos persas, de civilizações africanas mais antigas, como os núbios ou os egípcios, e dos povos europeus. A rigor, praticamente não havia o que pudéssemos chamar de "civilização" árabe, pelo menos não em termos de um crescimento populacional estável, desenvolvimento econômico e florescimento técnico-científico e filosófico.
A chegada do islã possibilitou, pela primeira vez na história árabe, a formação de um Estado. Muhammad (Maomé) tornou-se um líder religioso, político e militar – e, embora para a época, tenha sufocado oposições, como de resto se fazia política naquele momento histórico, fundou um Estado, deu o primeiro sentimento de organização política aos árabes e encerrou as guerras fratricidas, inserindo os árabes em um processo civilizatório incontestável, com foco no comércio, sistema jurídico (as escolas jurisprudenciais do islã), um corpo de leis (Sharia) e até mesmo uma sucessão de comando (os califas), ainda que, aqui e ali, ocorressem disputas sangrentas na passagem de um califado para outro.
A expansão do islã e a assimilação posterior da filosofia greco-romana (a falsafa) levaram o mundo islâmico a um desenvolvimento técnico-científico que muito se adiantou em relação à Europa medieval, da astronomia à medicina, da matemática à filosofia. Surgiram as madraças, e houve evoluções até na política, com um sistema de votação que lembrava a atual democracia. Há autores, inclusive, que defendem que foi por mãos árabes – e islâmicas – que europeus redescobriram a Antiguidade clássica, o que tornou possível a Renascença.
O islã, portanto, não "paralisou" as sociedades que se tornaram muçulmanas. Na verdade, essas sociedades subsistiram e se desenvolveram devido ao islã, ou com sua definitiva contribuição. Talvez uma notória exceção sejam os persas, que se converteram, mas já tinham um exuberante processo civilizatório anterior.
O islã parou a matança de meninas, ampliou os direitos das mulheres – na era medieval e até o início da Idade Moderna ocidental, as islâmicas gozavam de mais direitos que as europeias, incluindo o de divórcio – e influenciou impérios que vieram depois e se converteram, como os mongóis.
Esse histórico, aliás, é que torna mais difícil a penetração da ideia de laicismo no mundo árabe-islâmico: se a Europa já conhecia o Estado antes do cristianismo (romanos, macedônios, gregos etc.), no mundo árabe, o Estado só veio a existir por causa do islã. Como convencer o islâmico médio da forte, necessária e inequívoca separação entre religião e Estado, se um surgiu por causa da outra?
Além disso, nem sempre o Ocidente foi amigável com os muçulmanos. Entre os fins do século XIX e início do século XX, potências ocidentais colonizaram a região de predominância islâmica no Oriente Médio e África setentrional e introduziram o laicismo e a modernidade europeia – que havia se desenvolvido com o Renascimento, o iluminismo, as grandes navegações etc. – a fórceps, com extensa exploração de recursos, apoio a ditaduras laicas cruéis que prendiam, torturavam e matavam clérigos e abandono forçado da influência da cultura islâmica, com estímulo à ocidentalização.
O resultado foi a formação de um caldo político-social em que o fundamentalismo islâmico surgiu como opção política cada vez mais importante, pregando o ódio aos "ateus ocidentais", ao mesmo tempo que estimulava as vertentes radicais do islã como uma resistência da identidade cultural frente à ocidentalização. Ainda que nos pareça estranho enquanto ocidentais, as mulheres iranianas que usavam os véus islâmicos hijab e niqab em 1979, durante a revolução de Khomeini que derrubou o antigo xá, davam a eles um significado de libertação e de luta contra a opressão, não o oposto.
É claro, porém, que seria inocente atribuir o surgimento e fortalecimento do fundamentalismo islâmico apenas às ações do Ocidente. Esse fundamentalismo também bebeu em fontes de tradição muçulmana, uma vez que, historicamente, as revoluções no mundo islâmico são conservadoras.
Diferentemente do cristianismo, que prega, acima de tudo, um paraíso extraterreno e pós-morte, para o islâmico – embora ele também acredite na vida após a morte –, os sinais das benesses divinas são, com mais distinção, sentidos no "aqui e agora", na sociedade e na política. É o conceito de ummah: a comunidade muçulmana mundial.
A ummah é, de certa maneira, a medida da fé e da correção da sociedade em seguir os desígnios divinos. De um lado, se ela prospera, é sinal de que Alá está abençoando devido a esse "bem caminhar" – embora, curiosamente, seja exatamente nesse contexto que, aos poucos, começa a haver flexibilidade de costumes e certas tolerâncias.
Por outro lado, se a ummah passa por dificuldades, é sinal de que Alá está descontente e aplica punições. A solução? Voltar ao islã "verdadeiro" e fazer a vontade de Alá – e vale dizer que é, sim, responsabilidade exclusiva da religião muçulmana muitas das práticas e punições bárbaras realizadas hoje ao arrepio dos direitos humanos. Resultado: a tendência de uma revolução no mundo islâmico, diferentemente do que ocorre no mundo ocidental, é restaurar o conservadorismo e práticas anacrônicas.
Os fundamentalistas souberam usar isso muito bem, porque, já faz certo tempo, a ummah convive com muitas dificuldades. Há pobreza, guerras sem fim, instabilidade política e econômica e, é claro, submissão aos interesses das potências europeias e aos Estados Unidos.
Há um problema adicional: é que o fundamentalismo islâmico é problema duplo. Ao reforçar o radicalismo e pregar o ódio, ele, ao tornar-se uma força política relevante, estimulou o terrorismo e impôs uma progressiva tendência de fechamento do mundo islâmico a uma interação político-social, tecnológica e científica que poderia resultar em uma ummah mais moderna, mais aberta e mais democrática, mais bem ajustada ao século XXI da era cristã. Nesse sentido, sim, podemos falar de "paralisação".
A solução para lidar com isso não é simples. O Ocidente tem sua própria agenda política, que, não raro, passa por dominações remodeladas, e a ummah continua não indo muito bem.
Mais permeáveis às mudanças e às redes sociais, os jovens islâmicos, muitas vezes, querem mais liberdade – mas eles também são mais afetados pela pobreza e pela falta de emprego e perspectivas, tornando-se, quase em igual medida, presas fáceis para a cooptação por parte do fundamentalismo, que faz uso do sentimento de insatisfação e, de forma descontextualizada, coloca no Ocidente a origem de todos os males. Aliás, vale dizer, um vício sem sentido que também tem invadido a esquerda ocidental...
No mundo islâmico, há inegável desrespeito aos direitos humanos, sobretudo os de minorias religiosas não monoteístas, de gays/LGBTs e de mulheres. A "Primavera Árabe", eu já dizia anos atrás, fatalmente se degeneraria em "Outono", sendo a guerra na Síria apenas um triste e prolongado capítulo dessa história, enquanto o mundo árabe e islâmico se afunda em um poço cada vez mais intolerante, mais homofóbico, mais machista e mais desbotado em relação ao brilhantismo da era medieval. Haverá como interromper esse processo?

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