ENTRE A ARTE E A EDUCAÇÃO: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS NA SOCIEDADE TRADICIONAL COKWE

June 2, 2017 | Autor: Ana Marques | Categoria: Dance Studies, Creative processes in contemporary dance, Anthropology Of Dance, Dance
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ENTRE A ARTE E A EDUCAÇÃO: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS TRADICIONAL COKWE

NA

SOCIEDADE

Na sociedade tradicional cokwe, as diversas funções da arte podem ser detectadas através das próprias manifestações artísticas e da experiência estética que elas provocam. Assim, é possível perceber-se a arte enquanto indicador semântico (representante do complexo sistema-símbolo), enquanto agente ideológico (ilustra e manifesta princípios cosmológicos) e enquanto agente estratégico (mecanismo para a negociação social, religiosa, política ou transições económicas).

1. AS MÁSCARAS LÚDICAS Inscritas no âmbito das máscaras africanas, as máscaras cokwe partilham um considerável número de características e disposições com as realidades dos demais povos da África sub-sahariana. Dado o seu grau de enraizamento e adaptação aos novos contextos, estas máscaras, bem como as instituições que as suportam, têm resistido aos tempos e às transformações sociais pois, para além de jogarem um papel indispensável enquanto factor de identidade cultural, elas são um agente de mediação dessas transformações sociais. Assim, se por um lado estas alterações se reflectem nas máscaras (pela criação de novos personagens ou apropriação de novos elementos), por outro, elas possuem igualmente o poder de intervir, participando deste modo nessas modificações sociais e culturais; são, em simultâneo, agentes e testemunhos desta mudança. Entre os Tucokwe, como na generalidade dos povos bantu, as máscaras são objecto de evocação e realização de uma acção dos antepassados entre os homens, atribuindo-se o seu surgimento a razões de ordem sócio-religiosa, motivadas pelo culto dos ancestrais. Apesar de integrarem e de evocarem o universo cosmológico deste povo, a sua componente religiosa decorre não apenas dessa “re-ligação” entre o mundo material e o mundo dos ancestrais, mas também da capacidade de transfigurarem uma realidade 1 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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concreta – a pessoa humana – transladando-a para outro plano – os espíritos ancestrais que “voltam” nas suas várias aparências. A palavra mukixi (mascarado) designa um ser que encarna um monstro surgido da terra, e deriva da palavra cikixikixi que significa, em língua cokwe, “gigante extraterrestre”. Por seu lado, a máscara apenas tem significado quando alguém a usa1, pois só o binómio máscara-bailarino é portador dessas “forças sobrehumanas”. Conservando a sua individualidade, o bailarino representa, com ela (qual suporte vivo e animado), outro ser. O seu corpo deve veicular a “visibilidade” dos espíritos, através de um conjunto de passos, gestos e movimentos codificados, diferentes para cada máscara. Mas falar de uma máscara ou de um mascarado não é falar de um “palhaço” que tem por finalidade única a diversão da assistência. Esta designação, de natureza eurocêntrica, é quase pejorativa se considerarmos que, ao ignorar o verdadeiro significado do termo mukixi (pl. akixi), ela exclui a verdadeira essência de uma figura e de uma instituição que possui especificidades muito concretas quer no contexto africano, quer no contexto desta formação socio-cultural em particular. Com efeito, a função das máscaras é evocar os ancestrais fazendo-os retornar à terra em momentos estratégicos para educar, acompanhar ou proteger os membros de uma comunidade, numa acção admitida e reconhecida por esse colectivo. No desempenho deste papel interventivo e actuante dentro da sociedade cokwe, os mascarados ajudam a regular a actividade social e política, tendo poderes para validar ou sancionar as acções, decisões e comportamentos do homem. O seu vínculo às estruturas sociais2 e do poder, fazendo delas um dos mais importantes pilares de sustentação das hierarquias que validam os sistemas político, social, religioso e cultural dos Tucokwe, confirma que a sua acção se estende para além da espiritualidade.

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O conceito de máscara não se restringe ao adereço que esconde o rosto, mas engloba igualmente o fato de rede que reveste o corpo do bailarino. 2 Como um exemplo, temos o paralelo que se estabelece com o sistema de hereditariedade (segundo gerações de filiação matrilinear) quando o sobrinho herda a máscara do tio, irmão da mãe.

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Para além de constituir um distintivo de classe ou de papel social, os akixi podem, igualmente, ser um factor de delimitação dos territórios do género e das distintas etapas da vida.

Originalmente, o seu estatuto era secreto pois, perante a sociedade, os akixi não deveriam ser reconhecidos como humanos, mantendo o portador da máscara, a sua identidade oculta. Associadas ao domínio masculino e relacionadas com as instituições de iniciação e respectivos rituais, algumas máscaras são hoje mais acessíveis aos membros da comunidade, onde possuem outras funções e desempenham outros papéis. Apresentando uma significativa variedade de formas (onde predominam as de origem antropomórfica e zoomórfica) e materiais (entrecasca de árvore, fibras e varas vegetais, resina, madeira, pele, rede, pano), de representações e significados e de simbolismos ligados à fecundidade, ao cosmos (sol, lua, estrelas), ao fogo e à água, durante a sua actuação estas máscaras dão vida às noções espirituais que significam, cumprindo de forma integral e eficaz, o seu papel. As formas e as cores utilizadas na confecção das máscaras integram-se igualmente neste quadro simbólico-estético, uma vez que não são unicamente decorativas e estabelecem conexões. Entre os Tucokwe, a parte “invisível” da máscara pode ser tão real e acessível como a sua parte material e visível. A sua actuação é tanto melhor quanto mais este invisível se torna perceptível, quando o intangível se torna palpável, quando a forma e o conteúdo se combinam. Mas, como refere Kubik (1981), a especificidade das máscaras é-lhes dada não apenas pelas suas características formais e significado, mas também pelo seu posicionamento hierárquico relativamente às demais. Assim, e decorrentes da sua pluralidade de funções, existem diversas classificações para as quais os autores consideram critérios distintos. São vários os autores (Redinha, 1965; Lima, 1967; Bastin, 1999; Jordán, 2003; Cameron, 2005), que apresentam classificações e sistematizações das máscaras elegendo, para o efeito, distintos critérios que vão desde as características simbólicas, 3 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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físicas e comportamentais às suas funções, passando pelos materiais utilizados na sua confecção e pelo seu comportamento em relação às mulheres. Tomando como critério a forma como a sua actividade os relaciona com a comunidade, podemos dividi-las em dois grandes grupos: as máscaras rituais – que se movimentam, numa esfera mais restrita – e as máscaras lúdicas – que protagonizam espectáculos

públicos. Deste grupo fazem parte os akixi a kuhangana (máscaras de dança) ou bailarinos mascarados. Portanto, para além daqueles que tomam parte exclusiva nas cerimónias rituais3, existem outros mascarados cuja função é o entretenimento, divertindo a comunidade em performances que incluem anedotas, provérbios, canções, dança e uma gestualidade codificada por vezes provocatória. Neste universo das máscaras de dança cokwe, cujo papel social é desempenhado durante estas exibições multidisciplinares, temos como principais individualidades as seguintes: mukixi wa Cihongo, que representa um ancestral real, a riqueza e o poder masculino; o mukixi wa Mwana Phwo, que simboliza a mulher, a linhagem matrilinear, o poder feminino; o mukixi wa Ngulu, que representa o reino animal, neste caso, o porco; o mukixi wa Mungenda, que apesar da sua ainda ligação à Mukanda, é uma das principais máscaras de dança, cuja técnica é aprendida pelos jovens iniciados e representa a virilidade masculina; o mukixi wa Cizaluke, que representa o doido, o brincalhão, o que faz rir; o mukixi wa Katoyo, que como se pode ver pelas feições da máscara facial, de onde se destaca o nariz afilado e os cabelos lisos, representa o europeu. Estas exibições públicas contam ainda com um outro grande número de personagens, entre os quais as máscaras Ciheu, Cindombe, Imbalala (ou Katala), Kathwa. Existem ainda outras, que têm como origem alguns dos povos vizinhos. Entre elas temos Ngaji, Mumbanda, Cizaluke, Cileya, Pumpu, Katotola, Sumbu, algumas das quais apenas se apresentam em contextos rituais ou políticos restritos, como é o caso da grande máscara real Cikungu (associada exclusivamente à mais alta individualidade da hierarquia de 3

Apesar de, entre as máscaras rituais existirem algumas que dançam, por princípio não o fazem publicamente ou, pelo menos, não o fazem com o propósito exclusivo de serem apreciadas enquanto profissionais, não se deslocam em digressão para dançar em outras aldeias e não são pagas pelas suas actuações.

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poder entre os Tucokwe) ou das máscaras integradas nos rituais de iniciação masculina – Mukanda –, entre as quais Cikunza, Kalelwa, Citelela, Cinyanga, Citamba, Mbwesu, Mbwembweto, com importância e tarefas distintas. Actualmente, a presença de algumas destas máscaras não é tão frequente tendo, mesmo, perdido a notoriedade, dadas as permanentes transformações sociais, o acesso ao sistema educação formal e a influência crescente de uma sociedade modernizada.

Durante as suas actuações, as máscaras de dança utilizam padrões de movimento específicos e de significado exclusivo para veicular mensagens de reconhecido valor por parte dos membros da sociedade. Apesar da religião ser uma força dominante na vida desta sociedade e de definir fortemente a natureza da própria arte, as danças de máscaras constituem a única manifestação artística destinada a ser apreciada e julgada por um público receptor, a partir de critérios bem delineados. A qualidade da performance dos akixi pode ser motivo de apreciação estética e crítica por parte daqueles que, familiarizados com as técnicas de execução das danças, estão aptos a reconhecer a capacidade e valor artísticos nos bailarinos. Dos akixi a kuhangana exige-se, de forma quase imperiosa, que seja uma arte de “assombro” (Kutungumuka). Ela deve espantar (assustar)4 e surpreender, numa dualidade entre atracção e repulsa; deve repelir as ameaças, os maus presságios e atrair o invisível, o que está escondido sob a morfologia dessas máscaras. Mas nem todos podem aceder a este estatuto. A condição principal para se ser bailarino mascarado é ser-se ngalami, ou seja, homem submetido aos rituais de iniciação e aos processos de aprendizagem integrantes da Mukanda que é a instituição tradicional de iniciação masculina entre os Tucokwe, cuja função é integrar o indivíduo no conjunto dos valores da sua sociedade. Os futuros bailarinos profissionais são escolhidos entre os candidatos mais talentosos, mas os seus treinos de aperfeiçoamento devem continuar.

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O investigador e falante da língua cokwe Isaías Lupembe em entrevista (2005) explicou que a palavra Kutungumuka quer dizer assustar. Mas para Kutungumuka ca ciseke deu-nos a tradução “espantado com alegria”.

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É também na Mukanda que se aprendem as danças, através de métodos de transmissão rigorosos dos passos, gestos, movimentações e «estilos» das danças correspondentes a cada máscara. Aprender os padrões de identidade cokwe e assimilar o significado da simbologia (quase um léxico) inscrita nas máscaras ou noutros suportes, é um dos saberes obrigatórios quando se termina este ciclo da vida entre os Tucokwe. Analisando as actuações dos akixi enquanto agentes sociais, é possível perceber-se a existência de uma relação entre a simbologia gráfica inscrita nas esculturas, nas

máscaras, no corpo5 ou nos desenhos na areia (sona) e as figuras espaciais produzidas durante a dança. Transportada para as máscaras de dança, esta simbologia é disposta de forma estratégica e única para a eficácia desejada. De igual modo, os gestos e as poses podem ser integrados nesse sistema simbólico geral, que incrementa e sustenta valores religiosos, rituais, institucionais e processos sociais (iniciação, estado adulto, vida e morte). É sobretudo no rosto das máscaras que se encontra uma maior diversidade e combinações de motivos os quais, nas máscaras de resina são pintados ou aplicados (yitomba) e nas de madeira são gravados com um ferro aquecido ou feitos por incisão com uma faca afiada, tal como acontece nas escarificações. Nas máscaras de madeira Mwana Phwo e Cihongo, cuja intenção explícita é a representação da figura humana, as inscrições faciais são precisamente as mesmas dispostas no rosto humano, como sendo: o lumba (círculo feito na face representando o sol), o kangongo (traço ao longo do nariz) as masoji (lágrimas sob os olhos), as mitelumuna (sobre as sobrancelhas), as mipila (dois traços paralelos no queixo e nas têmporas) e o cingelyengelye6 (motivo cruciforme na testa, distintivo dos Tucokwe). Algumas destas marcas, nomeadamente lumba e kangongo, aparecem também nas grandes máscaras rituais de resina e entrecasca, nas quais podemos ainda ver a 5

Por escarificação. Este motivo, também chamado Samanana, é ainda conhecido por Kalitoza, palavra derivada do termo português caridade ou caridosa (Cf. Bastin, 1961). Com efeito, a literatura é unânime em afirmar que este símbolo é uma adaptação da cruz da Ordem de Cristo trazida pelos portugueses aquando dos seus primeiros contactos com as populações locais. De igual modo, poderá ser uma representação de Deus ou Nzambi. 6

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representação da lua (meio círculo vermelho) – kakweji, das estrelas (cruzes) – lutongonoxi, da cobra – yenge – e do ser humano – mutu. São muitos os elementos de ruptura que operam a vários níveis, nomeadamente o declínio do secretismo em torno da sua natureza, a negligência do seu aspecto exterior, as alterações na execução técnica de alguns passos das danças ou a sua aparição frequente e provocada em actividades políticas, recreativas e cénicas urbanas. Apesar de estes aspectos estarem a forçar um papel cada vez mais recreativo das máscaras (mesmo de algumas consideradas de acesso restrito), afastando-as da sua significação, sentido e

valores originais, o exercício de ajuste às novas realidades pode representar uma estratégia de manutenção e sobrevivência o que não impede que as máscaras continuem a ser apreciadas pelo seu valor artístico no domínio do espectáculo. Sem fazer resistência aos tempos, mantêm-se enquanto agentes catalisadores de aspectos da identidade cokwe, dentro dos novos desafios sócio-políticos e como elementos de redefinição social, cultural e política num contexto cultural plural. Mwana Phwo, Cihongo, Katoyo, Ngulu, Cindombe, Mungenda ou Ciheu continuarão a ser entidades diferentes que aglutinam, representam, transformam e prolongam no tempo e no espaço um saber ancestral, em performances que garantem a manutenção de uma tradição sempre contínua e sempre em mudança.

2. A MÚSICA E OS INSTRUMENTOS MUSICAIS

Tal como se verifica com a generalidade dos povos, ao acontecer numa multiplicidade de contextos, a música cokwe conhece distintos campos que vão da religião à recreação ou da performance à terapia. Podendo desempenhar um papel relevante em rituais ou noutros eventos privados, de acesso restrito, apoia-se na existência de alguns instrumentos (geralmente tambores) que são frequentemente associados aos representantes do poder, pelo que apenas se utilizam em ocasiões nas quais eles se fazem presentes.

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Tendo em conta as características regionais em que se insere o património musical angolano, a percussão é predominante, embora uma das bases fundamentais seja a melodia contida na grande variedade de canções. Episódios históricos ou do quotidiano, factos que acontecem e que são do domínio público, ou velhas histórias herdadas, são relatados através dessas canções que podem, ou não, ter um cunho satírico. As canções podem, igualmente, transmitir estados de espírito, sendo um veículo para exprimir tristezas, alegrias, lamentos ou saudades. Tal como as danças, existem canções específicas para as diferentes situações rituais, para os momentos de lazer ou para as comemorações; canções fúnebres, canções infantis e outras que são exclusivas dos adultos; canções só de homens ou só de mulheres e ainda canções que devem ser acompanhadas por cisaji – as myaso ya cisaji

ou áreas de cisaji – e as canções de ndjimba que, embora possam ser acompanhadas pelo cisaji possuem diferenças tonais (Silva et al., 1961). Assim sendo, existem as cantigas associadas à Mukanda interpretadas por um solista com um coro masculino e misto; as do ritual Ukule que são trechos entoados durante os rituais de iniciação feminina, por uma solista e um coro feminino, as quais podem ou não ser acompanhados por palmas; as dos Akixi que são cantigas próprias para receber os mascarados na comunidade, em que o solista pode ser o próprio mukixi, sendo os coros (pessoas presentes) femininos ou mistos. Os cantos de Mahamba acompanham as cerimónias religiosas, tendo um solista e um coro feminino ou misto. É acompanhado por tambores e guizos diversos. Muhema, também chamado Muxeta é um coro fúnebre, adoptado dos Lunda. Por fim Silva et al. (ibidem) referem os cânticos guerreiros que são canções de índole bélica, posteriormente associadas a cenas de caça. Para além da voz, os principais instrumentos musicais presentes na música cokwe, alguns dos quais partilhados com os seus povos vizinhos e mesmo com todo o território angolano e países fronteiriços, podem agrupar-se de diferentes modos, dependendo do critério taxonómico eleito. Assim, podem ser organizados segundo um classificador mais formal em ideofones, aerofones, membranofones e cordofones ou, de uma forma mais simplificada, em instrumentos rítmicos e melódicos. Podem também ser 8 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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distinguidos por classes, como acontece nas orquestras clássicas, agrupando-se em instrumentos de cordas, de sopro (madeira e metal), de percussão e de teclas. Todos os instrumentos musicais são construídos por especialistas, de forma peculiar, seguindo técnicas e preceitos antigos, os quais dominam igualmente as suas técnicas de afinação (até se atingir o timbre que lhes é característico) e de execução, para o que utilizam materiais locais diversos e outros, produto do contacto com outros povos e outras tecnologias. Neste contexto, não existe dança sem acompanhamento musical pelo que, nos grandes encontros com a participação de toda a comunidade estão sempre presentes conjuntos de tambores com designações diferentes, conforme as suas funções e posicionamento na orquestra. As suas “vozes” também são distintas dependendo do seu tamanho, da sua

forma, da sua afinação e das diferentes técnicas de tocar, como é o caso das danças de mascarados, onde os músicos estão posicionados em grupo, num dos pontos do círculo formado pela assistência, mas sempre do lado de dentro desse círculo, de forma a terem um controle completo da dança e para não serem alvo de interferências por parte dos espectadores. Para estas performances é utilizado um conjunto de ngoma (tambor) possuindo, cada um deles, diferentes funções. No que respeita à dança, cujos movimentos são policêntricos, cada ngoma dirige uma secção do corpo do bailarino. Com o objectivo de conseguir o timbre certo, os instrumentistas empregam o ulezo, uma massa feita de óleo de rícino e borracha virgem. A afinação destes tambores fica completa com o aquecimento da pele através do calor de uma fogueira, para que ela fique bem esticada. O ngoma ya xina é o tambor principal. É o maior (xina) de todos e é tocado com exclusividade pelo mestre da percussão, mukwa ngoma ya xina, que usa nos pulsos um ou dois conjuntos de sangu que são pequenos chocalhos feitos com um fruto redondo, seco e cheio de sementes. Para ter o som mais evidente, a pele de que se reveste é coberta na totalidade com ulezo. É colocado entre as pernas do tocador, em posição oblíqua com relação ao chão.

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O ngoma ya mukhundu é o tambor que chama; marca o ritmo e tem apenas uma pequena quantidade de ulezo, enquanto o ngoma ya kasasulwilo, sem ulezo, é o tambor médio, o que responde. Por fim o ngoma ya kasumbi7, cuja pele também não possui ulezo, acentua a sua “voz”, ligado ao ngoma ya xina. Embora seja também considerado um tambor sagrado, ligado ao poder e às chefias, o ngoma ya mukupela8 está sempre presente nas danças de máscaras, tratando-se de um tambor bifacial e com o tronco (geralmente gravado com motivos decorativos), em forma de ampulheta. Pode haver mais do que um a tocar ao mesmo tempo. O tocador pode estar sentado ou com um joelho assente no chão, pois este ngoma deve estar em

posição horizontal ao chão. Cada face deverá, com a afinação correcta, produzir um som diferente. Ainda dentro dos instrumentos de percussão há a considerar o Cikuvu, um grande tambor em forma de trapézio feito de um tronco único escavado. Anteriormente utilizado para o envio de mensagens e de chamamentos, é percutido por duas baquetas de madeira revestidas, numa das extremidades, por bolas de borracha virgem. É frequentemente tocado por dois músicos, podendo estar assente no solo, pendurado entre duas árvores ou inclinado, entre as pernas do tocador que está sentado no chão. Com a função de marcar o contratempo temos os mukakaji ou mukakala que são duas varetas de madeira percutidas na base de um dos tambores menores. Quando estão todos, a ordem de colocação destes instrumentos não é arbitrária, sendo a disposição correcta, ao centro, o ngoma ya xina, o maior de todos os tambores; à sua direita, o ngoma ya mukhundu; à sua esquerda, o ngoma ya kasasulwilo e à esquerda deste, o ngoma ya kasumbi. Na classe dos instrumentos de teclas temos a Njimba, onde a cada lâmina de madeira (anteriormente gravada com motivos ornamentais) corresponde uma cabaça como caixa ressonância. É o maior dos instrumentos melódicos, sendo tocada por dois ou mais 7

Kasumbi quer dizer galinha. Também ouvimos chamar-lhe Mukuasu; Mukuanzo e Mukupyela. As duas últimas designações são vulgares na região do Moxico. 8

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executantes que, em tempos remotos, usavam barbas postiças, sala (penas) na cabeça e, muitas vezes, os mesmos acessórios da máscara Mwana Phwo, com chocalhos nas pernas para poderem dançar. Ainda com teclas, mas de metal ou fibras vegetais, existe uma série de lamelofones, constituídos por uma base à qual se prende um conjunto de teclas em forma de lâmina, de diversos tamanhos, unidas por um travessão. Inicialmente feitos com materiais vegetais, estes instrumentos passaram, dada a expansão do uso do ferro, a ser construídos com uma base de madeira e lamelas de metal, assentando, alguns deles, numa cabaça que funciona com caixa de ressonância. Distinguem-se entre si, quer pela forma de construção e afinação, quer pelos materiais de confecção utilizados e tecnologia empregue na sua manufactura. Como são segurados entre as mãos, os músicos usam apenas os polegares e os indicadores para os dedilharem.

Os isaji (sing. cisaji) nome pelo qual são genericamente designados, executados por um músico solista, não integram as orquestras tradicionais nem são usados em músicas para danças colectivas, embora o seu executante possa dançar enquanto toca. Normalmente são tocados a solo, sendo igualmente usados para acompanhar os viajantes solitários durante as longas caminhadas, ajudando-os a vencer as distâncias das viagens. A sua execução pode ser acompanhada com a entoação de uma melodia cantada. O etnomusicólogo Gherard Kubik (1999), que se dedicou ao estudo dos lamelofones em África, organiza a sua presença em Angola em quatro grupos: mucapata (com caixa de ressonância em madeira, fila única de lamelas metálicas e uma vareta com pequenos anéis vibratórios), ocisanji (com base formada por uma tábua e fileira de lamelas metálicas), lungandu (com base formada por uma tábua, mas duas fileiras de lamelas metálicas sobrepostas) e likembe (com caixa de ressonância em madeira fechada nos lados com cera, fila única de lamelas metálicas e orifício para um efeito de amplificação do som). Outros autores inventariaram estes instrumentos musicais, entre os quais Bastin (1961), que refere cinco categorias: ca kakulondondo, ca lungandu, ca muyemba, ca kele mucapata e ca lipungu, este último com caixa de ressonância quadrada. Por seu 11 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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lado, Baumann (1935) divide-os em três grupos, onde inclui os seguintes tipos: lungandu que possui três teclas ligadas a uma cabaça como caixa de ressonância (muvungu), o cisaji ca mukapala ou cisaji ca kele, um “Piano de mão” feito de fibras vegetais (lascas de cana e folhas e palmeira). Este autor refere ainda os de teclado único, kasaji, que são mais pequenos9. No que respeita aos instrumentos de corda temos o kakulumbumbwa10 formado por uma haste de madeira flexível que termina numa pequena cabaça cortada ao meio e possui um fio metálico que é percutido com uma vareta e o kalialya ou kakoxi, uma espécie de viola tocada com arco (uta wa kalialya). Dentro dos instrumentos utilizados em rituais, para além dos ngoma (alguns dos quais com carácter de exclusividade) existe o muzamba wa ngombo, chocalho de fibras utilizado pelo Tahi durante as sessões de diagnóstico e o lupembe ou kanjimba que é uma pequena Njimba com apenas duas teclas e duas cabaças.

Baumann (ibidem) refere ainda o kaloa (arco de raspar), o citave (chifre) e o mwono. O lundamba (reco-reco), os sangu (sing. lusango) ou chocalhos variados e os apitos completam a variada família de instrumentos musicais utilizados pelos Tucokwe. Dos contactos com outros povos e com as novidades trazidas dos centros urbanos, surgiram novos instrumentos, nomeadamente as guitarras artesanais comparadas às guitarras acústicas ocidentais.

3. A DANÇA E O SIMBOLISMO DA SUA INDUMENTÁRIA O provérbio cokwe «Kupandjika ku ngoma, kupanjika ku wino»11 (conforme se toca, assim se dança) expressa bem a forte relação e interdependência entre a música e a dança. Ao contrário do que acontece relativamente à dança teatral (particularmente nos géneros moderno e contemporâneo), no contexto das danças patrimoniais cokwe, a dança não se constitui em criações de autor, nem pode ser equacionada de forma 9

O prefixo ‘ka’ é diminutivo. Equivalente ao hungu 11 Literalmente: “ouvir o tambor, ouvir a dança”. Cf. J. V. Martins, 2005. 10

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separada da música12. Quer uma, quer a outra são pautadas por referenciais rítmicos e, como refere Kubik (1981) a música preenche a organização do movimento, dado o vínculo existente entre os aspectos cinéticos e os sonoros. Efectivamente, entre os Tucokwe, o thangixi (mestre de dança na Mukanda) é também, como acima referido, o mukwa ngoma (instrumentista principal) ou tocador do instrumento de percussão que tudo lidera – o ngoma ya xina. Na grande região da África a sul do Sahara, a dança constitui ainda uma forma de conservação de espaços culturais, através do uso codificado do corpo, num saber transmitido de geração em geração, situação válida para a cultura cokwe, onde a filosofia tradicional inclui certas formas de especialização do saber que se manifesta, quer na dança, quer nas restantes formas de expressão. Para confirmar a importância da dança, enquanto meio de resistência e manutenção de estruturas sociais e de poder, na generalidade das sociedades africanas, Reed (1998) reporta-se às limitações impostas relativamente às danças locais por parte dos regimes

coloniais, que viam nelas um motivo de desestabilização para as suas governações. Esta repressão originou, em muitos casos, uma maior retracção destas estruturas de transmissão e um fortalecimento das estruturas de poder local para a defesa dos seus valores13. Na qualidade de manifestação corporal, a dança pode constituir um ou vários sistemas de comunicação estruturados a partir de gestos básicos que se combinam, para criar significados ou pode servir apenas para canalizar energias. Enquanto formas de linguagem corporal, as danças servem-se destas estruturas de comunicação para conservar um conhecimento ancestral identitário, que se apresenta nessa diversidade de gestos, posturas e alguns códigos. Para configurar esta complexidade que a dança representa enquanto sistema que articula diversas componentes, existe uma terminologia específica que aproxima e operacionaliza, não apenas o conceito de dança, mas também algumas situações em que 12

Já o contrário é possível. Existe música apenas para ouvir ou para acompanhar algum viajante solitário. Como exemplo temos as origens daquilo a que actualmente se chama a “capoeira” brasileira. Inicialmente uma forma de luta dos escravos angolanos no Brasil, foi camuflada com acompanhamento musical, para ser vista pelos donos das plantações como dança. Cf. Gerhard Kubik, 1979. 13

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determinada actividade motora é reconhecida como tal, uma vez que existem situações em que as noções de “dança” e de “dançar” não são universais. Kaepller (1985) critica as generalizações ocidentais sobre o conceito de dança, as quais tendem a uniformizar diversas actividades distintas entre si. Assim, e de acordo com os actuais pressupostos da etnocoreologia, uma definição do conceito de dança, deve ter em conta o ponto de vista do grupo em questão, já que cada formação social tem uma forma particular de utilização do corpo, tornando-se útil uma leitura semântica de alguns dos vários termos existentes, o que se faz em seguida. Wino – Substantivo para designar “a dança”. Por exemplo: wino wa Ciyanda (dança Ciyanda), wino wa akixi (dança de máscaras ou dança dos mascarados), wino wa ku yiphaya (dança dos/com os ombros), wino wa ku moko (dança das/com as mãos), wino wa ku molu (dança dos/com os pés ou pernas); wino wa Yihongo (dança do mascarado Cihongo), mas também wino wa cikumbi (acima referida).

Kulyata – Verbo que significa “pisar” (pé diz-se yilyato), apoiar, bater com o pé. Utiliza-se no contexto da dança, com o sentido de marcação do compasso. Estabelece uma relação entre a dança, a música e o chão. Tem um carácter qualificador. É utilizado quando alguém «tem estilo, pisa bem, pisa sem hesitar, sabe dançar muito bem, tem técnica»14 e para «demonstrar tudo o que sabe da dança»15 Este termo está presente nas seguintes expressões: Lyata ku utata16 (pisa/marca com o pé direito), instrução (mwanda) dada aos tundanji nas aulas de dança; Nganji kanalyata kanawa (fulano pisa/dança bem); Yiye kanalyata cipema (ele está a pisar bonito / bem) ou está a dançar bonito / bem); Lyata ku a lyata! (pisa/dança do teu jeito!), mwanda dirigida aos bailarinos mascarados durante a sua actuação. Kukina – Verbo que significa “dançar”; executar uma dança; toda a acção de dançar qualquer dança. Por exemplo: Mukwa kukina (bailarino; pessoa que dança); Kukina

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Explicação fornecida por Mwa Mudiandu em entrevista (2005) Palavras transcritas do questionário a A. Kwononoka (2005) 16 Ku utata – Significa literalmente “lado do pai”. Expressão para designar o lado direito; Cimeso (direita). 15

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ngoma (expressão lwena que significa “dançar”. Literalmente, “dançar ao som de tambores”). Kuhangana – Verbo que significa “dançar”. É utilizado unicamente para expressar a acção de dançar, mas tem a conotação de exibição; teatralização; espectáculo. Dançar de forma exuberante. Este verbo consubstancia a designação Akixi a kuhangana (literalmente, mascarados de dança) que se refere aos bailarinos mascarados que possuem um vínculo com a dança. Por Mukwa kuhangana deve entender-se bailarino, pessoa que domina o saber da dança, bailarino profissional. Kusunga mujimba – Expressão que significa literalmente “mexer o corpo”. É um termo genérico, mas aplicável à situação de dança. Não especifica as características do movimento. Kulisuta – Termo que se refere à interpretação pessoal de quem dança. «Improvisar com alegria no coração (...); estilo de cada um»17

Thangixi18 – Mestre de dança; tocador do ngoma principal (mukwa kuimba ngoma) e que dá ordens (miyanda) através do tambor; professor de música e de dança; ensaiador. É um termo utilizado apenas no contexto da Mukanda. Kuthangisa – Ensaiar em grupo. «Significa ensinar; mandar com o batuque»19. «É [dar] um sistema de um código pelo batuque»20. Note-se que existe outro verbo para ensinar – Kulongesa – e outro substantivo para professor ou mestre – longexi –. Por outro lado, o verbo Kutangisa significa “ler”, mas o verbo Kutanga significa criar (criação divina) ou gerar (filhos).

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Tal como explicou Mwa Cilenge, em entrevista (2005) Gerhard Kubik (1974) refere, entre os Mbwela e os Ngangela (povos vizinhos dos Tucokwe), a presença do ntangi, como sendo o tambor com o som mais forte. Françoise Gründ (2000) nota a presença do mesmo instrumento (que designa como tangi) na Zâmbia, referindo que o músico que lidera o grupo dos percussionistas é, justamente, o tocador deste tambor maior. Estes dados levam-nos a admitir uma relação com a designação de thangixi – que é também o mukwa ngoma ya xina (o tambor maior na cultura cokwe) –, usada em Angola. 19 Expressões usadas por P. Sakumbe, em entrevista (2005). 20 Explicação dada por Maleka José, em entrevista (2006). 18

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Mwanda (pl. Miyanda) – Código (ordem / instrução) dada aos bailarinos (ou aos tundanji) pelo mukwa ngoma ya xina (ou thangixi), quer com a voz, quer através do tambor. Em qualquer das formas constitui sempre uma mensagem codificada. Algumas miyanda utilizadas: Swa meya ciwamba! (espalha água com o cinto!), Ngumbe nyima! (mostra a parte de trás!; vira-te de costas); Holesa mwana marila! (cala essa criança que está a chorar!) Kwimba – cantar / tocar um instrumento musical. Por exemplo: Kwimba ngoma (tocar tambor / fazer ouvir a voz do tambor); Kwimba mwaso (cantar uma canção). Pela apresentação dos principais termos empregues em situação de dança, podemos confirmar a existência de distintas formas para designar várias condições e várias qualidades da acção de dançar, em função de contextos e imagens diversos. À semelhança do que acontece no plano da música, as danças podem ser ordenadas de múltiplas formas, de acordo com o critério taxonómico escolhido. Tendo em conta a sua função e contexto é possível organizá-las, na sua generalidade, em recreativas, quando acontecem com o único propósito de diversão e nas quais todos podem participar; rituais, quando são de carácter restrito a cerimónias privadas e de comunicação com outras entidades e possuem fins religiosos, curativos ou fúnebres; comemorativas,

quando se destinam a assinalar acontecimentos específicos; cénicas, quando acontecem exclusivamente para serem vistas por um público espectador. Existindo em várias dimensões, cumprindo várias funções e destinando-se a distintas faixas etárias ou géneros, a dança é, portanto, parte fundamental da educação dos jovens cokwe. No contexto das instituições de iniciação masculinas e femininas, onde o ensino e a aprendizagem são articulados para a transmissão e aquisição de conhecimentos, a dança assume um importante carácter pedagógico. Apesar de muitas terem caído em desuso, só sendo possível a sua referência a partir da bibliografia mais antiga, é considerável a diversidade e quantidade de danças que constituem esta área do património imaterial cokwe.

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No plano das danças recreativas esta cultura possui um repertório rico e variado, motivado pela capacidade criativa e disponibilidade histórica dos Tucokwe para interagirem com outros povos e adoptarem elementos importados de outras culturas. Para além das mais populares, geralmente de roda, como a Ciyanda, (originalmente executada apenas por mulheres), a Cisela (que antecede e encerra as cerimónias da Mukanda), a Kalukuta, a Maringa, a Kaxinga, a Mitinge e a Cisola, existem muitas outras, entre as quais: a wino wa Kusala (dança do tipo Cyanda, mas com movimento mais rápido sugerindo o movimento de peneirar – kusala), a Cizelizeli (de origem kongo e com ênfase na zona das ancas), a Makopo, a Mahenga, a Kandowa (acompanhada com palmas), o Xombe (dança de roda de homens e mulheres). A dança fúnebre Muxeta (onde o corpo se move em quase abandono) integra o grande inventário das danças rituais que comporta também as danças que os caçadores executavam antes de partir para a caça. Relativamente aos rituais de passagem, cada um possui o seu repertório de danças, dentre as quais: as do Mungonge, a Wino wa kuhanganina hawanda, a wino wa Kupanzo (dança mágica executada pelos ‘feiticeiros’). De igual modo, são várias as danças aprendidas e executadas no acampamento da Mukanda, às vezes designadas wino wa tundanji (literalmente danças dos iniciados), donde as mais importantes (por serem aquelas que os rapazes apresentam no dia da saída) são as correspondentes às três principais máscaras de dança: Mwana Phwo (wino wa ciyanda); Cihongo (wino wa ihongo) e Mungenda (wino wa muwango). A estas

acrescentam-se a wino wa Maundu (ou Mahundu), uma dança colectiva em que os tundanji reproduzem os movimentos do macaco; a wino wa ku Iphaya (dança dos ombros) que, tal como o nome indica, centra os movimentos naquela região do corpo; wino wa Utaha, onde se simulam os gestos de ver ao longe (o verbo ‘Kutaha’ significa ‘ver’). A estas, Bastin (1961) acrescenta a wino wa Kuliteta (com ênfase nas ancas) e a wino wa Macakata. Na sua listagem, Baumann (1935) inclui nesta categoria as seguintes danças; wino wa Ngombo; wino wa Kuteta; wino wa Kuhunga e a wino wa Kufwapula.

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Distintas das danças recreativas e de fruição colectiva quando a comunidade se junta para festejar algum acontecimento, existem as danças de mascarados, cujas performances possuem um carácter de espectáculo, sendo o único evento em que a dança é produzida para ser apreciada sem uma participação activa da comunidade. Neste caso particular existe uma gestualidade atravessada por um grande número de mensagens transformadas em sinais, alguns dos quais apenas acessíveis a uma elite dentro da classe dos homens circuncidados ou ngalami, que a aprenderam organizada em dança, em contexto restrito. Apesar disso, a descodificação dos gestos de outras máscaras, está ao alcance de um maior número de pessoas, já que nelas se destaca o papel educativo ou de diversão. Todavia, em qualquer dos casos, esta codificação tem sempre implícita a protecção de um saber que se pretende perpétuo na configuração de uma determinada formação social. No que respeita à forma de vestir, cada máscara se apresenta de acordo com a sua natureza e funções. Com um valor distinto do vulgar guarda-roupa ou indumentária teatral, todos os componentes que revestem o corpo do bailarino mascarado possuem um significado que, na sua essência, transcendem a linearidade de um simples disfarce. Para os Tucokwe, a máscara não é um acessório teatral ou um mero objecto decorativo ou figurativo; estar (ser) mascarado é representar um antepassado ou as suas características e qualidades. Possuindo como base o civuvo (pl. yivuvu), um fato completo de rede que deverá cobrir todo o corpo do mascarado (incluindo pés e mãos), esta segunda pele, que pode ser lisa ou com padrões, dota o seu portador de uma outra identidade, transformando a máscara num legitimador dos valores filosóficos e cosmológicos cokwe. Dentre os vários

motivos inscritos temos as riscas paralelas verticais – kangongo – que significam a mancha longitudinal do dorso de um pequeno roedor e as horizontais – mitwalu –, que designam o entrançado das esteiras de dormir; estes fatos podem ainda apresentar outros motivos geométricos como os losangos concêntricos – majiku – que são uma representação esquemática da fogueira e os triângulos – mabembe – que fazem alusão à pele da víbora yenge. As principais cores (inicialmente obtidas através de pigmentos

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naturais) utilizadas são o ocre (ou castanho), o branco e o preto, as quais não eram escolhidas arbitrariamente por possuírem igualmente significados muito concretos 21. Assim como a máscara facial, os objectos usados pelos bailarinos, quer nas mãos (muswalu, sangu nyi moko, mufuka, ngezo), quer na cintura (muyia, cikapa, muwango), quer nas pernas (sangu nyi molu) não constituem acessórios decorativos. Tiérou (1989) designa-os “objectos dançantes” e possuem na dança a mesma importância que os gestos dos bailarinos, sendo-lhes inerente uma significação e uma função específicas. No caso das danças recreativas, visto tratar-se de actividades públicas praticadas por toda a comunidade, não existe uma indumentária específica para cada uma das danças recreativas. Porém, para algumas danças, existem vários adereços de uso obrigatório; é o caso da wino wa Ciyanda, em que as mulheres devem usar à cintura um cinto próprio, o muiya wa ciyanda22 que possui um tufo de fibras vegetais na parte de trás para acentuar os movimentos da cintura e costas (quando são em tiras de borracha chamamse cipokolo), bem como um conjunto de pequenos chocalhos cosidos nas extremidades, chamados thuelele. Na mão segura-se um pequeno lenço, o muswalo, e nas pernas prende-se um conjunto de chocalhos ou sangu. Se o traje for a preceito coloca-se, a cobrir o peito, um lenço triangular, o cibwiko, atado nas costas. É interessante referir que, embora hoje não se cumpra rigorosamente esta indumentária, ela mantém-se presente na máscara Mwana Phwo.

Outras vezes pode usar-se, um conjunto de lenços compridos dobrados em triângulo e presos à cintura sob o muiya, ao qual se chama mafunya. Nos outros contextos, nomeadamente em situações de maior privacidade, são utilizadas vestes, cores e objectos próprios, de acordo com as exigências das circunstâncias. Durante o tempo em que permanecem em retiro na Mukanda, os jovens rapazes usam, para dançar, o mesmo zombo que vestem diariamente, ou podem utilizar o khamba, que 21

Actualmente encontram-se já muitos mascarados (sobretudo aqueles que dançam) com fatos multicores (que incluem o verde, o azul, o amarelo) e confeccionados com fio de algodão ou de lã. No entanto, para a sua confecção são mantidas as técnicas e os preceitos (pontos, malha e divisão das peças) ensinados na Mukanda. 22 Em tempos ido este cinto era bordado com contas coloridas, ficando revestido com motivos da simbologia cokwe.

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é um cinto em forma de saia mais volumoso e mais pesado que o zombo. Logo que aprendem a confeccioná-los, passam a utilizar os cintos característicos de cada máscara. Assim, para a dança da máscara Mwana Phwo, usam um muiya com a respectiva mulamba (pano usado por baixo do muyia, cuja extremidade cai à frente em forma de avental); para a dança do mascarado Mungenda, a wino wa muwango, utilizam um cinto largo confeccionado em couro, que possui na parte anterior uma representação fálica com fibras vegetais na extremidade, designado muwango e, para a dança do mascarado Cihongo, a wino wa ihongo, utilizam a cikapa, um cinto pesado, com base numa armação de grandes dimensões e em forma de elipse, coberta de fibras makindu, que a técnica desta dança obriga a levantar alternadamente para a direita e para a esquerda à altura dos ombros. As pinturas corporais, obedecendo a motivos específicos – normalmente combinações de linhas rectas ou curvas dispostas horizontal e verticalmente – são efémeras e nunca decorativas ou arbitrárias. Elas restringem-se à definição de um determinado estatuto adquirido ou às ocasiões em que se assinalam momentos circunstanciais de mudança, sendo removidas quando deixam de ser necessárias, ou quando os seus propósitos são atingidos. As cores predominantes são o branco (citoma), obtido a partir da argila branca, pemba e o vermelho (ciciya), proveniente do barro mukhundu, as mesmas que predominam nas máscaras, dada a sua natureza de mediadores entre vários pares de contrários: vida e morte, bem e mal, masculino e feminino.

4. JOGOS A par da prática do exercício físico, frequentemente relacionado com ocupações do quotidiano, mas que se alarga a outras actividades como a dança, são diversos os

jogos que exercem simultaneamente uma acção de estabilizador emocional e de descontracção. Através da sua função recreativa e lúdica, os jogos e passatempos viabilizam a interacção e a comunicação entre as várias gerações, ao mesmo tempo que, numa acção de ensino aprendizagem encerram a responsabilidade da valorização do património e da recuperação de valores sociais substanciais. 20 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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A sua componente pedagógica remete-nos para situações intrínsecas da sociedade ou evocam episódios e personalidades da história, permitindo aos jovens e restantes membros da sociedade uma relação mais estreita com os seus distintos contextos: social, económico, cultural, geográfico e ecológico. Assim, o conhecimento destas actividades que podem ser comuns, mas também apropriadas às distintas faixas etárias transforma-se numa fonte importante para a compreensão da cultura cokwe. Alguns jogos utilizam pequenas peças (pedras, cascas de frutos), outros têm como suporte um desenho ou covas e montículos na areia e outros são jogos de palavras. São vários os jogos e passatempos catalogados na literatura (Fontinha, 1983; Martins, 2001), entre os quais Kendu, Rimbo, Mbamba mutay, Juste, Ngombe, Mubela wa Katapi, Kamanda, Lupaxe, Mpafu, Ndengo e Cela. Dentre eles, o mais popular é o último, para o qual se utiliza um tabuleiro comum número par (entre 28 e 36) de casas escavadas e igual número de pedras (ou sementes). Conhecido com outras designações e possuindo algumas variantes, o Cela é um jogo de tabuleiro da família dos Mancalas, os quais conhecem grande popularidade em todo o continente africano.

5. DESENHOS NA AREIA Para além de poder constituir uma forma identitária, o hábito de executar inscrições tegumentares como a escarificação e a pintura ou revesti-lo com uma máscara será, entre os povos, uma forma de celebrar o corpo enquanto elemento potencial exposto ao adorno, ao embelezamento ou ao prazer, mas também à religião e à magia. Viajadas no tempo, estas práticas contribuem para a conservação de sistemas gráficos

de significados e conteúdos complexos, os quais encerram não apenas a história, mas também a essência cultural e social desses povos. A estrutura cosmológica dos Tucokwe determina a existência de um intrincado sistema simbólico de representações, o qual opera a vários níveis e intervém em diversos 21 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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suportes, nomeadamente sobre a pele, por escarificação e pintura; na caracterização das máscaras e na “decoração” de objectos utilitários, por pirogravura; nas paredes das casas e também na areia – os Sona. Susceptíveis de ser analisados enquanto processo de escrita ideográfica, e apesar do seu carácter efémero, já que são efectuados na areia e apagados em seguida, os Sona (sing. Lusona) consubstanciam um sistema semiótico que constitui uma importante fonte de conhecimento e suporte de significativa parte da tradição oral cokwe, levando-nos a repensar a convicção de que a sociedade tradicional cokwe é ágrafa. No seu dicionário “Cokwe-Português”, o Pe. Adriano Barbosa (1989), dá-nos conta do significado de alguns termos relacionados com esta ideia de inscrição / escrita; Enquanto o verbo Kusona significa «pôr ou marcar pintas; marcar ou tingir com pintas; (com a ponta dos dedos, lápis, caneta, pincel, etc.); sarapintar», o verbo Kusoneka significa «escrever. (Originalmente fazer ou traçar ideogramas na terra com os dedos)». Para a palavra sona, o significado é «Originalmente: ideograma. Hoje também: letra; traço ou marca (com tinta, lápis ou pena); desenho.» Com centenas de anos de existência, conservados e transmitidos por diversas gerações, os sona fazem parte do complexo sistema de educação dentro dos princípios da organização social, moral e religiosa dos Tucokwe, já que esta forma de comunicação e preservação de uma memória colectiva está igualmente relacionada com a resolução de problemas, com a essência de antigos rituais e com a preparação dos jovens rapazes para um desempenho eficaz, enquanto futuros membros activos da comunidade. Geralmente efectuados na cota pelos Akwa kuta sona (aqueles que dominam o saber desta escrita), obedecem a uma técnica de execução própria, baseada na marcação de pontos (geralmente com os dedos indicador e anelar), à qual se segue o traçar de linhas, preferencialmente sem se levantar o dedo (indicador) do solo. A cada um destes desenhos ou conjunto de desenhos monolineares são associados significados, mensagens, personagens, provérbios, mitos, canções, contos ou episódios

históricos, estimulando e potenciando a oralidade, a criatividade, a fantasia e o talento de quem está em acção. A sua descodificação apenas pode ser efectuada por um emissor e um receptor que dominem o seu significado. 22 _____________________________________________________________________________________ Ana Clara Guerra Marques

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Ao mesmo tempo que a prática de utilização destes esquemas da oratura (literatura oral) e sabedoria do povo cokwe é, infelizmente, cada vez menor, existe actualmente uma recuperação destas formas e sua aplicação na área da Etnomatemática23. Dada a sua forte significação e o seu poder nas artes da magia, é frequente encontraremse representações gráficas, por exemplo, do mukixi wa Cihongo, quer nos sona, quer nas paredes das casas, eventualmente para atrair a sorte e os poderes desta máscara. Efectivamente os sona passaram a ser inscritos, em versões pintadas, nas paredes das casas associados a outros motivos ornamentais. As três principais cores utilizadas são o vermelho, o preto e o branco, as quais possuem significados muito específicos nos contextos rituais, sendo as tintas obtidas a partir de elementos naturais (argilas e raízes da região). Os tons ocre e outros derivados das cores de base são igualmente usados. Os motivos mais frequentes são os conjuntos geométricos, havendo igualmente figuras antropomórficas e zoomórficas. Representações de máscaras, cenas do quotidiano e alguma simbologia codificada são também incluídas nesta arte mural. Embora Redinha (1975) fale numa “arte desinteressada”, talvez se deva ponderar a hipótese que outras funções (nomeadamente a protecção e a propiciação) se tenham perdido, sobrevivendo apenas a intenção decorativa.

6. ESCULTURA DE MADEIRA No plano da arte africana, os Tucokwe, há muito ocupam um lugar de destaque. Tendo deixado fortes marcas da sua presença nas zonas por onde passaram durante os grandes movimentos migratórios desde o século XVI oferecem hoje, fundamentalmente, a nível da escultura, objectos chave para o estudo da arte africana. Embora a possibilidade de se falar de uma estética cokwe não signifique a generalização das suas especificidades a todo o contexto africano, pode dizer-se, contudo, que as suas

influências integram o conjunto de pontos de convergência que se destacam no vasto conjunto de povos desta região.

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C.f. Paulus Gerdes (1993)

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A propósito da cultura Baulé, Susan Vogel (1997) refere que o conceito de «objecto de arte» tal como é entendido no Ocidente não existe, já que a palavra «arte» não consta dos léxicos da maioria das línguas africanas e os objectos criados não pressupõem a existência de um público fruidor. Neste contexto, o conceito de arte não pode ser dissociado, por um lado, de um agenciamento social e, por outro, das influências, quer da actividade políticoeconómica, quer das práticas e costumes. As noções de um «belo» padronizado, mais ou menos generalizadas no mundo ocidental conhecem, nestes cenários, outras atribuições que articulam o lado funcional das peças produzidas com uma preocupação e investimento no campo da estética manifestadas no acto da criação. Todavia, e embora frequentemente se remeta a questão da arte africana para o simples utilitarismo, não existem dúvidas sobre o investimento artístico perceptível e visível na complexidade de ideias e objectivos, bem como no «encantamento» produzidos. Apesar do termo "estética" poder ser acusado de transportar uma carga cultural importada, é possível a sua utilização e ampliação no contexto das culturas africanas, se o entendermos enquanto categoria qualificadora e gerindo o eventual conflito entre a subjectividade da experiência estética, experiência sensível e a objectividade dos padrões e conceitos ditados e seguidos pelas culturas locais. Thompson (1979) define treze princípios capazes de sustentar a ideia de uma estética africana onde se destacam a «Semelhança com o ser humano», a «Luminosidade», a «Auto contenção», a «Juventude» e a «Clareza da forma», padrões tidos como fundamentais na filosofia africana, onde o ser humano e as suas qualidades são elementos centrais. Assim sendo, é fundamental que se olhe a arte cokwe a partir de conceitos e padrões estabelecidos internamente por esta cultura, conseguindo-se uma melhor integração e gestão dos restantes pressupostos, bem como uma visão mais específica e menos comparada aos arquétipos ocidentais que ao longo dos tempos têm vindo a influenciar uma significativa parte dos estudos produzidos.

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O nordeste de Angola é uma das principais zonas de desenvolvimento da escultura, sendo possível identificar várias escolas ou diversas opções estilísticas bem marcadas e reconhecíveis (Bastin, 1961). A preferência pelas representações humanas é notória, embora certos animais estejam presentes em algumas das peças criadas. Apesar de se utilizarem outros materiais, a madeira é o preferido. Para além das estatuetas, as vulgares tuponya (sing. kaponya), a arte de esculpir, actividade profissional exclusiva do songi (mestre escultor), estende-se às máscaras faciais e aos tronos dos soberanos, profusamente ornamentados e contando histórias que têm como centro a figura humana. A decoração é, maioritariamente feita por incisão na madeira, por vezes acrescida da utilização de tachas de metal ou outros materiais incrustados e compreende igualmente tambores, tabaqueiras, cachimbos, bastões, bancos ou outros utensílios de uso individual ou doméstico. Para além das ampliações de algumas das figuras (tupele) encontradas no ngombo wa cisuka ou em qualquer outro dos cestos manuseados pelo Tahi, dentre as quais mbate (o casal) e Kuku (a mais reproduzida), outros exemplares que integram este acervo e que revelam a actualização desta arte tradicional são as representações do europeu branco (cindele), de automóveis e de um grande número de objectos decorativos que passaram a fazer parte do quotidiano desta sociedade. Num contexto artístico fortemente comprometido e determinado pelas expressões rituais e religiosas, bem como pelos indicadores do carácter dos povos ou sociedades, algumas destas pequenas estatuetas esculpidas (por vezes polidas e policromáticas) possuem funções de comunicação, propiciação, protecção ou de accionamento de forças e energias manipuladas por agentes especializados e autorizados para o efeito. Estas peças possuem tanto mais valor, ou cumprem tanto melhor as suas funções, quanto mais belas forem, isto é, quanto melhor satisfizerem os padrões estéticos pelos quais se rege o gosto deste grupo sócio-cultural. Nestas sociedades, em que a arte também se alicerça numa base étnica, a mesma palavra significa na generalidade dos casos «belo» e «bom». Sobre esta questão do «belo», Martínez-Ruiz (2001) fala-nos de uma «beleza funcional». Portanto, os objectos de arte são «bons» se cumprem com eficácia as

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funções para as quais foram destinadas, devendo simultaneamente ser agradáveis à vista. A par destas peças de arte existem outras – artesanato – que, se por um lado, passaram a reproduzir as originais para responder a encomendas, por outro mantêm-se como forma de reflectir tempos novos. Distinguindo-se do artista, por não possuir o mesmo poder de interacção com a sociedade através do objecto que cria (Wastiau, 2003), o artesão é, neste enquadramento, o actual herdeiro directo da antiga arte de esculpir cokwe.

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